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Processo n.º 442/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A arguida A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação
de Guimarães contra o acórdão do Tribunal Colectivo do 1.º Juízo do Tribunal
Judicial da Comarca de Fafe, que a condenou, pela prática de um crime de furto
qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 2, alínea e), do Código
Penal, na pena de 3 anos de prisão. Na motivação desse recurso, em que, para
além de propugnar a alteração da decisão da matéria de facto e, com base nela, a
sua absolvição, foi suscitada a questão da falta de fundamentação da não
aplicação do instituto da suspensão da pena, a recorrente formulou as seguintes
conclusões:
“1.ª – O tribunal a quo alicerçou a sua convicção nos depoimentos
das testemunhas, Dra. B. (Directora da Escola de …-Fafe), C. e D. (ambos
soldados da GNR), sendo que a testemunha Dra. B. diz não saber quem foram os
autores do furto, nem quando ou de que forma se deram os factos e os soldados da
GNR afirmam nada saberem sobre os factos ocorridos na escola de …‑Fafe.
2.ª – De facto, analisando os referidos depoimentos, o tribunal a
quo apenas poderia dar como provado que, entre o dia 13 de Junho, à tarde, e o
dia 16 de Junho, pela manhã, alguém se introduziu na escola do 1.º ciclo de …,
sita em Fafe, subtraindo do seu interior os bens encontrados no veículo do
arguido E..
3.ª – Aliás, foi realizado um exame lofoscópico ao local do crime,
sendo que da recolha das impressões digitais não foi encontrado qualquer
vestígio da presença dos arguidos no local do crime.
4.ª – Assim, o tribunal a quo não poderia ter dado como provados os
factos constantes dos parágrafos 2.º, 3.º e 5.º do acórdão recorrido, sendo que,
fazendo‑o, usou erradamente o princípio da livre apreciação da prova, violando o
princípio da presunção da inocência – cf. artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
5.ª – Apesar da insuficiência de prova não se confundir com o vício
da insuficiência para a decisão da matéria de facto, certo é que cabe no âmbito
dos poderes de cognição deste tribunal a sindicância de toda a matéria de facto
vertida no acórdão recorrido, sendo que o entendimento contrário do disposto nos
artigos 410.º, n.º 1, 363.º, 364.º, n.ºs 1 e 3, e 428.º, n.ºs 1 e 2, do Código
de Processo Penal, é inconstitucional por violação do direito ao recurso e das
garantias de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da CRP).
6.ª – O tribunal a quo fundou a sua convicção em factos que não
constituem objecto do processo e que, como tal, não poderiam ser valorados.
7.ª – Com efeito, o tribunal construiu a sua convicção num
raciocínio ilactivo que lhe está absolutamente vedado, desde logo porque a única
presunção de que o julgador penal pode lançar mão é a da presunção da inocência
do arguido.
8.ª – Ora, da motivação do acórdão resulta que o tribunal recorrido
considerou inequívoco que os arguidos praticaram um furto ocorrido numa escola
em Mesão Frio, Guimarães, para assim concluir que também foram os arguidos os
autores do furto ocorrido na escola de …, Fafe, ou seja, o tribunal partiu da
ilação que fez de um facto conhecido – factos ocorridos na escola de Mesão Frio,
Guimarães – para firmar um facto desconhecido – factos ocorridos na escola de
…, Fafe.
9.ª – Acontece que, além de tais factos não fazerem parte do objecto
do presente processo, estão ainda a ser investigados no âmbito de um outro
processo, pelo que o uso que o tribunal fez dos factos ocorridos em Guimarães é
claramente violador do princípio da presunção da inocência, gerador de
nulidade, uma vez que o tribunal conheceu de questões de que não poderia
conhecer (artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal).
10.ª – Aliás, o entendimento que o tribunal recorrido retirou do
vertido nos artigos 127.º e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, no
sentido de que na fundamentação do acto decisório pode ter em conta factos que
estão a ser objecto de investigação noutro processo de índole criminal, é
claramente violador das garantias de defesa do arguido, do princípio da
presunção da inocência e do princípio do acusatório, consagrados no artigo 32.º,
n.ºs 1, 2 e 5, da CRP.
11.ª – Além disso, o tribunal, ao julgar‑se, por exclusão de partes,
incompetente para o conhecimento dos factos ocorridos em Guimarães, violou o
caso julgado.
12.ª – De facto, o tribunal deveria retirar todas as consequências
do seu despacho de fls. ..., abstraindo‑se dos factos ocorridos na comarca de
Guimarães, sendo que, valorando tais factos, o tribunal recorrido violou o
princípio do caso julgado.
13.ª – A interpretação que se faz dos artigos 127.º e 374.º, n.º 2,
do Código de Processo Penal, no sentido de que podem ser valorados no acto
decisório factos pelos quais o arguido é acusado num âmbito de um outro
processo criminal, é violadora do princípio ne bis in idem inserto no artigo
29.º, n.º 5, da CRP, uma vez que a recorrente não pode ser julgada duas vezes
pelos mesmos factos.
14.ª – Devendo, assim, considerar‑se não escrita a parte da
fundamentação que se refere aos factos ocorridos na escola de Mesão Frio,
Guimarães, encontra‑se cometida a nulidade de insuficiência do acórdão por
falta de fundamentação, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código
de Processo Penal.
15.ª – Sob pena, caso os arguidos (ou só um deles) venham a ser
absolvidos de terem praticado os factos ocorridos na escola de Paçô Vieira e
constantes no processo a correr termos em Guimarães, estaremos
irremediavelmente numa situação que fundamenta o recurso de revisão previsto no
artigo 449.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, pondo‑se assim em
causa a segurança jurídica que a comunidade quer nas decisões dos tribunais.
16.ª – Assim, tendo em conta que este tribunal de recurso se
encontra na posse de todos os elementos de prova que lhe servirão de base, a
decisão não poderá ser a do reenvio do processo para novo julgamento, mas sim a
absolvição da recorrente nos termos do artigo 431.º, n.º 1, alíneas a) e b), do
Código de Processo Penal.
17.ª – Ainda que assim não se entenda, o que não se concede, o
tribunal, perante a determinação de uma medida da pena de prisão não superior a
três anos, terá sempre de fundamentar especificamente quer a concessão, quer a
denegação da suspensão – cf. artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal.
18.ª – A aplicação do instituto da suspensão da execução da pena é,
aliás, um poder‑dever, sendo que tal entendimento resulta ainda do disposto nos
artigos 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, uma vez que o
tribunal tem o dever de fundamentar a sentença e especificamente fundamentar os
critérios que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
19.ª – Aliás, o entendimento que se retire dos artigos 50.º, n.º 1,
do Código Penal e 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no
sentido de que na fundamentação da sentença o tribunal se pode eximir de
fundamentar a não aplicação do instituto da suspensão da execução da pena deve
considerar‑se inconstitucional, por violação do artigo 205.º, n.º 1, da CRP.
20.ª – Ora, verifica‑se que o tribunal a quo omitiu o dever
específico de fundamentação da não aplicação do instituto da suspensão da
execução da pena, o que, como tem sido orientação maioritária do STJ, gera a
nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, ou seja, o tribunal
deixou de conhecer de questões das quais deveria tomar conhecimento (cfr.
artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, de 2 de Outubro de 2003, supra citado).
21.ª – O acórdão recorrido violou ou fez uma errada aplicação dos
artigos 127.º, 355.º, n.º 1, 374.º, n.º 2, 375.º, n.º 1, 379.º, n.º 1, alíneas
a) e c), do Código de Processo Penal, do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal e
dos artigos 29.º, n.º 5, 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, e 205.º da CRP, não podendo, pois,
manter‑se.”
Por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11
de Abril de 2005, foi negado provimento ao recurso. Após apurar não ter existido
erro de julgamento da matéria de facto, nem violação do princípio inserto no
artigo 127.º do Código de Processo Penal (CPP), do princípio da presunção de
inocência, das garantias de defesa ou do caso julgado, considerando correcta a
subsunção jurídica efectuada pelo tribunal de 1.ª instância, o Tribunal da
Relação de Guimarães, quanto à aludida questão da falta de fundamentação da não
suspensão da execução da pena de prisão, consignou o seguinte:
“Finalmente, importa conhecer da questão colocada pela recorrente A.
nas conclusões 17.ª a 20.ª, a saber, a nulidade do acórdão, por omissão de
pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na parte em que
não fundamenta a não suspensão da execução da pena de três anos que lhe foi
aplicada, e da invocada inconstitucionalidade.
Sobre tal questão, dir‑se‑á que a invocada nulidade não ocorre. O
tribunal recorrido não tinha que se pronunciar sobre as razões da não
decretação da suspensão da execução da pena, pois o artigo 50.º do CP não impõe
tal pronúncia, como a não impõem os artigos 374.º e 375.º, ambos do CPP. Na
verdade, o n.º 4 do citado artigo 50.º apenas exige a especificação dos
fundamentos da suspensão e das suas condições. Ou seja, quando seja tomada a
decisão de suspensão da execução da pena é que o tribunal, em obediência ao
disposto no citado n.º 4 do artigo 50.º e do artigo 205.º, n.º 1, da
Constituição da Republica Portuguesa, tem que fundamentar as razões dessa
concreta decisão.
E, contrariamente ao alegado pela recorrente (cfr. 19.ª conclusão),
não se vê porque é que o entendimento ora perfilhado seja inconstitucional, por
violador do artigo 205.º, n.º 1, do CRP. O dever de fundamentação imposto neste
preceito tem de ser entendido no sentido positivo, isto é, apenas impõe a
fundamentação de actos decisórios concretos.
Ora, a concreta decisão tomada pelo tribunal colectivo esgotou‑se
com a escolha da sanção a aplicar à recorrente e com a respectiva medida, que
fundamentou. Ao nível da «decisão condenatória» nenhuma outra decisão concreta
foi tomada pelo colectivo de juízes que carecesse de ser fundamentada pela
positiva.”
Veio então a referida arguida interpor recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver apreciada a
constitucionalidade: (i) da “interpretação dada pelo Tribunal a quo aos artigos
127.º e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, no sentido de que podem ser
valorados no acto decisório factos pelos quais a arguida é acusada no âmbito de
um outro processo criminal”, interpretação que ela reputa “violadora do
princípio ne bis in idem inserto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da
República Portuguesa, uma vez que a recorrente não pode ser julgada duas vezes
pelos mesmos factos”; e (ii) da “interpretação dada aos artigos 50.º, n.º 1, do
Código Penal, e 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no
sentido de que na fundamentação da sentença o tribunal se pode eximir de
fundamentar a não aplicação do instituto da suspensão da execução da pena”,
tida por violadora do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa (CRP).
No Tribunal Constitucional, o relator, no despacho em
que determinou a apresentação de alegações, consignou que as partes se deveriam
pronunciar, querendo, “sobre a eventualidade de não conhecimento do objecto do
recurso na parte relativa à questão de inconstitucionalidade suscitada a
propósito das normas dos artigos 127.º e 374.º, n.º 2, do Código de Processo
Penal, quer por se poder entender que vem questionada a inconstitucionalidade
das decisões judiciais, em si mesmas consideradas, quer por se poder considerar
que não existe coincidência entre a dimensão normativa arguida de
inconstitucional e a dimensão normativa efectivamente aplicada, como ratio
decidendi, pelo acórdão recorrido”.
A recorrente apresentou alegações, começando por referir
que “quanto à questão de inconstitucionalidade invocada dos artigos 127.º e
374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e no seguimento do entendimento
manifestado no despacho proferido pelo Ex.mo Senhor Conselheiro Relator, em 17
de Junho de 2005, desiste‑se da sua sujeição a apreciação”, culminando as
mesmas com a formulação das seguintes conclusões:
“1.ª – O n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal estabelece que o
tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior
a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à
sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir
que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e
suficiente as finalidades da punição;
2.ª – De acordo com a dogmática que decorre do preâmbulo do actual
Código Penal, o nosso sistema penal estabelece como política criminal a
orientação de que as penas têm fins meramente preventivos, com especial
destaque para a prevenção especial;
3.ª – Nesse sentido, consagra como reacção penal o instituto da
suspensão da execução da pena de prisão como uma das medidas preferenciais e de
alternativa à privação da liberdade;
4.ª – Assim sendo, o tribunal, perante a determinação de uma medida
da pena de prisão não superior a três anos, terá sempre de fundamentar
especificamente quer a concessão, quer a denegação da suspensão, nos termos do
artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal;
5.ª – A aplicação do instituto da suspensão da execução da pena é
pois um poder‑dever, sendo que tal entendimento resulta ainda do disposto nos
artigos 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, uma vez que
o tribunal tem o dever de fundamentar a sentença e especificamente fundamentar
os critérios que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada;
6.ª – O entendimento exposto nos números anteriores é actualmente o
seguido pela melhor doutrina – cf. o ensinamento do Professor Figueiredo Dias,
Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 345, e de
Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, 10.ª edição, pág.
230 – bem como pela actual jurisprudência dos Tribunais Superiores, plasmada
nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Dezembro de 2004 e de 2 de
Outubro de 2003, ambos publicados in www.dgsi.pt;
7.ª – Deve, assim, ser julgada inconstitucional a interpretação dada
pelo Tribunal a quo aos artigos 50.º, n.º 1, do Código Penal e 374.º, n.º 2, e
375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no sentido de que na fundamentação
da sentença o tribunal se pode eximir de fundamentar especificadamente a não
aplicação do instituto da suspensão da execução da pena, quando esta não é
superior a 3 anos de prisão, por violação dos artigos 32.º, n.ºs 1 e 5, e
205.º, n.º 1, da CRP.”
O representante do Ministério Público no Tribunal
Constitucional contra‑alegou, concluindo:
“1.º – O dever constitucional da fundamentação das decisões
jurisdicionais apenas abrange os actos decisórios concretos tomados pelo
tribunal, não lhe cabendo motivar as razões por que não optou por decisão
diferente da que tomou.
2.º – No caso dos autos, resultando claramente da sentença
condenatória que a aplicação de pena efectiva de prisão a certo arguido radica
nos respectivos antecedentes criminais, é óbvio que é este o motivo ou razão
que preclude a possibilidade, existente em abstracto, da suspensão de tal pena
privativa da liberdade – não podendo, neste circunstancialismo, afirmar‑se que
não decorrem de tal decisão condenatória as razões que levam o tribunal a não
aplicar a suspensão da pena à arguida recorrente.
3.° – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Dispõe o artigo 50.º do Código Penal, na redacção
dada pelo Decreto‑Lei n.º 48/95, de 15 de Março:
“1. O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em
medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às
condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às
circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da
prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2. O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das
finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão,
nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de
regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de
prova.
3. Os deveres, as regras de conduta e o regime de prova podem ser
impostos cumulativamente.
4. A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da
suspensão e das suas condições.
5. O período da suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do
trânsito em julgado.”
Por seu turno, o n.º 2 do artigo 374.º do CPP estabelece
que a sentença, a seguir ao relatório (com as indicações elencadas no n.º 1),
deve conter a “fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não
provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que
concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com
indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do
tribunal”, determinando o n.º 1 do subsequente artigo 375.º que “a sentença
condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da
sanção aplicada, indicando, nomeadamente, se for caso disso, o início e o
regime do seu procedimento, outros deveres que ao condenado sejam impostos e a
sua duração, bem como o plano individual de readaptação social”.
O acórdão recorrido entendeu que destas disposições
legais não resulta a imposição do dever de fundamentação da decisão de não
suspensão da execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3
anos, pois o n.º 4 do artigo 50.º do Código Penal apenas exige a especificação
dos fundamentos da suspensão e das suas condições, e que tal interpretação não
viola o disposto no artigo 205.º, n.º 1, da CRP, porquanto o dever de
fundamentação das decisões judiciais, consagrado nessa norma constitucional,
“tem de ser entendido no sentido positivo, isto é, apenas impõe a fundamentação
de actos decisórios concretos”; ora, no caso, “a concreta decisão tomada pelo
tribunal colectivo esgotou‑se com a escolha da sanção a aplicar à recorrente e
com a respectiva medida, que fundamentou”, não existindo, “ao nível da «decisão
condenatória», nenhuma outra decisão concreta (...) que carecesse de ser
fundamentada pela positiva”.
Como é sabido, não cabe ao Tribunal Constitucional, no
âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade normativa que lhe está
confiada, apreciar a correcção da interpretação e da aplicação do direito
ordinário feitas pelo tribunal recorrido, mas tão‑só apurar se as interpretações
normativas aplicadas, que recebe como um dado, se mostram, ou não, conformes
com as normas e princípios constitucionais.
No entanto, não pode deixar de se assinalar que o
critério seguido pelo acórdão recorrido – de que só tem de ser fundamentada a
decisão que suspende, e não a que não suspende, a execução de pena de prisão
aplicada em medida não superior a 3 anos – não corresponde ao preconizado pela
doutrina e ao que ultimamente tem sido seguido, de modo uniforme, pelo Supremo
Tribunal de Justiça.
Jorge de Figueiredo Dias – mesmo face à redacção
originária do Código Penal, que, no correspondente artigo 48.º, n.º 1, se
limitava a dizer que “o tribunal pode suspender”, enquanto o actual artigo
50.º, n.º 1, vincando tratar‑se de um poder‑dever, estatui que “o tribunal
suspende” – sustentava (Direito Penal Português – Parte Geral: II – As
Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, p. 345):
“§ 523. Desde logo, num caso como no outro [suspensão simples ou
suspensão com imposição de deveres], o tribunal tem de especificar na sentença
os fundamentos da suspensão (art. 48.º‑3). O texto deste comando – sugerindo
que a fundamentação (específica, é claro, e que em nada contende com o dever
geral de fundamentação de toda e qualquer decisão judicial: CRP, art. 210.º‑1, e
CPP, arts. 97.º‑4 e 374.º‑2) só se torna necessária quando o tribunal se decida
pela suspensão – deve ser interpretado em termos amplos e os únicos correctos. O
tribunal, perante a determinação de uma medida da pena de prisão não superior a
3 anos, terá sempre de fundamentar especificamente quer a concessão, quer a
denegação da suspensão, nomeadamente no que toca ao carácter favorável ou
desfavorável da prognose e (eventualmente) às exigências de defesa do
ordenamento jurídico. Outro procedimento configuraria um verdadeiro erro de
direito, como tal controlável mesmo em revista, por violação, para além do mais,
do disposto no art. 71.º. Só assim não terá de proceder o tribunal quando, sendo
a medida determinada da pena de prisão inferior a 6 ou a 3 meses, ele se decida
logo (fundadamente) por outra pena de substituição aplicável (multa, prestação
de trabalho a favor da comunidade, admoestação).”
Este entendimento tem sido sufragado pelas Secções
Criminais do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), só tendo sido localizado, em
pesquisa efectuada quer na base de dados do Ministério da Justiça relativa à
jurisprudência do STJ (www.dgsi.pt/jstj), quer nos “Sumários do Boletim Interno
do STJ”, disponíveis em www.stj.pt, nos últimos anos, um acórdão (de 11 de
Outubro de 2001, proc. 2761/01), que decidiu que “o tribunal não tem que se
pronunciar sobre as razões da não decretação da suspensão da execução da pena,
pois o artigo 50.º do Código Penal não impõe tal pronúncia; como aliás não o
impõem os artigos 374.º e 375.º do CPP” e que “o n.º 4 daquele artigo 50.º
exige, apenas, a especificação dos fundamentos da suspensão e das suas
condições”.
Mas já anteriormente, no acórdão de 14 de Dezembro de
2000, proc. 2769/00, o STJ decidira que: “A fundamentação da decisão de
suspender ou não a execução da pena, nos casos em que formalmente ela é
possível, é uma fundamentação específica, que é como quem diz, mais exigente que
a decorrente do dever geral de fundamentação das decisões judiciais que não
sejam de mero expediente, postulado nomeadamente, no artigo 205.º, n.º 1, da
CRP. Decorre do exposto o dever de o juiz assentar o incontornável «juízo de
prognose», favorável ou desfavorável, em bases de facto capazes de o suportarem
com alguma firmeza, sem que, todavia, se exija uma certeza quanto ao desenrolar
futuro do comportamento do arguido.”
Parte este entendimento da constatação de que, sendo
aplicada uma pena de prisão não superior a três anos, o tribunal tem o dever de
suspender a execução da pena se se verificarem as restantes condições elencadas
no n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal: “se, atendendo à personalidade do
agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e
às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da
prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Para
isso, “o tribunal deve ordenar, mesmo oficiosamente, a produção dos meios de
prova necessários à descoberta, também, da factualidade relevante para a
apreciação e decisão dessa questão da suspensão, especificando‑a, depois, como
provada ou não provada, sob pena de, não o fazendo, se verificar insuficiência
não só da matéria de facto para a decisão como também da própria fundamentação
de facto e, em consequência desta, da própria decisão de direito relativa à
suspensão” (acórdão do STJ, de 27 de Junho de 2001, proc. 767/2001).
Nos termos dos acórdãos do STJ de 8 de Novembro de 2001,
proc. 3130/2001, e de 29 de Novembro de 2001, proc. 1919/2001, “o tribunal,
perante a determinação de uma medida da pena de prisão não superior a 3 anos,
terá sempre de fundamentar especificamente a denegação da suspensão da execução
da pena de prisão (artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal), nomeadamente no que
toca: a) ao carácter desfavorável da prognose (de que a censura do facto e a
ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da
punição); b) às exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento
jurídico (na base de considerações de prevenção geral)”, pois “outro
procedimento configurará um verdadeiro erro de direito, como tal controlável
mesmo em revista, por violação, além do mais, do disposto no artigo 70.º do
Código Penal”, pelo que se concluiu ser “nula a sentença, por «deixar de se
pronunciar sobre questões que devia apreciar» (artigo 379.º, n.º 1, alínea c),
do CPP), quando o tribunal, colocado «perante a determinação de uma medida da
pena de prisão não superior a 3 anos», não só não fundamentar especificamente a
negação da suspensão» (a pretexto, quiçá, do «carácter desfavorável da prognose»
ou, eventualmente, de especiais «exigências de defesa do ordenamento jurídico»)
como nem sequer considerar, apertis verbis, a questão da suspensão da pena”,
sendo “tal nulidade, mesmo que não arguida, (…) oficiosamente cognoscível pelo
tribunal de recurso (artigo 379.º, n.º 2, do CPP)”.
É que, como se sublinhou no acórdão de 14 de Novembro de
2001, proc. 3097/2001: “a suspensão da pena de prisão contemplada no artigo 50.º
do Código Penal constitui um substitutivo das penas privativas da liberdade,
aceite pelo legislador como instrumento capaz de sanar o mal produzido à
comunidade pela acção do delinquente, sem outras consequências mais drásticas”
e, por isso, “foi arquitectada para situações criminosas menos graves
(censuradas com prisão até três anos) e quando seja de perspectivar, através de
uma prognose favorável, assente em factores conhecidos (personalidade do
agente, condições da sua vida, conduta anterior e posterior ao crime,
circunstâncias deste), que é possível, mantendo o agente no seio da vida
comunitária, recompor o tecido social afectado pelo seu comportamento (protecção
de bens jurídicos) e recuperar o infractor (reintegração do agente na sociedade)
– artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal”. Daqui retira o dito acórdão que
“assumindo‑se (…) como medida pedagógica inscrita nas finalidades da punição e
apresentando‑se como uma das mais gratas apostas do legislador, tinha que
revestir-se, como se reveste, das características de um «poder‑dever», o que
significa que o julgador, perante uma situação que formalmente viabiliza o seu
uso, tem que equacionar sempre a possibilidade de a ela recorrer, fundamentando
a sua opção quando o não faça”.
Esta orientação – designadamente enquanto afirma o dever
de o tribunal, perante a determinação de uma medida da pena de prisão não
superior a 3 anos, ter sempre de fundamentar especificamente, quer a concessão,
quer a denegação da suspensão – foi reiterada, entre outros, nos acórdãos do
STJ de 20 de Fevereiro de 2003, proc. 373/2003, publicado na Colectânea de
Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2003, tomo I, p. 206;
de 2 de Outubro de 2003, proc. 2615/2003; de 2 de Dezembro de 2004, proc.
4219/2004; de 19 de Janeiro de 2005, proc. 4000/2004; de 20 de Janeiro de 2005,
proc. 123/2005; de 25 de Maio de 2005, proc. 1939/2005; e de 9 de Junho de 2005,
proc. 1678/2005 – cf. Sumários citados.
2.2. A recorrente, quer na suscitação da questão de
inconstitucionalidade na motivação apresentada perante o tribunal recorrido,
quer no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, indicou
como norma constitucional violada a do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, e só nas
alegações apresentadas neste Tribunal é que, para além desta, invocou as dos
n.ºs 1 e 5 do artigo 32.º da CRP. No entanto, o n.º 5 deste artigo 32.º, que
estabelece a estrutura acusatória do processo criminal e a sujeição, quer da
audiência de julgamento quer dos actos instrutórios que a lei determinar, ao
princípio do contraditório, não surge como especialmente pertinente para a
questão ora em apreço. E a violação do n.º 1 do mesmo artigo 32.º surge como
mera decorrência da violação do dever de fundamentação das decisões judiciais,
encarado este dever na perspectiva de elemento útil, ou mesmo necessário, para a
defesa do destinatário da decisão, que só conhecendo os respectivos fundamentos
ficará em condições de a atacar consciente e eficazmente.
É, pois, o dever constitucional de fundamentação das
decisões judiciais que está essencialmente em causa na apreciação da questão de
constitucionalidade suscitada.
Foi a primeira revisão constitucional (1982) que, com a
inserção do novo n.º 1 do então artigo 210.º da CRP, veio proclamar que “As
decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na
lei”, formulação que, sem alteração de redacção, transitou, com a segunda
revisão constitucional (1989) para o n.º 2 do artigo 208.º. A remissão para a
lei, não apenas da modulação dos termos, mas também da definição dos casos em
que a fundamentação das decisões dos tribunais era devida (muito embora sempre
se entendesse que “a discricionariedade legislativa nesta matéria não [era
total], visto o dever de fundamentação [ser] uma garantia integrante do próprio
conceito de Estado de direito democrático (cfr. art. 2.º), ao menos quanto às
decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como
instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de
garantia do direito ao recurso”), representando “a falta de consagração
constitucional de um dever geral de fundamentação das decisões judiciais”,
surgia como “pouco congruente com o princípio do Estado de direito”, para além
de não se compreender que “a garantia de fundamentação seja constitucionalmente
menos exigente quanto às decisões judiciais do que quanto aos actos
administrativos (artigo 268.º, n.º 3)” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, pp.
798‑799) – preceito este último que impunha a “fundamentação expressa” dos
“actos administrativos (...) quando afectem direitos ou interesses legalmente
protegidos dos cidadãos”.
Foi a revisão constitucional de 1997 que deu à norma em
causa a sua localização (artigo 205.º, n.º 1) e formulação (“As decisões dos
tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista
na lei”) actuais. Estabeleceu‑se, assim, com dignidade constitucional, a regra
geral do dever de fundamentação de todas as decisões judiciais, com a única
excepção das de mero expediente, remetendo‑se para a lei ordinária a definição,
já não dos casos em que a fundamentação é devida, mas tão‑só da forma de que se
pode revestir.
O alcance desta alteração foi salientado por este
Tribunal, no Acórdão n.º 680/98, nos seguintes termos:
“7. Dispõe a Constituição, no n.º 1 do artigo 205.º, que «as decisões dos
tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista
na lei». Este texto, resultante da Revisão Constitucional de 1997, veio
substituir o n.º 1 do artigo 208.º, que determinava que «as decisões dos
tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei». A
Constituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da
obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais,
que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões
que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já
que as decisões deixam de ser fundamentadas «nos termos previstos na lei» para
o serem «na forma prevista na lei». A alteração inculca, manifestamente, uma
menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de
fundamentação.”
Também o Acórdão n.º 147/2000 salientou que a “actual
redacção do artigo 205.º, n.º 1, imprimiu contornos mais precisos ao dever de
fundamentação, pois, onde a Constituição remetia para a lei os «casos» em que a
fundamentação era exigível, passou a concretizar‑se que ela se impõe em todas as
decisões «que não sejam de mero expediente», mantendo‑se apenas a remissão para
a lei quanto à «forma» que ela deve revestir”, acrescentando:
“Este aprofundamento do dever de fundamentação das decisões
judiciais reforça os direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo,
assegurando a melhor ponderação dos juízos que afectam as partes, do mesmo
passo que a elas permite um controle mais perfeito da legalidade desses juízos
com vista, designadamente, à adopção, com melhor ciência, das estratégias de
impugnação que julguem adequadas.
De todo o modo, a persistência daquela remessa para a lei faz com
que o mandado constitucional de fundamentação continue a ser um mandado aberto à
actuação constitutiva do legislador, a quem incumbirá definir a «forma» em que a
fundamentação se deve traduzir, sem que, contudo, ele possa esvaziar o sentido
útil daquele mandado (cfr. Acórdão nº 59/97, in Diário da República, II Série,
n.º 65, de 18 de Março de 1997) – qualquer que seja essa forma, ela terá sempre
que permitir o conhecimento das razões que motivam a decisão.
(…)
Mas se a relevância da fundamentação das decisões judiciais é
incontestável como garantia integrante do conceito de Estado de direito
democrático, ela assume, no domínio do processo penal, uma função estruturante
das garantias de defesa dos arguidos, muito embora o texto constitucional não
contenha qualquer norma que disponha especificamente sobre a fundamentação das
decisões judicias naquele domínio.
O Código de Processo Penal vigente expressa no artigo 97.º, n.º 4,
na redacção dada pela Lei n.º 59/98, o princípio geral que vigora sobre a
fundamentação dos actos decisórios: «os actos decisórios são sempre
fundamentados devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da
decisão» (sublinhado nosso).”
2.3. Na presente situação, assente, como se viu (supra,
2.1.), que, em caso de condenação em pena de prisão não superior a 3 anos, o
tribunal tem o poder‑dever – e não a mera faculdade – de suspender a sua
execução, sempre que a ponderação global da personalidade do agente (incluindo
as condições da sua vida e a sua conduta anterior e posterior ao crime) e das
circunstâncias do caso conduzam à formulação de um prognóstico favorável de que
a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam, de forma adequada e
suficiente, as finalidades da punição, a decisão que a esse respeito venha a ser
tomada – seja no sentido da suspensão, seja no sentido da não suspensão – não
pode ser considerada como de mero expediente, e muito menos como uma não
decisão, como parece ter sido considerada pelo acórdão recorrido, quando refere
que não estava em causa um acto decisório concreto, por “a concreta decisão
tomada pelo tribunal colectivo” se ter esgotado “com a escolha da sanção a
aplicar à recorrente e com a respectiva medida, que fundamentou”, pelo que, “ao
nível da «decisão condenatória» nenhuma outra decisão concreta foi tomada pelo
colectivo de juízes que carecesse de ser fundamentada pela positiva”.
Não é assim.
Determinada, de acordo com os critérios estabelecidos
pelo artigo 71.º do Código Penal, qual a medida da pena que se considera
adequada, se esta for de prisão de duração não superior a três anos, o tribunal
tem de, por força do artigo 50.º, n.º 1, do mesmo Código, decidir, num segundo
momento, se suspende, ou não, a sua execução, realizando oficiosamente as
diligências de prova necessárias para o efeito. Trata‑se, na verdade, de
situação substancialmente diversa daquelas em que está em causa um mera
faculdade do tribunal, como na dispensa de pena (artigo 74.º do Código Penal). E
a decisão concreta que vier a ser adoptada quanto à suspensão da execução da
pena de prisão não pode deixar de ser fundamentada, por imposição do artigo
205.º, n.º 1, da CRP, quer seja no sentido da suspensão, quer no sentido da não
suspensão, sendo, aliás, de salientar que esta última solução, porque contrária
à preferência do legislador pelas penas não privativas de liberdade (artigo 70.º
do Código Penal), surge como a decisão mais desfavorável para o arguido, pelo
que o dever da sua fundamentação até se pode considerar mais premente.
2.4. Nas contra‑alegações do Ministério Público tenta‑se
salvar a conformidade constitucional do critério normativo seguido no acórdão
recorrido, com o argumento de que, “no caso dos autos, resultando claramente da
sentença condenatória que a aplicação de pena efectiva de prisão a certo arguido
radica nos respectivos antecedentes criminais, é óbvio que é este o motivo ou
razão que preclude a possibilidade, existente em abstracto, da suspensão de tal
pena privativa da liberdade – não podendo, neste circunstancialismo, afirmar‑se
que não decorrem de tal decisão condenatória as razões que levam o tribunal a
não aplicar a suspensão da pena à arguida recorrente”.
Salvo o devido respeito, não se pode acolher este
entendimento.
Como se assinalou, a fundamentação da decisão de
suspender ou não suspender a execução de uma pena prisão que anteriormente se
entendeu fixar em medida não superior a três anos deve ser uma fundamentação
específica, pois respeita a decisão logicamente subsequente à da determinação
da medida concreta da pena. Só depois de o tribunal considerar ajustada ao caso,
em princípio, uma pena de prisão não superior a três anos é que tem o dever de
ponderar se se justifica, ou não, a suspensão da sua execução e motivar, através
de adequada fundamentação, a opção tomada. Essa opção, como a doutrina e a
jurisprudência têm sistematicamente sublinhado, assenta na formulação de um
prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente (no sentido
de que a simples censura do facto e a ameaça da pena, acompanhadas ou não da
imposição de deveres e (ou) regras de conduta, bastarão para afastar o
delinquente da criminalidade), que se reporta “ao momento da decisão, não ao
momento da prática do facto”, e para o qual releva um conjunto de factores, a
ponderar globalmente, não bastando nunca “a consideração ou só da
personalidade, ou só das circunstâncias do facto” (cf. Figueiredo Dias, obra
citada, p. 343). Um desses factores será, certamente, o que respeita à “conduta
anterior” do condenado, para o qual releva a existência, ou não, de antecedentes
criminais, mas não é nem o único factor, nem o factor decisivo, pelo que não se
pode afirmar que a existência desses antecedentes criminais “preclude” a
possibilidade de suspensão da pena.
No presente caso, após concluir que os factos provados
sustentavam a imputação a ambos os arguidos da autoria de um crime de furto
qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 2, alínea e), do Código
Penal, o acórdão condenatório da 1.ª instância expendeu o seguinte, quer quanto
à medida concreta da pena a aplicar, quer quanto à eventual suspensão da
execução da pena de prisão, ponderação esta última que, porém, limitou ao caso
do arguido E., nada dizendo quanto à arguida A., ora recorrente:
“Medida concreta da pena.
O crime de furto qualificado, cometido pelos arguidos é punido pelo
artigo 204.º, n.º 2, com uma pena abstracta de prisão de 2 a 8 anos.
Aplicando agora o critério geral de determinação da medida da pena,
contido no artigo 71.º, n.º 1, segundo o qual «a determinação da medida da pena
é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção»,
Em sede de medida da culpa – por via da qual releva, para a medida
da pena, a consideração do ilícito‑típico – há que considerar, nomeadamente, o
grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas
consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente.
Se bem que seja considerável o grau de violação dos deveres impostos
ao agente, não podemos deixar de considerar que, em virtude das circunstâncias
que rodearam a prática do crime e se reflectem no grau de ilicitude do facto e
no modo de execução deste – o furto foi praticado por meios relativamente
rudimentares e terá sido cometido como forma de financiar a toxicodependência
da arguida A., sendo bem sabido que, nestas circunstâncias, é particularmente
diminuta a capacidade de conformação destes agentes com as normas
jurídico‑sociais – esta ilicitude global se deve ter por mediana. Não
revestindo o dolo qualquer especialidade digna de relevo, entendemos dever
colocar a culpa dos agentes, relativamente à moldura abstracta, num grau médio.
Quanto à necessidade de tutela dos bens jurídicos, que fornecerá uma
moldura de prevenção, há que aferir em que medida tais exigências resultam no
caso concreto, no complexo da forma de actuação do agente, das consequências
que dele resultaram, da situação da vítima, da conduta do agente antes e depois
do facto, etc.
Neste âmbito, há que considerar as prementes necessidades de
prevenção de crimes desta natureza.
Há que ter em conta a moderada gravidade das consequências dos
factos, nomeadamente na situação da lesada, já que os bens furtados foram
restituídos.
Tudo isto implica que o mínimo de pena imprescindível, no caso, à
tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias se situe num grau
baixo.
Dentro destes limites podem e devem actuar agora pontos de vista de
prevenção especial de socialização, que irão determinar, em último termo, a
medida da pena.
Esta deve evitar a quebra da inserção social do arguido e servir a
sua reintegração na comunidade, e ainda, eventualmente, uma função subordinada
de advertência do agente.
A arguida A.tem antecedentes criminais de relevo.
O arguido E. parece estar inserido socialmente, desempenhando
funções de carácter produtivo que garantem a sua subsistência e do seu agregado
familiar.
Atentos todos estes parâmetros, consideram‑se adequadas as seguintes
penas:
– 2 anos e 3 meses de prisão para o arguido E.;
– 3 anos de prisão para a arguida A..
Suspensão da pena de prisão
Atendendo à ausência de antecedentes criminais do arguido E. e à sua
inserção sócio‑familiar, julga‑se possível formular um prognóstico favorável
relativamente à sua conduta futura.
Entende‑se e espera‑se, assim, que a simples censura do facto e a
ameaça da pena poderão bastar para o afastar da criminalidade.
Nesta conformidade, ao abrigo do disposto no artigo 50.º, n.º 1,
suspende‑se a execução da pena de prisão aplicada a este arguido, pelo período
de 2 anos.
Decisão
Pelo exposto, decidem:
a) Condenar o arguido E., pela prática de um crime de furto
qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 2, alínea e), do Código
Penal, na pena de dois (2) anos e três (3) meses de prisão;
b) Suspender esta pena na sua execução pelo período de dois (2)
anos;
c) Condenar a arguida A., pela prática de um crime de furto
qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 2, alínea e), do Código
Penal, na pena de três (3) anos de prisão;
d) (…).”
É óbvio que qualquer leitor desta decisão pode tentar
determinar, até por contraposição à decisão de suspensão da execução da pena
tomada quanto ao arguido, quais as razões que terão levado o tribunal a não
adoptar idêntica medida relativamente à arguida. O Ministério Público entende
que tal se deveu aos antecedentes criminais desta. Outros acharão que terá antes
sido devido à “inserção sócio‑familiar” daquele, não apurada relativamente à
arguida. Outros ainda que terá sido decisiva a conjugação dos dois factores.
É bom de ver que a exigência constitucional da
fundamentação das decisões judiciais não fica satisfeita com a mera
possibilidade destas tentativas de “adivinhação” das razões que terão conduzido
o tribunal a, tendo o dever de ponderar a determinação da suspensão da pena de
prisão, decidir não a decretar relativamente à recorrente. A imposição
constitucional só fica satisfeita com formulação expressa das razões
específicas dessa decisão, feita pelo seu próprio autor, em termos de habilitar
o seu destinatário a, ciente dessas razões, se conformar com a decisão ou
impugná-la de forma consciente e eficiente.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucionais, por violação do artigo
205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, as normas dos artigos
50.º, n.º 1, do Código Penal e 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal, interpretados no sentido de não imporem a fundamentação da
decisão de não suspensão da execução de pena de prisão aplicada em medida não
superior a três anos; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a
reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de
inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 18 de Janeiro de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos