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Processo n.º 904/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
Ao arguido A. foram aplicadas, por acórdão do Tribunal
Colectivo do 2.º Juízo Criminal de Viseu, de 11 de Abril de 2005, no proc. n.º
989/01.2TAVIS (fls. 390 a 393), duas penas únicas:
A) uma, de 3 anos e 6 meses de prisão e na interdição, pelo
período de três anos, da concessão de título de condução, resultante do cúmulo
jurídico das seguintes penas parcelares:
1) 15 meses de prisão, por autoria de crime de abuso de
confiança fiscal, aplicada por acórdão do Tribunal Colectivo da 1.ª Vara
Criminal de Viseu, de 17 de Dezembro de 1998 (proc. n.º 337/01.1TBVIS),
transitado em julgado em 14 de Janeiro de 1999 (fls. 345 a 352), por factos
praticados em 31 de Dezembro de 1994 (esta pena havia inicialmente sido suspensa
na sua execução pelo período de 3 anos, com a condição de pagar ao Estado a
quantia de 2 344 000$00 no prazo de seis meses, suspensão que foi revogada,
por não cumprimento da referida condição, por despacho de 25 de Junho de 2001 –
fls. 353‑354; o perdão de 12 meses da pena de prisão, decretado por este
despacho, foi, por seu turno, revogado, pela condenação do arguido por novos
crimes, pelo despacho de 19 de Janeiro de 2005 – fls. 355);
2) 9 meses de prisão, por autoria de crime de falsificação de
documento autêntico, e quatro penas parcelares de 5 meses de prisão cada, por
cumplicidade em quatro crimes de falsificação de documento autêntico, a que
correspondeu a pena unitária de 18 meses de prisão, suspensa por 3 anos mediante
a condição de entrega ao Estado da quantia de € 750, aplicada por acórdão de 8
de Março de 2002 do 1.º Juízo Criminal de Viseu (proc. n.º 1280/00.7TBVIS), por
factos ocorridos em Fevereiro e Outubro de 1996 (fls. 98 a 106);
3) 20 meses de prisão, suspensa por 3 anos mediante a condição de
pagamento, no prazo de 6 meses, da quantia de € 3544,41 e juros, aplicada por
sentença de 10 de Abril de 2003 do 1.º Juízo de Competência Criminal de Viseu
(proc. n.º 66/00.3IDVIS), transitada em julgado em 5 de Maio de 2003, por
autoria de crime de abuso de confiança fiscal, por factos ocorridos entre 15 de
Novembro de 1996 e 15 de Fevereiro de 1998; e
4) 6 meses de prisão, por crime de condução sem habilitação
legal, aplicada por acórdão de 29 de Janeiro de 2004, proferido nestes autos
(proc. n.º 989/01.2TAVIS), por factos ocorridos em 6 de Setembro de 1998 (fls.
226 a 236);
B) outra, de 11 meses de prisão, resultante do cúmulo jurídico
das seguintes penas parcelares:
5) 9 meses de prisão, por crime de condução sem habilitação
legal, aplicada por acórdão de 29 de Janeiro de 2004, proferido nestes autos
(proc. n.º 989/01.2TAVIS), por factos ocorridos em 18 de Maio de 2001; e
6) 3 meses de prisão, por crime de falsas declarações, aplicada
pelo mesmo acórdão (proc. n.º 989/01.2TAVIS), por factos ocorridos em 4 de Julho
de 2001.
O referido acórdão de 29 de Janeiro de 2004, na sequência de
rejeição, por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de Julho de 2004
(fls. 310 a 315), do recurso dele interposto pelo arguido, transitou em julgado
em 1 de Outubro de 2004 (cf. fls. 322).
O arguido interpôs recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça
(STJ), contra o referido acórdão do Tribunal Colectivo do 2.º Juízo Criminal de
Viseu, de 11 de Abril de 2005, pugnando pela imposição de penas únicas de medida
inferior.
No STJ, a representante do Ministério Público emitiu parecer, em
que, após concordar com a elaboração de dois cúmulos jurídicos (os crimes
indicados sob os n.ºs 1) a 4) foram praticados – em 31 de Dezembro de 1994, em
Fevereiro e Outubro de 1996, entre 15 de Novembro de 1996 e 15 de Fevereiro de
1998, e em 6 de Setembro de 1998 – antes de transitar em julgado a condenação
por qualquer deles, enquanto os indicados sob os n.ºs 5) e 6) foram praticados –
em 18 de Maio e 4 de Julho de 2001 – após o trânsito, em 14 de Janeiro de 1999,
da condenação proferida no proc. n.º 337/01.1TBVIS, mas antes de transitar a
condenação por qualquer deles), discordou da integração no primeiro cúmulo das
penas de prisão que haviam sido objecto de substituição por pena de suspensão de
execução (as penas de 9 meses de prisão e as quatro penas de 5 meses de prisão
cada aplicadas no proc. n.º 1280/00.7TBVIS, e a pena de 20 meses de prisão
aplicada no proc. n.º 66/00.3IDVIS). Para além de sustentar não ser essa a
solução legal, suscitou, a este propósito, a questão da inconstitucionalidade do
entendimento jurisprudencial que admite que, na formulação de cúmulo jurídico
de penas parcelares que incluam penas de prisão suspensas na sua execução, a
pena única não mantenha a suspensão, expendendo, a este propósito, as
seguintes considerações (retomando posição doutrinária anteriormente assumida:
cf. Odete Maria de Oliveira, “Penas de substituição”, em Centro de Estudos
Judiciários, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, vol. II –
Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, vol. II, Lisboa, 1998,
pp. 55‑117, em especial pp. 107‑113):
“V – Penas de substituição, penas autónomas face à pena de prisão
substituída.
1. O nosso sistema penal, integrado no movimento internacional de
luta contra a pena «curta» de prisão e a pena de prisão aplicável à pequena e
média criminalidade, prevê a possibilidade de imposição de reacções penais não
detentivas, apelidadas penas de substituição em sentido próprio – penas
cumpridas em liberdade e que pressupõem a prévia determinação da medida da pena
de prisão que vão substituir.
2. A pena de suspensão de execução da prisão, prevista no artigo
50.º do Código Penal, constitui uma dessas penas de substituição da pena de
prisão [As restantes penas de substituição da pena de prisão encontram‑se,
actualmente, limitadas a duas: pena de multa de substituição (artigo 44.º) e
pena de prestação de trabalho a favor da comunidade (artigos 58.º e 59.º), uma
vez que a pena de admoestação – no Código Penal, versão de 1982, pena de
substituição da pena de multa, mas também da pena de prisão não superior a 3
meses – deixou no Código Penal, versão de 1995, de ser uma pena de substituição
da pena de prisão, funcionando, agora, somente como pena de substituição da pena
de multa que deva ser aplicada em medida não superior a 120 dias (artigo
60.º).].
As penas de substituição são verdadeiras penas e não uma forma de
execução de uma pena de prisão.
Dando a palavra a Figueiredo Dias [Direito Penal Português, Aequitas/Editorial
Notícias, 1993, §§ 78 e seguintes, pp. 89 e seguintes], as «‘novas’ penas,
diferentes da de prisão e da de multa, são ‘verdadeiras penas’ – dotadas, como
tal, de um conteúdo autónomo de censura, medido à luz dos critérios gerais de
determinação da pena (artigo 72.º) –, que não meros ‘institutos especiais de
execução da pena de prisão’ ou, ainda menos, ‘medidas de pura terapêutica
social’. E, deste ponto de vista, não pode deixar de dar‑se razão à concepção
vazada no Código Penal, aliás continuadora da tradição doutrinal portuguesa
segundo a qual substituir a execução de uma pena de prisão traduz‑se sempre em
aplicar, na vez desta, uma outra pena» [sublinhados nossos].
A lei processual penal atende também à diversa realidade que as penas de
substituição constituem e à sua autonomia face à pena de prisão substituída,
regulamentando, separada e distintamente, a execução da pena de prisão e a
execução das penas de substituição.
Assim, enquanto que a execução da pena de prisão se encontra prevista nos
artigos 477.º a 488.º, integrados no Título II do Livro X – Da execução da pena
de prisão –, diversamente, a execução da pena suspensa e a execução da pena de
prestação de trabalho a favor da comunidade mostram‑se regulamentadas,
respectivamente, nos artigos 492.º a 495.º, e nos artigos 496.º e 498.º, todos
do CPP, integrados já no Título III do mesmo Livro – Da execução das penas não
privativas de liberdade.
Esta específica regulamentação das penas de substituição mais não é do que o
reconhecimento da sua natureza de penas autónomas, ao nível agora da respectiva
execução.
É, pois, a própria lei adjectiva a não acolher o entendimento segundo o qual as
penas de substituição constituem simples formas de execução da pena de prisão
substituída.
3. Aliás, de há muito que a pena de suspensão de execução da prisão [Outrora
apelidada de suspensão condicional da pena, cf. Eduardo Correia, Direito
Criminal, II, Almedina, 1971, pp. 395 e seguintes] vem sendo considerada pela
doutrina, nomeadamente por Beleza dos Santos, Eduardo Correia e Figueiredo Dias,
como uma verdadeira pena [Criticando o entendimento contrário, na doutrina
minoritário entre nós, cf. Figueiredo Dias, ibidem, § 494, pp. 329 e 330, e
ainda § 512, pp. 339 e 340].
Acresce que, com o Código Penal revisto, o regime de prova – antes da revisão de
1995 pena aplicada a título principal – passou a constituir uma modalidade da
pena de suspensão de execução da prisão (artigos 50.º, n.º 2, 53.º e 54.º).
Assim, ao unificar‑se a pena de suspensão de execução da prisão e o regime de
prova numa única pena de substituição, reforçou‑se o conteúdo próprio de censura
da pena de suspensão de execução da prisão, fazendo sobressair a sua natureza de
pena autónoma, de pena de substituição [Claramente neste sentido, comentando o
«modelo continental» da suspensão da pena para prova, cf. Figueiredo Dias,
ibidem, § 511, p. 339.].
VI – Revogação da pena de substituição prevista no artigo 50.º
1. Reconhecendo o quanto a solução propugnada no artigo 51.º, n.º 1, do Código
Penal de 1982 tinha de incoerente face aos princípios subjacentes ao movimento
de luta contra as penas de prisão aplicáveis à pequena e média criminalidade e
que presidiram à opção político‑criminal pelas penas de substituição não
privativas de liberdade, o Código Penal, após a revisão de 1995, veio determinar
que o cometimento de outro crime, ainda que doloso, durante o período de
execução da pena de substituição, não é suficiente, só por si, para conduzir à
revogação da pena de substituição.
O acento tónico passou assim a estar colocado não no cometimento de crime doloso
[Com a correspondente condenação em pena de prisão] durante o período de
execução da pena não privativa de liberdade, mas no facto de o cometimento de
um crime [O legislador não exige agora que a condenação seja em pena de prisão.
Contudo, se a condenação for numa pena de multa alternativa ou numa pena de
substituição, sendo a não imposição de uma pena privativa de liberdade índice de
que é possível a socialização em liberdade daquele condenado, sempre se poderá
defender que as finalidades que estavam na base da suspensão podem continuar
ainda a ser acauteladas, sendo apenas, eventualmente, caso de reforço das
condições da suspensão.], durante o referido período, revelar a inadequação da
pena de substituição para através dela serem ainda alcançadas as finalidades da
punição.
Por outras palavras, a revogação da pena de suspensão de execução da prisão, com
o fundamento em condenação pela prática de crime cometido durante o período de
execução da pena não privativa da liberdade, deixou de ter carácter automático
[Sobre esta matéria, Figueiredo Dias, ibidem, § 346, pp. 356 e 357].
Efectivamente, nos termos do artigo 56.º, n.º 1 [Os artigos indicados sem
qualquer referência pertencem todos ao Código Penal, versão de 1995], a pena de
substituição prevista no artigo 50.º é revogada sempre que, no decurso da sua
execução, o condenado:
– infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos
ou o plano individual de readaptação social,
– cometer crime pelo qual venha a ser condenado,
– e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por
meio dela, ser alcançadas [Embora no artigo 56.º, n.º 1, alínea a), não se exija
expressamente que se demonstre que as finalidades da punição, que estavam na
base da imposição da pena de substituição, não puderam, por meio dela, ser
alcançadas, a sua interpretação teleológica leva a considerar que, como aliás
referiu Figueiredo Dias, quando da discussão do Projecto de Revisão, a parte
final da alínea b) do n.º 1 do artigo 56.º estabelece uma condição comum às duas
alíneas. Cf. Código Penal – Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério
da Justiça, 1993, p. 66].
Assim, para que possa ser revogada a pena de substituição, para além da
exigência de que o pressuposto formal, previsto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do
artigo 56.º [Outrora previsto no corpo do artigo 50.º e no artigo 51.º, n.º 1,
do Código Penal, versão de 1982], ocorra durante a execução da pena de
substituição, a lei obriga agora à verificação também de um pressuposto
material – da violação dos deveres, das regras de conduta ou do plano de
readaptação social ou do cometimento de crime tem de decorrer que as
finalidades que estavam na base da imposição da pena de substituição não podem
ser alcançadas através da execução desta.
2. Por outro lado, quer nos casos de modificação das condições impostas na pena
de substituição – deveres, regras de conduta, regime de prova [Cf. o artigo
55.º] – quer nos de revogação da referida pena, a obrigatoriedade em se
assegurar um amplo contraditório ressalta à evidência do teor dos artigos 492.º,
n.º 2, e 495.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.
E compreende‑se que assim seja.
Efectivamente, só auscultando o condenado e os serviços de reinserção social
poderá levar‑se devidamente em conta o comportamento global daquele – não só o
que revele uma atitude negativa face à pena de substituição aplicada e
respectivas condições, mas também aquele que, pelo contrário, possa ter uma
valência positiva, traduzida no respeito das condições impostas e no tempo
durante o qual o condenado as cumpriu – assim concorrendo para que se diminuam
também os riscos de uma decisão menos justa.
VII
1. A jurisprudência vem entendendo, maioritariamente, ser possível, em caso de
conhecimento superveniente de concurso (artigo 78.º), revogar‑se [Por vezes
utiliza‑se a expressão não se mantém] a pena de substituição, nomeadamente a
pena de suspensão de execução da prisão, sem que tal implique violação de caso
julgado, efectuando‑se depois o cúmulo jurídico entre a pena que fora
substituída e a(s) outra(s) pena(s) de prisão.
2. Salvo o devido respeito, tal interpretação normativa não só não nos parece a
mais correcta dogmaticamente, como se mostra ainda desconforme com o Código
Penal e o Código de Processo Penal, sendo, além disso, a referida interpretação
dos artigos 77.º e 78.º violadora de princípios constitucionais, como
tentaremos de seguida demonstrar.
3. Ao pretender efectuar‑se o cúmulo jurídico de uma pena de prisão com uma pena
de prisão substituída, não revogada, não se tem em consideração, nomeadamente,
que:
a) Quando o Tribunal substitui uma pena de prisão por uma pena de suspensão de
execução da prisão (artigo 50.º) ou por uma pena de prestação de trabalho a
favor da comunidade (artigo 58.º) ou por uma pena de multa de substituição
(artigo 44.º, n.º 1), está a aplicar e, posteriormente, a fazer executar, em
vez da pena de prisão, uma outra pena – uma pena de substituição, uma pena não
privativa de liberdade.
Pelo que, enquanto não forem revogadas, ou declaradas extintas, as penas de
substituição previstas nos artigos 44.º, 50.º e 58.º encontram-se em execução.
b) No artigo 77.º não está prevista a possibilidade de cúmulo jurídico de uma
pena de prisão com a pena de substituição não privativa de liberdade prevista
no artigo 50.º
Antes, claramente decorre do seu n.º 3 opção no sentido de «a diferente
natureza» da pena não privativa de liberdade (no caso, pena de multa) dever
manter-se na pena única [É o seguinte o texto do artigo 77.º, n.º 3: «3. Se as
penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a
diferente natureza destas mantém‑se na pena única resultante da aplicação dos
critérios estabelecidos no número anterior». O texto do artigo 78.º do
Projecto era bem diverso do teor do actual artigo 77.º, n.º 3, expressando‑se
aí outra perspectiva quanto ao cúmulo de penas parcelares de espécie diferente:
«3. Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras
de multa, será aplicável uma única pena de prisão, de acordo com os critérios
estabelecidos nos números anteriores, considerando‑se as de multa convertidas
em prisão pelo tempo correspondente reduzido a dois terços». Cf., também, Código
Penal – Actas e Projecto da Comissão ..., pp. 83 e seguintes, 480 e 481].
Por outro lado, da regulamentação do cúmulo jurídico constante dos artigos 77.º
e 78.º não é possível retirar fundamento para a imposição de cúmulo jurídico
entre penas privativas de liberdade e a pena prevista no artigo 50.º que não
tenha sido, oportunamente, revogada por verificação dos pressupostos previstos
no artigo 56.º, n.º 1, considerados no seu n.º 2 como os únicos justificativos
do cumprimento da pena de prisão fixada na sentença.
c) Ao pretender cumular uma pena de prisão com uma pena de prisão que fora
substituída por pena não privativa de liberdade, assim impondo o cumprimento da
pena de prisão substituída, o tribunal acabaria por «revogar» a pena de
substituição, em desrespeito do disposto no artigo 56.º, n.º 1.
E ao assim proceder, sem curar de saber se «as finalidades que estavam na base
da suspensão» podiam ou não ainda ser alcançadas, o tribunal acabaria por
revogar a pena de substituição de forma automática [Sobre a exigência de um
juízo seguro «sobre a não verificação do cumprimento das finalidades da
punição», cf. o Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 3 de
Dezembro de 2002, citado no acórdão do STJ de 2 de Junho de 2004, proc. n.º
1391/04‑3.ª].
d) Decorre claramente do artigo 495.º, n.º 3, do Código de Processo Penal que é
competente para a revogação, determinando o cumprimento da pena de prisão fixada
na sentença, o tribunal que o for para a execução da pena de substituição e não
o tribunal com competência [Revogada que venha a ser, com fundamento no n.º 1 do
artigo 56.º, a pena de substituição], nos termos do artigo 471.º do CPP, para a
realização de eventual cúmulo jurídico.
Por isso é que, atento o disposto no artigo 495.º, n.º 2, do Código de Processo
Penal, qualquer tribunal que venha a condenar um arguido pela prática de um
crime cometido no decurso da execução de pena não privativa de liberdade –
prevista no artigo 50.º ou no artigo 58.º – deve comunicar a condenação ao
tribunal competente, nos termos do artigo 470.º, n.º 1, do CPP, para a execução,
pois que é este – e só este – o competente em razão da matéria para, conhecedor
do cometimento do crime e do teor da respectiva decisão condenatória, decidir
da eventual revogação ou alteração da pena de substituição, ao abrigo do
disposto nos artigos 55.º e 56.º.
e) Nos termos do artigo 493.º do Código de Processo Penal, verificados o
condicionalismo a que alude o artigo 56.º, n.º 1, o tribunal decide da
revogação depois de recolhida a prova e antecedendo parecer do Ministério
Público e audição do condenado.
4. Por todo o acima exposto, vimos de há muito defendendo que a
aludida interpretação jurisprudencial dos artigos 77.º e 78.º implica,
nomeadamente, e salvo o devido respeito, violação do caso julgado e dos
princípios do contraditório e do juiz natural.”
Estas considerações foram condensadas nas seguintes conclusões do aludido
parecer:
“1. As penas de substituição são verdadeiras penas e não uma forma
de execução de uma pena de prisão.
2. Enquanto que a execução da pena de prisão se encontra prevista
nos artigos 477.º a 488.º, integrados no Título II do Livro X – Da execução da
pena de prisão –, diversamente, a execução da pena suspensa e a execução da pena
de prestação de trabalho a favor da comunidade mostram‑se regulamentadas,
respectivamente, nos artigos 492.º a 495.º, e nos artigos 496.º e 498.º, todos
do CPP, integrados já no Título III do mesmo Livro – Da execução das penas não
privativas de liberdade.
3. Para que possa ser revogada a pena de substituição, para além da
exigência de que o pressuposto formal, previsto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do
artigo 56.º, ocorra durante a execução da pena de substituição, a lei obriga
agora à verificação também de um pressuposto material – da violação dos deveres,
das regras de conduta ou do plano de readaptação social ou do cometimento de
crime tem de decorrer que as finalidades que estavam na base da imposição da
pena de substituição não podem ser alcançadas através da execução desta.
4. Quer nos casos de modificação das condições impostas na pena de substituição
– deveres, regras de conduta, regime de prova – quer nos de revogação da
referida pena, a obrigatoriedade em se assegurar um amplo contraditório
ressalta à evidência do teor dos artigos 492.º, n.º 2, e 495.º, n.º 2, ambos do
Código de Processo Penal.
5. Enquanto não forem revogadas, ou declaradas extintas, as penas de
substituição previstas nos artigos 44.º, 50.º e 58.º encontram‑se em execução.
6. Da regulamentação do cúmulo jurídico constante dos artigos 77.º e 78.º não é
possível retirar fundamento para a imposição de cúmulo jurídico entre penas
privativas de liberdade e a pena prevista no artigo 50.º que não tenha sido,
oportunamente, revogada por verificação dos pressupostos previstos no artigo
56.º, n.º 1, considerados no seu n.º 2 como os únicos justificativos do
cumprimento da pena de prisão fixada na sentença.
7. Ao cumular penas de prisão com penas de prisão que foram substituídas por
penas não privativas de liberdade, assim impondo o cumprimento da pena de prisão
substituída, o tribunal revoga as penas de substituição, em desrespeito do
disposto no artigo 56.º, n.º 1.
8. E ao assim proceder, sem curar de saber se «as finalidades que estavam na
base da suspensão» podiam ou não ainda ser alcançadas, o tribunal revoga as
penas de substituição de forma automática.
9. Decorre claramente do artigo 495.º, n.º 3, do Código de Processo Penal que é
competente para a revogação, determinando o cumprimento da pena de prisão fixada
na sentença, o tribunal que o for para a execução da pena de substituição e não
o tribunal com competência, nos termos do artigo 471.º do CPP, para a realização
de eventual cúmulo jurídico.
10. Nos termos do artigo 495.º do Código de Processo Penal, verificados o
condicionalismo a que alude o artigo 56.º, n.º 1, o Tribunal decide da
revogação depois de recolhida a prova e antecedendo parecer do Ministério
Público e audição do condenado.
11. «O princípio da intangibilidade do caso julgado – assente nos princípios da
confiança e da segurança jurídicas – obsta a que possa ser objecto de
reavaliação ou reponderação judicial a decisão, transitada em julgado, que
condenou o arguido em pena suspensa, tendo este cumprido integralmente as
condições de que dependia a suspensão, salvo se for demonstrada a prática de
factos supervenientes enquadráveis no disposto no artigo 56.º, n.º 1, alínea b),
do Código Penal, e que demonstrem a frustração das finalidades de prevenção e
ressocialização do arguido, subjacentes ao “beneficio” da suspensão da pena».
12. «A caducidade ou preclusão da suspensão da pena, decretada exclusivamente
em função da prática de factos ilícitos anteriores à sentença condenatória que
outorgou ao arguido a suspensão da execução da pena privativa de liberdade, e
com fundamento exclusivo na necessidade de proceder a cúmulo jurídico, traduz
uma revogação “implícita” de tal benefício, de consequências estritamente
análogas às previstas no artigo 56.º do Código Penal, colidente com a referida
intangibilidade do caso julgado material, na parte em que é favorável ao
arguido».
13. «Tal interpretação normativa dos artigos 77.º e 78.º do Código Penal,
enquanto legitimadora de uma “tabelar” derrogação do beneficio da suspensão da
execução de pena privativa de liberdade – alcançada exclusivamente através de
uma global reavaliação e ponderação de todos os crimes praticados pelo arguido,
antes ou depois da referida suspensão, e objecto de sentenças condenatórias –
colide com o princípio das garantias de defesa, ao potenciar uma verdadeira
derrogação do beneficio da suspensão, sem facultar ao arguido o contraditório
adequado».
14. «A derrogação da suspensão, enquanto fundada em factos anteriores à
sentença que outorgou a suspensão de execução de pena privativa de liberdade,
revela‑se ainda colidente com os princípios da proporcionalidade e da
necessidade das penas criminais, ao determinar a preclusão do benefício da
suspensão, sem que o comportamento ulterior do arguido o justifique
minimamente.»
15. Não existe nos autos conhecimento algum de que tenham sido proferidos
despachos a revogar as aludidas penas de substituição. Revogação essa que tem de
ser determinada pelos tribunais competentes para a execução das referidas penas
não privativas de liberdade, face ao disposto nos artigos 470.º, n.º 1, e 495.º,
ambos do Código de Processo Penal, e fundada em comportamento superveniente do
arguido que revele que as finalidades que estiveram na base da suspensão não
puderam, por meio dela, serem alcançadas.
16. Só a revogação – pelo tribunal competente para a execução das penas de
substituição –, prevista no artigo 56.º, verificados que sejam os pressupostos
tipificados no seu n.º 1, determina o cumprimento da pena de prisão substituída.
17. O douto acórdão recorrido, ao considerar haver lugar à efectivação de cúmulo
jurídico entre penas de prisão e as penas de prisão substituídas pelas penas não
privativas de liberdade, acabou por “revogar”, de forma automática, as aludidas
penas de substituição, determinando o cumprimento das penas de prisão
substituídas, e assim afrontando o princípio da intangibilidade do caso julgado.
18. Fê‑lo sem audição do condenado, cuja presença foi até dispensada, deste modo
violando, também, o princípio do contraditório.
19. Ao fazê‑lo o douto acórdão recorrido violou as normas dos artigos 56.º, n.º
1, 59.º, n.º 2, 77.º e 78.º, todos do Código Penal, 470.º, n.º 1, 495.º, n.ºs 2
e 3, e 498.º, n.º 3, todos do CPP.
20. A interpretação dos artigos 77.º e 78.º, ambos do Código Penal, feita pelo
douto acórdão recorrido nega o princípio da intangibilidade do caso julgado,
com tutela no artigo 282.º, n.º 3, da CRP, desrespeita o princípio do juiz
natural, não salvaguarda o princípio do contraditório, viola os princípios da
proporcionalidade e da necessidade das penas e não assegura todas as garantias
do processo criminal previstas no artigo 32.º, n.ºs 1, 5 e 9, da CRP.”
Por acórdão de 6 de Outubro de 2005, o STJ desatendeu a questão
suscitada pelo Ministério Público e concedeu parcial provimento ao recurso do
arguido, reduzindo a duração da pena unitária de 3 anos e 6 meses de prisão para
2 anos e 8 meses e a da pena unitária de 11 meses de prisão para 10 meses. O
desatendimento da questão suscitada pelo Ministério Público foi assim
fundamentado:
“2.1. A única questão suscitada pelo recorrente é, como se viu, a respeitante à
medida das penas unitárias aplicadas.
No entanto, o Ministério Público junto deste Tribunal suscita a questão do
englobamento no cúmulo jurídico de penas em concurso cuja execução havia sido
suspensa, tendo por inconstitucional a interpretação que para tal terá sido
feita das normas dos artigos 56.º, n.º 1, 59.º, n.º 2, 77.° e 78.°, todos do
Código Penal, 470.°, n.° 1, 495.°, n.°s 2 e 3, e 498.°, n.° 3, todos do CPP
(conclusão 19.ª), por negar o princípio da intangibilidade do caso julgado
(artigo 282.°, n.° 3, da CRP), desrespeitar o princípio do juiz natural, não
salvaguardar o princípio do contraditório, violar os princípios da
proporcionalidade e da necessidade das penas e não assegurando todas as
garantias do processo criminal previstas no artigo 32.°, n.°s 1, 5 e 9, da CRP.
2.2. Começando por esta última questão.
Este Supremo Tribunal de Justiça já teve ocasião de se pronunciar sobre esta
questão, em sentido contrário ao sustentado pela Ex.ma Procuradora‑Geral
Adjunta.
Com efeito, o Acórdão do STJ, de 5 de Fevereiro de 1986 (Boletim do Ministério
da Justiça, n.º 354, pág. 345) entendeu o seguinte: «(1) A norma do artigo 79.º
do Código Penal de 1982 destina‑se a autorizar o tribunal – e a impor‑lhe – a
aplicação em cúmulo jurídico de uma pena unitária, considerando em conjunto «os
factos e a personalidade do agente», sempre que se descubram infracções
anteriores que formam uma acumulação com a já julgada, sem que a pena
respectiva esteja cumprida, prescrita ou extinta, ou quando se verifique que não
fora feito o cúmulo jurídico das diversas penas por crimes que formam uma
acumulação de infracções, mesmo que as respectivas condenações hajam
transitado. (2) A nova avaliação conduz naturalmente ao encontro de uma pena
unitária que pode não respeitar, ela própria, as particularidades das penas
parcelares, de acordo, especialmente, com os critérios dos n.ºs 2, 3 e 4 do
artigo 78.º daquele diploma legal. (3) Nada obsta, por isso, a que nela se não
mantenha a suspensão da execução de qualquer das penas parcelares.»
«Não há violação de lei se na nova sentença e no novo cúmulo jurídico se não
aplicar a medida de suspensão da pena decretada em sentença anterior.» (Acórdãos
do STJ de 19 de Novembro de 1986, Boletim do Ministério da Justiça (BMJ), n.º
361, p. 278; de 12 de Março de 1997, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça, ano V, tomo 1, p. 254, e BMJ, n.º 465, p. 319, e de
4 de Junho de 1997, BMJ, n.º 468, p. 79. No mesmo sentido vão, aliás, as
Relações de Coimbra, Acórdão de 23 de Novembro de 1994, Colectânea de
Jurisprudência, ano XIX, tomo 5, p. 62, e de Lisboa, Acórdão de 5 de Novembro de
1997, BMJ, n.º 471, p. 447).
E decidiu também que «(1) É legal a eliminação da suspensão da execução de pena
anterior em que o arguido tinha sido condenado por ter sido cumulada
posteriormente com outra ou outras. (2) Neste caso não existe violação de caso
julgado, por a suspensão o não formar de forma perfeita, já que a suspensão pode
vir a ser alterada, quer no respectivo condicionalismo, quer na sua própria
existência se ocorrerem os motivos legais referidos nos artigos 50.° e 51.° ou
78.° e 79.° do Código Penal» (Acórdão de 14 de Março de 1996, proc. n.º 47 733).
Acrescentou que «a suspensão de uma pena, anteriormente aplicada e que vai
entrar no cúmulo, é declarada sem efeito, não propriamente por revogação, nos
termos do artigo 56.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal revisto, mas sim por
força da necessidade de efectuar o cúmulo jurídico de todas as penas» (Acórdão
do STJ de 11 de Junho de 1997, proc. n.º 65/97). E que «(1) O caso julgado
forma‑se quanto à medida da pena e não quanto à sua execução. (2) A suspensão da
execução da pena não é uma pena de natureza diferente da pena de prisão
efectiva. Pelo que não existe nenhum fundamento para excepcionar o artigo 79.º
do Código Penal de 1982 (artigo 78.º do Código Penal de 1995), em casos em que
uma das penas a cumular tem a sua execução suspensa, pois não se trata de cúmulo
jurídico de penas compósitas» (Acórdão de 4 de Junho de 1998, proc. n.º 333/98).
Por outro lado, não se pode dizer que, quando na formulação de um cúmulo
jurídico de penas parcelares, que incluem uma pena de prisão suspensa na sua
execução, a pena única não mantém a suspensão, se verifique a violação dos
princípios do contraditório e do juiz natural, bem como das regras processuais
(sempre) aplicáveis.
Quando o tribunal da condenação se apercebe de que se verifica alguma das
circunstâncias que, de acordo com o artigo 56.º do Código Penal, conduzem à
revogação da suspensão da execução da pena ((i) o condenado infringe grosseira
ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual
de readaptação social; ou (ii) comete crime pelo qual venha a ser condenado, e
revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por
meio dela, ser alcançadas), recolhe a prova, que se mostrar necessária, colhe o
parecer do Ministério Público e ouve o condenado, decidindo, depois, por
despacho, se revoga ou não a suspensão (artigo 495.º, n.º 2, do CPP).
Já quando o Tribunal procede obrigatoriamente ao cúmulo de penas, imposto pelos
artigos 77.º e 78.º do Código Penal, que não excluem as penas de prisão cuja
execução tenha sido suspensa, já as regras são diversas.
Tratando‑se do caso previsto no artigo 77.º, é na audiência de julgamento
respeitante ao processo pendente que se assegura o contraditório, mesmo em
relação à eventualidade de cúmulo de penas anteriores (concretizado se o
arguido vier a ser nele condenado), feito pelo tribunal competente: o indicado
abstractamente pela lei, como tal, para o julgamento daquele processo e eventual
cúmulo.
Se o conhecimento do concurso for superveniente (artigo 78.º do Código Penal),
então o tribunal competente (colectivo ou singular) [é] designado abstractamente
pelo artigo 471.º do CPP (sendo territorialmente competente o tribunal da última
condenação (n.º 2)).
Então, e de acordo com o disposto no artigo 472.º do CPP, o tribunal ordena,
oficiosamente ou a requerimento, as diligências que se lhe afigurem necessárias
para a decisão e designa dia para a realização da audiência, em que é
obrigatória a presença do defensor e do Ministério Público, a quem são
concedidos 15 minutos para alegações finais, determinando o tribunal os casos
em que o arguido deve estar presente.
Em ambos os casos, o tribunal tem em consideração os critérios dos artigos 77.º
e 78.º, mas igualmente os do art. 56.º, todos do Código Penal.
Portanto, quer no conhecimento atempado do concurso de infracções, a sancionar
com uma pena única, quer no conhecimento superveniente é respeitado o princípio
do contraditório, com audição dos sujeitos processuais interessados e a
produção da prova que se mostre necessária, e o princípio do juiz legal (também
designado natural) consagrado no n.º 7 do art. 32.º da Constituição:
predeterminação do tribunal competente para o julgamento, com proibição de
criação de tribunais ad hoc ou a atribuição da competência a um tribunal
diferente do que era legalmente competente à data do crime (cfr. Gomes
Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª
edição, p. 207).
Com efeito, como se viu, estão no caso satisfeitas as exigências de
determinabilidade (os juízes chamado a proferir decisão estão previamente
individualizados através de leis gerais) e de fixação de competência (em
relação ao cúmulo e as suas exigências, nenhuma regra de competência foi
ultrapassada).
Tem entendido o Tribunal Constitucional que o princípio do juiz natural ou do
juiz legal, estabelecido no artigo 32.º, n.º 7, da CRP, é, ao nível processual,
uma emanação do princípio da legalidade em matéria penal, que tem a ver com a
independência dos tribunais perante o poder político, e o que proíbe é a criação
(ou determinação) de uma competência ad hoc (de excepção) de um certo tribunal
para uma certa causa – em suma, os tribunais ad hoc (cfr., por todos, os
Acórdãos n.º 393/89, Diário da República (DR), II Série, n.º 212, de 14 de
Setembro de 1989, e BMJ, n.º 387, p. 146, e n.º 339/92, de 27 de Outubro de
1992, proc. n.º 358/92).
O entendimento de que a suspensão da execução da pena é uma pena de substituição
que se não confunde com a pena substituída, é frutuoso dogmaticamente quando
chama a atenção para as virtualidades e especialidades de tal pena, mas não pode
fazer esquecer que a «ameaça» que pende sobre o condenado é a do cumprimento de
uma pena de prisão ao qual reverte em caso de incumprimento.
Por outro lado, os argumentos tirados das diferentes regras de execução da pena
de prisão e da execução da pena suspensa afiguram‑se reversíveis. É que essa
diferença de regime impõe‑se pela própria natureza das coisas e o certo é que
não está previsto um esquema de execução de penas, quando cumulativamente
foram impostas uma pena única e uma pena suspensa na execução mantida fora do
cúmulo.
Em processo paralelo e perante a mesma linha argumentativa, teve o STJ (Acórdão
de 4 de Março de 2004, proc. n.º 3293/03‑5, com o mesmo Relator) ocasião de
decidir: «(1) Não há violação de lei se na nova sentença e no novo cúmulo
jurídico se não aplicar a medida de suspensão da pena decretada em sentença
anterior, nem violação de caso julgado, por a suspensão o não formar de forma
perfeita, já que a suspensão pode vir a ser alterada, quer no respectivo
condicionalismo, quer na sua própria existência se ocorrerem os motivos legais
referidos nos artigos 50.° e 51.° ou 78.° e 79.° do Código Penal. (2) As
condições em que é determinada a medida da pena (audiência do processo
principal, ou audiência destinada a proceder ao cúmulo) oferecem as mesmas
garantias de respeito pelo princípio do contraditório, como o esquema previsto
para a revogação da suspensão da execução da pena. (3) E é igualmente
respeitado o princípio do juiz natural.»
São também chamados à colação os princípios da proporcionalidade e da
necessidade das penas criminais (conclusão 14.ª), tidos por violados com a
«derrogação da suspensão, enquanto fundada em factos anteriores à sentença que
outorgou a suspensão de execução de pena privativa de liberdade», «sem que o
comportamento ulterior do arguido o justifique minimamente».
Sucede, porém que, em tal caso, é o comando do artigo 77.º do Código Penal que
impõe a consideração dos factos abrangidos pelo concurso, na sua globalidade e
no desenho que ajudam a traçar da personalidade do agente, enquanto factores a
ter em conta no juízo de censura unitário que o tribunal é chamado a proferir e
no qual pondera os referidos princípios da proporcionalidade e necessidade, e
que não são assim feridos.
Entende‑se, e decide‑se pois, que não violou a lei, nem os princípios do juiz
natural, da intangibilidade do caso julgado, da proporcionalidade e
necessidade, o Tribunal recorrido ao englobar na pena única de prisão pena
parcelar de prisão cuja execução ficara suspensa.”
Notificada deste acórdão, dele interpôs a representante do
Ministério Público junto do STJ recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26
de Fevereiro (LTC), pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade – por
violação da intangibilidade do caso julgado, com tutela no artigo 282.º, n.º 3,
da Constituição da República Portuguesa (CRP), e dos princípios da necessidade e
proporcionalidade das penas, do contraditório e das garantias de defesa – das
normas “dos artigos 77.º, 78.º e 56.º, n.º 1, do Código Penal, quando
interpretados no sentido de permitirem a reponderação de decisão judicial
transitada que impôs a pena de substituição prevista no artigo 50.º, n.º 1, do
Código Penal, sem que tenha ocorrido a prática de factos supervenientes
enquadráveis no disposto no artigo 56.º, n.º 1, do Código Penal e sem que o
condenado seja previamente ouvido”, questão de constitucionalidade que suscitara
nas alegações escritas por si apresentadas.
Neste Tribunal Constitucional, o representante do Ministério
Público apresentou alegações, onde, após consignar que, diversamente do
sustentado pela magistrada recorrente, entendia que no caso não ocorria
violação do princípio do contraditório (por a realização do cúmulo, no Tribunal
Colectivo de Viseu, se ter processado em audiência, e por hipotética violação
das garantias de defesa ligada à dispensa da presença do arguido ter seguramente
de ser reportada a outras normas ou preceitos legais, diversos dos que integram
o objecto do recurso), nem do princípio do juiz natural (por, na óptica
jurisprudencial em causa, não ocorrendo uma verdadeira e própria revogação da
suspensão da pena, mas antes uma reformulação – a propósito da realização do
cúmulo jurídico, com base no conhecimento superveniente dos seus pressupostos –
das várias penas previamente cominadas ao arguido, e, deste modo, sendo a
decisão que realiza o cúmulo, “global” e definitivo, proveniente do tribunal
designado abstractamente pelo artigo 471.º do CPP, ocorrer a predeterminação,
em termos bastantes, do “juiz legal”), sustentou a verificação da ocorrência de
violação do caso julgado, bem como do princípio constitucional da
proporcionalidade e necessidade das penas, expendendo, a propósito, a seguinte
argumentação:
“Note‑se que a interpretação normativa realizada pelo Supremo –
embora não apele expressa e directamente ao instituto da revogação da pena
suspensa – acaba implicitamente por alcançar um resultado idêntico ao que
decorreria de tal figura, obtendo uma verdadeira derrogação ou preclusão da
referida suspensão através da alegada necessidade de ponderação e avaliação
global, no momento do cúmulo, da personalidade do arguido e de todo o seu
passado criminal: daí que o recorrente haja especificado também como base
normativa do recurso a «norma» constante do artigo 56.º do Código Penal.
E tal necessidade de avaliação global – ao legitimar a valoração,
para efeito de determinação da pena única, de condutas criminosas anteriores ao
trânsito em julgado da sentença que outorgou ao arguido o benefício da
suspensão da execução de pena privativa da liberdade – determina um efeito
estritamente análogo ao previsto no artigo 56.º do Código Penal, para os casos
de cometimento superveniente de crime que revele «que as finalidades que
estiverem na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas».
Ou seja: o juízo que o Supremo, através da interpretação normativa
questionada, legitima é, afinal, idêntico, quer o crime cometido pelo arguido
seja anterior, quer seja posterior à sentença que lhe aplicou o «benefício» da
suspensão da pena privativa de liberdade: tudo está – num caso, como no outro –
em saber se o conjunto dos comportamentos com relevância criminal do arguido
(independentemente das datas e momentos em que tiveram lugar) se coaduna ou não
com as «finalidades» da suspensão, apuradas naturalmente em função da
personalidade do agente.
Deste modo, o conhecimento superveniente do concurso acaba por
produzir um resultado idêntico ao cometimento superveniente de novos crimes
pelo arguido que beneficiou da suspensão da execução da pena.
A preclusão da medida de suspensão da execução da pena corresponde,
deste modo, estritamente a uma derrogação da suspensão da execução da pena de
prisão operada com base na constatação de que foram praticados factos criminais
anteriores à sentença que a concedeu ao arguido, com base na necessidade de
realizar um cúmulo jurídico global e abrangente.
Como é evidente, a protecção constitucional do caso julgado (cf.
Acórdão n.º 61/2003) – inferível, desde logo, do princípio da confiança, ínsito
no do Estado de direito democrático – tem um particular relevo no domínio das
decisões de mérito proferidas no âmbito do processo penal: seria, na verdade,
manifestamente incompatível com as exigências de segurança e certeza – que,
nesta sede, têm particular justificabilidade – que fosse possível operar a
preclusão de uma verdadeira pena substitutiva aplicada, em certo caso, ao
arguido, por decisão transitada em julgado – num caso em que o arguido havia
cumprido integralmente os deveres estabelecidos pelo tribunal como conditio da
suspensão e sem que ocorresse qualquer comportamento, superveniente à dita
sentença, que pudesse legitimar a reponderação dos fundamentos e da
justificabilidade material da pena de suspensão ali decretada.
Nesta perspectiva, não será possível invocar, nem o «erro de
julgamento» (decorrente de a sentença condenatória não ter atendido aos crimes
anteriormente cometidos pelo arguido e que, eventualmente, poderiam obstar, se
adequadamente ponderados, à suspensão da pena), nem a «precariedade» da
suspensão: é que, como é manifesto, esta traduz‑se na possível preclusão do
benefício da suspensão por força de comportamentos ilícitos supervenientes do
arguido – e nunca por causa de mera reponderação do decidido, em função de
factos já praticados no momento em que – bem ou mal – tal suspensão veio a ser
decretada.
Ora, como nos parece evidente, os princípios da confiança e da
intangibilidade do caso julgado têm necessariamente de prevalecer sobre
quaisquer necessidades de avaliação «global» da personalidade do arguido no
momento da efectivação do cúmulo jurídico e da determinação da consequente pena
única – não podendo seguramente tais necessidades conduzir à caducidade ou
preclusão de uma verdadeira «medida de clemência», outorgada definitivamente ao
arguido pelo tribunal competente, sem que ocorra qualquer facto ou circunstância
superveniente, imputável ao arguido, que implique a legitimidade de uma
reponderação judicial da justificabilidade material da suspensão.
Em segundo lugar – e para além do caso julgado – resulta violado o
princípio da proporcionalidade e da necessidade da imposição de penas
privativas de liberdade: na verdade, tendo o arguido respeitado inteiramente as
condições que lhe foram impostas pelo tribunal para poder beneficiar da
suspensão da pena de prisão, revela‑se manifestamente excessiva e desnecessária
a revogação, caducidade ou derrogação de tal benefício da suspensão, permitindo
valorar, no cúmulo a efectivar, e na pena única a fixar, não uma «pena
suspensa», mas uma pena efectiva de prisão, sem que o comportamento
superveniente do arguido possa justificar a preclusão do benefício que lhe
havia sido outorgado.”
Na sequência do que o representante do Ministério Público no
Tribunal Constitucional formulou as seguintes conclusões:
“1 – O princípio da intangibilidade do caso julgado – assente nos
princípios da confiança e da segurança jurídicas – obsta a que se possa ser
objecto de reavaliação ou reponderação judicial a decisão, transitada em
julgado, que condenou o arguido em pena suspensa, tendo este cumprido
integralmente as condições de que dependia a suspensão, salvo se for demonstrada
a prática de factos supervenientes enquadráveis no disposto no artigo 56.º, n.º
1, alínea b), do Código Penal, e que demonstrem a frustração das finalidades de
prevenção e ressocialização do arguido, subjacentes ao «benefício» da suspensão
da pena.
2 – A caducidade ou preclusão da suspensão da execução da pena,
decretada exclusivamente em função da prática de factos ilícitos anteriores à
sentença condenatória que outorgou ao arguido a suspensão da execução da pena
privativa de liberdade, e com fundamento exclusivo na necessidade de proceder a
cúmulo jurídico, traduz uma revogação «implícita» de tal benefício, de
consequências estritamente análogas às previstas no artigo 56.º do Código Penal,
colidente com a referida intangibilidade do caso julgado material, na parte em
que é favorável ao arguido.
3 – A derrogação da suspensão, enquanto fundada em factos anteriores
à sentença que outorgou a suspensão de execução de pena privativa de liberdade,
revela‑se ainda colidente com os princípios da proporcionalidade e da
necessidade das penas criminais, ao determinar a preclusão do benefício da
suspensão, sem que o comportamento ulterior do arguido o justifique
minimamente.
4 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
O recorrido não apresentou contra‑alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Dispõem os artigos 77.º e 78.º do Código Penal, aprovado
pelo Decreto‑Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, na redacção que lhes foi dada
foi dada pelo Decreto‑Lei n.º 48/95, de 15 de Março:
“Artigo 77.º (Regras da punição do concurso)
1 – Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar
em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na
medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do
agente.
2 – A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas
concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos
tratando‑se de pena de prisão e 900 dias tratando‑se de pena de multa; e como
limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários
crimes.
3 – Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de
prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém‑se na pena única
resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.
4 – As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre
aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.
Artigo 78.º (Conhecimento superveniente do concurso)
1 – Se, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de
a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se mostrar que o agente
praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são
aplicáveis as regras do artigo anterior.
2 – O disposto no número anterior é ainda aplicável no caso de todos
os crimes terem sido objecto separadamente de condenações transitadas em
julgado.
3 – As penas acessórias e as medidas de segurança aplicadas na
sentença anterior mantêm‑se, salvo quando se mostrarem desnecessárias em vista
da nova decisão; se forem aplicáveis apenas ao crime que falta apreciar, só são
decretadas se ainda forem necessárias em face da decisão anterior.”
Por seu turno, prevê o artigo 56.º do mesmo Código, na
aludida redacção:
“Artigo 56.º (Revogação da suspensão)
1 – A suspensão da revogação da pena de prisão é revogada sempre
que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de
conduta impostos ou o plano individual de readaptação social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as
finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser
alcançadas.
2 – A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na
sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja
efectuado.”
Da estatuição do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal resulta que
elemento decisivo para a verificação da situação de concurso de infracções a
que se aplica o regime delineado nesse preceito e no artigo seguinte é que o
agente tenha praticado mais do que um crime antes de transitar em julgado a
condenação por qualquer deles; com exclusão, portanto, das situações vulgarmente
designadas por “cúmulo por arrastamento” (como ocorreria, no presente caso, se
no cúmulo também tivessem sido englobadas as penas de 9 e 3 meses de prisão por
crimes cometidos em 18 de Maio e 4 de Julho de 2001, posteriormente ao trânsito
em julgado, em 14 de Janeiro de 1999, da condenação pelo crime cometido em 31 de
Dezembro de 1994) – cf. Paulo Dá Mesquita, O Concurso de Penas, Coimbra, 1997,
pp. 57‑72; Vera Lúcia Raposo, “Cúmulo por arrastamento – Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 7 de Fevereiro de 2002”, Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, ano 13.º, n.º 4, Outubro‑Dezembro 2003, pp. 583‑599; e o Acórdão n.º
212/2002 deste Tribunal, que não julgou inconstitucional a norma do artigo
77.º, n.º 1, do Código Penal, interpretada no sentido de considerar como
momento decisivo para a aplicabilidade da figura do cúmulo jurídico (e da
consequente unificação de penas) o trânsito em julgado da decisão condenatória.
As opções abertas ao legislador para a punição das situações de
concurso de crimes, assim entendidas, têm sido, em termos históricos e
comparatísticos, as seguintes (cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal
Português – Parte Geral – II: As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993,
§§ 397 a 404, pp. 279‑283, que se segue de perto): (i) o sistema da acumulação
material: o juiz determina a pena cabida a cada crime concorrente como se de
casos de unidade criminosa se tratasse e aplica ao agente a totalidade das penas
determinadas, materialmente adicionadas, penas que serão sucessivamente
cumpridas, se tiverem a mesma natureza (v. g., 4 penas de prisão), ou sê‑lo‑ão
simultaneamente se tal se revelar materialmente possível (v. g., 1 pena de
prisão e 1 pena de multa); (ii) o sistema da pena unitária: o juiz não fixa
penas para cada um dos crimes concorrentes, mas apenas para o conjunto dos
factos praticados, como se este constituísse um único crime (imaginário),
relativamente ao qual o juiz faria funcionar os critérios da culpa e da
prevenção para efeito de determinação da pena; e (iii) os sistemas da pena
conjunta, em que as molduras penais previstas ou as penas concretamente
aplicadas para cada um dos crimes em concurso são depois transformadas ou
convertidas, segundo um princípio de “combinação legal”, na moldura penal ou na
pena do concurso, “combinação legal” essa que pode obedecer: 1) ao princípio de
absorção puro, em que a punição do concurso é constituída pela pena
concretamente determinada e cabida ao crime mais grave; ou 2) ao princípio da
exasperação ou agravação, em que a punição do concurso ocorre em função da
moldura penal prevista para o crime mais grave, mas devendo a pena concreta (do
concurso) ser agravada por força da pluralidade de crimes, sem que, todavia,
possa ultrapassar a soma das penas que concretamente seriam aplicadas aos
crimes singulares.
O sistema legalmente vigente entre nós é o da pena conjunta, de
acordo com o princípio da exasperação ou agravação: a pena aplicável ao
concurso tem como limite mínimo a mais elevada das penas aplicadas aos vários
crimes e como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários
crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando‑se de pena de prisão e 900 dias
tratando‑se de pena de multa – artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal. Excepção a
esta regra é a ocorrência de concurso de pena de prisão e com pena de multa, em
que se segue o sistema da acumulação material – artigo 77.º, n.º 3, do Código
Penal.
Se a situação de cumulação de infracções é apreciada no mesmo
julgamento, constitui entendimento da doutrina (cf. Figueiredo Dias, obra
citada, § 409, p. 285) e da jurisprudência, que a ponderação da possibilidade
de, no caso, se determinar a suspensão da execução da pena de prisão não deve
ser feita relativamente a cada uma das penas parcelares, mas apenas quanto à
pena conjunta, pois é esta que vai ser efectivamente aplicada e é relativamente
a ela que cumpre proceder ao diagnóstico previsto no n.º 1 do artigo 50.º do
Código Penal. Assim, quando o conhecimento do concurso é contemporâneo da
decisão condenatória, e a ser seguida esta orientação, não se coloca o problema
que subjaz à questão de constitucionalidade objecto do presente recurso.
Se, por hipótese, não tivesse sido seguido esse método,
Figueiredo Dias (obra citada, § 419, p. 290) defendia que, quando uma pena
parcelar de prisão tenha sido suspensa na sua execução, “torna‑se evidente que
para efeito de formação da pena conjunta relevará a medida da prisão
concretamente determinada e que porventura tenha sido substituída” e que, “de
todo o modo, determinada a pena conjunta, e sendo de prisão, então sim, o
tribunal decidirá se ela pode legalmente e deve político‑criminalmente ser
substituída por pena não detentiva”.
A questão surge quando é superveniente o conhecimento da situação
de concurso, o que se pode dever a circunstâncias puramente fortuitas. Em
detrimento da possibilidade de adoptar um sistema de acumulação material de
penas, o legislador optou por, no artigo 78.º, n.º 1, determinar a aplicação a
estes casos do regime do preceito precedente, designadamente através da
imposição de uma “pena única” (n.º 1 do artigo 77.º). Já vimos que, tratando‑se
de penas parcelares de prisão e de multa, o artigo 77.º, n.º 3, determina que
elas mantenham a sua natureza na “pena única”, mas nada se diz quando se trate
de cumular penas de prisão (efectiva) com penas de substituição da pena de
prisão, designadamente penas de prisão suspensas na sua execução.
Nos trabalhos preparatórios da revisão de 1995, Figueiredo Dias,
na qualidade de Presidente da Comissão de Revisão do Código Penal, havia
proposto a inserção no então 54.º de um n.º 2 do seguinte teor: “Se, no decurso
da suspensão, o agente vier a ser condenado em pena de prisão por crime
anteriormente praticado, o tribunal revogará a suspensão se concluir que ela
não teria sido decretada se tivesse havido conhecimento do crime anterior”,
proposta que, apesar de não ter merecido qualquer crítica na sessão em que foi
apresentada (Código Penal – Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Lisboa,
1993, p. 52), não surgiria no texto final do Projecto.
Perante a inexistência de uma explícita solução legislativa, a
orientação dominante da jurisprudência, designadamente do Supremo Tribunal de
Justiça (como o acórdão recorrido, aliás, dá desenvolvida conta), tem sido no
sentido da admissibilidade de englobar no cúmulo jurídico – uma vez verificada a
situação descrita no n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal (prática, pelo mesmo
autor, de vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer
deles), e mesmo que o conhecimento desse concurso de crimes seja superveniente,
nos termos do n.º 1 do artigo 78.º, isto é, mesmo que só após o trânsito em
julgado de uma das condenações por esses crimes (mas desde que a correspondente
pena se não mostre cumprida, prescrita ou extinta), se tenha constatado que o
mesmo agente praticara, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes
– penas de prisão “efectiva” e penas de prisão suspensas na sua execução, com
eventual não manutenção, na pena única, desta suspensão de execução. Na base
deste entendimento está, por um lado, a concepção de que a pena de prisão
suspensa na sua execução não é pena de natureza diferente da pena de prisão e de
que, por outro lado, o disposto nos artigos 77.º e 78.º constitui, a par do
disposto no artigo 56.º, n.º 1, todos do Código Penal, previsão legal
justificativa da não manutenção (ou revogação) da suspensão da execução da pena
de prisão. A decisão de suspensão da execução da pena de prisão surge, assim,
como sempre dotada de provisoriedade, dependendo a sua subsistência não só da
conduta posterior do condenado (que, no período da suspensão, não pode – sob
pena de ver a suspensão revogada – infringir grosseira ou repetidamente os
deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação
social, ou cometer crime pelo qual venha a ser condenado, revelando que as
finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser
alcançadas), mas também da superveniência do conhecimento da prática, anterior
àquela decisão, de outro ou outros crimes, desde que, nesta última hipótese, ao
ponderar globalmente o conjunto dos factos e a personalidade do agente, o
tribunal competente para efectuar o cúmulo das penas em concurso conclua que
não se justifica (ou é legalmente inadmissível) a manutenção da suspensão da
execução da pena de prisão, agora reportada à pena única.
Neste sentido, podem citar‑se, entre os mais recentes, os
acórdãos do STJ, de 4 de Março de 2004, proc. n.º 3293/03, de 22 de Abril de
2004, proc. n.º 1390/04, de 2 de Dezembro de 2004, proc. n.º 4106/04, de 21 de
Abril de 2005, proc. n.º 1303/05, e de 5 de Maio de 2005, proc. n.º 661/05, que
apresentam fundamentação comum, assim sintetizada nos sumários dos acórdãos:
– de 2 de Dezembro de 2004, proc. n.º 4106/04: “(…) IV – A
provisoriedade da substituição das penas parcelares obsta, de si, à invocação,
contra a unificação destas, do trânsito em julgado da substituição eventualmente
operada em alguma das condenações avulsas, pelo que tal substituição deve
entender‑se, sempre, resolutivamente condicionada ao «conhecimento superveniente
do concurso». V – O caso julgado forma‑se quanto à medida da pena e não quanto à
sua execução. VI – A suspensão de uma pena, anteriormente aplicada e que vai
entrar no cúmulo, é declarada sem efeito, não propriamente por revogação, nos
termos do artigo 56.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, mas sim por força da
necessidade de efectuar o cúmulo jurídico de todas as penas. VII – A suspensão
da execução da pena não se perfila como uma pena de natureza diferente da pena
de prisão efectiva; daí que não exista nenhum fundamento para excepcionar o
artigo 78.º do Código Penal, em casos em que uma das penas a cumular tem a sua
execução suspensa, pois não se trata de cúmulo jurídico de penas compósitas.”;
– de 21 de Abril de 2005, proc. n.º 1303/05: “I – Se é certo que,
nas condenações parcelares, nada se opõe, «em princípio», «a que o tribunal
considere que qualquer das penas parcelares de prisão deve ser substituída, se
legalmente possível, por uma pena não detentiva (v. g., de suspensão da
execução)», «não pode, no entanto, recusar‑se» – em caso de «conhecimento
superveniente do concurso» – «a valoração pelo tribunal da situação de concurso
de crimes, a fim de determinar se a aplicação de uma pena de substituição ainda
se justifica do ponto de vista das exigências de prevenção, nomeadamente da
prevenção especial» (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime,
Editorial Notícias, 1993, § 511). II – E isso porque, «sabendo‑se que a pena que
vai ser efectivamente aplicada não é a pena parcelar, mas a pena conjunta,
torna‑se claro que só relativamente a esta tem sentido pôr a questão da sua
substituição» (autor e obra citados, § 419). III – Daí que, quanto a penas
parcelares, «a pena de prisão não deva, em princípio, ser substituída por uma
pena não detentiva» (ibidem). Mas, se o tiver sido, «torna‑se evidente que para
efeito de formação da pena conjunta relevará a medida da prisão concretamente
determinada (ainda que «porventura tenha sido substituída»). E, só depois de
«determinada a pena conjunta», é que, «sendo de prisão», «o tribunal decidirá se
ela pode legalmente e deve político‑criminalmente ser substituída por pena não
detentiva» (ibidem). IV – Donde que a provisoriedade da substituição das penas
parcelares obste, de si, à invocação, contra a unificação destas, do «trânsito
em julgado» da substituição eventualmente operada em alguma das condenações
avulsas. E assim porque tal «substituição» deve entender‑se, sempre,
resolutivamente condicionada ao «conhecimento superveniente do concurso»”.
Em sentido não coincidente dessa orientação dominante viria,
porém, a decidir o acórdão do STJ de 2 de Junho de 2004, proc. n.º 1391/04, com
a seguinte fundamentação:
“7. A aplicação de uma pena única no caso de concurso de crimes
supõe que estejam em causa penas da mesma natureza.
Nesta perspectiva, poder‑se‑á discutir se a pena suspensa, prevista
no artigo 50.º do Código Penal, enquanto pena de substituição, constitui, para
efeitos de determinação da pena única do concurso, uma pena da mesma natureza
do que a pena de prisão.
Com efeito, a pena suspensa não é comparável, conceptual,
político‑criminalmente ou em termos de execução, à pena de prisão.
É uma pena de substituição cuja matriz de origem e base está
condicionada, e que pode vir a ser declarada extinta através do procedimento
adequado; enquanto não puder decorrer o procedimento de execução da pena
suspensa, com a decisão de extinção da pena ou revogação da suspensão, não é
susceptível de execução como pena de prisão.
Como resulta do artigo 56.º do Código Penal, a revogação não é
automática; mesmo verificados os pressupostos de que depende, é sempre
necessária uma decisão que aprecie e avalie se a quebra dos deveres de que
depende a suspensão assume gravidade que determine a revogação, e mesmo em caso
de prática de crime, é necessário que uma decisão verifique que, concretamente,
não puderam ser alcançadas as finalidades que estiveram na base da suspensão.
Só a revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na
sentença – artigo 56.º, n.º 2, do Código Penal.
A pena suspensa é declarada extinta se, como dispõe o artigo 57.º,
n.º 1, do Código Penal, durante o período da suspensão não houver motivos que
possam conduzir à revogação.
A pena de substituição é, pois, uma pena de natureza diferente da
pena de prisão, pela natureza e função que lhe está político‑criminalmente
adstrita.
De todo o modo, como quer que se considere a natureza da pena
suspensa para efeitos de fixação de uma pena única do concurso (cf., v. g.,
entre outros, o acórdão deste STJ, de 8 de Julho de 2003, proc. n.º 4645/02,
admitindo o cúmulo de pena suspensa com pena de prisão), há que decidir,
previamente, se a pena de substituição, por ser de diferente natureza e ter
regras distintas de execução, guarda essa diferente natureza, ou se, em
diverso, tem de ser executada como pena de prisão.
8. A competência para o conhecimento superveniente do concurso e,
consequentemente, para a determinação da pena única, pertence ao tribunal da
última condenação – artigo 471.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP).
O tribunal da última condenação, porém, tem também competência para
decidir todas as questões incidentais (artigo 474.º do CPP), incluindo a decisão
relativa às especificidades da execução da pena suspensa que tenha sido
aplicada por algum dos crimes do concurso.
O procedimento relativo à execução da pena suspensa está previsto no
artigo 492.º do CPP: a falta de cumprimento dos deveres para efeitos do
disposto nos artigos 51.º, n.º 3, 52.º, n.º 3, 55.º e 56.º é apreciada por
despacho, depois de recolhida a prova e «antecedendo parecer do Ministério
Público e a audição do condenado». É um procedimento contraditório, de
julgamento, não podendo a decisão sobre a revogação da pena suspensa basear‑se
em meros indícios, mas em juízo seguro sobre a não verificação do cumprimento
das finalidades da suspensão (cf., v. g., acórdão do Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem, de 3 de Outubro de 2002, no caso Böhmer c. Alemanha).
O acórdão recorrido fez incluir na pena única do concurso penas de
substituição, sem que tenha havido decisão nos termos dos artigos 56.º do
Código Penal e 492.º do CPP relativamente às penas suspensas, não resultando
dos factos que o tribunal a quo tomou em consideração que nos processos em que
foram aplicadas tenha sido decidida a revogação ou a extinção das penas
suspensas.
Deste modo, o acórdão recorrido deixou de se pronunciar sobre
questão que devia apreciar; tal omissão integra a nulidade a que se refere o
artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP.
9. Nestes termos, anula-se o acórdão recorrido.”
Orientação similar foi seguida nos acórdãos de 6 de Outubro de
2004, proc. n.º 2012/04, e de 20 de Abril de 2005, proc. n.º 4742/04 (todos os
acórdãos do STJ atrás citados estão disponíveis, em texto integral, em
www.dgsi.pt/jstj, ou sumariados no Boletim Interno do STJ, disponível em
www.stj.pt; e os de 22 de Abril de 2004, proc. n.º 1390/04, e de 2 de Junho de
2004, proc. n.º 1391/04, estão publicados em Colectânea de Jurisprudência –
Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano XI, 2004, tomo II, pp. 172 e 217,
respectivamente).
Não compete, como é óbvio, ao Tribunal Constitucional tomar
posição quanto à apontada divergência jurisprudencial nem apreciar a valia das
críticas que os representantes do Ministério Público dirigem, em sede de
interpretação e aplicação do direito ordinário, à orientação acolhida no acórdão
recorrido (que é também a defendida por Paulo Dá Mesquita, obra citada, pp.
95‑100), mas tão‑só apurar se este entendimento, que é assumido como um dado da
questão de constitucionalidade, viola, ou não, princípios ou normas
constitucionais.
2.2. Como resulta do precedente relatório, o representante do
Ministério Público no Tribunal Constitucional, na alegação apresentada, não
secundou a tese da representante do Ministério Público no STJ no que tange à
alegada violação dos princípios do juiz natural e do contraditório.
E, na verdade, há que concluir pela não verificação de nenhuma
dessas violações.
A tese da violação do princípio do juiz natural assenta em que
houve violação daquele princípio por o acórdão recorrido atribuir competência a
um tribunal que, na leitura que se faz das normas legais pertinentes, não seria
o competente, mas, como é óbvio, a atribuição de competência a um tribunal que,
no entender de um interveniente processual, seria incompetente não acarreta
violação daquele princípio constitucional. Para a referida tese, tratando‑se de
uma revogação da suspensão da execução da pena de prisão, para a qual era
legalmente competente o tribunal da execução dessa pena, a violação daquele
princípio derivaria de essa “revogação” acabar por ser decretada por tribunal
que, segundo esse entendimento, seria incompetente: o tribunal da última
condenação.
Mas, como se viu, o entendimento do acórdão recorrido é que não
se trata de uma específica revogação da suspensão da execução da pena de prisão,
mas tão‑só da efectivação do cúmulo jurídico no caso de conhecimento
superveniente da existência de uma situação de concurso de infracções, e
legalmente competente, para este efeito, é o tribunal da última condenação.
Nesta perspectiva, o tribunal competente encontra‑se
pré‑determinado na lei, não se verificando, pois, qualquer criação de
tribunais ad hoc, violadora daquele princípio.
E também não ocorre violação do princípio do contraditório, já
que, no caso de conhecimento superveniente de uma situação de concurso de
infracções, a lei impõe a realização de uma audiência do tribunal
especificamente para esse efeito. Nos termos do artigo 472.º do CPP:
“1 – Para o efeito do disposto no artigo 78.º, n.º 2, do Código
Penal, o tribunal designa dia para a realização da audiência ordenando,
oficiosamente ou a requerimento, as diligências que se lhe afigurem necessárias
para a decisão.
2 – É obrigatória a presença do defensor e do Ministério Público, a
quem são concedidos quinze minutos para alegações finais. O tribunal determina
os casos em que o arguido deve estar presente.”
No presente caso, o juiz presidente do Tribunal Colectivo
dispensou a presença do arguido na audiência convocada para o efeito de
realização do cúmulo, tendo nesta participado o defensor oficioso nomeado. Se
se entendia que era a dispensa da presença do arguido do arguido que violava o
princípio do contraditório, a questão de inconstitucionalidade deveria ter sido
reportada à norma constante da parte final do n.º 2 deste artigo 472.º, questão
que não foi suscitada.
2.3. Resta, assim, a questão da alegada violação dos princípios
da intangibilidade do caso julgado e da proporcionalidade e necessidade das
penas criminais.
O Tribunal Constitucional já por diversas vezes (cf., por último,
os Acórdãos n.ºs 61/2003 e 572/2003) reconheceu a protecção constitucional do
caso julgado, alicerçando‑a, quer no disposto no n.º 3 do artigo 282.º da
Constituição, quer nos princípios da confiança e da segurança jurídica,
decorrentes da própria ideia de Estado de Direito (artigo 2.º da Constituição).
Na verdade, o caso julgado “decorre de um princípio material – a exigência de
segurança jurídica”, pois “a estabilidade do direito tornado certo pela sentença
insusceptível de recurso ordinário é, igualmente, a dos direitos e interesses
que declara”, tratando‑se de um “princípio irrecusável”, “considerando os
valores do Estado de Direito”, embora não seja um princípio “absoluto” (cf.
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo VI, 2.ª edição, Coimbra,
2005, pp. 277‑278). Como refere J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional
e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra, 2003, pp. 264‑265), “a segurança
jurídica no âmbito dos actos jurisdicionais aponta para o caso julgado”, e,
“embora o princípio da intangibilidade do caso julgado não esteja previsto,
expressis verbis, na Constituição, ele decorre de vários preceitos do texto
constitucional (CRP, arts. 29.º/4, 282.º/3) e é considerado como subprincípio
inerente ao princípio do Estado de direito na sua dimensão de princípio
garantidor de certeza jurídica”.
Mas não se trata – repete‑se – de um princípio absoluto, embora a
protecção constitucional de que goza naturalmente pressuponha que o legislador
não é inteiramente livre, quer na escolha dos mecanismos susceptíveis de
modificar uma decisão que a própria lei já considerara definitiva, quer na
selecção das decisões susceptíveis de constituírem caso julgado.
Igualmente o Tribunal Constitucional tem reiteradamente
reconhecido que a Constituição acolhe, designadamente no seu artigo 18.º, n.º 2,
os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas e das medidas de
segurança, afirmando repetidamente que, por serem as sanções penais aquelas que,
em geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais, devem ser
evitadas, na existência e na medida, sempre que não se demonstre a sua
necessidade, como se recordou, por último, nos Acórdãos n.ºs 99/2002 e 494/2003,
com larga referência à doutrina e à jurisprudência anterior sobre o tema. No
entanto, não deixou de se sublinhar nesses Acórdãos que, sendo certo que “também
em matéria de criminalização o legislador não beneficia de uma margem de
liberdade irrestrita e absoluta, devendo manter‑se dentro das balizas que lhe
são traçadas pela Constituição”, é, por outro lado, igualmente certo que, “no
controlo do respeito pelo legislador dessa ampla margem de liberdade de
conformação, com fundamento em violação do princípio da proporcionalidade, o
Tribunal Constitucional só deve proceder à censura das opções legislativas
manifestamente arbitrárias ou excessivas”.
Entende‑se que nenhum dos aludidos princípios constitucionais é
violado pela interpretação normativa acolhida no acórdão recorrido.
Na verdade, segundo essa interpretação, a hipótese de uma pena de
prisão suspensa na sua execução, anteriormente aplicada a um dos crimes em
concurso, vir a perder autonomia e a ser englobada na pena única correspondente
ao concurso supervenientemente conhecido constitui, a par das hipóteses
previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 56.º do Código Penal, um caso
em que é legalmente admitido “revogar” ou “não manter” a suspensão, o que, de
acordo com a corrente jurisprudencial em que o acórdão recorrido se insere, nem
sequer constitui violação de caso julgado, atenta a conatural provisoriedade da
suspensão de execução da pena. O condenado em pena de prisão suspensa na sua
execução que tenha praticado um crime anteriormente àquela condenação pelo qual
ainda não foi julgado sabe que não só pode ter de vir a cumprir a pena de prisão
suspensa se, no decurso do período da suspensão, infringir grosseira ou
repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de
readaptação social ou se cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e
revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por
meio dela, ser alcançadas, mas ainda que aquela suspensão pode não ser mantida,
se a pena aplicada ao cúmulo legalmente o não permitir ou se, na ponderação
final global a cargo do tribunal do cúmulo, se entender que a suspensão, no
caso, se não justifica.
A apontada opção legislativa – tal como foi entendida no acórdão
recorrido – surge, assim, ou como não violadora de pretenso caso julgado formado
sobre a anterior condenação (se se sufragar a tese da provisoriedade inerente
às decisões de suspensão de execução de pena de prisão), ou como materialmente
fundada em ponderosas razões de política criminal, que privilegiam, por
considerada mais justa, o sistema da pena conjunta, em detrimento do sistema da
acumulação material.
Trata‑se, na verdade – e com isto se responde também à crítica
fundada na violação do princípio da necessidade das penas –, da solução que, na
perspectiva do legislador (que, em domínio de liberdade conformativa como este,
só justificaria censura constitucional se se tratasse de opção legislativa
manifestamente arbitrária ou excessiva), corresponde ao critério da culpa e às
preocupações de prevenção em que se funda o sistema punitivo.
Saliente‑se que, na lógica deste sistema, tanto não viola o caso
julgado a não manutenção, na pena única, de suspensão de penas parcelares, como
a suspensão total da pena única, mesmo que nela confluam penas parcelares de
prisão efectiva. Com efeito, uma vez determinada a medida da pena única, se esta
for de prisão não superior a três anos, o tribunal tem de obrigatoriamente
ponderar a possibilidade de essa pena ser suspensa na sua execução, “se,
atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta
anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples
censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as
finalidades da punição” (n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal). Se, feita esta
ponderação, se concluir por um prognóstico favorável, a pena (única) deve ser
suspensa, mesmo que englobe penas parcelares de prisão efectiva; se, ao invés,
esse prognóstico for negativo, a pena (única) não deve ser suspensa, mesmo que
englobe penas parcelares suspensas. A lógica do sistema é sempre a mesma e
obedece a dois vectores: (i) no caso de conhecimento superveniente do concurso,
tudo se deve passar como se passaria se o conhecimento tivesse sido
contemporâneo; mas (ii) a decisão sobre a suspensão da pena deve atender à
situação do condenado no momento da última decisão e sempre reportada à pena
única.
A insubsistência das penas parcelares é, aliás, expressamente
admitida pelo legislador, quando o n.º 3 do artigo 78.º do Código Penal
determina a não manutenção, na pena única, das penas acessórias e das medidas de
segurança aplicadas na sentença anterior, desde que elas se mostrem
“desnecessárias em vista da nova decisão”.
No presente caso, o Supremo Tribunal de Justiça, ao apreciar a
correcção do cúmulo efectuado, ponderou a possibilidade de suspensão da execução
da pena única que reduziu para 2 anos e 8 meses, apesar de nela confluírem duas
penas parcelares de prisão efectiva (uma de 15 meses e outra de 6 meses). E foi
só por entender que, no caso, não se justificava a suspensão da execução da
pena, “por não se mostrar a mesma suficiente para realizar adequadamente as
finalidades da punição”, que a mesma não foi decretada; se o diagnóstico
tivesse sido favorável, teria sido decretada a suspensão, não obstante a
existência de penas parcelares de prisão efectiva.
Também por esta razão se não mostra violado o princípio da
proporcionalidade e da necessidade das penas, salientando‑se que não vem
questionado o respeito por esse princípio, por parte do legislador, nem quando
estatuiu a incriminação e punição dos crimes singulares em concurso, nem quando
optou, no que concerne à punição do concurso de infracções, pelo sistema da
pena conjunta, de acordo com o princípio da exasperação ou agravação.
Conclui‑se, assim, que a interpretação normativa
questionada não viola os princípios do juiz natural, do contraditório, da
intangibilidade do caso julgado ou da proporcionalidade e necessidade das
penas.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 77.º, 78.º
e 56.º, n.º 1, do Código Penal, interpretados no sentido de que, ocorrendo
conhecimento superveniente de uma situação de concurso de infracções, na pena
única a fixar pode não ser mantida a suspensão da execução de penas parcelares
de prisão, constante de anteriores condenações; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida,
na parte impugnada.
Sem custas.
Lisboa, 3 de Janeiro de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos