Imprimir acórdão
Processo n.º 540/03
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
A – Relatório
1 – A., melhor identificada nos autos, recorre para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição da
República Portuguesa e dos artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72.º, nº 1, alínea
b), ambos da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo ver apreciada a
constitucionalidade do artigo 405º do Código Civil, quando interpretado “no
sentido de que o princípio da liberdade contratual abrange a liberdade de as
partes optarem livremente, em alternativa, pelo modelo contratual típico de
arrendamento comercial ou pelo modelo contratual atípico comummente designado de
contrato de instalação de lojista em centro comercial”, por violação do
“princípio da confiança do cidadão, emanado do princípio do Estado de Direito
Democrático na sua vertente de Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da
Constituição da República Portuguesa”.
2 – Perscrutando os autos, deles resulta que:
2.1 – Em 14 de Março de 2000, B., melhor identificada nos autos, propôs contra
A., e C., acção com processo ordinário, pedindo que seja declarado extinto por
caducidade um contrato, que denomina de utilização de loja em centro comercial,
que vigorava entre a autora, como empresa gestora do centro comercial em que tal
loja se integrava, e a primeira ré, a quem a autora cedera a respectiva
utilização mediante retribuição, pedindo a condenação da dita primeira ré a
entregar-lhe a aludida loja, livre e desimpedida de pessoas e bens, e a
condenação de ambas as rés (sendo a segunda como fiadora da primeira), a
pagarem-lhe a importância de 1.440.000$00, acrescida de juros legais, a título
de indemnização pelos danos que lhe têm causado com a ocupação não titulada da
loja ou a título de enriquecimento sem causa, bem como a quantia mensal de
288.000$00 relativa à mesma ocupação desde Março de 2000 até à efectiva
desocupação e entrega da loja (acrescida de juros moratórios e eventual
actualização de valores), e a quantia mínima de 8.000$00 por cada dia de atraso
na devolução, a título de sanção pecuniária compulsória e todos os montantes
indemnizatórios, acrescidos de juros, que venham a ser liquidados em execução de
sentença.
2.2 – O Juiz do Tribunal Cível do Porto – 1ª Vara – conheceu, logo
no despacho saneador, do mérito da causa, tendo julgado a acção parcialmente
procedente, condenando as rés no pedido (salvo quanto à quantia de 1.440.000$00
que considerou já paga à autora e aos meses de Março a Maio de 2000 por já se
encontrarem depositados, e reduzindo a quantia de 288.000$00 a 287.471$00, não
condenando a segunda ré na sanção pecuniária compulsória, e, por fim, condenando
ambas no pagamento de despesas comuns e remuneração percentual desde Outubro de
1999 até efectiva desocupação, ao invés da condenação em montante a liquidar em
execução de sentença.
2.3 – Não se conformando com tal decisão, as rés interpuseram
recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 28 de Outubro
de 2002, confirmou a sentença recorrida.
2.4 – Novamente inconformadas, as rés interpuseram, para o Supremo
Tribunal de Justiça, recurso de revista, considerando nas suas alegações, quanto
“a [uma] violação da Constituição”, que:
«A qualificação jurídica dada aos contratos celebrados entre [a]os
lojistas e os promotores dos centros comerciais, como sendo estes contratos
atípicos, leva a uma solução injusta e abusiva.
O lojista recebe do promotor a loja “paredes vazias”, como é o caso em
apreço, instala nela o seu estabelecimento comercial, concluindo, à sua custa,
as obras necessárias para tal, fazendo a sua decoração, adquirindo o
equipamento, nomeadamente mobiliário, prateleiras, máquinas, mercadorias,
contratando pessoal e com fornecedores, obtendo as necessárias licenças
administrativas.
O referido lojista, se celebra com o promotor do centro comercial um
contrato do tipo do contrato que a 1ª ré celebrou, pelo prazo de seis anos e com
um[a] retribuição mensal fixa acordada e, findo o prazo inicial do contrato tem
que desfazer o estabelecimento comercial que naquele espaço instalara, sem
qualquer compensação e sem que tenha a possibilidade de se manter na loja por um
novo período contratual, com ou sem negociação prévia, porque o contrato
celebrado, apesar de ter os elementos tipo do contrato de arrendamento, não o é,
deixando o lojista, dono do estabelecimento comercial, sem espaço físico para o
exercício do seu comércio, certo é que, prevalecendo esta interpretação –
plasmada na sentença – violado é o princípio da confiança do cidadão, emanado do
Estado de Direito democrático, na sua vertente de estado de direito consagrado
no art. 2.º da Constituição da República Portuguesa.
Mas, o acórdão em revista viola ainda a Constituição porque interpreta e
aplica a norma do art. 405.º do C. Civil (única disposição legal em que se
baseou) no sentido de que não existem quaisquer limitações à liberdade
contratual, sendo as partes livres de “fixar o conteúdo dos seus contratos,
incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver, reunir no mesmo contrato regras
de dois ou mais negócios, total ou parcialmente tipificados, ou até de celebrar
contratos diferentes dos previstos no catálogo legal, conforme decorre do
disposto no artigo 405.º do Código Civil”.
(…)»
E concluíram a sua argumentação sustentando que:
“1.ª - As rés continuam a atender que no caso em apreço existem
verdadeiros e justificados fundamentos para se atribuir ao presente recurso
efeito meramente devolutivo, como se deixou expresso no requerimento de
interposição de recurso.
2.ª - Com efeito, “… discute-se nos presentes autos se o contrato
celebrado entre as partes é um contrato de arrendamento ou um contrato atípico,
que tem por objecto um estabelecimento comercial, este instalado num imóvel
propriedade da recorrida; atribuindo-se ao presente recurso efeito devolutivo,
as recorrentes terão que entregar de imediato à recorrida o imóvel onde está
instalado o seu estabelecimento comercial, livre e devoluto;
3.ª - e, como é notório, com a saída do estabelecimento comercial do
local onde actualmente está instalado as recorrentes perderão, natural e
inevitavelmente, clientela, insusceptível de avaliação pecuniária; por outro
lado, a suspensão dos efeitos do acórdão recorrido não trará à recorrida
qualquer prejuízo patrimonial uma vez que as recorrentes continuarão a
pagar-lhe, como sempre o têm feito, atempadamente, as rendas do imóvel e pelo
mesmo montante que a recorrida auferiria se o entregasse a outra entidade,
conforme a própria recorrida o confessou nos seus articulados.
4.ª - Os centros comerciais são edifícios que integram vários
estabelecimentos comerciais harmoniosamente distribuídos, autónomos entre si,
com donos próprios e com ramos de comércio diversificados.
5.ª - O aglomerado, harmonioso, formado pelo conjunto das lojas de um
centro comercial, apesar de potenciador de clientela, não é necessariamente um
espaço privilegiado; há neles lojas bem situadas e lojas mal situadas.
6.ª - O contrato celebrado entre o proprietário (o promotor ou
explorador das lojas) e um comerciante, através do qual aquele cede a este o
gozo temporário de uma loja (espaço físico) de um centro comercial, com paredes
vazias, em tosco, mediante o pagamento de uma retribuição convencionada, e na
qual o comerciante instala uma actividade comercial, qualifica-se juridicamente,
no actual ordenamento jurídico português, como um contrato típico de
arrendamento, de acordo com os critérios de qualificação dos contratos em
típicos e atípicos;
7.ª – critério esse a que a nossa jurisprudência adere com mais
frequência, o chamado critério da essentialia: a procura no contrato da
identificação dos elementos essenciais de cada espécie contratual.
8.ª - Também o critério (mais seguido pela doutrina) da causa – todo o
contrato nominado possui uma função económico-social própria que se reflecte
numa estrutura jurídica – nos levará à mesma qualificação do contrato em apreço;
a causa da locação está na concessão do gozo temporário de uma coisa mediante
retribuição (…).
9.ª - É de arrendamento para comércio o contrato celebrado entre a
autora e a 1ª ré, em Julho de 1993, através do qual aquela cedeu a esta o gozo
temporário (pelo prazo de seis anos) da loja (vazia) n.º ----- (situada) no piso
-- do centro comercial denominado D., na cidade de -------, mediante uma
retribuição acordada, para que a 1ª ré, por sua conta e risco, nela implantasse,
como implantou, um estabelecimento de venda de artigos de ---.
10.ª - O facto de a loja cedida se integrar num centro comercial,
composto por um conjunto de 60 lojas e outros espaços destinados a actividades
complementares, não confere ao contrato qualquer característica que lhe retire o
quid do contrato típico; se o centro comercial potencia a clientela da loja, não
afasta do contrato os elementos essenciais, específicos ou típicos do
arrendamento.
11.ª - A loja n.º ---- foi cedida pela autora à ré, em tosco, por um
determinado lapso de tempo, tendo como fim a actividade comercial, mediante uma
remuneração; a lei chama a estes contratos de arrendamento para comércio.
12.ª - O acórdão em revista, sufragando na íntegra os fundamentos da
sentença recorrida, classifica o contrato celebrado entre a autora e a ré,
consubstanciado no doc. de fls. 22 a 33 dos autos, como um contrato inominado ou
atípico, fundamentando-se no art. 405.º do C. Civil, fez uma errada
interpretação e aplicação da citada norma, porquanto,
13.ª - a liberdade negocial prevista no art. 405.º do C. Civil, permite
a livre opção de escolha de qualquer tipo negocial, com as limitações impostas
pela lei, ou seja com submissão às regras imperativas dos contratos tipos, sem
pôr em causa a função sócio-económica assumida pelo respectivo tipo contratual.
14.ª - A prevalecer a interpretação plasmada na sentença recorrida,
então a norma contida no art. 405.º do CC está ferida de inconstitucionalidade,
por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança do cidadão,
emanados do estado de Direito democrático na sua vertente de Estado de Direito,
consagrado no art. 2.º da CRP.
15.ª A sentença recorrida violou as normas dos arts. 405.º do Código
Civil, 64.º, 66.º e n.º 2 do art. 68.º do RAU.
16.ª - O acórdão em revista deve ser revogado, por errada interpretação
e aplicação da norma do art. 405.º e, em sua substituição, deve ser proferido
outro que julgue improcedente a acção, e na íntegra, por ser o contrato em
apreço (…) um típico contrato de arrendamento para comércio, sujeito ao regime
vinculístico e imperativo da renovação automática, só podendo caducar, se
denunciado ou resolvido nos casos e situações especialmente previstas na lei.”
2.5 – O Supremo Tribunal de Justiça julgou improcedente o recurso, confirmando a
decisão recorrida com base nos fundamentos que infra se transcrevem:
“(…) As questões restantes consistem, por um lado, em determinar se o
contrato em causa constitui um típico contrato de arrendamento para comércio,
sujeito às disposições de carácter vinculístico próprias desse contrato, ou
integra um contrato atípico de instalação de lojista em centro comercial, não
sujeito a tais disposições, e, por outro lado, em saber se se verifica
inconstitucionalidade do art. 405.º do Cód. Civil na interpretação feita pelo
acórdão recorrido.
Ora, essas questões mostram-se bem decididas no acórdão recorrido, -
como, aliás, já a primeira o estava na sentença da 1ª instância, pelo mesmo
acórdão confirmada -, o qual fez adequada qualificação jurídica do contrato em
causa e correcta interpretação e aplicação das disposições legais respeitantes
aos factos em apreço, com ele, por isso, se concordando inteiramente, quer
quanto à decisão nele tomada, quer quanto aos seus fundamentos, a que se adere e
para que se remete ao abrigo do disposto nos artigos 726.º e 713.º, referidos,
este no seu n.º 5.
Entende-se, com efeito, que a nova realidade traduzida nos centros
comerciais reveste tal complexidade que, pelas razões de forma exaustiva
expostas no acórdão recorrido e na sentença da 1ª instância, se torna
incompatível com o regime próprio dos contratos de arrendamento de prédios
urbanos para fins comerciais apesar da existência de elementos comuns, o que
determina a qualificação dos contratos de instalação de lojistas nos respectivos
espaços de tais centros, não por virtude da sua localização geográfica mas por
força da organização em que ficam integrados, e precisamente face à sua
característica de integração empresarial, inexistente nos contratos de
arrendamento, como contratos atípicos, por se tratar de relações jurídicas ainda
não legalmente regulamentadas de forma específica. É isto o que vem sido
entendido maioritariamente na doutrina e na jurisprudência, com destaque para os
acórdãos deste Supremo Tribunal de 12/7/94 (comentado por Antunes Varela, em
“Centros Comerciais”, 1995), 24/10/96 (CJ – Acs. do STJ, ano IV, tomo III, pg.
72), e 18/3/97 (CJ – Acs. do STJ, ano V, tomo II, pg. 26), do que resulta ter de
se concluir não serem aplicáveis a tais contratos as normas legais respeitantes
aos contratos de arrendamento, inclusive as que consagram a renovação automática
após o termo do período acordado para a sua vigência, mesmo contra a vontade do
senhorio (arts. 1054.º do Cód. Civil e 68.º, n.º 2, do R.A.U.), tanto mais que,
se torna necessário que a entidade que administra ou explora o centro e celebra
os contratos com os lojistas tenha liberdade de pôr rapidamente termo, no fim do
respectivo prazo de duração, a algum contrato cuja subsistência, nomeadamente
pela conduta do respectivo lojista ou pelo género de comércio a que se dedique,
possa afectar o interesse geral do todo orgânico que é o centro comercial, e
portanto o interesse da sobrevivência dos demais que se integram na vasta
organização que tal centro constitui.
Igualmente quanto à questão de inconstitucionalidade se concorda
inteiramente com o decidido no acórdão recorrido e na sua fundamentação, pois a
interpretação feita do art. 405.º do Cód. Civil em nada colide com os princípios
constitucionais da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos, na medida em
que estes, no exercício da faculdade de liberdade contratual naquele dispositivo
consagrada, podem livremente optar pelos modelos contratuais que entendam desde
que se mantenham dentro dos limites da lei, ficando por via disso titulares dos
direitos e sujeitos às obrigações do modelo, típico ou atípico, adoptado; e, na
hipótese dos autos, as rés limitaram-se a usar dessa faculdade, optando
expressamente pela celebração do contrato atípico conhecido por instalação de
lojista em centro comercial (…) e não pela celebração do contrato típico de
arrendamento comercial. Foi apenas esse o resultado da interpretação que o
acórdão fez daquele dispositivo, atendendo à vontade das partes declarada no
contrato, e aplicando-o aos factos assentes, sem que se detecte na interpretação
adoptada, que nitidamente obedece ao princípio da liberdade contratual, a mínima
inconstitucionalidade”.
2.6 – Notificadas da decisão, as rés/recorrentes, interpuserem
recurso para o Tribunal Constitucional, afirmando, no requerimento de
interposição, que:
«- o recurso é interposto ao abrigo do artigo 280.º, n.º 1, al. b) da
Constituição da República Portuguesa e dos artigos 70.º, n.º 1, al. b), e 72.º,
n.º 1, alínea b), ambos da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (…);
- pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 405.º
do Código Civil com a interpretação com que foi aplicada nas decisões de 1ª
instância, ainda assumida pelo Tribunal da Relação e seguida por este Supremo
Tribunal, interpretação esta, segundo a qual, não existem quaisquer limitações à
liberdade contratual, sendo as partes livres “de fixar o conteúdo dos seus
contratos, incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver, reunir no mesmo
contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente tipificados, ou
até de celebrar contratos diferentes dos previstos no catálogo legal, conforme
decorre do disposto no artigo 405.º do Código Civil”;
- Apelando aos ensinamentos do Professor Antunes Varela (Das Obrigações em
Geral – 2ª Edição – pág. 215), “Tal, porém, como a liberdade de contratar,
também a regra de livre fixação do conteúdo do contrato está sujeita a
limitações. Pode mesmo dizer-se que, uma vez destruídos os pressupostos
fundamentais em que assentava o liberalismo económico e afastada pelo
intervencionismo político-económico a relutância do Estado em se intrometer nas
relações do comércio privado, essas limitações se têm multiplicado de forma
acentuada nas modernas legislações, principalmente naqueles contratos (como o de
trabalho, o arrendamento, o seguro, os negócios bancários, os transportes, etc.)
em que afloram, com mais frequência ou maior intensidade, ponderosos interesses
colectivos ao lado de meros interesses particulares (…).
Entre os fins visados por semelhantes restrições destacam-se o de garantir
quanto possível a justiça real (não a simples justiça formal expressa pela
igualdade jurídica dos contraentes) nas relações entre as partes, acima da
desigualdade económica e da diversa condição social que muitas vezes as separa,
e o de preservar a integridade de certos valores essenciais à vida de relação,
como sejam a moral pública, os bons costumes, a confiança recíproca dos
contraentes, a segurança do comércio jurídico e a certeza do direito.
Todas estas restrições se podem considerar englobadas genericamente nas
palavras introdutórias do artigo 405º, dentro dos limites da lei”.
- tal interpretação viola o princípio da confiança do cidadão, emanado do
princípio do Estado de Direito democrático na sua vertente de Estado de direito,
consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa;
- a questão de inconstitucionalidade foi suscitada quer pelas alegações de
apelação dirigidas ao Tribunal da Relação do Porto quer nas alegações de revista
dirigidas a este Supremo Tribunal;
Nestes termos (…) requer (…) que se digne admitir o presente recurso (…) e o
julgamento da interpretação da norma do artigo 405.º do Código Civil
inconstitucional por violação do artigo 2.º da CRP».
2.7 – Após deferimento de reclamação de decisão de não conhecimento
do objecto do recurso (v. Acórdão nº 595/04), a Recorrente apresentou as suas
alegações, sintetizando-as nas seguintes conclusões:
“1ª - Vem o presente recurso interposto para este Venerando Tribunal ao abrigo
do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição da República
Portuguesa e dos artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 1, alínea b), da LTC,
pretendendo as recorrentes ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do
artigo 405º do Código Civil com a interpretação com que foi aplicada pelo
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.05.2003.
2ª - A questão de fundo cinge-se à querela da qualificação jurídica dos
contratos celebrados entre a entidade exploradora de um centro comercial e o
comerciante que nele se instala com vista à exploração de um estabelecimento
comercial num dos seus espaços físicos.
3ª - O acórdão recorrido (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.05.2003)
classificou o contrato celebrado entre a recorrente A. e a recorrida B. como
sendo um contrato atípico ou inominado.
4ª - Pelo contrário, entendem as recorrentes que o contrato celebrado entre o
proprietário (o promotor ou explorador das lojas) e um comerciante, através do
qual aquele cede a este o gozo temporário de uma loja (espaço físico) de um
centro comercial, com paredes vazias, em tosco, mediante o pagamento de uma
retribuição convencionada, e na qual o comerciante instala uma actividade
comercial, qualifica-se juridicamente, no actual ordenamento jurídico português,
como um contrato típico de arrendamento, de acordo com o critério de
qualificação dos contratos em típicos e atípicos.
5ª - Critério esse a que a nossa jurisprudência adere com mais frequência, o
chamado critério dos essentialia: a procura no contrato da identificação dos
elementos essenciais de cada espécie contratual.
6ª - Também o critério (mais seguido pela doutrina) da causa - todo o contrato
nominado possui uma função económico-social própria que se reflecte numa
estrutura jurídica - nos levará à mesma qualificação do contrato em apreço; a
causa da locação está na concessão do gozo temporário de uma coisa mediante
retribuição (cfr. Antunes Varela, in 'Das Obrigações em Geral').
7ª - Entendem as recorrentes que o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão
recorrido, interpretou o artigo 405º do Código Civil no sentido de que o
princípio da liberdade contratual abrange a liberdade de as partes optarem
livremente, em alternativa, pelo modelo contratual típico de arrendamento
comercial ou pelo modelo contratual atípico comummente designado de contrato de
instalação de lojista em centro comercial.
8ª - Desta forma o acórdão recorrido viola a Constituição, uma vez que
interpreta e aplica a norma do artigo 405º do Código Civil no sentido de que não
existem quaisquer limitações à liberdade contratual.
9ª - A liberdade negocial prevista no artigo 405º do Código Civil, permite a
livre opção de escolha de qualquer tipo contratual, com as limitações impostas
pela lei, nomeadamente com submissão às regras imperativas dos contratos tipos,
sem pôr em causa a função sócio-económica assumida pelo respectivo tipo
contratual.
10ª - O R.A.U. (Dec.-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro), regula o arrendamento para
a habitação, comércio, indústria e profissões liberais, sendo a ideia subjacente
a da protecção dos interesses dos arrendatários, parte entendida como mais fraca
nas relações locatícias.
11ª - Tendo em vista a protecção daqueles interesses, o legislador retirou à
livre estipulação das partes determinados aspectos do regime da relação
locatícia, criando muitas normas de carácter imperativo e assim limitando nessa
medida a liberdade contratual das partes.
12ª - Com efeito, confrontado com dois princípios fundamentais do Direito Civil
- o princípio da liberdade contratual e o principio da protecção da parte
contratualmente mais fraca - o legislador optou, claramente, pela limitação da
autonomia da vontade.
13ª - Ora, a celebração de um contrato denominado de 'atípico', com o conteúdo
do contrato celebrado entre a recorrida B. e a recorrente A., mais não significa
que defraudar o RAU e os interesses que lhe estão implícitos, relegando para o
plano secundário a protecção dos interesses dos arrendatários.
14ª - O acórdão recorrido, ao entender que as partes são livres de optar, em
alternativa, entre o esquema típico do contrato de arrendamento e o contrato
'atípico' designado de instalação de lojista em centro comercial, violou o
princípio da confiança do cidadão, emanado do princípio do Estado de Direito
democrático na sua vertente de Estado de direito consagrado no art. 2º da
Constituição da República Portuguesa.
15ª - Não se pode falar em contrato atípico quando se verificam todos os
elementos essenciais de um contrato típico só com a finalidade de subtrair o
contrato ao regime vinculístico do arrendamento!
16ª - Entendem as recorrentes que a doutrina que defende que o contrato em causa
é um contrato atípico tem valor apenas como chamada de atenção para o
legislador, no sentido de dever este regulamentar de forma particular este tipo
de contratos, adaptando a regulamentação do contrato de arrendamento comercial
às novas realidades do comércio jurídico,
17ª - cabendo ao intérprete apenas a função de interpretar e aplicar a lei
actual e não revogá-la ou alterá-la!
18ª - Em suma, a interpretação da norma contida no artigo 405º do Código Civil
plasmada no acórdão recorrido encontra-se ferida de inconstitucionalidade, por
violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança do cidadão,
emanados do Estado de Direito democrático na sua vertente de Estado de Direito,
consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa”.
2.8 – A Recorrida pugnou, nas suas contra-alegações, pela
improcedência do recurso.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
B – Fundamentação
3 – O objecto do recurso consiste em sindicar se o artigo 405º do
Código Civil quando interpretado “no sentido de que o princípio da liberdade
contratual abrange a liberdade de as partes optarem livremente, em alternativa,
pelo modelo contratual típico de arrendamento comercial ou pelo modelo
contratual atípico comummente designado de contrato de instalação de lojista em
centro comercial”, é inconstitucional por violação do “princípio da confiança do
cidadão, emanado do princípio do Estado de Direito Democrático, na sua vertente
de Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição da República
Portuguesa”.
3.1 – No artigo 405º do Código Civil, dispõe-se, sob a epígrafe
“Liberdade Contratual”, que:
“1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar
livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos
neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver.
2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou
mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei.”
3.2 – Por sua vez, o artigo 2º (Estado de direito democrático) da
Constituição da República Portuguesa, de onde a Recorrente extrai o “princípio
da confiança do cidadão”, tem a seguinte formulação:
“A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado
na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política
democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades
fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização
da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia
representativa.”
4 – O presente recurso de constitucionalidade tem subjacente, ao nível da
questão jurídica decidida pelas instâncias, um nódulo problemático que não tem
reunido um tratamento consensual, seja ao nível da dogmática juscivilística,
seja ao nível da jurisprudência que sobre ele já se pronunciou.
O problema da qualificação dos “contratos de instalação de lojistas
em centros comerciais” não é, ainda hoje, ultrapassado o “impacto” ou o “choque”
do confronto com o pedaço da realidade recente que o postulou, uma matéria
pacífica.
Uns defendem que a relação contratual estabelecida entre a entidade
gestora de um centro comercial e o(s) lojista(s) se enquadra no âmbito do tipo
legal do arrendamento para comércio (cf., na doutrina, inter alia, Galvão
Telles, «Contrato de utilização de espaços nos centros comerciais», in O
Direito, ano 123º, IV, 1991, pp. 521 e ss, e «Utilização de espaços nos
“shopping centers” - Parecer com a colaboração de Januário Gomes, in Colectânea
de Jurisprudência, ano XV, t. II, 1990, pp. 25 e ss.; Coutinho de Abreu, Da
empresarialidade – As empresas no direito, Coimbra, 1999, pp. 320 e ss., e Pinto
Furtado, Manual do arrendamento urbano, 3ª edição, Coimbra, 2001, pp. 259 e ss.,
e Os centros comerciais e o seu regime jurídico, 2ª edição, Coimbra, 1998, pp.
51 e ss.; v., também, ao nível da jurisprudência, os Acórdãos do Supremo
Tribunal de Justiça de 26 de Abril de 1984, de 26 de Novembro de 1992 e de 14 de
Outubro de 1997, publicados, respectivamente, na Revista de Legislação e de
Jurisprudência, ano 122º, pp. 59 e ss., no Boletim do Ministério da Justiça, nº
421, 1992, pp. 435 e ss., e na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça, ano V., t. III, pp. 77 e ss.).
Outros sustentam que os contratos de instalação de lojistas em
centro comercial se configuram como sendo legalmente atípicos, não estando, por
isso, sujeitos ao regime vinculístico da relação arrendatícia [cf., neste
sentido, Antunes Varela, “Anotação ao Acórdão do STJ de 26 de Abril de 1984”, in
Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 122º, pp. 62 e ss.; “Os centros
comerciais (Shopping centers)”, in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor A.
Ferrer Correia, vol. II, Coimbra, 1989, pp. 43 e ss.; Centros comerciais
(Shopping centers) – Natureza jurídica dos contratos de instalação dos lojistas,
Coimbra, 1995; Oliveira Ascenção, “Lojas em centros comerciais; integração
empresarial; forma – Anotação ao Acórdão do STJ de 24 de Março de 1992, in
Revista da Ordem dos Advogados, ano 54º, 1994, pp. 819 e ss.; Pedro Pais de
Vasconcelos, “Contratos de utilização de lojas em centros comerciais –
Qualificação e forma”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 56º, 1996, pp. 535
e ss.;, Pedro Malta da Silveira, A empresa nos centros comerciais e a
pluralidade de estabelecimentos – Os centros comerciais como realidade
juridicamente relevante, Coimbra, 1999, pp. 186 e ss.; e Rui Pinto Duarte,
Tipicidade e atipicidade dos contratos, Coimbra, 2000, pp. 165 e ss.; na
jurisprudência, vê-se reflectida esta posição, inter alia, nos acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça, de 26 de Abril de 1994, e de 1 de Fevereiro de
1995, publicados, respectivamente, na Colectânea de Jurisprudência, ano XIX, t.
II, pp. 59 e ss., e na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 128º, nºs
3858 e 3859, pp. 307 e ss.].
Numa linha matizante destas posições, há também quem defenda,
«constatando (...) uma deformação “por excesso” do tipo legal arrendamento para
o exercício de comércio», uma qualificação do «contrato de instalação de lojista
em centro comercial como “inominado impróprio” ou “atípico misto”» uma vez que
“os contraentes partem, é certo, da celebração de um contrato de cedência do
gozo de um espaço para o exercício de uma actividade comercial, mas este é
adaptado aos interesses e características específicas do centro comercial” –
neste sentido, cf. Ana Isabel da Costa Afonso, Os contratos de instalação de
lojistas em centros comerciais – Qualificação e regime jurídico, Porto, 2003,
pp. 231 e ss..
Na decisão recorrida prevaleceu a tese da inaplicabilidade das
normas do contrato de arrendamento para comércio aos contratos de instalação de
lojistas em centro comercial, tendo o tribunal justificado esse entendimento com
a consideração de que:
«a nova realidade traduzida nos centros comerciais reveste tal
complexidade que, pelas razões de forma exaustiva expostas no acórdão recorrido
e na sentença da 1ª instância, se torna incompatível com o regime próprio dos
contratos de arrendamento de prédios urbanos para fins comerciais apesar da
existência de elementos comuns, o que determina a qualificação dos contratos de
instalação de lojistas nos respectivos espaços de tais centros, não por virtude
da sua localização geográfica mas por força da organização em que ficam
integrados, e precisamente face à sua característica de integração empresarial,
inexistente nos contratos de arrendamento, como contratos atípicos, por se
tratar de relações jurídicas ainda não legalmente regulamentadas de forma
específica. É isto o que vem sido entendido maioritariamente na doutrina e na
jurisprudência, com destaque para os acórdãos deste Supremo Tribunal de 12/7/94
(comentado por Antunes Varela, em “Centros Comerciais”, 1995), 24/10/96 (CJ –
Acs. do STJ, ano IV, tomo III, pg. 72), e 18/3/97 (CJ – Acs. do STJ, ano V, tomo
II, pg. 26), do que resulta ter de se concluir não serem aplicáveis a tais
contratos as normas legais respeitantes aos contratos de arrendamento, inclusive
as que consagram a renovação automática após o termo do período acordado para a
sua vigência, mesmo contra a vontade do senhorio (arts. 1054º do Cód. Civil e
68º, nº 2, do R.A.U.), tanto mais que, se torna necessário que a entidade que
administra ou explora o centro e celebra os contratos com os lojistas tenha
liberdade de pôr rapidamente termo, no fim do respectivo prazo de duração, a
algum contrato cuja subsistência, nomeadamente pela conduta do respectivo
lojista ou pelo género de comércio a que se dedique, possa afectar o interesse
geral do todo orgânico que é o centro comercial, e portanto o interesse da
sobrevivência dos demais que se integram na vasta organização que tal centro
constitui».
E, com relevância para o presente recurso de constitucionalidade, o Supremo
Tribunal de Justiça acrescentou que “(...) a interpretação feita do art. 405º do
Cód. Civil em nada colide com os princípios constitucionais da segurança
jurídica e da confiança dos cidadãos, na medida em que estes, no exercício da
faculdade de liberdade contratual naquele dispositivo consagrada, podem
livremente optar pelos modelos contratuais que entendam desde que se mantenham
dentro dos limites da lei, ficando por via disso titulares dos direitos e
sujeitos às obrigações do modelo, típico ou atípico, adoptado; e, na hipótese
dos autos, as rés limitaram-se a usar dessa faculdade, optando expressamente
pela celebração do contrato atípico conhecido por instalação de lojista em
centro comercial (…) e não pela celebração do contrato típico de arrendamento
comercial. Foi apenas esse o resultado da interpretação que o acórdão fez
daquele dispositivo, atendendo à vontade das partes declarada no contrato, e
aplicando-o aos factos assentes, sem que se detecte na interpretação adoptada,
que nitidamente obedece ao princípio da liberdade contratual, a mínima
inconstitucionalidade”.
Vejamos, pois, se o critério normativo supra identificado padece da
invocada inconstitucionalidade.
4.1 – Começando por enquadrar e densificar o sentido jurídico-normativo
subjacente ao reconhecimento, corporizado na norma em crise, da “liberdade
contratual”, pode dizer-se que, qua tale, estamos perante a afirmação de um
princípio transpositivo – conformador, portanto, do universo juscivilista – que
constitui, em si, expressão de uma ineliminável e suprapositiva autonomia
privada.
De facto, perspectivado esse auto-nomos – que radica na
pressuposição axiológica da pessoa humana, enquanto centro de imputação de uma
inviolável dignidade ética –, como a essência de uma livre autodeterminação
pessoal (v. Konrad Hesse, Derecho constitucional y derecho privado, trad. de
Ignacio Gutiérrez Gutiérrez, Madrid, 1995, p. 77), desenvolvida comunitariamente
num “processo de ordenação que faculta a livre constituição e modelação de
relações jurídicas pelos sujeitos que nelas participam, que ficam obrigados à
observância dos efeitos vinculativos da regra por si criada” (cf. Sousa Ribeiro,
O problema do contrato. As cláusulas contratuais gerais e o princípio da
liberdade contratual, Coimbra, 1999, pp. 21 e ss.), não pode deixar de
sublinhar-se a dignidade constitucional da autonomia privada, que,
compreensivelmente, irradia a concreta manifestação desta como liberdade
contratual (sobre o princípio da liberdade contratual e a autonomia privada,
cf., entre outros, Pugliatti, «Autonomia privata», nº 5, Enciclopedia del
diritto; Carlos Alberto Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por
António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra, 2005, pp. 102 e ss.; Antunes
Varela, Das obrigações em geral, 8ª edição, pp. 240 e ss.; Capelo de Sousa,
Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, Coimbra, 2003, pp. 57 e ss.; v., também,
sobre a “relação” desse princípio com a ordem constitucional, Konrad Hesse,
Derecho constitucional y derecho privado, cit., pp. 75 e ss., esp.te 86-87;
Francisco Neto, «A autonomia privada como princípio fundamental da ordem
jurídica. Perspectivas estrutural e funcional», in Estudos em homenagem ao
Professor Doutor Ferrer Correia, cit., pp. 29 e ss.; e Ana Isabel da Costa
Afonso, Os contratos de instalação de lojistas em centros comerciais, cit., pp.
124 e ss.).
4.2 – Todavia, mesmo reconhecendo, na liberdade contratual, esse
fundamento nuclear constitucionalmente comprometido, não pode ignorar-se que não
nos encontramos perante um princípio absoluto e ilimitado. É, aliás, a própria
norma do Código Civil que começa por afirmar que “Dentro dos limites da lei, as
partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar
contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas
que lhes aprouver (itálico aditado)”.
São conhecidos os motivos subjacentes à imposição, ex lege, de um
conjunto de normas de carácter imperativo ou injuntivo que cerceiam, com uma
geometria variável, o princípio da liberdade de contratar e de livremente fixar
o conteúdo dos contratos. Desde razões de ordem pública, justificadas pela
segurança do tráfego jurídico, até ao reconhecimento de uma diferenciada posição
fáctica das partes, a justificar uma regulamentação de tutela dos interesses da
“parte mais fraca” – não raras vezes, com a finalidade de realizar
prático-normativamente a intenção material da liberdade contratual –, não é
difícil encontrar no direito dos contratos exemplos típicos da imposição de um
regime vinculístico, insusceptível de modelação ex voluntate dos particulares,
sendo essas derrogações – recte, limitações – da liberdade contratual acopladas
de um potencial sancionatório, determinante da invalidade de qualquer disposição
contratual que se lhes oponha, assim se inviabilizando uma “fraude à lei”
orientada a contornar as imposições legais.
4.3 – Considerou o Supremo Tribunal de Justiça que a qualificação do
contrato celebrado pelas partes aqui em juízo se conformava e compatibilizava
com os “limites da lei”, estando, assim, abrangido por legítimo exercício da
liberdade contratual.
Tal qualificação jurídica teve como base pressuponente a interpretação da
vontade das partes, tal como esta se encontra espelhada no texto contratual, daí
resultando, em consideração do conteúdo clausulado e atendendo à realidade
disciplinada, a qualificação do contrato como de “instalação de lojista em
centro comercial”.
Note-se, a esse propósito, que, na economia da decisão recorrida, a “liberdade
de opção” não vai configurada em termos puramente nominalísticos, de forma a que
o mesmo contrato pudesse ficar sujeito a dois regimes diferenciados, deixando de
existir qualquer marca de contraste ou critério distintivo susceptível de
recortar juridicamente as diferenças de um regime concretamente estabelecido.
O que aí se deixa em aberto é a possibilidade das partes concluírem um contrato
susceptível de ser qualificado como de arrendamento para comércio, ou um outro,
em função da realidade que nele fosse vertida e da vontade contratual que se
manifestasse – e, in casu, não pode ignorar-se que a qualificação operada
arranca precisamente desse pressuposto.
Pelo que, segundo o critério do Tribunal, se a relação jurídico-contratual
estabelecida entre as partes não pode caracterizar-se como uma relação
arrendatícia, e se, nessa medida, elas não se encontram vinculadas pelo regime
imperativo que rege os contratos de arrendamento, fica legitimada a
possibilidade de livre fixação do conteúdo do contrato. Por outras palavras,
dir-se-á que, segundo esse critério, o regime do arrendamento para comércio não
pode ter-se como o regime próprio – e, por isso, vinculativo, imperativo – da
instalação de lojistas em centros comerciais.
4.4 – Ora, este entendimento, onde se renova a qualificação jurídica
operada pelas instâncias, é, na perspectiva do recurso de constitucionalidade,
insindicável, não cabendo a este Tribunal qualquer pronúncia sobre o mérito
jurídico da decisão recorrida, na aplicação que aí vai feita ao caso concreto.
Não cabe, assim, neste recurso – que é de fiscalização normativa – a
produção de um qualquer juízo sobre a controvérsia de que se deu conta,
designadamente quanto à questão de saber se existe – ou deve existir – tal
liberdade de opção entre os referidos modelos contratuais, mas apenas – e só – a
sindicância do critério normativo mobilizado pelo Supremo Tribunal de Justiça
para decidir, aceitando-se como “um dado” o juízo aplicativo determinado pela
decisão recorrida, relativamente à qualificação do contrato celebrado entre as
partes, cumprindo apenas apurar se, em tais circunstâncias, a liberdade de as
partes poderem optar pela celebração de um contrato legalmente típico de
arrendamento para comércio ou pela conclusão de um contrato – apenas socialmente
típico, mas legalmente atípico ou inominado – de instalação de lojista em centro
comercial, estando essa opção legitimada, na perspectiva do Supremo, pela
liberdade contratual e ainda integrada “dentro dos limites da lei”, há-de ter-se
por violadora do princípio da protecção da confiança, materialmente ínsito na
concepção de um Estado de direito democrático.
4.5 – Perante este quadro, pode afirmar-se que o critério normativo
em crise não contraria o referido princípio da protecção da confiança do
cidadão.
Na verdade, desde logo, esse princípio não tem a virtualidade de
impor que seja recusada às partes a possibilidade de contratar em termos
distintos dos que a lei prevê num contrato típico, como o do arrendamento, e nos
casos em que se verificam as especificidades aludidas, e que, aliás,
justificaram o debate doutrinal e jurisprudencial referido.
Assim, bem vistas as coisas, o que a “liberdade de opção” assumida pelo Tribunal
a quo acaba por determinar não é mais do que o cumprimento do clausulado
pré-estabelecido e a vinculação a uma vontade manifestada por acordo, fazendo-se
prevalecer o que foi, em concreto, contratado.
De facto, reconhecendo-se às partes liberdade de opção e escolha contratuais, as
partes podiam – e deviam – contar, antes de mais, com o cumprimento das regras
por elas estabelecidas na modelação do conteúdo do contrato, podendo mesmo
sustentar-se, com ressalva das situações características de um autêntico venire
contra factum proprium, que uma alteração do sentido contratual, por
interposição de um regime legal imperativo, não deixa também de ir contra a
vontade expressa pelo contraente que dela poderá aproveitar, porquanto determina
o afastamento de uma norma à qual se deu prévio acordo.
Assim, admitindo-se, no âmbito de uma determinada relação jurídica,
a existência de uma esfera de liberdade contratual, não se compreende como o
resultado do seu exercício, em conformidade com uma vontade declarada, possa ser
tido como surpreendente e inesperado, para um determinado contraente.
Tal só sucederia, justamente, na hipótese inversa em que não se
reconhecesse a existência dessa margem de liberdade e se vinculassem as partes,
ex lege, a um específico tipo contratual. Aí sim, poderia discutir-se a sorte
das disposições do contrato que contendessem com o regime legal injuntivo.
Contudo, in casu, o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça foi,
ao invés, o de reconhecer às partes, atendendo à realidade disciplinada, a
liberdade de fixação do conteúdo do contrato. Pressuposta essa liberdade, hão-de
as partes conformar-se com o regime convencionado.
Nem se diga, por isso, na lógica do discurso formulado pela
Recorrente, que sempre haveria de tutelar-se a confiança do contraente que,
partindo da qualificação do contrato como de arrendamento, contaria com a
aplicação do regime nele estabelecido, e com as correspondentes limitações à
liberdade contratual para fixar um regime diverso.
Na verdade, como se afirmou, uma tal hipótese acabaria por radicar
no pressuposto de não se admitir a referida “liberdade de opção”. Mas não foi
esse o critério seguido pelo Tribunal.
Pelo que, impõe-se concluir que o artigo 405º do Código Civil,
quando interpretado no sentido de que o princípio da liberdade contratual
abrange a liberdade de as partes optarem livremente pelo modelo contratual
típico de arrendamento comercial ou pelo modelo contratual atípico comummente
designado de contrato de instalação de lojista em centro comercial” não é
inconstitucional por violação do “princípio da confiança do cidadão, emanado do
princípio do Estado de Direito Democrático na sua vertente de Estado de Direito,
consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa”.
C – Decisão
5 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide
negar provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 15 de Novembro de 2005
Benjamim Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos