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Proc. nº 265/96
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1º Secção do Tribunal Constitucional
I
1. O MINISTÉRIO PÚBLICO requereu o julgamento em processo comum singular de A., com os sinais dos autos, imputando-lhe a prática de um crime de dano previsto pelo art. 308º, nº 1, do Código Penal. O assistente B. deduziu pedido de indemnização contra o arguido, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de 275.000$00, acrescidos de juros legais desde a citação até integral pagamento.
Procedeu-se a julgamento no Tribunal Judicial de Coimbra, tendo o arguido sido absolvido do crime por que estava pronunciado, bem como do pedido de indemnização cível contra ele formulado pelo assistente (sentença de fls. 212 a 214 dos autos, proferida em 25 de Janeiro de 1996). Foi condenado o assistente em taxa de justiça, fixada em duas unidades de conta, com base no disposto no art. 515º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
Na parte final desta sentença foi desaplicada uma norma sobre custas com fundamento em inconstitucionalidade, nos seguintes termos:
' Não se condena o assistente em taxa de justiça e custas ao abrigo do disposto no artigo 520º alínea a) do C.P.P., na interpretação dada a esta norma pelo Assento nº 3/93, publicado no DR I Série A de 10.03.93 porquanto se entende que a condenação do assistente numa dupla taxa de justiça, a que levaria a interpretação do douto Assento viola, por um lado, o princípio constitucional da proporcionalidade constante do artigo 18º nº 2 da CRP e, por outro, se entende que tal Acórdão efectuou uma interpretação contra legem do dispositivo legal constante do artigo 520º alínea a) do CPP, derrogando manifestamente o estabelecido na própria lei processual penal quanto à condenação em imposto de justiça e custas do assistente e como tal violando o princípio constitucional da Reserva de Lei estabelecido no artigo 168º alíneas b) e e) e 201º alínea b) da Constituição da República Portuguesa.'
A representante do Ministério Público veio requerer a rectificação de erro material e pedir a aclaração da parte final da sentença, solicitando que fosse indicada a norma efectivamente desaplicada, dado o disposto na legislação orgânica do Tribunal Constitucional (requerimento de fls. 217).
Foi deferido o pedido de rectificação de erro material e, quanto à matéria da aclaração, foi exarado o seguinte despacho:
' Nos termos do artigo 666º nº 2 do Código de Processo Civil «ex vi» artigo 4º do Código de Processo Penal esclarece-se o requerente que não sendo efectivamente referida expressamente qual a norma que, nos termos da decisão, viola os ditames constitucionais, trata-se do artigo 520º alínea a) do Código de Processo Penal na interpretação obrigatória que dele é feita no Assento 3/93 publicado no DR I Série A de 10.03.93.' (a fls. 219)
Na sequência deste despacho, veio a representante do Ministério Público interpor recurso de constitucionalidade, nos termos do art. 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, da sentença de 25 de Janeiro de 1996, na parte em que desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade, a alínea a) do art. 520º do Código de Processo Penal 'na interpretação obrigatória que dele é feita no Assento nº 3/93 (...)' (a fls. 220). Este recurso foi admitido por despacho de fls. 222.
2. Os autos subiram ao Tribunal Constitucional.
Fixado prazo para alegações, apenas o Ministério Público apresentou esta peça processual, concluindo no sentido de que:
' Não ofende qualquer preceito ou princípio constitucional a interpretação da norma contida na alínea a) do artigo 520º do Código de Processo [Penal] (por lapso, escreveu-se Civil), realizada pelo Assento nº 3/93, de 10 de Março de
1993, nos termos do qual deverá ocorrer tributação autónoma em custas e imposto de justiça das actividades processuais realizadas nas qualidade de assistente e de parte civil no processo penal.' (a fls. 231-232 dos autos)
Nessa medida pediu que fosse julgado procedente o recurso de constitucionalidade.
3. Foram corridos os vistos legais.
Por não haver motivo que a tal obste, importa conhecer do objecto do recurso.
II
4. Dispõe o art. 520º do Código de Processo Penal, subordinado
à epígrafe 'Responsabilidade de outras pessoas':
' Pagam também imposto de justiça e custas:
a) as partes civis, quando não forem assistentes ou arguidos e se dever entender que deram causa às custas, segundo as normas do processo civil;
b) [...]
c) [...]'
Através de acórdão proferido em recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, ao abrigo dos arts. 437º e seguintes do Código de Processo Penal vigente, o plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça fixou a seguinte jurisprudência obrigatória, a qual foi publicada no jornal oficial com a denominação de Assento nº 3/93:
' O artigo 520º, alínea a), do Código de Processo Penal não exclui da condenação em pagamento de imposto de justiça e custas o assistente que decair no pedido cível formulado em processo penal' (in Diário da República, I Série-A, nº 58, de
10 de Março de 1993).
5. Para melhor situar a génese da interpretação obrigatória fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, importa atentar na fundamentação do acórdão deste Alto Tribunal.
Existindo uma oposição de decisões entre um acórdão da Relação do Porto de 13 de Junho de 1990, que tributara o assistente que decaíra no pedido de indemnização deduzido no processo penal, e um acórdão da Relação de Coimbra proferido em 28 de Novembro de 1991, que entendera não serem devidas custas em idêntica situação, o Ministério Público interpusera um recurso para uniformização de jurisprudência nos termos dos arts. 437º e seguintes do Código de Processo Penal. No parecer oportunamente apresentado, o representante da entidade recorrente sustentara que a alínea a) do art. 520º deste diploma excluía a condenação em custas do assistente que decaísse no pedido cível formulado em processo penal. Mas a sua tese não mereceu acolhimento.
Depois da referir que a administração da justiça não era gratuita em Portugal e que a regra em matéria de custas era a de que nelas deveria ser condenada a parte que lhes houvesse dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tivesse tirado proveito (art. 446º do Código de Processo Civil), sendo excepcionais as isenções de custas, escreveu-se no acórdão de uniformização de jurisprudência:
' Mas como interpretar o artigo 520º, alínea a), o qual, na sua literalidade, parece isentar os assistentes e arguidos nas acções indemnizatórias?
A solução está, precisamente, na interpretação que ao preceito é dada no acórdão com que a decisão recorrida é confrontada, e que, em resumo, é a seguinte:
Os artigos 513º a 519º indubitavelmente que se reportam com exclusividade à responsabilidade por imposto de justiça e custas do arguido e do assistente.
Naquele artigo 520º, alínea a), visam-se as demais pessoas que intervêm ou podem intervir no processo penal e que não são nem assistentes nem arguidos e que podem «provocar intercorrências processuais (penais...)» merecedoras, pela sua anomalia, de tributação e de condenação em custas. São elas «as partes civis ou quaisquer outras que não possam ser havidas como sujeitos do processo».
Uma outra razão se pode descortinar no sentido de que a norma que está a ser objecto de análise se reporta tão-somente à acção penal reside na circunstância de nela estar a ser pressuposta uma condenação não apenas em custas mas também em imposto de justiça (leia-se taxa de justiça). Na verdade, enquanto nos processos cíveis se tem de haver a taxa de justiça como incluída no conceito de custas por força do artigo 1º do Código das Custas Judiciais, já no processo penal a taxa de justiça se autonomiza das custas, como resulta do que, além do mais, se diz nos artigos 184º e 194º deste mesmo último repositório legal, quer na redacção anterior, quer na que lhes foi dada pelo Decreto-Lei nº 387-D/87, de
29 de Dezembro.
Portanto, e sendo de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cfr. artigo 9º, nº 3, do Código Civil), a conclusão a extrair é a de que, quando se fala em pagamento de «imposto de justiça» e custas, se tem em vista apenas a acção penal, já que nela aquele se encontra autonomizado destas últimas.
Finalmente, não é despiciendo acrescentar que uma interpretação que conduzisse
à isenção do arguido e dos assistentes na acção de indemnização conexa com a acção penal contenderia, frontal e inadmissivelmente, com o princípio da igualdade de todos perante a lei, que está consignado no artigo 13º da Constituição da República.'
6. Impõe-se delimitar o objecto do recurso, antes de se avançar.
A norma desaplicada na decisão recorrida foi a norma do art. 520º, alínea a), do Código de Processo Penal 'na interpretação obrigatória' que dela foi feita 'no Assento 3/93', ou seja, no acórdão de uniformização de jurisprudência penal tirado ao abrigo dos arts. 437º e seguintes daquele diploma, com a eficácia prevista no nº 1 do art. 445º.
No caso sub judicio, entende-se que é objecto do recurso a norma interpretativa de natureza jurisprudencial que se sobrepôs à norma legal do Código de Processo Penal.
Como se decidiu no acórdão nº 16/97 (publicado no Diário da República, II Série, nº 50, de 28 de Fevereiro de 1997), ainda inédito, 'a jurisprudência obrigatória para os tribunais definida nos termos do artigo 445º do Código de Processo Penal, deve ter-se por sindicável em sede de fiscalização de constitucionalidade [...] pois que a decisão que resolveu o conflito de jurisprudência originador do recurso extraordinário não tem a natureza de uma simples decisão judicial, transportando consigo uma intenção normativa que se traduz na obrigatoriedade para os tribunais judiciais da doutrina que nela se contém'. De facto, a parte preceptiva do acórdão de uniformização 'acaba por definir critérios de decisão e regras de conteúdo interpretativo que, não só vinculam os restantes tribunais judiciais como a ele próprio [Supremo Tribunal de Justiça], a menos que, nos termos do artigo 447º, nº 2, proceda ao seu reexame e modificação'. E, depois de se acentuar que a auto-revisibilidade pelo Supremo Tribunal de Justiça destas decisões uniformizadoras se acha condicionada pelo facto de a iniciativa desse processo de revisão pertencer ao Ministério Público e deste depender o juízo de avaliação sobre a interposição do recurso, afirma-se que, nessas decisões, 'para além de se dizer o direito aplicável ao caso concreto (no processo em que o recurso extraordinário foi interposto), aquele Tribunal cria direito, estabelecendo regras de interpretação e entendimento aplicáveis a casos futuros'.
7. Tem razão o Exmº. Procurador-Geral Adjunto quando, nas suas alegações afirma que não se insere 'obviamente no âmbito do presente recurso apreciar criticamente a interpretação do direito infra-constitucional, realizado pelo Supremo Tribunal de Justiça no exercício das suas competências processuais penais - mas tão-somente averiguar se a interpretação estabelecida obrigatoriamente para a ordem dos tribunais judiciais da norma objecto deste recurso ofende algum preceito ou princípio constitucional' (a fls. 229 dos autos).
Mas tal posição de princípio não impede que, nesta sede, se verifique que o Supremo Tribunal de Justiça no 'Assento' nº 3/93 procedeu, como expressamente afirmou, à interpretação correctiva da norma legal, considerando mesmo que a interpretação oposta violaria o princípio da igualdade.
De facto, nesse acórdão de uniformização não se aceitou a tese sustentada pelo representante do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça, segundo a qual o Código de Processo Penal de 1987 se assumia com uma filosofia 'claramente diferenciada do antecedente e com uma vocação de regulamentação exaustiva das temáticas que lhe são próprias, numa linha autonómica relativamente ao Código de Processo Civil expressamente registada no nº 75 do artigo 2º da Lei nº 43/86, de 26 de Setembro - «Autorização Legislativa em Matéria de Processo Penal»', pelo que a resolução do conflito de jurisprudência haveria de 'ter presente este novo espírito do Código de Processo Penal e da sua análise normativa [resultaria], a nosso ver, que o «... legislador do Código de Processo Penal terá querido deixar de sujeitar a tributação civil os assistentes e os arguidos, quando haja dedução de pedido de indemnização cível» - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Setembro de 1991, processo nº 41.864' (in Boletim do Ministério da Justiça, nº 423, pág.
6). Entendeu-se, pelo contrário, que o sistema de adesão obrigatória como regra
- que implica a normal dedução do pedido de indemnização patrimonial no processo onde se exerce a acção penal - previsto nos arts. 71º e seguintes do Código de Processo Penal de 1987, não postergava a verificação de que a formulação do pedido cível na causa criminal importava sempre uma maior actividade processual e jurisdicional, sendo razoável que a mesma fosse tributada autonomamente, sob pena de se criar uma discriminação relativamente a quem exigisse uma indemnização idêntica em processo cível (cfr. art. 72º do Código de Processo Penal).
8. Terá razão o Senhor Juiz recorrido quando sustenta que a aplicação de uma dupla taxa de justiça viola o princípio da proporcionalidade constante do art. 18º, nº 2, da Constituição?
Responde-se negativamente a esta questão.
De facto, não parece rebatível a consideração feita no acórdão de fixação de jurisprudência de que é tradicional no nosso direito a autonomização da tributação das duas acções, cível e criminal, exercidas em processo-crime como sucedia com o nº 4 do art. 68º do Código de Estrada antigo (disposição revogada pelo novo Código de Processo Penal) e também no art. 18º, nº 1, alínea e), do Código de Custas Judiciais de 1961, solução que está presente na formulação do art. 377º, nº 3, do Código de Processo Penal (ponto é saber se a noção de partes civis aqui usada abrangerá os assistentes e os próprios arguidos).
Como judiciosamente afirma o Exmº. Procurador-Geral Adjunto nas alegações apresentadas no presente processo:
' Efectivamente, no âmbito das custas - tema não submetido aos princípios e à reserva de lei vigente em matéria fiscal - o legislador ordinário goza inquestionalvelmente de ampla discricionariedade no estabelecimento dos regimes que condicionam a tributação e respectivas isenções - apenas importando que não seja atingido ou dificultado de forma relevante o direito de acesso à justiça e aos tribunais ou estabelecidos regimes preclusivos desproporcionadamente gravosos.' (a fls. 229-230)
E, conclui o mesmo Magistrado, que não se vê como seria desproporcionadamente afectado ou ilegitimamente restringido o direito de acesso aos tribunais através da tributação autónoma do pedido cível deduzido por qualquer pessoa em processo penal, 'tendo em conta, como é óbvio, a existência de mecanismos legais adequados para assegurar o acesso à justiça aos economicamente carenciados' (ibidem). Ainda que se considere excessiva a afirmação constante do chamado 'Assento' nº 3/93 de que outra solução que não a adoptada violaria o princípio da igualdade, parece seguro que essa solução não é inconstitucional, no quadro referido.
Não se mostram, por isso, violados os arts. 18º, nº 2, e 20º, nº 1, da Constituição pelo chamado 'Assento' nº 3/93.
9. A sentença recorrida considera, porém, que o 'Assento' nº
3/93, enquanto interpreta o art. 520º, alínea a), do Código de Processo Civil, viola o princípio da legalidade, na medida em que aquele acórdão de uniformização de jurisprudência teria efectuado 'uma interpretação contra legem do dispositivo legal (...), derrogando manifestamente o estabelecido na própria lei processual penal quanto à condenação em imposto de justiça e custas do assistente e como tal violando o princípio constitucional de Reserva de Lei estabelecido no art. 168º alíneas b) e c) e 201º alínea b) da Constituição da República Portuguesa'.
Ao que se crê, a sentença recorrida considera a matéria de custas em processo penal - ainda que referida a custas na acção cível deduzida num processo criminal - como sujeita a reserva de lei parlamentar, só podendo o Governo sobre ela legislar munido de autorização legislativa. Daqui derivaria a inconstitucionalidade orgânica de uma interpretação judicial autêntica ou quase-autêntica.
Nas suas alegações, o Ministério Público nega que a matéria de custas em processo penal esteja submetida a reserva parlamentar - ao menos, no que toca
à tributação da dedução de pedidos cíveis nos termos dos arts. 71º e seguintes do Código de Processo Penal - considerando 'insustentável a posição expressa na decisão recorrida, segundo a qual, nas matérias eventualmente situadas na
«reserva de parlamento», padeceria de inconstitucionalidade orgânica qualquer interpretação judicial que se afastasse substancialmente da letra da lei, que nela não encontrasse um «mínimo de correspondência verbal»' (a fls. 230 dos autos).
Na verdade, interpretando a decisão recorrida, nomeadamente tendo em consideração o despacho de aclaração de fls. 219 (onde se indica que a norma que viola os 'ditames constitucionais', no entender do Magistrado a quo, é 'a do artigo 520º alínea a) do Código de Processo Penal na interpretação obrigatória que dele é feita no Assento 3/93...'), parece resultar que aquilo que se reputa inconstitucional é uma interpretação judicial correctiva, não imputando o Senhor Juiz às normas do Código de Processo Penal que atribuem valor vinculativo
à jurisprudência uniformizada qualquer vício de inconstitucionalidade.
Por outro lado, o objecto do recurso interposto pelo Ministério Público cinge-se à norma desaplicada, tal como foi identificada pela decisão recorrida.
É o que decorre do requerimento de interposição do recurso e das conclusões da alegação.
Com este objecto, afigura-se que é inteiramente válida a afirmação constante das alegações do Ministério Público de que o art. 168º da Constituição
(na versão resultante da segunda revisão constitucional) 'tem que ver exclusivamente com o estabelecimento e repartição das competências legislativas da Assembleia da República e do Governo', razão por que não seria 'legítimo operar uma pretensa limitação dos parâmetros da actividade interpretativa e integradora na aplicação do direito pelo órgão de soberania «Tribunais», em função de uma especial prevalência do elemento literal da lei (...)' (a fls.
231).
10. Face ao exposto deve acolher-se a posição da entidade recorrente, não podendo manter-se o despacho reclamado quando desaplicou a indicada norma com fundamento em inconstitucionalidade.
III
11. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, o qual deve ser reformulado em função do julgamento sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 4 de Novembro de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa