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Processo nº 258/97
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - Na 3ª Vara Criminal do Círculo de Lisboa, por acórdão do Tribunal do Júri, foram os arguidos A. e B., condenados como co-autores materiais de um crime previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº
15/93, de 22 de Janeiro, cada um, na pena de seis anos de prisão.
Inconformados levaram recurso ao Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 3 de Abril de 1997, lhes concedeu provimento parcial, mantendo o juizo condenatório, mas alterando a medida da pena de cada um para cinco anos de prisão.
Ainda inconformados, trouxeram então os recorrentes os autos ao Tribunal Constitucional em ordem à apreciação da questão de constitucionalidade da norma do artigo 127º do Código de Processo Penal, constitucionalidade essa suscitada durante o processo.
E, nas alegações depois oferecidas concluiram assim:
'a) O Tribunal 'a quo' cometeu erro notório na apreciação da prova, dando como provados, factos apenas afirmados pelos Agentes da P.J., como decorre da exposição dos motivos que levaram à convicção (ponto 2.3 - Motivação da decisão de facto.
b) Ora, segundo as regras da experiência comum e as regras técnicas de apuramento dos factos, quem tem interesse na causa, não pode fazer prevalecer uma versão contrariada pelos A.A..
c) E o interesse dos Agentes da P.J., é manifesto quando descreveram, no Tribunal, factos que vieram a ser considerados não provados.
d) E nestas circunstâncias, acaso se entenda que o princípio da livre convicção, ainda assim, pode arredar aqueles dados da experiência comum e as regras técnicas do acerto factual, então os recorrentes, padecem, e padeceram, de indefesa.
e) Por não terem meio racional de convencerem do contrário.
f) E sendo assim, uma interpretação do artº 127º do C.P.P., que sufrague o ponto de vista apontado, torna a norma inconstitucional, por contrária ao artº 32/1 da C.R.P..
g) Prosseguindo, por mera cautela e no interesse da defesa, mesmo que se dê como válida a apreciação da matéria de facto, não foi porém, cometido o crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo artº 21º do Dec. Lei 15/93 de 22 de Janeiro.
h) Teria pois, sido cometido outro ilícito, o de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25º do mesmo Dec. Lei.
i) Finalmente, se todos estes argumentos não valerem, deveria a pena de 6 anos, ser reduzida para 3 anos, e ser suspensa a execução da pena imposta aos A.A., segundo o disposto no artº 50/1 do C.P..
j) Porque superada a gravidade do facto, e a diminuição da culpa, advinda do bom comportamento anterior e posterior dos A.A., de 47 e 43 anos de idade, e com 5 filhos a seu cargo, alguns menores, a simples censura e ameaça da pena, cumprem o programa do direito criminal, segundo o modelo de política penal acolhido no Código.
k) O Acórdão recorrido, violou, pois, as normas legais já indicadas
- artºs. 127º do C.P.P. e 50/1 do C.P., 70º, 71º e 72º também do C.P., e 25º do Dec. Lei 15/93 de 22 de Janeiro, que aplicou, no sentido de dar como provados os factos incriminadores, de integrarem estes, o crime da condenação, e de não ser permitida a suspensão da pena, quando deveria tê-las interpretado, pelo contrário, no sentido proposto na presente Motivação.'
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2 - O senhor Procurador-Geral Adjunto contralegou em termos de concluir no sentido da inteira improcedência do recurso.
E, em síntese final, disse:
'1º - A norma constante do artigo 127º do Código de Processo Penal, interpretada em termos de conferir ao tribunal colectivo a livre apreciação, segundo a sua convicção, das provas oralmente produzidas em audiência não viola qualquer preceito ou princípio da Lei Fundamental.
2º - Termos em que improcede manifestamente o presente recurso.'
Considerando-se que sobre a matéria da causa existe já uma jurisprudência firme e reiterada deste Tribunal, foram dispensados os vistos.
Cabe apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - Não importa repetir aqui todos os desenvolvimentos argumentativos que a jurisprudência deste Tribunal tem vindo a formular como suporte do juízo de não inconstitucionalidade da norma que vem questionada.
Bastará evidenciar alguns dos seus momentos mais significativos, acompanhando-se de perto, para tanto, o acórdão nº 1165/96, Diário da República, II Série, de 6 de Fevereiro de 1997.
O Código de Processo Penal em vigor, dispõe no artigo 127º
(Livre apreciação da prova) que 'salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente'.
Não existia no Código de Processo Penal de 1929 qualquer disposição correspondente, aplicando-se então subsidiariamente os preceitos do Código de Processo Civil, em especial, o seu artigo 655º, segundo o qual 'o tribunal colectivo aprecia livremente as provas e responde segundo a convicção que tenha formado acerca de cada facto suscitado; mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada'.
E, segundo informa Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, Coimbra, 1996, p. 262, 'a introdução de uma norma sobre livre apreciação da prova não vinculativa no CPP obedeceu mais ao intuito de autonomizar o CPP em relação ao CPC do que ao de introduzir qualquer alteração significativa - que não existe - em relação ao regime de livre apreciação da prova não vinculativa, do artº 655º do CPC'.
É usualmente referido que o sistema do direito probatório pode sofrer a influência de dois princípios diversos: (a) o princípio da prova livre, de origem romana, segundo o qual é concedido ao julgador ampla liberdade de apreciação das provas; (b) o princípio da prova legal, de origem germânico-medieval, em conformidade com o qual a apreciação das provas fica sujeita a regras ditadas pela lei que lhes marcam o valor e a força probatória.
Os sistemas jurídicos da apreciação da prova criminal têm recebido soluções divergentes tanto nos diferentes estádios da evolução do direito processual penal, como nos diversos quadros normativos em certo momento vigentes.
Em Portugal, como assinala Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I vol., Coimbra, 1974, tem sido posto em relevo por Eduardo Correia, 'Les preuves em droit pénal portugais', Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XIV, 1967, pp. 1 a 52, o sistema da prova livre fez o seu aparecimento nas Reformas Judiciárias da primeira metade do séc. XIX (1832, 1836 e 1841) saídas da revolução liberal, paralelamente ao do juri que deveria pronunciar-se sobre as provas 'não escutando senão os ditames da (...) consciência e íntima convicção'.
Faltava porém, como já se observou, até ao começo de vigência do Código de Processo Penal de 1987, um texto expresso onde por inteiro se plasmasse o princípio da livre apreciação da prova, sem embargo de tal princípio já decorrer e ser indiscutível face a diversas normas do ordenamento, nomeadamente, a do artigo 655º do Código de Processo Civil.
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2 - O actual sistema da livre apreciação da prova não deve definir-se negativamente pela ausência das regras e critérios legais pré-determinantes do seu valor, havendo antes de se destacar o seu significado positivo.
Acompanhando Figueiredo Dias, ob. loc. cit., dir-se-á que 'o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade
(como já dissemos que a tem toda a discricionaridade jurídica) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova
é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada 'verdade material' -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo (possa embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efectivos)'.
A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e critica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão. (Cfr. sobre esta matéria, para além dos autores já citados, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, pp. 107 e ss.; Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, II, 1986, pp. 257 e ss., e J. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, Coimbra, 1981, pp. 566 e ss.).
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3 - A regra da livre apreciação da prova em processo penal, como resulta das considerações de ordem histórica e doutrinal que se deixaram expostas, não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável.
O julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância a regras da experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controlo.
Quando no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, se prescreve que a fundamentação da sentença consta da 'enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal' exige-se, claramente, não só a motivação e o controlo da prova - podendo embora discutir-se qual o grau e a dimensão em que estes se traduzem - como também se acentua o carácter racional que esta há-de revestir.
A consequência mais relevante da aceitação destes limites, no caso de serem eles infringidos, será o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça com base no fundamento a que se reporta o artigo 410º do mesmo diploma.
Como bem assinala Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, Coimbra, 1988, pp. 227 e ss., 'a mais importante inovação introduzida pelo Código nesta matéria [a da livre apreciação da prova] consiste, precisamente, na consagração de um sistema que obriga a uma correcta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objecto do processo de modo a permitir-se um efectivo controle da sua motivação'.
Decorre assim do exposto, que a norma do artigo 127º do Código de Processo Penal, a única que se acha sob sindicância no presente recurso não sofre de qualquer vício de inconstitucionalidade.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar, consequentemente, no que à questão de constitucionalidade respeita, o acórdão recorrido.
Lisboa, 24 de Setembro de 1997 Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa