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Processo nº 695/96
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No tribunal judicial da comarca de Guimarães, A., em 20 de Junho de 1994, requereu, a seu próprio respeito, processo especial de recuperação da empresa ao abrigo do disposto no artigo 15º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril.
Efectuadas as diligências e recolhidos os elementos necessários, por despacho de 25 de Novembro do mesmo ano, nos termos dos artigos
25º e 28º daquele diploma legal, foi ordenado o prosseguimento da acção.
Na assembleia definitiva de credores que teve lugar em 17 de Outubro de 1995 (acta a fls. 122 e 123), o mandatário da apresentante, alegando a doença do sócio maioritário da empresa, 'doença essa que o vem impossibilitando, temporariamente, de reger a sua pessoa e bens, impossibilidade que se arrasta desde Março último e, também, por sempre e a cada momento, se ter estado à espera do seu restabelecimento, o qual e como se vê dos documentos ora juntos ainda não aconteceu' e considerando verificar-se assim um 'caso de força maior impeditivo da formação da vontade da requerente e tendente à concretização da concordata projectada com o auxílio de um seu grande credor, a qual teria de passar por a prévia redistribuição do seu capital social' requereu a suspensão da instância 'até à capitação daquele seu sócio'.
Todavia, por despacho de imediato proferido e vertido naquela mesma acta, o senhor juiz do processo indeferiu o requerimento da apresentante com base no entendimento de não se subsumir o caso em apreço nas situações de suspensão da instância contempladas no Código de Processo Civil.
E, por sentença de 15 de Novembro do mesmo ano, sob invocação do disposto no artigo 53º, nº 1 do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, depois de se considerar ter já decorrido o prazo de oito meses subsequentes ao despacho que determinou o prosseguimento da acção, foi declarada a falência da empresa requerente.
Contra o assim decidido foram por esta deduzidos embargos, suscitando-se no respectivo requerimento a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 53º, ali invocada como seu fundamento normativo.
Por decisão de 22 de Janeiro de 1996, não se concedeu atendimento à questão de inconstitucionalidade, julgando-se improcedentes os embargos opostos à sentença declarativa do estado de falência.
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2 - Inconformada, interpôs a requerente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 2 de Julho de 1996, lhe negou provimento.
Para tanto, aduziu-se fundamentação assim alinhada:
'Decerto, a recorrente não tem qualquer razão.
Com efeito, e desde logo, a ter qualquer razão, a inconstitucionalidade estaria no artº 141, nº 1 e) do CSC ou (e) na possibilidade, qualquer que ela fosse, de haver declarações de falência.
Ou seja, a argumentação da recorrente, a provar alguma coisa,
'provaria' demais.
Independentemente disso, pode concordar-se, ou não, com o citado artº 53 nº 1, mas uma eventual discordância não significa inconstitucionalidade e, muito menos, por pretensa ofensa ao direito à vida.
Em verdade, as pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres dos cidadãos - mas que sejam compatíveis com a sua natureza
(artº 12 nº 2 da Const.).
Isto significa que, como se tem por incontroverso, as pessoas colectivas não podem ser titulares de todos os direitos e deveres fundamentais das pessoas singulares mas, como é natural, só daqueles que se adequem à qualidade de entes, em si, jurídicos mas não humanos.
Como assim e até basicamente, não é aplicável, às pessoas colectivas, o regime do direito à vida, exclusivo das pessoas humanas, e antinómico da juriscidade dos entes colectivos (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª edição, 124).
O que está em causa, no fulcral artº 24 da Constituição, de que o respectivo artº 25 é um corolário é, assim, a vida humana concreta, não abstracta vida jurídica. Aliás, o nº 1 daquele artº 24 é claríssimo.
Portanto, soçobra totalmente a argumentação da recorrente a este respeito.
Quanto à referência ao artº 62 da Constituição, a falta de razão da recorrente ainda é mais evidente, se possível.
Esse artigo reporta-se ao direito de propriedade que, aliás, não é absoluto (veja-se o artigo, mas por inteiro).
E ninguém negou direito de propriedade à recorrente.
O que está em causa não é o direito de propriedade mas, sim, o dever de responder, com os seus bens, pelo seu passivo.
Quanto ao instituto falimentar, voltaríamos à problemática já enfrentada e já resolvida.
Como assim, o recurso soçobra seguramente'.
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3 - A empresa requerente trouxe então, sob invocação do disposto nos artigos 69º, 70º nºs 1, alínea b), 2 e 3, 75º, nºs 1 e 2 e 76º, nº
2, da Lei do Tribunal Constitucional, os autos em recurso a este Tribunal.
E, sintetizou as alegações entretanto produzidas, com as seguintes conclusões:
a) Uma média empresa comercial que requereu o processo especial de a sua recuperação, por crer na sua viabilidade e no decurso do processo, por causa impeditiva imputável a terceiros e no termo do prazo de direito adjectivo consignado, não foi possível votar uma qualquer medida de recuperação das admitidas na lei, não obstante a sua viabilidade ter sido confirmada por o Gestor Judicial, por a única causa de ultrapassagem daquele prazo, por força do disposto no artigo 53º 1 do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência, se vê, imediatamente, declarada no estado de falida;
b) ao arrepio dos princípios que dizem nortear aquele mesmo Código e o sentimento de interesse geral vigente na sociedade;
c) vê, ao mesmo tempo e com aquele acto judicial, postergado o seu direito fundamental constitucional à existência, bem como os da sua integridade, da iniciativa privada, da disposição do seu património, ou dos que, em sua substituição e por força da situação, o teriam de fazer, da protecção por parte do Estado;
d) como o hão-de ver quaisquer outras pessoas colocadas na mesma posição, por o que o referido preceito e na parte que estabelece um prazo para uma tomada de posição é, sem sombra para quaisquer dúvidas, abstracta e genericamente, inconstitucional.
e) E fala-se, sobremaneira, em o direito fundamental constitucional
à própria existência, porque, atentas as regras da melhor hermenêutica e na leitura que, por elas, se há-de fazer dos textos constitucionais aplicáveis (os citados artigos 12º e 24º, bem como muitos outros, como, p. ex., os 25º, 26º,
61º 1, 62º 1 e 87º 1);
f) o princípio da universalidade consignado no artigo 12º da Constituição da República, equipara aos cidadãos as pessoas colectivas, desde que os respectivos direitos e deveres sejam compatíveis com a natureza destas
últimas;
g) o que acontece com o direito à vida (artigo 24º desse mesmo diploma), cuja redacção quase que exclusivizada à vida humana se compreende por razões históricas e de conjuntura, mas depressa desmascarada nos seguintes artigos que tratam dos direitos, liberdades e garantias pessoais, que e como este, indubitavelmente, a maior parte deles, se aplicam às pessoas colectivas;
h) não fazendo, assim, sentido, que o primeiro e o mais essencial direito, o da existência, lhes fosse negado, quando e como princípio, ele não colide com a natureza daquelas e é-lhes tão essencial como a qualquer criatura humana.
i) Do mesmo modo se fala de ofensa, porque e sendo as pessoas colectivas criações ideais do ordenamento jurídico, no entanto e à semelhança do que sucede com os seres humanos, cuja fim da vida ocorre em situações biológicas concretas, também elas cessam por a verificação de eventos lógicos perfeitamente determinados na lei e aceites pela comunidade;
j) entre os quais ressalta a falência, que tem um conteúdo próprio, que não o de um decurso de um mero prazo processual, que, assim e ao cumprir-se-o, pondo termo a uma pessoa, se atenta contra o seu direito à existência ou à sua vida, à sua integridade pessoal, contra a iniciativa privada e a propriedade privada, bem como à protecção que o Estado está obrigado a dar
às médias empresas economicamente viáveis'.
A recorrida não ofereceu contralegação.
Corridos os vistos legais cabe apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - No direito falimentar português, a partir de 1976, com o propósito de se minimizar a grave situação então existente no tecido económico-social, foram introduzidas diversas medidas legislativas dirigidas às empresas em precária situação, desde que conjuntural, por forma a que pudessem recuperar a enfraquecida viabilidade.
De entre tais medidas merecem destaque os diplomas relativos à declaração de empresas em situação económica difícil (Decretos-Lei nºs 864/76, de 23 de Dezembro e 353-H/77, de 29 de Agosto), à instituição dos chamados contratos de viabilização (Decreto-Lei nº 124/77, de 1 de Abril) e à criação da denominada B. (Decreto-Lei nº 125/79, de 10 de Maio).
O quadro normativo decorrente destas alterações, quando articulado com o regime da falência definido no Código de Processo Civil, podia ser assim caracterizado: (a) consagração da via de recuperação da empresa em dificuldades económico--financeiras, como alternativa à declaração da falência;
(b) carácter não judicial das decisões conducentes à recuperação da empresa e ausência de controlo judicial das correspondentes medidas; (c) limitada intervenção dos credores em geral; (d) manutenção, no geral, das características e finalidade do processo de falência (cfr. Luís Carvalho Fernandes, 'Sentido geral dos novos regimes de recuperação da empresa e de falência', Direito e Justiça, vol. IX, 1995, Tomo 1, pp. 11 e ss.).
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2 - Porém, eram facilmente identificáveis os inconvenientes de um sistema confiado aos favores da Administração Pública e desligado da participação de muitos dos credores, que figuravam entre os principais sacrificados com grande número das medidas previstas para a recuperação das empresas inadimplentes.
Foi então publicado o Decreto-Lei nº 177/86, de 2 de Junho, com o qual se trouxeram ao direito pré-falencial assinaláveis alterações.
No exórdio deste diploma acentuou-se que a empresa não interessa apenas aos detentores do capital, mas também, motivadamente, aos dadores do trabalho, acrescentando-se, depois, numa outra perspectiva, não constituir ela apenas o instrumento jurídico da actividade lucrativa dos sócios, nem uma fonte abastecedora da remuneração dos trabalhadores, mas também, com maior ou menor preponderância, 'uma peça do equipamento produtivo nacional e um decisivo elemento quer da economia regional quer da vida local', representando, as mais das vezes, a sua eliminação judicial, quando evitável, 'uma verdadeira agressão ao equilíbrio social, de que o Estado não se poderá desinteressar'.
E, na decorrência destes considerandos afirma-se 'a pertinência da introdução, no ordenamento jurídico português, com carácter sistematizado e coerente, de um direito pré--falimentar, intencionalizado à recuperação da empresa e à adequada protecção dos credores; com isto se tutelam, obviamente, os interesses dos trabalhadores', sobrestando-se a que 'logo se tenha de cair no instituto falimentar, que, como entre nós está figurado, é uma forma 'quase total de destruir empresas (mesmo aquelas que merecessem ser conservadas) vencida que fosse a sua situação de crise', prejudicando os credores, a começar pelos trabalhadores, e afectado o correcto funcionamento do mercado e o interesse geral da economia'.
No processo de recuperação de empresas assim criado, procurou-se jurisdicionalizar a matéria, convertendo o processo negocial de concertação financeira entre a empresa devedora e as instituições de crédito suas principais credoras, num verdadeiro processo judicial, incumbindo ao tribunal garantir a regularidade da actuação dos intervenientes e assegurar a defesa dos legítimos interesses das partes.
Por outro lado, chamou-se a assembleia de credores, sem qualquer discriminação injustificada, e não apenas o grupo privilegiado das instituições de crédito, não só a pronunciar-se sobre a real viabilidade da empresa insolvente, mas também sobre as medidas mais adequadas para a resolução do caso concreto.
O regime assim instituído veio a sofrer alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 10/90, de 5 de Janeiro, essencialmente reportadas ao alargamento da intervenção dos credores a tomar pela assembleia de credores entre a recuperação da empresa e a falência, tornando também mais expedita a transição entre os respectivos processos quando tal fosse deliberado.
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3 - A breve trecho, pese embora a salutar evolução legislativa que a instituição daquele processo envolveu - a passagem do conceito de
'falência-liquidação' (faillite--liquidation) para uma mais abrangente concepção da 'falência-saneamento' (faillite-assaississement) - se representou a imperiosa necessidade de um novo regime falimentar no qual fossem superadas as deficiências resultantes de um quadro normativo que se mostrou incapaz de dar resposta às realidades económicas e sociais decorrentes de uma intensa competição empresarial travada no âmbito da comunidade europeia.
E daí, o ter sido editado o Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, que aprovou o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (doravante designado por Código), presentemente em vigor.
Logo na abertura do seu exórdio se assinalam os seus objectivos essenciais. Assim:
'A intervenção dos poderes públicos para aplicação de providências de recuperação económica de empresas insolventes, que envolvem sempre sacrifícios mais ou menos pesados para muitas das empresas credoras, só tem justificação plena, ao nível da própria economia nacional globalmente considerada, quando e enquanto o comerciante ou a sociedade comercial devedora se possam realmente considerar como unidades económicas viáveis.
Se a expectativa de recuperação financeira da devedora claudica, cessa toda a legitimidade dos sacrifícios impostos, em nome da solidariedade nacional, às múltiplas entidades suas credoras.
Os programas de recuperação económica da empresa insolvente não são planos de caridade evangélica aplicados aos que dela dependem, porque não é nessa vertente da vida social que a caridade encontra o seu lugar próprio. Só a real viabilidade económica da empresa em dificuldade pode legitimar, sobretudo numa economia de mercado como a que hoje vigora no espaço comunitário europeu, o cerceamento da reacção legal daqueles cujos direitos foram violados.
Esta imperiosa necessidade de distinguir, a propósito de cada empresa cuja insolvência seja reconhecida em juízo, entre as que podem e as que não podem, na prática, ser consideradas economicamente viáveis, obrigou o legislador a aproximar o processo especial de falência, onde fatalmente hão-de cair as devedoras que nenhuma expectativa séria de salvação oferecem aos seus credores.
E, além da aproximação entre os dois processos especiais, estreitamente ligados entre si pela função capital de cada um deles, sentiu-se ainda a necessidade de rever alguns dos pontos mais importantes do actual processo de falência, à luz das realidades da política económica comunitária.
Esses, de facto, os dois objectivos fundamentais do diploma legislativo no qual se consagra a nova disciplina dos dois processos especiais estreitamente ligados entre si.'
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E na linha da orientação geral assim enunciada o Código adoptou, em múltiplos aspectos, soluções diferentes das anteriormente estabelecidas, podendo indicar-se como mais significativos: (a) a eliminação da distinção entre falência e insolvência; (b) a valorização da dimensão social da empresa; (c) a coordenação sistemática dos processos de recuperação da empresa e de falência; (d) a posição de relevo reservada aos credores na definição do destino da empresa insolvente, com a consequente reestruturação dos órgãos da recuperação de empresa e, em particular, da falência; (e) a preocupação de celeridade e transparência das operações de liquidação do património do devedor, na falência (cfr. Luís Carvalho Fernandes, ob. cit., e também sobre a mesma matéria, Abílio de Almeida Morgado, 'Processos especiais de recuperação da empresa e de falência - Uma apreciação do novo regime', Centro de Estudos Fiscais - Estudos, XXX Aniversário, pp. 7 e ss.; Os Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência, Seminário organizado pelo Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Coimbra, 1993, Armindo Ribeiro Mendes, 'Processo de Recuperação de Empresas em Situação de Falência', Revista da Banca, nº 1, 1987, pp. 67 e ss.; J. Pinto Furtado, Perspectivas e Tendências do Moderno Direito da Falência, Revista da Banca, nº 11, 1989, pp. 78 e ss.; Helder Martins Leitão, Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, Anotado e Comentado, Porto, 1993 e Luís Carvalho Fernandes, Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado, Coimbra, 1994).
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4 - Acha-se o Código dividido em três títulos, respectivamente, Título I (Disposições introdutórias comuns), Título II (Regime subsequente do processo de recuperação) e Título III (Processo de Falência).
O Título II, em cujo âmbito se inscreve a norma cuja inconstitucionalidade vem questionada, comporta dois capítulos, Capítulo I
(Assembleia de credores e actos afins) e Capítulo II (Providências de recuperação), compreendendo-se neste último seis secções: Secção I (Princípios gerais), Secção II (Concordata), Secção III (Acordos de credores), Secção IV
(Reestruturação financeira), Secção V (Gestão controlada) e Secção VI (Isenção de emolumentos e benefícios fiscais).
Em conformidade com o disposto no artigo 5º, 'a empresa insolvente que se considere economicamente viável e julgue superável a deficiente situação financeira em que se encontra pode requerer em juízo a providência de recuperação adequada', sendo que, para este efeito, se considera empresa 'toda a organização dos factores de produção destinada ao exercício de qualquer actividade agrícola, comercial ou industrial ou de prestação de serviços' (artigo 2º) e empresa em situação de insolvência aquela que 'por carência de meios próprios e por falta de crédito, se encontre impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações' (artigo 3º).
Quando, na sequência da formulação de um pedido de providência de recuperação, depois de efectuadas as diligências e recolhidos os elementos necessários o juiz conclui pela verificação dos pressupostos legais do processo de recuperação, ordena o prosseguimento da acção, devendo no respectivo despacho: (a) designar o gestor judicial; (b) nomear a comissão de credores incumbida de defender os interesses de todos eles; (c) fixar o prazo de duração do período de estudo e de observação a que a empresa fica sujeita, nunca superior a 90 dias; (d) convocar imediatamente a assembleia de credores para o termo do período de estudo e observação, fixando dia, hora e local para o efeito
(artigos 25º e 28º).
Este despacho há-de ser proferido dentro dos sete dias subsequentes ao termo do prazo de vinte e um dias concedido ao juiz para, findo o período de oposição preliminar dos credores, examinar as provas oferecidas, realizar as diligências necessárias à averiguação dos pressupostos invocados e recolher os elementos que o habilitem a decidir sobre o prosseguimento da acção.
Acresce que, tanto o despacho de prosseguimento da acção como todos os seus actos preparatórios, têm carácter urgente, devendo o despacho ser lavrado e os actos realizados mesmo em férias judiciais, correndo de igual modo em férias os prazos correspondentes a todos esses actos (artigo 26º).
O gestor judicial que, uma vez nomeado, entra imediatamente em exercício, há-de apresentar um relatório destinado à assembleia de credores sete dias antes da data marcada para a sua realização (artigos 36º e 38º).
A data, hora e local da assembleia de credores são imediatamente comunicados por anúncio publicado no Diário da República, num dos jornais mais lidos na localidade e por editais afixados na porta da sede e do estabelecimento principal da empresa, devendo os credores que pretendam intervir na assembleia reclamar os seus créditos, se antes o não houverem feito, no prazo de 14 dias a contar da publicação do anúncio no Diário da República (artigos 43º e 44º).
Tanto os créditos reclamados como os que hajam sido relacionados pela empresa na petição inicial podem ser impugnados pelos credores nos 14 dias subsequentes ao termo do prazo fixado para as reclamações; dentro do mesmo prazo, pode a empresa impugnar os créditos reclamados (artigo 45º, nº 1).
Nos sete dias subsequentes no recebimento dos duplicados das reclamações e impugnações - que a secretaria distribuirá imediatamente pelo gestor judicial e pelos membros da comissão de credores - será sobre aquelas emitido parecer pela comissão de credores (artigo 45º, nº 2 e 3).
Emitido o parecer da comissão, compete ao gestor judicial, nos sete dias posteriores elaborar a relação provisória dos créditos reclamados ou relacionados pela empresa, apreciar os termos da sua justificação, bem como as impugnações de que tenham sido objecto, considerando-se por ele impugnados todos os que não tenham o seu parecer favorável (artigo 46º).
A assembleia de credores reúne sob a presidência do juiz e nela podem participar a empresa, o Ministério Público, o gestor judicial, os membros da comissão de credores e os credores cujos créditos, impugnados ou não, figurem na relação provisória de créditos elaborada pelo gestor judicial (artigo 47º).
A assembleia iniciará os seus trabalhos como assembleia provisória de credores, com a apreciação dos créditos constantes da relação provisória, para o efeito da sua aprovação ou rejeição (artigo 48º, nº 1).
Da deliberação da assembleia que aprove ou não o crédito pode qualquer interessado reclamar para o juiz, podendo fazê-lo oralmente, logo na própria assembleia, ou por escrito, no prazo de sete dias. O juiz decidirá as reclamações até ao dia designado para a reunião da assembleia definitiva de credores (artigo 49º).
Findos os trabalhos da assembleia provisória, designar--se-à logo o dia para a reunião da assembleia definitiva de credores que deve realizar-se entre o 15º e o 21º dias subsequentes, se não poder prosseguir imediatamente (artigo 50º).
Os trabalhos da assembleia podem ser suspensos uma ou mais vezes, fixando o juiz nova data para a continuação dentro dos 14 dias subsequentes à reunião suspensa (artigo 51º, nº 1).
Se não tiver sido ainda apresentado o relatório do gestor judicial ou não for possível deliberar sobre o meio de recuperação adequado, por falta de informação bastante, pode a assembleia prorrogar o período de observação da empresa, pelo tempo considerado necessário, nunca superior a 60 dias, caso em que o juiz suspende os trabalhos e fixa nova data para a sua continuação.
Se o representante do Estado ou das entidades públicas titulares de créditos privilegiados se abstiver de votar na assembleia de credores, por falta de prévia autorização do membro do Governo competente, e a abstenção impedir a tomada de deliberação, é a votação adiada e marcada nova reunião da assembleia para data que não exceda os 14 dias subsequentes, mas sempre sem prejuízo do disposto no artigo 53º, nº 1. Nas quarenta e oito horas seguintes à data do adiamento da votação o Ministério Público dará conhecimento da situação ao membro do Governo competente pelo meio mais expedito (podendo ser utilizado o telegrama ou a telecópia), sendo que a falta de comparência do representante do Estado ou das entidades públicas na nova reunião da assembleia, tal como a sua abstenção, equivale a concordância com a deliberação
(artigo
52º).
E, numa linha de continuidade da celeridade e urgência que o legislador pretendeu imprimir à tramitação do processo de recuperação da empresa, foi concedida ao artigo 53º, a seguinte formulação:
Artigo 53º
(Declaração imediata da falência)
1 - Se a assembleia de credores não deliberar dentro dos oito meses subsequentes ao despacho de prosseguimento da acção, caducam os efeitos do despacho, devendo ser declarada, ao mesmo tempo a falência da empresa.
2 - Se os credores que representam, pelo menos, 75% do valor dos créditos aprovados rejeitarem no processo, na assembleia ou fora dela, qualquer meio de recuperação da empresa, deve o juiz, sem necessidade de aguardar o prazo referido no número anterior, declarar a caducidade do despacho de prosseguimento da acção, decretando a falência da empresa.
No entendimento da recorrente, a norma do nº 1 não dispõe de legitimidade constitucional pois que contém afrontamento ao disposto nos artigos
12º, nº 2 e 24º da Constituição.
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5 - Contrariamente ao que sucedia no domínio da vigência do Decreto-Lei nº 177/86, segundo o qual o processo especial de recuperação da empresa ali previsto era aplicável tão somente 'às sociedades comerciais, aos comerciantes em nome individual, às sociedades civis sob forma comercial e às cooperativas' (artigo 2º), o Código actual prescreve que qualquer entidade qualificável como empresa nos termos do seu artigo 2º - 'toda a organização dos factores de produção destinada ao exercício de qualquer actividade agrícola, comercial ou industrial ou de prestação de serviços' - pode ser o objecto de providências de recuperação, independentemente da forma jurídica que, em concreto, assuma, e ressalvadas as restrições decorrentes do artigo 2º do Decreto-Lei nº 132/93 - 'os regimes de recuperação da empresa e de falência não são aplicáveis às pessoas colectivas públicas, nem prejudicam a legislação especial relativa às empresas públicas, às instituições de crédito ou financeiras e às sociedades seguradoras' (Sobre a caracterização conceitual de empresa para os efeitos previstos naquele diploma, cfr. Carlos Ferreira de Almeida 'O âmbito de aplicação dos processos de recuperação da empresa e de falência: pressupostos objectivos e subjectivos', Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXVI, 1995, pp. 383 e ss.).
Mas, e independentemente de se averiguar se podem ser submetidas a processo de recuperação realidades económicas organizadas sob forma empresarial, mas não dotadas de personalidade jurídica - questão que se deixa em aberto - porque na situação sub judice a empresa apresentante detém a natureza de uma sociedade comercial por quotas, os desenvolvimentos susbsequentes terão como parâmetro de referência as sociedades comerciais.
O Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 202/86, de 2 de Setembro, nos artigos 141º e 142º rege, respectivamente, sobre os casos de dissolução imediata e causas de dissolução por sentença ou deliberação da sociedade.
Em conformidade com o disposto no artigo 141º, nº 1, 'a sociedade dissolve-se nos casos previstos no contrato e ainda: (a) pelo decurso do prazo fixado no contrato; (b) por deliberação dos sócios; (c) pela realização completa do objecto contratual; (d) pela ilicitude superveniente do objecto contratual; (e) pela declaração de falência da sociedade'.
E, nos termos do artigo 142º, nº 1, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 280/87, de 8 de Julho, 'pode ser requerida a dissolução judicial da sociedade com fundamento em facto previsto na lei ou no contrato e ainda: (a) quando, por período superior a um ano, o número de sócios for inferior ao mínimo exigido por lei, excepto se um dos sócios for o Estado ou entidade a ele equiparada por lei para esse efeito; (b) quando a actividade que constitui o objecto contratual se torne de facto impossível; (c) quando a sociedade não tenha exercido qualquer actividade durante cinco anos consecutivos; (d) quando a sociedade exerça de facto uma actividade não compreendida no objecto contratual'.
Todas as situações objectivas previstas nestes preceitos apresentam-se assim como causas de dissolução imediata ou mediata da sociedade, comportando ou podendo comportar todas elas a cessação da sua 'existência'.
Qual o enfoque que este quadro jurídico-normativo, no qual se inscreve a declaração de falência como causa de dissolução imediata da sociedade, deve merecer à luz do texto constitucional?
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6 - O artigo 12º, nº 2, da Constituição reconhece expressamente
às pessoas colectivas capacidade de gozo de direitos e submissão aos deveres
'compatíveis com a sua natureza', superando assim uma concepção de direitos fundamentais limitada aos indivíduos.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pp. 122 a 124, a determinação de quais sejam esses direitos e deveres 'só pode resolver-se casuisticamente', sendo porém claro que 'o ser ou não ser compatível com a natureza das pessoas colectivas depende naturalmente da própria natureza de cada um dos direitos fundamentais, sendo incompatíveis aqueles direitos que não são concebíveis a não ser em conexão com as pessoas físicas, com os indivíduos'. Assim, não serão aplicáveis às pessoas colectivas, por exemplo, 'o direito à vida e à integridade pessoal, o direito de constituir família; já serão aplicáveis o direito de associação, a inviolabilidade de domicílio, o segredo de correspondência, o direito de propriedade'.
E, na jurisprudência uniforme e reiterada este Tribunal, não se teve por verificado qualquer impedimento constitucional à criminalização das pessoas colectivas ao nível do direito penal secundário (cfr. por todos, o acórdão nº 213/95, Diário da República, II série, de 26 de Junho de 1995).
Mas, tem-se por seguro, talqualmente sustentam aqueles autores que o direito à vida consagrado no artigo 24º da Constituição, segundo o qual
'(1) a vida humana é inviolável' e '(2) em caso algum haverá pena de morte' não
é, manifestamente, um direito compatível com a natureza das pessoas colectivas, com a natureza de uma sociedade comercial.
O direito à vida garantido naquele preceito apresenta-se como o primeiro dos direitos fundamentais constitucionalmente enunciados, significando primeiro e acima de tudo 'direito de não ser morto, de não ser privado da vida' da vida enquanto condição de existência e de realização da pessoa humana.
Não tem assim sentido a argumentação da recorrente quando pretende demonstrar que atentaria contra aqueles dispositivos constitucionais a norma do artigo 53º, nº 1, sob sindicância, ao determinar a caducidade da acção e a consequente declaração da falência, pois que os princípios ali consagrados são claramente inadequados como parâmetro aferidor da legitimidade constitucional das causas de dissolução das sociedades comerciais, nomeadamente, das ocasionadas pela declaração de falência no contexto processual em que se insere a norma posta em crise.
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7 - Mas, considerando-se que, em obediência ao princípio do pedido, este Tribunal só pode julgar sobre a inconstitucionalidade ou ilegalidade das normas cuja apreciação tenha sido requerida, podendo porém fazê-lo com fundamentação na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada, cabe indagar se a norma do artigo
53º, nº 1, não conflitua com qualquer outra disposição constitucional, que não os artigos 12º, nº 2 e 24º da Constituição.
Houve ensejo de se observar (cfr. supra, II, 4) que todo o processo de recuperação é animado por um princípio de celeridade e urgência bem evidenciado pelo regime atribuído ao despacho de prosseguimento da acção e dos actos que o precedem, como também pelo estabelecimento de prazos de curta duração (alguns de natureza peremptória) que obrigam todos os intervenientes no processo.
E compreende-se que o legislador haja adoptado semelhante orientação processual considerando ser ela a única que se compatibiliza com a
'filosofia' subjacente aos pedidos da providência de recuperação segundo a qual importa que a expectativa de recuperação financeira da devedora (ou a sua inviabilidade) seja definida num espaço de tempo relativamente limitado.
Com efeito, depois de ordenada a prossecução do processo, a empresa fica subordinada ao chamado período de estudo e observação no qual passam a desempenhar acção particularmente relevante o gestor judicial e a comissão de credores.
Findo esse período, com base no relatório do gestor judicial - no qual há-de ser apreciada a exactidão do balanço, a situação comercial, a evolução dos negócios do devedor e formulado um diagnóstico sobre a viabilidade económica da empresa - e nos acréscimos de informação correctiva ou modificativa da comissão de credores são chamadas a intervir as assembleias de credores
(provisória e definitiva), devendo esta última deliberar, dentro de oito meses subsequentes ao despacho de prosseguimento da acção, no sentido de aprovar ou rejeitar a recuperação da empresa.
No âmbito da liberdade de conformação legislativa que lhe assiste o autor do Código, atendendo às específicas finalidades do processo de recuperação e partindo de um juízo de prognose do razoável e do possível, considerou que o tempo assim concedido aos credores era o necessário e suficiente para a formulação de uma fundamentada deliberação.
E, sempre em conformidade com aquele desígnio de uma célere e urgente definição da viabilidade ou inviabilidade económica da empresa, determinou que a ausência de uma deliberação da assembleia de credores dentro daquele prazo, acarrateria a caducidade dos efeitos do despacho que ordenou o prosseguimento do processo, com a consequente declaração de falência da empresa.
Não se observa na norma em que se consubstanciou este regime qualquer vício de inconstitucionalidade, nomeadamente quanto ao que se prescreve no artigo 20º, nº 1 da Constituição, que rege sobre o acesso ao direito e aos tribunais, tutelando o direito de acção e o direito ao processo e proibindo prazos de caducidade exíguos do direito de acção (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional nº 148/87, Diário da República, II Série, de 5 de Agosto de
1987).
Como do mesmo modo não se verifica aqui transgressão ao princípio da proibição da 'indefesa' também compreendido naquele normativo constitucional, e que consiste na 'privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os interesses' (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 164).
A norma em causa insere-se num complexo articulado no qual se concedeu às empresas requerentes da providência de recuperação e a todos quantos a ela são chamados, as mais amplas possibilidades de defender os respectivos interesses e direitos, não se traduzindo nela restrição alguma de exercício de direitos constitucionalmente tutelados (cfr. a propósito de matéria distinta mas na qual é possível encontrar alguns pontos de similitude os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 99/88, 413/89, 451/89 e 370/91, Diário da República, II Série, de, respectivamente, 22 de Agosto de 1988, 15 e 21 de Setembro de 1989 e
2 de Abril de 1992).
Configura-se ali, tão somente, uma regra orientadora do processo de recuperação da empresa que acaba por se projectar no processo de falência no âmbito do plano de complementaridade que entre os dois pode existir.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar, no que à questão de constitucionalidade respeita, o acórdão recorrido.
Lisboa, 24 de Setembro de 1997 Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa