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Processo n.º 757/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 241 e seguintes, não se tomou
conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A., pelos
seguintes fundamentos:
“[…]
5. No presente recurso, pretende o recorrente que o Tribunal Constitucional
aprecie a inconstitucionalidade de uma certa interpretação que considera ter
sido perfilhada na decisão recorrida quanto ao artigo 97°, n.° 4, do Código de
Processo Penal, conjugado com o artigo 213°, n.ºs 1 e 3, do mesmo Código (supra,
4.).
Sendo o recurso fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, para que o Tribunal Constitucional dele pudesse conhecer seria
necessário que o recorrente tivesse suscitado, durante o processo, a
inconstitucionalidade da norma que pretende que o Tribunal aprecie e que essa
norma tivesse sido aplicada na decisão recorrida, como ratio decidendi, não
obstante a acusação de inconstitucionalidade que lhe foi feita.
6. Ora, a norma que se pretende submeter à apreciação deste Tribunal não
constituiu o fundamento – ou, pelo menos, não constituiu o fundamento único e
decisivo – do julgamento proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão
recorrido (acórdão de 26 de Agosto de 2005).
Na verdade, no acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Lisboa começou por se
referir, em termos gerais, à exigência legal de fundamentação dos actos
decisórios, em cumprimento do princípio constitucional consagrado no artigo
205º, n.º 1, da Lei Fundamental. À luz dessas considerações, afirmou que o
despacho recorrido não padecia de qualquer irregularidade, por entender que o
mesmo se encontra fundamentado, na medida em que tal despacho acolhe as razões
de facto e de direito invocadas no despacho anterior. Por fim, apreciou a
questão suscitada no processo à luz do regime das nulidades constante do Código
de Processo Penal, concluindo que, face ao disposto nos artigos 118º, n.º 2, e
123º, n.º 1, desse Código, a eventual irregularidade do despacho então
recorrido, a existir, estaria sanada, por não ter sido arguida oportunamente
(cfr. texto do acórdão, na parte transcrita, supra, 3.).
A decisão de não provimento do recurso interposto pelo ora recorrente, proferida
pelo Tribunal da Relação, assentou assim num duplo fundamento: improcedência da
alegada falta de fundamentação do despacho da 1ª instância; sanação do vício
invocado pelo decurso do prazo previsto no artigo 123º, n.º 1, do Código de
Processo Penal, por falta de atempada arguição da eventual irregularidade
consistente na omissão de fundamentação.
Ou seja, embora se tenha pronunciado sobre a questão da eventual falta de
fundamentação do despacho que manteve a prisão preventiva (questão suscitada
pelo recorrente no recurso para a Relação) – não considerando procedentes as
razões por ele alegadas –, o Tribunal da Relação de Lisboa invocou outro
fundamento para o não provimento do recurso. Tendo em conta a razão de decidir
constante do acórdão do Tribunal da Relação, sempre seria portanto de negar
provimento ao recurso interposto pelo recorrente, uma vez que a alegada
irregularidade do despacho que manteve a prisão preventiva foi arguida
tardiamente, na motivação do recurso, devendo por isso considerar-se sanada.
Daqui resulta que qualquer que fosse a posição que o Tribunal Constitucional
viesse a adoptar sobre a conformidade constitucional da interpretação normativa
que constitui o objecto do presente recurso – reportada ao artigo 97º, n.º 4, do
Código de Processo Penal, em conjugação com o artigo 213º, n.º s 1 e 3, do mesmo
Código, nos termos explicitados pelo recorrente no requerimento de interposição
do recurso – nenhuma repercussão tal juízo teria na decisão recorrida.
Concretamente, mesmo que esse juízo viesse a ser no sentido da desconformidade
constitucional da apontada interpretação normativa, sempre a decisão recorrida
se manteria inalterada, pois que outro motivo existe, na perspectiva do tribunal
recorrido – que o Tribunal Constitucional agora não pode sindicar, pois que não
integra o objecto do presente recurso –, para que a alegada falta de
fundamentação do despacho da 1ª instância seja desatendida.
E esse motivo consiste na sanação do vício pelo decurso do prazo previsto no
artigo 123º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por falta de atempada arguição
da irregularidade consistente na omissão de fundamentação. Em suma, desta razão
de decidir em que se fundou o acórdão recorrido decorreria, em qualquer caso, a
confirmação pelo Tribunal da Relação de Lisboa do despacho do Juiz de Instrução
Criminal do Tribunal Central de Instrução Criminal.
Atenta a função instrumental reconhecida, em geral, ao recurso de
constitucionalidade, o Tribunal Constitucional só deve conhecer das questões de
constitucionalidade normativa quando a decisão a proferir possa influir
utilmente no julgamento da questão de mérito discutida no processo (cfr., a
título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal, n.º 257/92, Diário da República,
II, n.º 141, de 18 de Junho de 1993, p. 6448 ss, p. 6452, e n.º 440/94, Acórdãos
do Tribunal Constitucional, 28º vol., p. 319 ss, p. 326).
7. Nestes termos, não tendo sido aplicada como fundamento único e decisivo do
acórdão recorrido a norma questionada pelo recorrente no presente processo, e
considerando o carácter instrumental do recurso de constitucionalidade, não pode
o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do objecto do recurso.
[…].”.
2. Desta decisão reclamou A. para a conferência, nos termos do artigo
78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, aduzindo os seguintes
fundamentos (fls. 257 e seguinte):
“[…]
a) na decisão sumária em apreço, sustenta-se que qualquer que fosse a posição
que o Tribunal Constitucional viesse a adoptar sobre a conformidade
constitucional da interpretação normativa que constitui objecto do presente
recurso – reportada ao art. 97° n.º 4 do CPP, em conjugação com o art. 213° n.ºs
1 e 3 do mesmo Código, nos termos explicitados na alínea H) do requerimento de
interposição de recurso –, isso nenhuma repercussão teria na decisão recorrida,
que também se funda na falta atempada de arguição da irregularidade consistente
na omissão de fundamentação;
b) ressalvado o devido respeito, que muito é, discorda-se de tal entendimento,
pelas razões que já se expuseram na alínea L) do requerimento de interposição do
recurso;
c) é que a questão da intempestividade da arguição de uma eventual
irregularidade já está para além do núcleo fundamental e decisivo da decisão
material proferida – que pura e simplesmente entendeu não haver omissão de
fundamentação, apesar do mero despacho tabelar proferido –, nada impedindo que o
novo acórdão a proferir a tal propósito, na sequência de declaração de
inconstitucionalidade, venha a pronunciar-se num sentido diferente, na linha,
por exemplo, do acórdão do Tribunal da Relação de 21 de Agosto de 2003 que, por
facilidade, se juntou com o requerimento de interposição de recurso;
d) aí, nesse outro acórdão, entendeu-se que um despacho meramente tabelar como o
que está em causa nestes autos carecia de fundamentação, que não geraria
nulidade, mas mera irregularidade, a qual, contudo, podia e devia ser reparada
oficiosamente nos termos do art. 123° n.º 2 do CPP;
e) acresce que, reconhecida a inconstitucionalidade da interpretação normativa
em causa, não se vê como se poderia continuar a classificar o vício em apreço
como de mera irregularidade (poderá entender-se como meramente irregular um acto
que afronta a Constituição e a C.E.D.H.?!);
f) não se tenha qualquer dúvida – declarada a inconstitucionalidade, como não
podia deixar de ser, da interpretação normativa que admitiu o despacho tabelar
em apreço como suficientemente fundamentado, tudo ficaria em aberto no Tribunal
da Relação, não se acolhendo, portanto, a conclusão da decisão sumária.
[…].”.
Notificado da reclamação, o representante do Ministério Público
junto do Tribunal Constitucional veio dizer o seguinte (fls. 260):
“[…]
1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da
decisão reclamada, no que toca à evidente inutilidade na apreciação da questão
de constitucionalidade suscitada e que integra o objecto do recurso.”.
Cumpre apreciar.
II
3. Sustenta o reclamante, em síntese, que a apreciação do objecto do
recurso por si interposto para este Tribunal não é inútil, pois que o segundo
fundamento em que assentou a decisão recorrida – a sanação do vício invocado
pelo decurso do prazo previsto no artigo 123º, n.º 1, do Código de Processo
Penal, por falta de atempada arguição da eventual irregularidade consistente na
omissão de fundamentação – consubstancia uma questão que “já está para além do
núcleo fundamental e decisivo da decisão material proferida”, “nada impedindo
que o novo acórdão a proferir a tal propósito, na sequência de declaração de
inconstitucionalidade, venha a pronunciar-se num sentido diferente”.
A isto acresce, na perspectiva do reclamante, que “reconhecida a
inconstitucionalidade da interpretação normativa em causa, não se vê como se
poderia continuar a classificar o vício em apreço como de mera irregularidade”.
A argumentação do reclamante assenta, portanto, no pressuposto de
que o tribunal recorrido, caso fosse julgada inconstitucional a interpretação
normativa em que assentou o primeiro fundamento da decisão recorrida, proferiria
(ou deveria proferir) nova decisão desconsiderando (ou mesmo rejeitando) o
segundo fundamento da sua anterior decisão; atendendo a esta possibilidade de
desconsideração ou de rejeição desse segundo fundamento, não seria – na
perspectiva do reclamante – inútil conhecer do objecto do recurso por si
interposto para este Tribunal.
Não pode, porém, aceitar-se tal pressuposto e, portanto, tal
conclusão.
Por um lado, e como se disse na decisão sumária reclamada, porque a
interpretação normativa em que assentou o segundo fundamento da decisão
proferida pelo tribunal recorrido não constitui objecto do presente recurso.
Assim sendo, não pode este Tribunal sequer pronunciar-se sobre a questão da sua
compatibilidade com um eventual julgamento de inconstitucionalidade da
interpretação normativa agora em causa (e que respeita apenas ao primeiro
fundamento dessa decisão).
Por outro lado, porque as decisões judiciais não podem, em regra,
ser alteradas pelo próprio tribunal que as proferiu, salvo no caso de erros
materiais e outras situações que não estão agora evidentemente em causa (cfr.
artigos 666º e seguintes do Código de Processo Civil).
Significa isto que não pode este Tribunal partir do princípio de que o tribunal
recorrido alteraria a sua decisão também quanto ao segundo fundamento, caso a
sua decisão, no que respeita ao primeiro fundamento, fosse revogada por este
Tribunal. A menos que se considerasse que a decisão quanto ao segundo fundamento
é dependente da outra – o que não é logicamente o caso, na medida em que ela só
foi proferida na pressuposição da improcedência do primeiro fundamento –, nunca
existiria qualquer fundamento legal para admitir a possibilidade de tal
alteração, pelo que não pode este Tribunal proferir as suas decisões na base
desta possibilidade.
Não procedendo a argumentação do reclamante, nenhuma razão existe para revogar a
decisão sumária ora reclamada.
III
4. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente
reclamação, confirmando-se a decisão sumária que não tomou conhecimento do
objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte)
unidades de conta.
Lisboa, 10 de Novembro de 2005
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos