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Processo n.º 253/03
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam no Tribunal Constitucional
1. Em acórdão proferido em 6 de Junho de 2002, a Relação de Lisboa graduou
os créditos reclamados no apenso à execução de sentença para pagamento de
quantia certa movida por A. contra B., SA., e contra C. E MULHER – no qual D. E
OUTROS, na qualidade de promitentes compradores de determinadas fracções
autónomas de um prédio penhorado e o correspondente direito de retenção,
reclamaram créditos –, da seguinte forma:
'[...]
Tendo a sentença de fls. 276 graduado os créditos dos apelantes em quarto lugar,
desconsiderando o direito de retenção pelos mesmos invocado sobre o imóvel
penhorado, a questão única e essencial posta pelo recurso em apreço consiste em
determinar se aquele direito tem potencialidade para provocar a alteração da
graduação efectuada e impor a prolação de uma outra que acolha a posição que os
recorrentes pretendem ver consagrada. Assente que os reclamantes, ora
recorrentes, têm os seus créditos sobre a executada declarados por sentença
transitada, que lhes reconhece o direito de retenção sobre as fracções H, I, L e
M do imóvel descrito na C.R.P. de Loures sob o n.º 26569, importa ter presente a
estatuição do art. 759° do Código Civil: do n.º 1 resulta que o possuidor da
coisa imóvel com base no direito de retenção pode fazer-se pagar, quanto ao
direito de crédito que tenha relativamente ao dono, pelo valor dela, com
preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio creditório
imobiliário, incluindo o credor hipotecário a que alude o n.º 1 do art. 686°
daquele Código.
Estatui o n.º 2 do aludido art. 759° que 'o direito de retenção prevalece neste
caso sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente'.
Este preceito tem plena aplicação ao caso sub judice, pois é certo que o crédito
reclamado pela Caixa J. deriva de contrato garantido por hipoteca, datado de 13
de Julho de 1981; assim, a prevalência do direito de retenção sobre esta
hipoteca mostra-se indiscutível, já que foi constituída após 18 de Julho de 1980
- cfr. art., 2°, e 3°, do Dec.-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho.
A graduação de fls. 276 não teve em devida conta a previsão constante do
referido n.º 2 do art. 759° do Código Civil.
A jurisprudência é unânime no sentido de que concorrendo sobre o mesmo imóvel um
privilégio creditório imobiliário, um direito de retenção, e um direito de
hipoteca, será esta a ordem de preferência a ter em conta na graduação a
efectuar.
Em face do exposto, impõe-se concluir pela ilegalidade do quarto lugar conferido
aos apelantes, na dita graduação de fls. 276, daí decorrendo que a mesma deve
ser reformulada.
Ressalvando os créditos da Fazenda Nacional e do Centro Regional de Segurança
Social de Lisboa, deve esta apelação proceder, nomeadamente, na parte em que
sustenta ter havido violação do disposto no n.º 2 do citado art. 759°, e defende
que os créditos dos apelantes são de graduar 'em primeiro lugar, relativamente
ao produto das fracções sobre que respectivamente gozam do direito de retenção'
- cfr, conclusão 10ª.
Manda o douto acórdão do S.T.J de 15 de Janeiro de 2002, que, efectuado o
julgamento deste recurso de apelação se extraiam, 'se for caso disso, as
consequências que se mostrarem, eventualmente, devidas no tocante à graduação'
que neste acórdão se fez.
Dando cumprimento ao assim determinado, graduam-se os créditos reclamados pela
forma seguinte:
1º: Custas da execução e demais despesas da justiça;
2°: Crédito da Fazenda Nacional - fls. 284 -, apenas pelo produto da venda dos
imóveis a que respeitam;
3°.:Crédito do Centro Regional de Segurança Social de Lisboa - fls., 291 e 302 -
e da Caixa de Previdência - fls.,11 ;
4°.: Os créditos dos reclamantes D., E., F. e G., declarados por sentença
transitada que lhes reconhece o direito de retenção sobre as fracções H, I, L e
M, respectivamente, sobre o prédio n.º 26569; bem como os créditos dos
reclamantes H. e I. - fls, 330 -, pelo produto da venda dos imóveis sobre os
quais incidem os seus direitos de retenção;
5°.: Os créditos da Caixa J., garantidos por hipoteca;
6°.: O crédito exequendo;
7°.: O crédito da 'K., S,A,' - fls., 117;
8°.: Os créditos dos reclamantes titulares do direito de retenção, na parte não
satisfeita pelo produto da venda das fracções objecto desse direito.[...] '
Inconformada, a CAIXA J. recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. Todavia,
por acórdão de 18 de Fevereiro de 2003, o Supremo Tribunal de Justiça negou a
revista. Após remeter para a matéria de facto “assente na decisão recorrida” e
transcrever a graduação de créditos ali efectuada, considerando-a correctamente
fundamentada no artigo 759º do Código Civil, o Supremo Tribunal de Justiça
decidiu o seguinte:
'[...]
Acentua-se em tal decisão que tal preceito tem plena aplicação ao caso
'sub-judice', pois o crédito da recorrente deriva de contrato garantido por
hipoteca, datado de 13 de Julho de 1981, e, assim, a prevalência do direito de
retenção sobre esta hipoteca mostra-se indiscutível, já que foi constituído após
18 de Julho de 1980 - cfr . art. 2 e 3 do DL 236/80 de 18/7.
Esta é a questão fulcral e única a decidir no presente recurso, sendo também
sabido que os recursos se não destinam a decidir questões novas nos termos
pretendidos por aquela.
Centrando-nos, portanto, em tal questão diremos que a recorrente carece de
razão, já que a nova lei ao definir em abstracto um novo caso de direito de
retenção, não está a ofender um direito anterior do credor que, no momento da
constituição da garantia hipotecária, estivesse seguro da impossibilidade de
nenhum outro direito prioritário (cfr . Ac. STJ de15/5/90, BMJ 397/478).
Tal significa que se não verifica a inconstitucionalidade material do n.º2 do
art. 442º C.Civ, na redacção dada pelo DL 236/80 de 18/7, e da al. f) do art.
755° do mesmo Código, invocada pela recorrente.
O regime jurídico legal assim consagrado não perturba os princípios básicos do
Estado de Direito, particularmente os da confiança e segurança jurídica (art. 2º
CRP).
Não se vê, portanto, qualquer inconstitucionalidade orgânica dos DL 236/80 de
18/7 e 379/86 de 11/11 nos termos alegados pela recorrente, sucedendo que a
matéria contemplada em tais diplomas legais não é das abrangidas pelo art. 168°
n.º1 b) CRP (hoje 165 n.º 1 b) - v. Ac. R. Porto de 2/12/99, C.J. XXIV, V, 213).
Tudo a mostrar que a graduação de créditos efectuada pelo acórdão recorrido não
merece qualquer censura, já que nos termos expostos o direito de retenção
prevalece sobre a hipoteca ainda que esta tenha sido registada anteriormente
(art. 759 n.º2 C.Civ) - v. Ac. STJ de 26/6/01, Proc. 1843/01 desta 6ª Secção,
C.J. IX, II, pág. 137).
Improcedem, pois, as conclusões das alegações da recorrente, sendo de manter o
decidido no acórdão recorrido, que não violou quaisquer preceitos legais,
'maxime' os referidos pela recorrente.[...]'
2. Novamente inconformada, a CAIXA J. recorreu para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei
nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC), nos seguintes termos:
a) O douto acórdão do STJ não tomou em consideração, no que respeita à graduação
do crédito da Fazenda Nacional, o Acórdão n.º 362/2002 do Tribunal
Constitucional (publicado no Diário da República, n.º 239, 1.ª Série, de 16 de
Outubro de 2002), que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória
geral, da norma constante, na versão primitiva, do artigo 104.º do Código do
Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
442-A/88, de 30 de Novembro, e, hoje, na numeração resultante do Decreto-Lei n.º
198/2001, de 02 de Julho, do seu artigo 111.º, na interpretação segundo o qual o
privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Nacional prefere à
hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil, questão de direito e de
conhecimento oficioso, como é a da inconstitucionalidade, e em obediência ao
comando fundamental do artigo 204.º da CRP: 'Nos feitos submetidos a julgamento
não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição
ou os princípios nela consignados (cfr. Acórdão do STJ de 2002.02.05, Processo
n.º 3613/01-1);
b) Igualmente não considerou, quanto à graduação do crédito da Segurança Social,
o Acórdão n.º 363/2002 do Tribunal Constitucional (publicado no Diário da
República, n.º 239, 1.ª Série, de 16 de Outubro de 2002), que declarou a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do
artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 09 de Maio, e do artigo 2.º do
Decreto-Lei n.º 512/76, de 03 de Julho, na interpretação segundo o qual o
privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à
hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil, questão de direito e de
conhecimento oficioso, como é a da inconstitucionalidade, e em obediência ao
comando fundamental do artigo 204.º da CRP: 'Nos feitos submetidos a julgamento
não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição
ou os princípios nela consignados (cfr. Acórdão do STJ de 2002.02.05, Processo
n.º 3613/01-1);
c) Finalmente, na inconstitucionalidade material do n.º 2 do artigo 442.º e da
alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º, ambos do Código Civil (CC), por violadores
dos direitos patrimoniais do credor, titular de uma hipoteca existente
anteriormente ao reconhecimento do eventual direito de retenção e, ainda, com
fundamento em igual inconstitucionalidade, agora orgânica, porquanto os diplomas
legais que alteraram e introduziram as retro indicadas normas do Código Civil,
nomeadamente os Decretos-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho e 379/86, de 11 de
Novembro, embora tratando de matéria contida na área dos direitos e garantias
patrimoniais, não foram precedidos da necessária lei de autorização legislativa,
atenta a competência legislativa atribuída ao Governo.
A inconstitucionalidade dos citados preceitos, bem como dos diplomas que os
introduziram no nosso sistema jurídico, foi invocada nas alegações para o
Supremo Tribunal de Justiça, aquando da interposição do recurso de revista, na
sequência do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que julgou procedente a
apelação interposta pelos Recorridos, graduando os créditos da Caixa J. após os
direitos de retenção dos reclamantes D., E., F. e G. sobre as fracções A, I, L e
M, respectivamente, sobre o prédio n.º 26569, como garantia dos seus créditos
sobre a sociedade Executada.
Assim sendo, deverá ser revogado o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
que negou a revista, atentas as alegadas e suscitadas inconstitucionalidades,
materiais e orgânicas, das normas que estiveram na base da sua decisão, devendo
esse Acórdão ser substituído por outro em que as questões de direito subjacentes
sejam decididas com base na certeza e segurança do comércio jurídico, fazendo-se
assim jus à rainha das garantias reais, ou seja, a hipoteca.
Termos em que se requer a admissão do presente recurso, nos precisos termos do
artigo 76.º, da Lei n.º 28/82, de 15.11, seguindo-se os demais trâmites até
final.
O recurso foi admitido.
Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as respectivas alegações, que
a recorrente concluiu da seguinte forma:
I - O acórdão recorrido enferma de várias inconstitucionalidades, ao fazer, na
situação dos autos, uma interpretação e aplicação da lei em desconformidade com
princípios consagrados na Constituição da República Portuguesa, afectando desse
modo direitos e interesses legítimos da Recorrente;
II - O douto acórdão do STJ não tomou em consideração, no que respeita à
graduação do crédito da Fazenda Nacional, o Acórdão n.º 362/2002 do Tribunal
Constitucional (publicado no Diário da República, n.º 239, 1.ª Série, de 16 de
Outubro de 2002), que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória
geral, da norma constante, na versão primitiva, do artigo 104º do Código do
Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
442-A/88, de 30 de Novembro, e, hoje, na numeração resultante do Decreto-lei n.º
198/2001, de 02 de Julho, do seu artigo 111º na interpretação segundo o qual o
privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Nacional prefere à
hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil, questão de direito e de
conhecimento oficioso, como é a da inconstitucionalidade, e em obediência ao
comando fundamental do artigo 204.º da CRP: 'Nos feitos submetidos a julgamento
não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição
ou os princípios nela consignados (cfr. Acórdão do STJ de 2002.02.05, Processo
n.º 3613/01-1);
III- O acórdão do STJ também não considerou, quanto à graduação do crédito do
Centro Regional de Segurança Social de Lisboa, o Acórdão n.º 363/2002 do
Tribunal Constitucional (publicado no Diário da República, n.º 239, 1.ª Série,
de 16 de Outubro de 2002), que declarou a inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, das normas constantes do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º
103/80, de 09 de Maio e do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 03 de Julho,
na interpretação segundo o qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à
segurança social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil,
questão de direito e de conhecimento oficioso, como é a da
inconstitucionalidade, e em obediência ao comando fundamental do artigo 204.º da
CRP: 'Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas
que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (cfr.
Acórdão do STJ de 2002.02.05, Processo n.º 3613/01-1);
IV - O artigo 755.º, n.º 1, alínea f) do Código Civil confere ao
promitente-comprador, que obteve a tradição da coisa, um direito de retenção
sobre o bem imóvel;
V - O direito de crédito do promitente-comprador, resultante do incumprimento
pelo promitente vendedor, do respectivo contrato-promessa, prevalece sobre o
crédito hipotecário, ainda que a hipoteca apresente registo anterior;
VI - Tal direito de retenção não é objecto de registo, logo, é um direito que
não é publicitado;
VII - No caso dos autos, vê-se a Recorrente confrontada com um direito real de
garantia, não sujeito a registo, com o qual não contava;
VIII - Esse direito de retenção sobrepõe-se à hipoteca constituída e registada
em momento anterior, relegando-a para um segundo plano;
IX - O legislador ao querer proteger e defender os interesses de uma das partes
na relação jurídica emergente do contrato-promessa, não poderia ter criado
normas que sacrificam, efectivamente, da forma injusta e ilegítima, os
interesses patrimoniais de terceiros não intervenientes e completamente alheios,
por causa que não lhes é imputável, ao contrato-promessa;
X- Proteger-se, por esta forma, um direito que não é publicitado é permitir que
'ónus ocultos' afectem a posição jurídica do sujeito que levou o seu acto a
registo;
XI - Está, assim, posto em causa o próprio princípio da segurança do comércio
jurídico imobiliário;
XII - À certeza e segurança do direito repugnam os direitos reais de garantia
'ocultos', isto é, que não são levados a registo;
XIII - Tem o registo predial por finalidade a segurança e protecção dos
intervenientes no mercado imobiliário, evitando-se assim os 'ónus ocultos' que
dificultem o exercício de direitos legitimamente constituídos e registados sobre
imóveis;
XIV - Através da via registral evita-se que a segurança do comércio jurídico
imobiliário possa vir a ser afectada.
XV - A Recorrente, credora hipotecária, vê frustrada a confiança no comércio
jurídico imobiliário;
XVI - O regime jurídico do direito de retenção concedido ao promitente comprador
por força das citadas normas, tudo isto ignora, dado que frustra a legítima
confiança que o credor hipotecário deposita no Estado enquanto garante dos seus
direitos fundamentais;
XVII - Por força da sentença de graduação de créditos confirmada pelo Tribunal
Recorrido vão ser pagos os créditos dos promitentes-compradores com preferência
sobre o crédito da Recorrente;
XVIII - É uma injustiça para o credor hipotecário sofrer a ofensa dos seus
interesses e direitos patrimoniais legitimamente constituídos e registados
anteriormente à constituição e invocação do direito de retenção;
XIX- Na sentença dos presentes autos, graduando o crédito do promitente
comprador com preferência sobre o crédito da Recorrente, verifica-se a
existência da violação do princípio da confiança do comércio jurídico, princípio
constitucional ínsito no artigo 2.º da CRP;
XX- As normas dos artigos 442.º, n.º 2 e 755.º, n.º 1, alínea f), ambos do
Código Civil, interpretadas e aplicadas no sentido de que o direito de retenção
tem preferência sobre a hipoteca registada anteriormente, são materialmente
inconstitucionais por violadoras dos princípios da proporcionalidade, da
protecção, da confiança e segurança jurídicas no comércio jurídico imobiliário
ínsito no artigo 2.º da CRP;
XXI - Os Decretos-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho e n.º 379/86, de 11 de
Novembro, são inconstitucionais por regularem matéria respeitante a direitos e
garantias patrimoniais da competência exclusiva da Assembleia da República;
XXII - Para que o Governo pudesse legislar sobre tal matéria necessitava de
autorização do ente legislativo competente;
XXIII - Não foi concedida a devida autorização;
XXIV - Ao fazer inovações sobre essa matéria, sem que para tal estivesse
autorizado, houve violação da esfera de competência de outro órgão;
XXV - Verifica-se haver inconstitucionalidade orgânica;
XXVI - Sendo inconstitucionais tais diplomas, as normas que deles emanam não
podem ser invocadas e aplicadas em qualquer procedimento judicial.
Nestes termos deve ser dado provimento ao presente recurso e ser reconhecida a
inconstitucionalidade das normas constantes, na versão primitiva, do artigo
104.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, e, hoje, na numeração
resultante do Decreto-Lei n.º 198/2001, de 02 de Julho, do seu artigo 111.º, do
artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 09 de Maio, da norma do artigo 2.º do
Decreto-Lei n.º 512/76, de 03 de Julho; ser declarada a inconstitucionalidade
material dos artigos 442.º, n.º 2 e 755.º, n.º 1, alínea f), ambos do Código
Civil, por na sua interpretação e aplicação nos presentes autos ter sido violado
o artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa e, ainda, declarada a
inconstitucionalidade orgânica dos Decretos-Lei n.º 236/80, de 18/07 e 379/86,
de 11/11, devendo em consequência ser revogada a sentença de graduação de
créditos que confere preferência aos créditos da Fazenda Nacional, do Centro
Regional de Segurança Social de Lisboa e dos promitentes-compradores, titulares
de direitos de retenção sobre os créditos da Recorrente, esta com hipoteca a seu
favor registada anteriormente, por tais normas legais e os diplomas de onde
emanam enfermarem de inconstitucionalidade, assim se fazendo Justiça!
Quanto aos recorridos, concluíram a sua alegação deste modo:
1. Os decretos 236/80 e 379/86, limitam-se a criar um direito de indemnização a
favor de promitentes compradores que promitentes vendedores, deixando de cumprir
um contrato validamente celebrado, espoliavam impunemente.
2. Os referidos decretos não retiram ou eliminaram qualquer direito de
propriedade; limitaram-se a instituir um direito e a hierarquizá-lo.
3. O art. 62º da CRP consigna apenas um principio de regime político que garante
a existência ou possibilidade de existência do direito de propriedade privada.
4. A criação de direitos e a hierarquização na sua satisfação (por ex. uma
indemnização por violação de contratos) feita pelos dec. 236/80 e 379/86 não
está submetida à reserva relativa de competência estabelecida na alínea b) do
n.º1 do art. 165 CRP.
5. O acórdão do STJ, negando provimento ao recurso da recorrente, não violou
qualquer disposição da Constituição Portuguesa.
Pelo que, Exmos. Juizes Conselheiros, negando provimento ao recurso, se fará
inteira e habitual Justiça!
3. Admitindo a hipótese de não conhecer de parte do objecto do recurso, o
relator notificou as partes do seguinte despacho:
'A CAIXA J. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na
alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 2003, proferido no
âmbito do apenso à execução de sentença para pagamento de quantia certa movida
por A. contra B., SA., e C. e mulher, que confirmou a graduação dos créditos
reclamados.
É, todavia, plausível que o Tribunal Constitucional não possa conhecer das
questões de constitucionalidade colocadas nas alíneas a) e b) do requerimento de
interposição de recurso, por respeitarem a normas que não foram aplicadas no
acórdão recorrido.
O Supremo Tribunal de Justiça sublinhou, com efeito, no referido acórdão, que a
“questão fulcral e única” a decidir, uma vez que os recursos se “não destinam a
decidir questões novas nos termos pretendidos pela Caixa J.”, era a questão da
“prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca” detida pela recorrente. Em
consequência, o Supremo Tribunal de Justiça não conheceu da graduação dos
créditos reclamados pela Fazenda Nacional e pelo Centro Regional de Segurança
Social de Lisboa, por entender tratar-se de matéria não abrangida pelo recurso
de revista. Não aplicou, portanto, as normas indicadas nas referidas alíneas a)
e b) do requerimento de interposição de recurso, o que impede que o Tribunal
Constitucional se pronuncie sobre as questões ali colocadas (cfr. a alínea b) do
n.º 1 do artigo 70º e o artigo 79º-C da LTC), já que o julgamento seria inútil,
por não poder implicar qualquer reformulação da decisão recorrida.
Igual observação merece a invocação da declaração de inconstitucionalidade com
força obrigatória geral de normas, relevantes para a causa, mas que não são
relevantes para a decisão de que foi interposto o recurso de
inconstitucionalidade.
Relativamente às questões suscitadas na alínea c) do requerimento de
interposição de recurso, há igualmente duas advertências a fazer.
Em primeiro lugar, a de que não resulta do n.º 2 do artigo 442º do Código Civil
a atribuição de nenhum direito de retenção ao promitente comprador, pelo que,
não se repercutindo na causa, seria também inútil que o Tribunal Constitucional
se pronunciasse sobre qualquer norma contida no preceito.
Para além disso, a eventual prevalência do crédito garantido pelo direito de
retenção em causa neste recurso sobre o direito do credor hipotecário não
resulta de nenhum dos preceitos incluídos pela recorrente no âmbito deste
recurso, pois está previsto no n.º 2 do artigo 759º do Código Civil, como
expressamente se refere no acórdão recorrido.
Assim, é de admitir que o Tribunal Constitucional não possa conhecer da questão
da prevalência que a recorrente coloca, mas, apenas, a relacionada com a
existência de direito de retenção atribuído pela alínea f) do n. 1 do artigo
755º do Código Civil, no que à inconstitucionalidade material respeita.
Em consequência do exposto, entendo que deve ser concedida às partes
oportunidade para se pronunciarem sobre esta matéria, no prazo de 10 dias.'
Não houve resposta.
4. Cumpre começar por fixar o objecto do recurso, o qual, pelas razões
constantes do incontestado despacho do relator, acima transcrito, se restringe à
apreciação da alegada inconstitucionalidade orgânica dos Decretos-Lei n.º
236/80, de 18 de Julho e n.º 379/86, de 11 de Novembro e da
inconstitucionalidade material da norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do
Código Civil, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de
Novembro, enquanto confere ao promitente comprador de um imóvel, caso tenha
havido tradição, direito de retenção sobre o mesmo imóvel, por créditos
resultantes de incumprimento pelo promitente vendedor.
5. Acontece que o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se
pronunciar sobre as questões suscitadas no âmbito deste recurso.
Assim, e no que toca à inconstitucionalidade orgânica, nos seus acórdãos n.ºs
374/2003, 594/2003 e 356/2004 (publicados no Diário da República, II série,
respectivamente, de 3 de Novembro de 2003, de 10 de Fevereiro de 2005 e de 28 de
Junho de 2004) e 22/2004 – disponível em www.tribunalconstitucional.pt – o
Tribunal Constitucional julgou no sentido da não inconstitucionalidade, como se
pode ler, por exemplo, no acórdão n.º 594/2003:
' [...]
7. Comecemos por indagar se os Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de
Julho, e 379/86, de 11 de Novembro, que foram editados pelo Governo, no uso da
sua competência própria, invadiram a reserva legislativa da Assembleia da
República.
A recorrente considera que tais diplomas estão afectados de
inconstitucionalidade orgânica, na medida em que vieram permitir ao
promitente-comprador de prédio urbano ou de uma sua fracção autónoma, desde que
tenha havido tradição da coisa objecto do contrato prometido, invocar o direito
de retenção, mesmo perante o credor hipotecário, com direito anteriormente
inscrito no registo. No entender da recorrente, as alterações legislativas
introduzidas pelos diplomas questionados foram completamente inovadoras e
respeitam a direitos e garantias patrimoniais incluídas na reserva de
competência legislativa do Parlamento, pelo que, tendo tais diplomas sido
editados pelo Governo, sem autorização parlamentar, violariam o artigo 168º, n.º
1, alínea b), da Constituição (hoje, o artigo 165º, n.º 1, alínea b)).
Torna-se necessário analisar sucintamente o conteúdo dos diplomas e das
alterações introduzidas no regime jurídico do contrato-promessa.
7.1. O Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho, alterou os artigos 410º,
442º e 830º do Código Civil, relativos ao contrato-promessa.
Relativamente ao artigo 410º do Código Civil, o diploma em apreço acrescentou um
n.º 3 respeitante às exigências formais do contrato-promessa de compra e venda
de prédio urbano, ou de sua fracção autónoma, já construído, em construção ou a
construir (reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes e
certificação notarial da existência de licença de utilização ou de construção).
A alteração do artigo 442º do Código Civil consistiu no aditamento de dois
números (n.ºs 2 e 3): quanto ao n.º 2, a inovação consistiu em estabelecer a
favor de quem constitui o sinal e contra aquele que o recebeu uma dupla sanção
como alternativa à restituição em dobro, se tiver havido entrega antecipada do
objecto do contrato prometido: o pagamento do valor da coisa ao tempo do
incumprimento ou a execução especifica do contrato; quanto ao n.º 3, dispôs-se
então que, em caso de incumprimento, e tendo havido tradição da coisa objecto do
contrato prometido, o promitente-comprador goza do direito de retenção sobre ela
pelo crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor.
Foram ainda introduzidas diversas alterações no artigo 830º do Código Civil, que
regula a execução específica, sem directo relevo para a questão agora em apreço.
7.2. O Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novembro, por sua vez, veio alterar
a redacção dos artigos 410º, 412º, 413º, 421º, 442º, 755º e 830º, todos do
Código Civil.
Nos pontos 2 e 3 do preâmbulo do diploma dá-se conta das alterações introduzidas
no regime do contrato-promessa, quer no seu contexto geral, quer quanto à
execução específica.
No ponto 4 do mesmo preâmbulo, justificam-se as modificações introduzidas
relativamente ao direito de retenção atribuído ao promitente-comprador. É este o
aspecto que aqui interessa sobretudo considerar, pelo que se transcreve a parte
relevante:
“O legislador de 1980, para o caso de tradição antecipada da coisa objecto do
contrato definitivo, concedeu ao beneficiário da promessa o direito de retenção
sobre a mesma, pelo crédito resultante do não cumprimento (artigo 442º, n.º 3).
Pensou-se directamente no contrato-promessa de compra e venda de edifícios ou de
fracções autónomas deles. Nenhum motivo justifica, todavia, que o instituto se
confine a tão estreitos limites.
A existência do direito de retenção nesse quadro não repugna à sua índole.
Repare-se que, em diversas previsões do artigo 755º, n.º 1, do Código Civil,
desaparece ou dilui-se a conexão objectiva que o precedente artigo 754º
pressupõe, em termos gerais, entre a coisa e o crédito. Mas será uma garantia
oportuna no contrato-promessa e, por isso, de conservar? A análise da questão
conduziu a uma resposta afirmativa.
Tem de reconhecer-se que, na maioria dos casos, a entrega da coisa ao adquirente
apenas se verifica com o contrato definitivo. E, quando se produza antes, não há
dúvida que se cria legitimamente, ao beneficiário da promessa, uma confiança
mais forte na estabilidade ou concretização do negócio.
A boa fé sugere, portanto, que lhe corresponda um acréscimo de segurança.
O problema só levanta particulares motivos de reflexão precisamente em face da
realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de
edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por
empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, maxime tomados
de instituições de crédito. Ora, o direito de retenção prevalece sobre a
hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759º, n. º 2, do Código
Civil). Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de
promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos.
Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela
dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam
ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições de
crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na
dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas
instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de
critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum
dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas
construtoras.
Persiste, em suma, o direito de retenção que funciona desde 1980. No entanto,
corrigem-se inadvertências terminológicas e desloca-se essa norma para lugar
mais adequado, incluindo-a entre os restantes casos de direito de retenção
[artigo 755º, n.º 1, alínea f)].”
A alteração essencial decorrente deste diploma, para o que aqui releva, foi a
inclusão do direito de retenção, criado pelo Decreto-Lei n.º 236/80, como nova
alínea f), no elenco constante do artigo 755º, n.º 1, do Código Civil.
8. No que diz respeito à questão de constitucionalidade suscitada no
processo a propósito dos diplomas mencionados, sublinhe-se que apenas podem ser
apreciadas no âmbito do presente recurso as normas neles contidas que alteraram
o regime do Código Civil, consagrando o direito de retenção em favor do
beneficiário da promessa que tenha obtido a tradição do imóvel objecto do
contrato a realizar, pois só essas normas foram aplicadas na decisão recorrida e
só quanto a elas pode ser entendida a censura de desconformidade constitucional
formulada pela recorrente.
A inconstitucionalidade apontada pela recorrente resultaria de em tais diplomas
se dispor, sem credencial parlamentar, sobre direitos e garantias patrimoniais,
matéria incluída na reserva legislativa da Assembleia da República (artigo 168º,
n.º 1, alínea b), da Constituição; actualmente, artigo 165º, n.º 1, alínea b)).
Para fundamentar a inclusão da matéria em análise no âmbito dos direitos,
liberdades e garantias e, por isso, no domínio da reserva legislativa da
Assembleia da República, a recorrente alega que os diplomas em questão
procederam à criação de “um direito de crédito” que é “análogo ao direito de
propriedade” (cfr. texto das alegações, a fls. 530).
Cumpre, portanto, analisar se o direito instituído pelos diplomas questionados
se inscreve no âmbito dos direitos, liberdades e garantias a que se reporta a
alínea b) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição, na versão anterior à actual.
“O direito de retenção consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de
a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a
que está adstrito para com aquele” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil
Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra, 1987, anotação ao artigo 754º, p. 772).
O direito de retenção a favor do promitente-comprador não constava do Código
Civil de 1966. Tal direito foi introduzido pelo Decreto-Lei n.º 236/80, com
vista a estabelecer um “verdadeiro equilíbrio entre os outorgantes (o que passa
pela mais eficiente tutela do promitente-comprador)” (cfr. preâmbulo do
Decreto-Lei n.º 236/80, ponto 1).
O direito de retenção foi reconhecido no caso de ter havido tradição da coisa, e
respeitando ao crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor
(artigo 442º, n.º 3, do Código Civil, na redacção que lhe foi dada pelo
Decreto-Lei n.º 236/80).
Com o Decreto-Lei n.º 379/86, manteve-se o direito de retenção conferido ao
promitente-comprador, tendo o mesmo sido inserido no local próprio – o artigo
755º do Código Civil – através do aditamento ao n.º 1 de uma nova alínea, a
alínea f), que veio acrescentar a hipótese em questão aos outros casos, já ali
elencados, de titulares do direito de retenção.
O Código não utilizou, nas diversas situações em que reconhece a existência de
um direito de retenção, o mesmo critério: com efeito, ao reconhecer o direito de
retenção, com carácter genérico, no artigo 754º do Código Civil, a lei liga o
crédito do detentor da coisa a despesas feitas por causa dela ou em resultado de
danos por ela causados. Nos casos especiais do artigo 755º do Código Civil
(versão primitiva), não pode afirmar-se inteiramente tal conexão, embora existam
outros tipos de conexão, como decorre das diferentes alíneas incluídas no artigo
755º.
Segundo Antunes Varela (“Emendas ao regime do contrato-promessa”, Revista de
Legislação e de Jurisprudência, Ano 119º, n.ºs 3749 ss, p. 226 ss; Ano 120º,
n.ºs 3755 ss, p. 35 ss), “o direito de retenção deixou declaradamente de ser,
com o Código Civil de 1966, um puro meio de coerção (ou uma simples causa de
preferência especial indirecta, para usar a terminologia expressiva de Paulo
Cunha) e passou abertamente a revestir a natureza jurídica de um perfeito
direito real de garantia, dotado até de eficácia excepcional, mercê das
especiais raízes em que mergulha a sua origem” (loc. cit., n.º 3763, p. 290 s).
O direito de retenção, tal como está configurado na nossa lei, reveste uma forma
especial de auto-tutela dos interesses da pessoa a favor de quem é conferido,
permitindo ao seu titular não abrir mão da coisa retida enquanto não obtiver
satisfação do seu direito.
Coloca-se então a questão de saber se, tendo o direito de retenção a natureza de
direito real de garantia, deve o mesmo inscrever-se dentro do âmbito da reserva
de competência legislativa da Assembleia da República, por se tratar de um
direito que se inclui no direito de propriedade, e, por conseguinte, susceptível
de ser tratado como direito análogo ao direito de propriedade e abrangido pelo
regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias.
O artigo 62º da Constituição garante a todos o direito à propriedade privada e à
sua transmissão em vida e por morte, “nos termos da Constituição”, isto é,
dentro dos limites e nos termos definidos noutras normas da Lei Fundamental,
competindo ao legislador infra-constitucional definir o conteúdo e limites do
direito de propriedade privada.
Como se escreveu no Acórdão n.º 329/99 deste Tribunal (publicado no Diário da
República, II Série, n.º 167, de 20 de Julho de 1999, p. 6 ss):
“[...] apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza
análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga
respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esse direitos, liberdades
e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à dimensão do
direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades
e garantias.”
Pode, assim, afirmar-se que cabem na reserva legislativa parlamentar relativa as
intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos direitos
análogos, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que
justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos,
liberdades e garantias.
Ora, no que diz respeito ao direito de propriedade, dessa dimensão essencial que
tem natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, faz, indubitavelmente,
parte o direito de cada um a não ser arbitrariamente privado da sua propriedade,
e, na hipótese de expropriação por utilidade pública, a receber uma justa
indemnização (cfr. artigo 62º, n.ºs 1 e 2, da Constituição).
Já quanto ao direito de retenção, entendido como direito real de garantia das
obrigações (tal como a hipoteca – artigo 686º do Código Civil), isto é, como
“direito sobre um direito”, ele não integra o núcleo essencial do direito de
propriedade.
Com efeito, tal direito – ainda que esteja em causa a transmissão ou
constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele e,
portanto, estreitamente relacionado com o direito de propriedade privada –
apenas confere ao seu titular, por um lado, a faculdade de não cumprir enquanto
não vir satisfeito o seu crédito, e, por outro lado, a garantia de realização
preferencial do seu crédito.
Assim sendo, não pode dizer-se que estejam em causa faculdades inerentes ao
direito de propriedade, isto é, faculdades que façam sempre parte da essência do
direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição.
Não integrando o direito de retenção o âmbito da reserva legislativa parlamentar
dos direitos, liberdades e garantias, podia o Governo legislar sobre a matéria
sem necessidade de autorização parlamentar, pelo que as normas que estabelecem
tal direito, constantes dos Decretos-Leis n.ºs 236/80, de 18 de Julho, e 379/86,
de 11 de Novembro, não estão afectadas de inconstitucionalidade orgânica.
Neste sentido decidiu entretanto o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 374/03
(publicado no Diário da República, II Série, n.º 254, de 3 de Novembro de 2003,
p. 16552 ss), em que era igualmente recorrente a ora recorrente. [...] '
É este julgamento de não inconstitucionalidade que novamente se reitera.
6. Resta tratar da questão da invocada inconstitucionalidade material da
norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do Código Civil, na redacção
resultante do Decreto-Lei n.º 379/86. O preceito apresenta o seguinte teor:
Artigo 755º
(Casos especiais)
1. Gozam ainda do direito de retenção:
(...)
f) O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que
obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa
coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos
termos do artigo 442º.
O acórdão n.º 594/2003 (doutrina posteriormente reiterada no acórdão n.º
22/2004) também já se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade desta
norma. Ali se diz:
'[...]
O legislador veio, assim, em 1980 e depois em 1986, invocando a “lógica da
defesa do consumidor”, atribuir ao beneficiário da promessa de transmissão ou
constituição de direito real, que obteve tradição da coisa a que se refere o
contrato prometido, o direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito
resultante do não cumprimento imputável à outra parte.
Será esta uma norma desproporcionada e violadora do princípio da confiança e
segurança jurídica ?
11.1. Analisemos antes de mais a questão da eventual violação do princípio da
proporcionalidade.
Sobre a actuação do princípio da proporcionalidade no domínio das relações
jurídico-privadas e sobre o papel que este princípio pode assumir como
inspirador de soluções adoptadas pela lei no âmbito do direito privado, disse o
Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 302/01 (publicado no Diário da República,
II Série, n.º 257, de 6 de Novembro de 2001, p. 18309 ss):
“[...]
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 153), “o princípio da proporcionalidade
(também chamado princípio da proibição do excesso) desdobra-se em três
subprincípios: (a) princípio da adequação, isto é, as medidas restritivas
legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos
fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens
constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigibilidade, ou seja, as
medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se
exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros
meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias); (c) princípio
da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais
restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se
a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em
relação aos fins obtidos”.
Entre nós, a consagração constitucional do princípio da proporcionalidade não
merece contestação, pelo menos desde 1982. Com efeito, a Constituição da
República Portuguesa, desde a primeira revisão constitucional, consagra no seu
artigo 2º o Estado de direito democrático, sendo certo que o princípio da
proporcionalidade se encontra ínsito nesse conceito político-jurídico, do qual
constitui uma necessária decorrência.
O mesmo princípio da proporcionalidade aflora, aliás, em várias disposições
constitucionais relevantes: no artigo 18º, n.º 2, relativo às restrições aos
direitos, liberdades e garantias; no artigo 19º, n.º 4, impondo expressamente o
respeito pelo princípio da proporcionalidade na opção pelo estado de sítio ou
pelo estado de emergência, bem como nas respectivas declaração e execução; no
artigo 19º, n.º 8, no que concerne às providências a tomar pelas autoridades com
vista ao restabelecimento da normalidade constitucional; no artigo 28º, n.º 2,
relativo à prisão preventiva; no artigo 30º, n.º 5, prevendo as limitações a
direitos fundamentais que decorram das exigências próprias da execução de penas
ou medidas de segurança ou inerentes ao sentido da condenação; no artigo 266º,
n.º 2, que consagra expressamente a subordinação dos órgãos e agentes
administrativos ao princípio da proporcionalidade; no artigo 270º, relativo às
restrições ao exercício de direitos dos militares e agentes militarizados, bem
como dos agentes dos serviços e forças de segurança; no artigo 272º, n.º 2,
referente às medidas de polícia.
De resto, o Tribunal Constitucional tem sucessivamente reconhecido o valor
constitucional do princípio da proporcionalidade (cfr., entre muitos outros:
Acórdão n.º 25/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º vol., p. 7; Acórdão
n.º 85/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., p. 245: Acórdão n.º
64/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., p. 319; Acórdão n.º
349/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., p. 507; Acórdão n.º
363/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., p. 79; Acórdão n.º
152/93, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., p. 323; Acórdão n.º
634/93, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 26º vol., p. 205; Acórdão n.º
370/94, Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994; Acórdão n.º
494/94, Diário da República, II Série, de 17 de Dezembro de 1994; Acórdão n.º
59/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p. 79; Acórdão n.º 572/95,
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., p. 381; Acórdão n.º 758/95,
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., p. 803; Acórdão n.º 958/96,
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34º vol., p. 397; Acórdão n.º 1182/96,
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 35º vol., p. 447).
É assim possível encarar o princípio da proporcionalidade como um princípio
objectivo da ordem jurídica. E, se é certo que a aplicação do princípio da
proporcionalidade se viu inicialmente restrita à conformação dos actos dos
poderes públicos e à protecção dos direitos fundamentais, há que reconhecer que
foi admitido o posterior e progressivo alargamento da relevância de tal
princípio a outras realidades jurídicas, não se detectando verdadeiros
obstáculos à sua actuação no domínio das relações jurídico-privadas.
Não se contesta portanto que o princípio da proporcionalidade seja princípio
geral de direito, conformador não apenas dos actos do poder público mas também,
pelo menos em certa medida, dos actos de entidades privadas e inspirador de
soluções adoptadas pela própria lei no domínio do direito privado.
[...].”
A ideia geral unificadora do princípio da proporcionalidade é a de que o meio
utilizado para atingir certo objectivo deve estar numa determinada relação com
esse objectivo. A avaliação a que há que proceder para aferir da
proporcionalidade incide sobre um meio, que é dirigido a um certo fim, e implica
a apreciação da respectiva idoneidade, necessidade e racionalidade à prossecução
do fim em vista.
No caso dos autos, trata-se de saber se é desproporcionada ou excessiva a norma
que consagra o direito de retenção em favor do promitente-comprador, que obtém a
tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, pelo crédito do
incumprimento imputável à outra parte.
A resposta não pode deixar de ser negativa. [...]
11.2. Vejamos agora se a norma questionada, enquanto concede o direito de
retenção ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito
real, que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, viola
o princípio da confiança e segurança jurídica, ínsito no princípio do Estado de
direito democrático, constante do artigo 2º da Constituição.
Na sua vertente de Estado de direito, o princípio do Estado de direito
democrático – nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da
República Portuguesa Anotada, cit., p. 63) – “mais do que constitutivo de
preceitos jurídicos, é sobretudo englobador e integrador de um amplo conjunto de
regras e princípios dispersos pelo texto constitucional, que densificam a ideia
da sujeição do poder a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos
liberdade, igualdade e segurança”.
De acordo com a jurisprudência da Comissão Constitucional, o princípio do Estado
de direito democrático “garante seguramente um mínimo de certeza nos direitos
das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, a
confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica” (Parecer n.º 14/82,
Pareceres da Comissão Constitucional, 19º vol., p. 183 ss).
Por sua vez, o princípio da segurança jurídica, implicado no princípio do Estado
de direito democrático, abrange duas ideias nucleares (Gomes Canotilho, Direito
Constitucional, 6ª ed., Coimbra, 1993, p. 380): a de estabilidade, no sentido de
que as decisões estaduais, incluindo as leis, “não devem poder ser
arbitrariamente modificadas, sendo apenas razoável a alteração das mesmas quando
ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes”; e a de
previsibilidade, “que, fundamentalmente, se reconduz à exigência de certeza e
calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos
actos normativos”.
A realização do princípio do Estado de direito, no quadro da Constituição, exige
portanto que seja assegurado um certo grau de calculabilidade e previsibilidade
dos cidadãos sobre as suas situações jurídicas, ou seja, exige a garantia da
confiança na actuação dos entes públicos.
Assim, o princípio da protecção da confiança e segurança jurídica pressupõe um
mínimo de previsibilidade em relação aos actos do poder, de modo que cada pessoa
possa ver garantida a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos
jurídicos dos actos que pratica. Nestes termos, e em regra, as pessoas têm o
direito de poder confiar que as decisões sobre os seus direitos ou relações
jurídicas tenham os efeitos previstos nas normas que os regulam.
No caso em apreço, a norma questionada não contende com tais princípios.
A solução adoptada na alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do Código Civil não pode
surpreender, na medida em que corresponde apenas a uma mais correcta localização
da matéria na orgânica da sistematização legislativa. A atribuição do direito de
retenção ao promitente-comprador que tivesse obtido a tradição da coisa objecto
do contrato prometido foi aprovada e estava em vigor há muito tempo: como se
viu, o regime legal em questão existia desde 1980, tendo sido reafirmado em
1986, através de mera alteração na inserção sistemática da norma (que passou do
artigo 442º, n.º 3, do Código Civil para o artigo 755º, n.º 1, alínea f), do
mesmo Código).
De todo o modo, a norma que define, em abstracto, um novo caso de direito de
retenção não pode ser vista, em si mesma, como ofensiva dos direitos de outros
credores do devedor. Uma eventual ofensa de tais direitos – a existir –
decorreria da norma que estabelece a hierarquia entre os direitos dos diversos
credores.
12. Conclui-se, assim, que não existe qualquer violação, quer do princípio
da proporcionalidade explicitado no artigo 18º, n.º 2, da Constituição, quer do
princípio da confiança e segurança jurídica, decorrente do princípio do Estado
de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição.
[...]'
É também este julgamento de não inconstitucionalidade que agora novamente se
reitera.
7. Assim, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 14 de Dezembro de 2005-
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Maria Helena Brito
Artur Maurício