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Processo nº 557/96
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - A., identificado nos autos, interpôs na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso de anulação do despacho do Subsecretário de Estado da Cultura, de 9 de Agosto de 1991, pelo qual foi determinado, através do Instituto Português do Património Cultural (IPPC), o embargo de construções do recorrente licenciadas por alvarás da Câmara Municipal de Braga.
Para tanto, alegou, além do mais, a inconstitucionalidade material e orgânica do Decreto-Lei nº 349/87, de 5 de Novembro, por violação do disposto nos artigos 243º, 201º, nº 1, alínea c) e 168º, nº 1, alínea s), da Constituição, peticionando a anulação do embargo administrativo por vício de usurpação de poder.
Por acórdão de 4 de Maio de 1993, foi negado provimento ao recurso havendo-se por improcedentes todas as conclusões da alegação.
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2 - Do assim decidido, levou o interessado recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Administrativo, formulando, no que aqui importa reter as conclusões seguintes:
'C3 - O DL 349/87, de 5 de Novembro, violou o disposto no artigo
168º, 1.g) e s) [no tempo alínea r)] da Constituição da República por desrespeitar a reserva de competência da Assembleia da República quanto às bases de protecção do património cultural e ao estatuto das autarquias locais
(atribuições de licenciamento e embargo).
E também violou o disposto no artigo 201º, alínea c), por desrespeitar o princípio do artigo 57º da Lei 13/85, de 6 de Julho, confiando ao IPPC poderes de embargo que aqui estavam reservados aos tribunais.
Tais vícios constituem inconstitucionalidade orgânica.
C4 - Face ao disposto no artigo 57º da Lei 13/85, o DL 349/87 desrespeita também aquela lei de bases do património cultural e a autonomia das autarquias locais, no exercício das suas atribuições de licenciamento e embargo consagradas no artigo 51º, nº 2, als. e) e g) da Lei 100/94, na redacção então em vigor.'
Por acórdão de 7 de Maio de 1996, o Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso.
No essencial, e no que à matéria de constitucionalidade respeita, suportou-se aquele aresto na seguinte fundamentação:
'Começando pela alegada inconstitucionalidade orgânica do Dec.-Lei nº
349/87.
O raciocínio desenvolvido pelo recorrente é o seguinte.
Este diploma legal veio permitir o embargo administrativo pelo IPPC
(devidamente autorizado) das 'obras ou trabalhos licenciados ou efectuados, em desconformidade com a legislação relativa ao património cultural'.
Sobre a mesma matéria dispunha anteriormente o artº 57º da Lei nº 13/85 que o Ministro da Cultura podia, nomeadamente através dos serviços regionais, promover o embargo judicial de obras realizadas contra o disposto nessa lei, sempre que as câmaras municipais, devidamente alertadas, não procedessem ao embargo administrativo.
A aprovada medida legislativa sofreria, pois, da inconstitucionalidade orgânica face ao disposto nos artºs 168º, nº 1 als. g) e s) e 201º, nº 1 al. c) da CRP na medida em que não acatou a reserva de competência da Assembleia da República nem o primado da Lei nº 13/85, que atribuía aos tribunais os poderes de decretar o embargo.
Mas não se subscreve, de forma alguma, este entendimento.
A arguição do apontado vício de inconstitucionalidade orgânica parte de uma permissa indemonstrada: o carácter inovatório do Dec.-Lei nº 349/87 no ponto em que, no seu art. 1º, atribui ao IPPC competência para determinar o embargo de obras ou trabalhos nas condições descritas no preceito.
Na verdade, como se escreve no acórdão deste Tribunal Pleno de 19/1/93
(proferido no recurso nº 24932), o art. 15º [pretendia dizer-se 57º] da Lei nº
13/85 que concede ao Ministro da Cultura a faculdade de promover o embargo judicial das obras realizadas em contravenção do disposto nesse diploma não exclui o recurso, por parte do referido membro do governo, a outras medidas que caibam na sua competência, designadamente o embargo administrativo legitimado pelo art. 28º al. d) do Dec. Reg. nº 34/80.
Com efeito, do texto dos arts. 28º e 38º deste diploma legal 'decorre que, para consecução dos fins que a Secretaria de Estado da Cultura prossegue, de conservação e preservação dos bens culturais, se atribuiu competência para fiscalizar quaisquer trabalhos em imóveis classificados ou em curso de classificação ou nas suas zonas de protecção e, face à irregularidade dos mesmos, prontamente reagir obstando à sua constituição, em termos de, como diz a lei, o fazer suspender.
Embora não se especifique a natureza dessa medida suspensiva, não pode deixar de se entender, face às circunstâncias em que deve ser tomada, que será, de entre aquelas que a lei possibilita, a que melhor quadre às exigências concretas do caso (...) a que com mais eficiência assegure a tutela dos fins que dessa forma se visa prosseguir.
E, figurando entre essas medidas, porventura a mais expedita e eficaz, o embargo administrativo, como emanação que é do benefício da execução prévia de que a Administração goza, não pode deixar de se concluir que essa é uma das formas pois que se pode 'fazer suspender', na terminologia do preceito, os trabalhos tidos como irregulares no exercício do poder de acção e de fiscalização sobre eles exercido; a formulação legal é suficientemente ampla para comprovar tal sentido'. (passo do citado ac. de 19/1/93).
A esta doutrina não obsta o disposto no art. 57º da Lei nº 13/85 que, permitindo à Administração recorrer ao embargo judicial não exclui, de modo algum, como se disse, a utilização do outros meios que a lei lhe faculte nomeadamente o embargo administrativo.
O que, como se escreve no citado acórdão de 19/1/93, se impõe sob pena de chegarmos ao resultado absurdo de admitir - aliás por imposição expressa do preceito - o poder conferido às câmaras municipais de embargar administrativamente as obras lesivas do património cultural que têm em especial a obrigação de 'promover a salvaguarda e valorização do património cultural'
(art. 2º, nº 2 da Lei nº 13/85) e de adoptar as medidas necessárias e indispensáveis a uma acção permanente e concertada, designadamente, de protecção e conservação dos bens culturais (art. 4º, nº 2 do mesmo diploma legal).
Acrescendo que o referido art. 57º tem um específico campo de actuação que pressupõe uma situação de divergência de critérios de intervenção entre as administrações autárquicas e central o que justifica o apelo à providência do embargo judicial.
Não tendo assim havido, por parte do autor da Lei nº 13/85, qualquer intuito revogatório do disposto no art. 28º al. d) do Dec. Reg. nº 34/80 (que, diga-se incidentalmente, também não fora revogado pelos arts. 51º, nº 2 al. g) e
97º, nº 2 do Dec.-Lei nº 100/84 de 29 de Março), forçoso é reconhecer que o Dec.-Lei nº 349/87, na parte em que, através do seu art. 1º, atribui ao IPPC poderes de embargo administrativo de obras ou trabalhos licenciados ou efectuados em desconformidade com a legislação relativa ao património cultural, apresenta carácter interpretativo do direito anterior, como aliás se declara no respectivo preâmbulo. Inovando apenas na parte em que faz depender o uso desse meio de autorização do membro do governo responsável pela cultura ou, no caso de obras licenciadas ou promovidas pela administração central, de autorização conjunta dos ministros responsáveis da cultura e da tutela (cfr., neste sentido, o cit. ac. de 19/1/93).
Posto isto, estamos em condições de responder - naturalmente de forma negativa - à questão da inconstitucionalidade orgânica do Dec.-Lei nº 349/87 por pretensa violação dos arts. 168º, nº 1 als. g) e s) r] na versão de 1982) da CRP na medida em que atribui ao IPPC competência para proceder ao mencionado embargo administrativo, quer por ter invadido a reserva de competência da Assembleia da República, quer por ter desrespeitado o primado da Lei nº 13/85.
Com efeito, aquela inconstitucionalidade não se verifica uma vez que o citado decreto-lei não institui 'ex novo' tal embargo administrativo; não tendo assim introduzido qualquer modificação nos poderes de que dispunha aquele departamento do Estado, a medida legislativa em apreço não caiu na previsão do art. 168º, nº 1 als. g) e s) da CRP.
E, por outro lado, estando em causa uma medida administrativa que, nos termos expostos, co-existia com a da promoção do embargo judicial prevista no art. 57º da Lei nº 13/85, não poderá de forma alguma falar-se em revogação ou desrespeito pelo primado do comando deste preceito legal que, de modo nenhum, foi tocado. Com o que perde sentido a invocação do disposto no art. 201º da CRP.
Também não ocorre a alegada inconstitucionalidade material (do Dec.-Lei nº 349/87) - ofensa do preceituado no art. 243º, nº 1 e 2 da CRP - por intromissão indevida da administração central nas atribuições das autarquias locais em matéria de licenciamento e embargo consagrados no art. 51º, nº 2 als. e) e g) da Lei nº 100/84 na redacção então em vigor.
A questão tem sido amplamente discutida pela jurisprudência deste Supremo Tribunal a propósito não só dos poderes conferidos à administração central por este art. 1º do Dec.-Lei nº 349/87, mas também de intervenções similares previstas noutros diplomas legais (como o caso dos arts. 6º do Dec.-Lei nº 37251 de 28/12/48 e 2º e 14º, nº 1 do Dec.Lei nº 289/73 de 6 de Junho), assentando-se, em corrente quase uniforme, na conformidade constitucional destes preceitos legais (cfr. entre outros, os acórdãos de 27/11/90, 14/3/91, 24/10/91, 15/12/92,
21/4/94 e 1/6/94, proferidos, respectivamente, nos recursos nºs 24827, 27838,
26750, 27816, 29573/29852 e 33357).
O argumento que, em primeira linha, é oponível à tese da inconstitucionalidade material é o de que o Dec.-Lei nº 100/84 pelos arts. 51º, nº 2 al. g) e 97º, nº 2 (redacção primitiva) dispõe sobre a competência dos
órgãos das autarquias municipais, o que não sucede com o art. 1º do Dec.-Lei nº
349/87 (nem com o art. 28º al. d) do Dec.Reg. nº 34/80), sendo certo, por outro lado, que a competência desses órgãos 'não respeita à defesa do património cultural mas apenas à dos interesses meramente locais em matéria de urbanismo e construções' (passo do citado acórdão de 19/1/93).
Não há, pois, consagração de atribuições à partida conflituantes mas de atribuições que, movendo-se em planos diferentes e versando sobre aspectos diversos, têm no entanto como ponto de encontro a mesma obra ou trabalho desconforme com a legislação relativa ao património cultural.
Em idêntico sentido tem a referida jurisprudência salientado, com grande vigor, que a intervenção da administração central nesta matéria não corresponde a qualquer forma de tutela exercida sobre a actividade das autarquias em assuntos consentidos à sua competência específica, mas antes ao exercício de poderes legalmente concedidos para execução de atribuições que a CRP põe directamente a cargo do Estado, a quem, segundo o art. 78º, nº 2 al. b) da Lei Fundamental, incumbe, designadamente, 'promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, tornando-se o elemento vivificador da identidade cultural comum'.
E não se argumenta em sentido oposto, como faz o recorrente, com a consideração de que, em caso de conflito entre a administração central e local, o mesmo deverá, em princípio, ser dirimido pelos tribunais (art. 3º do ETAF).
Pois não existe proibição constitucional que vede em absoluto a outorga de tal prerrogativa às instâncias administrativas - particularmente quando se trate de actos praticados ao abrigo de poderes vinculados - desde que em interesse público relevante (designadamente a celeridade da intervenção correctora) o justifique, assegurada como fica, em todo o caso, a garantia contenciosa nos termos gerais.
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3 - Contra este acórdão interpôs então o recorrente, sob invocação do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 87/89, de 7 de Setembro, recurso para o Tribunal Constitucional, por entender violadas pelo Decreto-Lei nº 349/87, de 5 de Novembro, 'as normas constitucionais dos artigos 114º, nº 1, 168º, nº 1, alíneas g) e s) [ao tempo alínea r)], 201º, alínea c), 205º, nºs 1 e 2, 239º e
243º da Constituição e dos artigos 57º da Lei nº 13/85, de 6 de Julho, e 51º, nº
2, alíneas e) e g), que considera leis com valor reforçado [artigos 70º, nº 1, alíneas b) e c) e 75º, nº 2, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro].'
Os autos subiram a este Tribunal e, nas alegações depois oferecidas, o recorrente formulou as conclusões seguintes:
'1ª - No acórdão recorrido, o DL nº 139/87 foi interpretado no sentido de permitir ao IPPC embargar administrativamente qualquer obra, mesmo sabendo que se encontrava licenciada pela Câmara Municipal, como modo de dirimir actuações conflituantes da administração central e da local, pela prevalência do entendimento e do poder daquela.
Por outro lado, foi aquele DL ali ainda interpretado no sentido de permitir que fosse embargada qualquer obra, ainda que o licenciamento concedido pela Câmara Municipal já não pudesse ser revogado por assentar em deferimento constitutivo de direitos e legal, por antecedido de deferimento tácito do próprio IPPC nos termos do disposto no artº 12º,4, do DL 166//70, de 15/4.
2ª - Assim, o referido DL 349/87 conflitua com os regimes previstos nos artºs 57º da lei 13//85, de 6/7, (lei de bases do património cultural) e
51º, 2, e) e g), do DL 100/84 (estatuto das autarquias locais), bem como na Lei
87/89 (regime de tutela das autarquias locais), consideradas leis com valor reforçado (artº 115º, nº 2 da Constituição), pelo que padece de inconstitucionalidade orgânica, face ao disposto nos artºs 168º, 1, g), q) e s)
(ao tempo r) e 201º, c) da Constituição.
3ª - E, consequentemente, por violação daquelas normas com valor reforçado e directamente do disposto nos artºs 2º (Estado de Direito e princípio da confiança na administração), 6º, 239º e 243º (autonomia e tutela das autarquias locais), e 114º, 1, e 205º, 1 e 2, (Separação de Poderes de Soberania e atribuições dos Tribunais) da Constituição, o dito DL padece de inconstitucionalidade material.'
Por seu turno, em contralegação, sustentou o Ministro da Cultura um entendimento contrário ao do recorrente, fechando assim a argumentação a propósito desenvolvida:
'Em conclusão, é de entender que o Decreto-Lei nº 349/87, de 5 de Novembro, não enferma:
a) de inconstitucionalidade orgânica, porquanto
- se estriba nos artigos 28º, al. d) e 38º, nº 3, al. c), do Decreto Regulamentar nº 34/84, de 2 de Agosto, isto é, da lei orgânica do IPPC, que, implicitamente, previa os embargos administrativos, que quer a Lei nº 13/85, de
6 de Julho, quer o Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março deixaram incólumes;
- o artigo 57º da Lei nº 13/85, de 6 Julho, comete os embargos judiciais às delegações regionais da cultura, como forma de permitir ao Ministro da Cultura intervir directamente a decretar os embargos, sem aguardar por um parecer técnico do IPPC, organismo apenas sujeito à sua tutela e não sob a sua dependência hierarquica (artº 5º da Lei nº 13/85), atribuindo àqueles serviços do Ministério competências em matéria de património cultural, que de outra forma não teriam;
- a lei orgânica do IPPC, na qual se baseou o Decreto-Lei nº 349/87, foi prevista como diploma de desenvolvimento da Lei nº 13/85, pelo respectivo nº 2 do artigo 5º.
b) - de inconstitucionalidade material, porquanto:
- se compete aos tribunais dirimir conflitos (artigo 205º, nº 2, da Constituição), também compete fazê-lo à Administração (artigo 266º, nº 1, da Constituição;
- nem do nº 3 do artigo 214º da Constituição, nem do ETAF, que o regulamenta, resulta que esteja cometida aos tribunais administrativos a resolução de conflitos entre a administração local e central;
- aliás, tais conflitos não existem nesta matéria, pois a lei comete a decisão sobre património cultural apenas à Administração Central (artigo 4º da Lei nº
13/85), não a atribuindo ao poder local nem mesmo em caso de deferimento táctico, que tem mero valor adjectivo; daí o regime do Decreto-Lei nº 349/87, de
5 de Novembro, que permite ao poder central intervir, mesmo tendo havido um licenciamento válido por parte da Câmara, o qual, se bem que válido, não é eficaz me matéria de património cultural.'
Os autos seguiram os vistos de lei, cabendo agora apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - Nas diversas peças processuais que o recorrente foi oferecendo ao longo dos autos - alegação do recurso para a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, alegação do recurso para o Pleno da Secção, requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, alegação do recurso de constitucionalidade - nem sempre foi apresentada a questão de inconstitucionalidade [e de ilegalidade] por forma transparente e rigorosa, importando assim delimitar com a necessária precisão qual seja o objecto do recurso.
Como é sabido, em conformidade com o disposto no artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro
(Lei do Tribunal Constitucional) o recurso para este Tribunal 'interpõe-se por meio de requerimento, no qual se indique a alínea do nº 1 do artigo 70º ao abrigo da qual o recurso é interposto e a norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie' (nº 1).
Sendo o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º, 'do requerimento deve ainda constar a indicação da norma ou princípio constitucional ou legal que se considera violado, bem como da peça processual, em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade' (nº 2).
Ora, aquando da interposição do recurso de constitucionalidade o recorrente apresentou o requerimento de fls. 172, cujo teor por inteiro se transcreve:
'A., melhor identificado nos autos,
não se conformando com o aliás douto acórdão de 7.5.96 que negou provimento ao recurso e não considerou inconstitucional o DL 349/87, de 5/11, apesar de a violação da Lei Fundamental por aquele diploma ter sido suscitada pelo recorrente ao longo do processo e designadamente nas conclusões 3ª e 4ª das suas alegações, e porque entende violadas por aquele DL as normas constitucionais dos artºs 114º, nº 1, 168º, 1, g) e s) (ao tempo r), 201º, c),
205º, nºs 1 e 2, 239º e 243º da Constituição e dos artºs 57º da lei 13/85, de
6/7, e 51º, 2, e) e g), que considera leis com valor reforçado (artºs 70º, 1, b) e c) e 75º-A, 2, da lei 28/82, de 15/11), vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, nos termos e ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1, do artº 70º e nos artºs 75º e 75º-A da Lei 28/82, o qual deverá ser recebido e processado como previsto no artº 69º da Lei 28/82, nos próprios autos e com efeito suspensivo (artº 78º nº 4 do mesmo diploma).'
Extrai-se desta petição - peça processual determinante na delimitação do objecto do pedido - que o recurso foi interposto ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional
(recurso de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo), visando-se com ele a apreciação da inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 349/87, de 5 de Dezembro. Simplesmente, porque o articulado deste diploma apenas compreende dois preceitos - sendo que o artigo 2º não foi convocado nem aplicado na decisão recorrida - há-de concluir-se que o objecto do recurso se circunscreve ao julgamento do mérito constitucional da norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 349/87, a qual, no entendimento do recorrente colide com os artigos 114º, nº 1, 168º, nº 1, alíneas g) e s), [ao tempo alínea r)] 201º, alínea c), 205º, nºs 1 e 2, 239º e 243º da Constituição.
Independentemente do facto de se poder atribuir à Lei nº 13/85, de 16 de Julho a natureza de lei com valor reforçado - o que se tem por muito duvidoso face à jurisprudência deste Tribunal (cfr. o acórdão nº 365/96, Diário da República, II Série, de 9 de Maio de 1996) -, tem-se por manifesta a inverificação de vários dos pressupostos necessários à admissão do recurso previsto no artigo 70º, nº 1, alínea c) da Lei do Tribunal Constitucional. Na verdade, não só o recorrente não fez expressa e directa invocação deste preceito como norma fundamento do recurso, como também na decisão recorrida não se recusou a aplicação de quaisquer normas constantes de acto legislativo
(nomeadamente aquelas a que o recorrente faz alusão) com base na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado.
Assim delimitado o objecto do recurso cabe passar ao seu conhecimento e apreciação.
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2 - Por imperativo constitucional decorrente do artigo 78º
(Fruição e criação cultural), 'todos têm direito à fruição e criação cultural, bem como o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural', sendo que incumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais, incentivar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de acção cultural, apoiar as iniciativas que estimulem a criação individual e colectiva, promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, desenvolver as relações culturais com todos os povos e articular a política cultural e as demais políticas sectoriais (cfr. nºs 1 e 2).
Estes princípios fundamentais vieram a ter eco na Lei nº 13/85, de 6 de Julho (Património cultural português), na qual, depois de se afirmar no artigo 2º, nº 2, a obrigação de o Estado e demais entidades públicas promover a salvaguarda e valorização do património cultural do povo português, atribui-se ao Governo, através do Ministério da Cultura, a competência para promover a protecção legal do património cultural, em termos assim definidos no artigo 4º, nº 2: 'O Estado promoverá, pelo Ministério da Cultura, designadamente através dos seus serviços regionais, em conjunto com outros departamentos do Estado, as medidas necessárias e indispensáveis a uma acção permanente e concertada de levantamento, estudo, protecção, conservação e valorização dos bens culturais'.
E, neste mesmo diploma, no título correspondente às garantias e sanções estabelecidas em defesa e contra os atentados ao património cultural, dispunha-se no artigo 57º que, no caso em que 'as câmaras municipais, devidamente alertadas, não procedam ao embargo administrativo de obras realizadas contra o disposto no presente diploma, o Ministro da Cultura pode, nomeadamente através dos serviços regionais, promover o seu embargo judicial'.
Já anteriormente, aquando da reestruturação da Secretaria de Estado da Cultura, levada a efeito pelo Decreto-Lei nº 59/80, de 3 de Abril, lhe haviam sido fixados como objectivos 'a orientação e definição da política nacional de cultura' increvendo-se entre as atribuições elencadas no artigo 2º, as de 'inventariar, conservar e utilizar o património cultural, garantindo a sua sobrevivência e estimulando a inverificação em todos os domínios com eles relacionados' e também as de 'apoiar a preservação, a criação e a difusão de obras culturais, tanto individuais como colectivas, nos seus multímodos aspectos' [alíneas a) e b)].
No âmbito deste departamento governativo a cujos órgãos e serviços pertencia o prosseguimento daquelas atribuições, o essencial deles foi cometido ao Instituto Português do Património Cultural (IPPC) então criado pelo artigo 3º, nº 1, alínea f), ao qual competia, nomeadamente 'planear e promover a pesquisa, cadastro, inventariação, classificação, recuperação, conservação, protecção e salvaguarda dos bens que, pelo seu valor histórico, artístico, arqueológico, bibliográfico e documental, etnográfico ou paisagístico, constituam elementos do património cultural doa País' [artigo 9º, alínea a)].
Entretanto o IPPC [Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico, que lhe sucedeu com atribuições similares - artigos 1º, 2º e 26º do Decreto-Lei nº 106-F/92, de 1 de Junho], veio a ser dotado da sua lei orgânica - Decreto--Regulamentar nº 34/80, de 2 de Agosto - na qual lhe foi atribuída a natureza de instituto público dotado de personalidade jurídica, gozando de autonomia administrativa e financeira (artigo 1º) e cometidas, além de outras, todas as atribuições já elencadas no artigo 9º do seu diploma instituidor.
Para o exercício destas atribuições foi definida no artigo 3º a competência do IPPC, distribuída depois pelos seus órgãos e serviços enumerados no artigo 5º, entre os quais se compreendem o Departamento de Defesa, Conservação e Restauro do Património Cultural (DDCRPC) e o Departamento do Património Arquitectónico (DPA) [nº 2, alíneas g) e m), respectivamente].
Ao DDCRPC foi assegurado, no âmbito daquela competência, o poder de 'propor providências cautelares, e realização de trabalhos e a fixação de normas e critérios que visem a conveniente salvaguarda dos bens culturais'
[artigo 23º, alínea f)].
Por seu turno, ao DPA e às duas divisões que nele se compreendem - Divisão de Investigação e Reconversão e Divisão de Monumentos, Conjuntos e Sítios - foi cometido o poder de 'acompanhar e fiscalizar, em colaboração com os diversos intervenientes, quaisquer trabalhos em imóveis classificados ou em processo de classificação, bem como nas respectivas zonas de protecção, sem prejuízo das atribuições cometidas ao Serviço de Inspecção e ao Departamento de Defesa, Conservação e Restauro do Património Cultural' e outrossim o de 'fazer suspender quaisquer trabalhos não autorizados ou autorizados mas que estejam a ser efectuados incorrecta ou deficientemente nos imóveis classificados ou em processo de classificação e nas respectivas zonas de protecção, bem como em imóveis não classificados mas de inegável valor cultural'
[artigos 28º, alíneas c) e d) e 38º, nºs 2, alínea a) e 3, alínea c)].
Deve notar-se que hoje em dia, por força do Decreto-Lei nº
120/97, de 16 de Maio foi criada a nova orgânica do Instituto Português do Património Arquitectónico (IPAR).
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3 - Veio entretanto a ser editado o Decreto-Lei nº 349//87, de
5 de Novembro, aprovado pelo Governo ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição, que, no seu exórdio, justifica a sua razão de ser e a solução ali adoptada do modo seguinte:
'A defesa e salvaguarda do património cultural jamais se poderá fazer capazmente sem que a Administração esteja dotada de instrumentos de actuação pronta e eficaz.
Ao estabelecer-se a orgânica do Instituto Português do Património Cultural (IPPC) não se deixou suficientemente claro que os meios postos à sua disposição compreendiam o embargo administrativo de obras ou trabalhos.
Torna-se necessário colmatar essa deficiência, fazendo-se, no entanto, depender o decretamento do embargo de prévia autorização tutelar do Governo.'
E, no artigo 1º, o único que importa considerar na situação em apreço, dispõe-se assim:
Artigo 1º
Ao Instituto Português do Património Cultural compete determinar, precedendo autorização do membro do Governo responsável pela cultura, o embargo administrativo de quaisquer obras ou trabalhos, licenciados ou efectuados, em desconformidade com legislação relativa ao património cultural, nomeadamente nas zonas de protecção dos monumentos nacionais, dos imóveis de interesse público, das zonas especiais de protecção dos imóveis de interesse arqueológico, bem como noutras áreas expressamente designadas na lei.
Ora, no entendimento do recorrente esta norma acha-se ferida do vício de inconstitucionalidade, desde logo por atentar contra a regra da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República a que se reporta a alínea g) do nº 1 do artigo 168º e o artigo 201º, nº 1, alínea c), da Constituição.
Vejamos.
Como é sabido, o alcance da reserva de competência legislativa a que se reporta o artigo 168º da Constituição não é idêntico em todas as matérias, podendo no seu âmbito distinguir três níveis: (a) um nível mais exigente em que toda a regulamentação legislativa do tema em causa é reservada à Assembleia da República; (b) um nível menos exigente, em que a reserva da Assembleia da República se limita ao regime geral, isto é, ao regime comum ou normal da matéria, sem prejuízo, todavia, de regimes especiais que podem ser definidos pelo Governo ou mesmo em certos casos, pelas assembleias regionais;
(c) finalmente, um terceiro nível, em que a competência da Assembleia da República é reservada apenas no que concerne às bases gerais do regime jurídico da matéria.
No que toca ao terceiro nível a Assembleia da República apenas tem que definir as bases gerais, podendo deixar para o Governo o desenvolvimento legislativo do regime jurídico (do regime geral e dos especiais a que haja lugar).
Não sendo fácil encontrar uma definição segura e objectiva do que deve entender-se por bases gerais de um determinado regime ou sistema normativo, poderá todavia afirmar--se que, no âmbito dessa competência reservada, hão-de inscrever-se as opções politico-legislativas fundamentais respeitantes à matéria a que aquelas respeitam (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, pp. 670 e
671).
E, numa linha de continuidade dos princípios assim expostos, escreveu-se assim, no Acórdão nº 142/85, Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1985, a propósito da matéria das 'bases do regime e âmbito da função pública', e pode agora repetir-se, por traduzir, a este respeito, o entendimento jurisprudencial deste Tribunal:
'Temos assim que o que em exclusivo cabe à Assembleia da República - sem prejuízo de ela poder delegar no Governo essa competência mediante uma autorização legislativa - é a definição das grandes linhas que hão-de inspirar a regulamentação legal da função pública e demarcar o âmbito institucional e pessoal da aplicação desse específico regime. Na imediata dependência de um debate e de uma decisão parlamentares (é esse, bem se sabe, o significado da reserva) encontra-se apenas, e compreensivelmente, o estabelecimento do quadro dos princípios básicos fundamentais daquela regulamentação, dos seus princípios reitores ou orientadores - princípios esses que caberá depois ao Governo desenvolver, concretizar e mesmo particularizar, em diplomas de espectro mais ou menos amplo (consoante o exigir a especificidade das situações a contemplar), e princípios que constituirão justamente o parâmetro e o limite desse desenvolvimento, concretização e particularização (cf., a propósito, Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 3ª ed., Coimbra, 1983, p. 631).'
E mais adiante, em síntese conclusiva:
Numa palavra, e para nos servirmos de uma consabida distinção, dir-se-á: a reserva parlamentar inclui apenas o que tenha a natureza de uma regulamentação de princípio, por constituir, ou co-envolver, uma redifinição de
«princípios jurídicos»; a emissão de normas que não briguem com esses princípios, mas representem unicamente uma diferente modelação ou concretização deles, essa, encontra-se o Governo habilitado a fazê-la autonomamente.'
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4 - Em conformidade com o disposto no artigo 168º, nº 1, alínea g) da Constituição - versão resultante da primeira revisão constitucional - é da exclusiva competência da Assembleia da República, legislar, salvo autorização ao Governo, 'sobre as bases do sistema de protecção da natureza, do equilíbrio ecológico e do património cultural'.
Assim sendo, cabe ao Parlamento - sem prejuízo da delegação no Governo, mediante autorização legislativa - e no que ao património cultural respeita, a definição das grandes linhas que virão depois a originar a regulamentação legal do sistema, à luz dos princípios cogentes consagrados no já citado artigo 78º, mas também no artigo 66º da Constituição.
Ora, à luz do que se deixou exposto, será que a norma do artigo
1º do Decreto-Lei nº 349/87, ao dispor sobre o embargo administrativo - a determinar pelo IPPC, precedendo autorização do membro do Governo responsável pela cultura - se assume com a natureza de base do sistema do património cultural, criando uma estatuição inovadora e transgredindo a regra da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República?
Cabe recordar, antes do mais, que o acórdão recorrido, na esteira da jurisprudência a tal respeito firmada pelo Supremo Tribunal Administrativo (cfr. por todos, o acórdão do Tribunal Pleno da Secção do Contencioso Administrativo, de 19 de Janeiro de 1993, tirado no recurso nº
24932, e publicado no Apêndice ao Diário da República, de 16 de Outubro de 1995, pp. 19 e ss.), sustenta não existir qualquer carácter inovatório naquela norma tocantemente à competência de que o IPPC já dispunha para determinar o embargo de obras ou trabalhos realizados em contravenção com as exigências ali formuladas - competência essa decorrente da conjugação das normas dos já citados artigos 2º, nº 2 e 4º, nº 2 da Lei nº 13/85 e 28º, alínea d) do Decreto Regulamentar nº 34/80.
E, em abono deste entendimento, no acórdão de 19 de Janeiro de
1993, trazendo-se à colação o artigo 57º da Lei nº 13/85, ponderou-se assim:
'É desde logo de considerar que se trata de uma norma que, apenas facultando à Administração recorrer a determinada providência - o 'embargo judicial' -, não lhe proíbe a utilização de outras que caibam na sua competência, designadamente o embargo administrativo; e, ainda, que seria absurdo que o mesmo preceito, reconhecendo as câmaras municipais o poder de embargar administrativamente obras lesivas do património cultural, negasse esse poder à administração central, precisamente ao seu departamento a que a lei em que esse normativo se insere defere em especial a obrigação de 'promover a salvaguarda e valorização do património cultural' (artigo 2º, nº 2) e de adoptar as medidas necessárias e indispensáveis a uma acção permanentemente de, além do mais, protecção e conservação dos bens culturais (artigo 4º, nº 2); interpretar o preceito com tal alcance seria esquecer o disposto no nº 3 do artigo 9º. do CC.
Por outro lado, aquele artigo 57º tem um campo de aplicação específico, pois funciona apenas em casos em que o ministério responsável pela cultura veja omissão de conduta de câmaras municipais, que devidamente alertou para o facto, contra a realização de obras lesivas do património cultural, em situações, portanto, de conflito entre as administrações autárquicas e central, o que naturalmente justifica a intervenção dos tribunais comuns, decidindo sobre essa dissensão, através da providência do embargo judicial.
Daí que este preceito da Lei nº 13/85 não possa comandar a interpretação do artigo 28º, alínea d), do Decreto Regulamentar nº 34/80, nem este seja incompatível com aquele ou por ele tenha sido revogado, atento o específico campo de aplicação de cada um desses preceitos (...)'
Acompanha-se inteiramente esta linha argumentativa da qual resulta claramente que a norma sob controvérsia se limitou - objectivo aliás confessadamente assumido na exposição preambular do diploma em que se inscreve - a tornar claro que nos meios postos à disposição do IPPC se compreendiam já o embargo administrativo de obras ou trabalhos.
E assim sendo é manifesta a inexistência de qualquer afronta à regra constitucional que define a competência legislativa reservada da Assembleia da República.
Mas, mesmo que assim não fosse entendido - o que só por necessidade de argumentação se admite - também não poderia atribuir-se à estatuição contida naquele preceito a natureza de uma base do património cultural, de um principio rector do sistema em que este se insere em termos de, no específico âmbito do seu conteúdo - o decretamento de embargo administrativo por parte da Administração - o Governo não dispor de competência legislativa própria para editar aquela normação.
Carece por isso de fundamento a argumentação do recorrente quando imputa à norma sob sindicância violação do disposto nos artigos 168º, nº
1, alínea g) e 201º, nº 1, alínea c), da Constituição.
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5 - Mas, como se extrai do objecto do pedido - de que anteriormente se deixou delimitação - vem ainda sustentar o recorrente que a norma sob sindicância sofre de inconstitucionalidade por violação dos artigos
168º, nº 1, alínea s), 201º, nº 1, alínea c), 114º, nº 1, 205º, nºs 1 e 2, 239º e 243º da Constituição.
Importa por isso apreciar agora esta outra vertente da questão sub juditio.
Começar-se-á por dizer que, tendo em conta o sentido e alcance que se atribuiu à norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 349/87 (cfr. supra, II,
4), não é configurável a verificação de uma inconstitucionalidade orgânica por ofensa ao disposto no artigo 168º, nº 1, alínea s) [alínea r) ao tempo da edição do respectivo diploma] - que se reporta à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de 'Estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais' - e ao artigo 201º, nº 1, alínea c), ambos da Constituição.
Com efeito, alcançou-se ali o entendimento de tal norma não dispor de qualquer conteúdo inovatório, limitando-se a tornar claro que nos meios de intervenção postos por lei à disposição do IPPC - no quadro normativo preexistente - se compreendia já o embargo administrativo de obras ou trabalhos. Não se podia assim verificar, como não se verificou na hipótese anteriormente configurada das bases do sistema do património cultural, tendo em atenção o conteúdo e textualidade desta matéria, invasão por parte do Governo da área de reserva relativa da Assembleia da República.
E no tocante à inconstitucionalidade material que o recorrente assaca à mesma norma?
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6 - A Constituição, depois de no artigo 239º prescrever que a matéria da definição das atribuições e da organização das autarquias locais e da competência dos seus órgãos se integra no âmbito da reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República, rege sobre a tutela administrativa no artigo 243º que, nos nºs 1 e 2 que aqui importa considerar, dispõem assim:
Artigo 243º
(Tutela administrativa)
1 - A tutela administrativa sobre as autarquias locais consiste na verificação do cumprimento por parte dos órgãos autárquicos e é exercida nos casos e segundo as formas previstas na lei.
2 - As medidas tutelares restritivas da autonomia local são precedidas de parecer de um órgão autárquico, nos termos a definir por lei.
.................................................
Apesar de integrarem a administração autónoma, as autarquias não estão isentas de tutela administrativa, perfilando-se esta, de acordo com o texto constitucional, 'estritamente como tutela de legalidade, pois consiste na
'verificação do cumprimento da lei'. Embora não seja isento de dúvidas o sentido da expressão 'cumprimento da lei', a verdade é que a função da tutela não é a de controlar o 'mérito' da administração local ou a sua conformidade com os interesses gerais, tal como o Governo os vê, mas sim e apenas a de velar pela legalidade da administração local. Entretanto, 'cumprimento da lei, neste contexto há-de envolver não apenas as leis no sentido formal de acto legislativo
(cfr. artigo 155º, nº 1) mas também todas as demais normas que vinculam as autarquias, desde os regulamentos governamentais, até às normas editadas pelas próprias autarquias' (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pp. 896 e
897).
Nesta mesma linha doutrinal, Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 1986, pp. 692 e ss., depois de, quanto ao fim, distinguir a tutela administrativa em tutela de mérito, que visa controlar o mérito das decisões administrativas da entidade tutelada, e tutela de legalidade, que visa controlar a legalidade das mesmas decisões, acentua que
'depois da revisão constitucional de 1982, a tutela do Governo sobre as autarquias locais em Portugal deixou de poder ser, como era até aí, uma tutela de mérito e de legalidade para passar a ser apenas uma tutela de legalidade
(CRP, art. 243º, nº 1)'.
E este mesmo autor, depois de, em outro plano, distinguir, quanto ao conteúdo cinco modalidades de tutela administrativa - integrativa, inspectiva, sancionatória, revogatória e substitutiva -, caracteriza conceitualmente as duas últimas de modo seguinte:
'd) A 'tutela revogatória' por seu turno, é o poder de revogar os actos administrativos praticados pela entidade tutelada. Só excepcionalmente existe, na tutela administrativa, este poder.
e) A 'tutela substitutiva', enfim, é o poder de suprir as omissões da entidade tutelada, praticando, em vez dela e por conta dela, os actos que forem legalmente devidos. A hipótese é, portanto, a de os órgãos competentes da pessoa colectiva tutelada não praticarem actos que sejam para eles juridicamente obrigatórios: se houver tutela substitutiva, o órgão tutelar pode substituir-se ao órgão da entidade tutelada e praticar, em vez dele e por conta dele, os actos legalmente devidos'.
Na actualidade, a Lei nº 27/96, de 1 de Agosto (Regime jurídico da tutela administrativa), que revogou a Lei nº 87/89, de 9 de Setembro (Tutela administrativa das autarquias locais e das associações de municípios de direito público), depois de no artigo 1º delimitar o seu âmbito de aplicação - autarquias locais e entidades equiparadas - dispõe no artigo 2º que 'a tutela administrativa consiste na verificação do cumprimento das leis e regulamentos por parte dos órgãos e dos serviços das autarquias locais e entidades equiparadas' acrescentando no artigo 3º que a 'tutela se exerce através da realização de inspecções, inquéritos e sindicâncias' pertencendo a sua titularidade, como se prescreve no artigo 5º, ao Governo.
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7 - O primeiro sistema legal instituído na sequência da consagração constitucional do princípio da autonomia das autarquias locais e da descentralização da Administração Pública no quadro global da organização democrática do Estado, foi concretizado através da Lei nº 79/77, de 25 de Outubro.
Entretanto, veio este diploma a ser objecto de uma profunda revisão e reformulação levada a cabo pelo Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março.
Ora, no domínio da competência das câmaras municipais, no
âmbito do planeamento, bem como do urbanismo e da construção, nos termos do artigo 51º, nº 2, daquela normação, pertence-lhes 'conceder licenças para construção, rectificação ou conservação, bem como aprovar os respectivos projectos nos termos da lei' [alínea e)] e 'embargar e ordenar a demolição de quaisquer obras, construções ou edificações efectuadas por particulares ou pessoas colectivas sem licença ou com inobservância das condições desta, dos regulamentos, posturas municipais ou planos directores, de urbanização ou de pormenor em vigor' [alínea g)].
No entendimento do recorrente, a inconstitucionalidade da norma em causa, resultaria da intromissão indevida da administração central nas atribuições das autarquias locais em matéria de licenciamento e embargo consagrados nos preceitos de que se deixou transcrição e em vigor na data da sua edição (a Lei nº 18/91, de 12 de Junho, que procedeu à alteração do regime de atribuições das autarquias locais e das competências dos respectivos órgãos, concedeu aqueles dispositivos diferente formulação).
Mas não tem razão.
Desde logo, como tem sido acentuado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (cfr. o cit. acórdão de 19 de Janeiro de 1993), o artigo 1º do Decreto-Lei nº 349/87, não dispõe, como o fazem aqueles preceitos, sobre competência dos órgãos das autarquias municipais e, por outro lado, a competência destes não respeita à defesa do património cultural, mas apenas à dos interesses meramente locais em matéria de urbanismo e construção.
Por outro lado, e decisivamente, a intervenção do IPPC, autorizada pelo membro do Governo competente, em termos de opor embargo administrativo a quaisquer obras ou trabalhos, licenciados ou efectuados, em desconformidade com legislação relativa ao património cultural, não se traduz em qualquer ingerência, constitucionalmente proibida, no âmbito das atribuições e competências cometidas por lei, às autarquias locais no específico domínio do património cultural.
O objectivo e sentido último da norma sob apreciação não se traduz em qualquer tutela indevida sobre as competências das câmaras municipais nos específicos domínios que a estas pertencem, visando uma outra realidade, com elas confinante, é certo, mas de natureza e matriz diferenciada, qual seja a de o Governo, por força das disposições cogentes do texto constitucional actuar a sua competência no sentido da promoção e protecção legal do património cultural, nomeadamente no que toca à sua preservação, defesa e valorização.
Como se assinalou no Parecer da Procuradoria Geral da República de 22 de Outubro de 1987, Boletim do Ministério da Justiça, 1988, nº 377, pp.
131 e ss., a propósito de matéria similar - embargo e demolição das obras realizadas sem prévia autorização nas zonas de protecção dos edifícios ou construções de interesse público, não classificados como momentos nacionais, e, bem assim, das obras realizadas nas áreas urbanizáveis com desrespeito dos condicionamentos fixados nos respectivos planos de urbanização e seus regulamentos - para que em tal caso se pudesse falar em tutela (revogatória ou substitutiva) por parte do Governo 'tornar-se-ía, na realidade, mister que os interesses públicos implicados no urbanismo e no ordenamento do território, subjacentes ao citado preceito [artigo 2º do Decreto-Lei nº 40388, de 21 de Novembro de 1995], revestissem carácter exclusivamente municipal, só pela autarquia devendo e podendo ser prosseguidos, de conformidade com o disposto no artigo 237º, nº 2 da Constituição.'
E aquele Conselho Consultivo prossegue assim:
'Tratar-se-á, porventura, bem ao invés, de valores que relevam quer ao nível local quer no plano nacional e cuja realização - já o dissemos - tanto incumbirá aos entes territoriais como ao Estado, concorrentemente [artigos
9º, alínea e), 65º, nº 4, e 66º, nº 2].
Facilmente se compreenderá então que as competências previstas no artigo 2º do Decreto-Lei nº 40388 se encarem como poderes autónomos do Governo, em tudo paralelos aos idênticos poderes para as câmaras decorrentes da actual lei das autarquias locais.
Diversa concepção levaria a considerar estes entes como outros Estados dentro do Estado, com prejuízo imediato de cooperação que aqui, como em tantos domínios, deverá prevalecer'.
Esta orientação doutrinal veio a ser integralmente recebida no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27 de Novembro de 1990, publicado na Scientia Juridica, Janeiro-Julho 1992, Tomo XLI, pp. 146 e ss..
Na decorrência do exposto, há-de concluir-se no sentido de as normas dos artigos 239º e 243º, nº 1 e 2, da Constituição, bem como as demais que, por englobamento consequencial foram elencadas na alegação do recorrente, não terem sido violadas pelo preceito posto em crise no presente recurso.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar, no que à questão de constitucionalidade respeita, o acórdão recorrido.
Lisboa, 1 de Outubro de 1997 Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa