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Proc. nº 662/93 Plenário Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - 1 - O Procurador-Geral da República requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 281º, nº 1, alínea a), e nº 2, alínea e), da Constituição da República, a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma do artigo 27º, nº 4, do Regulamento do Serviço Público Telefónico, aprovado pelo Decreto-Lei nº 199/87, de 30 de Abril, que determina que 'desde que o assinante expressamente o indique, poderão as empresas operadoras reservar-lhe a confidencialidade do número de telefone, não o incluindo na lista telefónica nem o divulgando através dos seus serviços informativos, mediante o pagamento da taxa prevista em tarifário'. O pedido é assim fundamentado:
'1. Estabelece o nº 4 do artigo 27º do Regulamento do Serviço Público Telefónico vigente, sob a epígrafe 'Informação ao assinante':
'Desde que o assinante expressamente o indique, poderão as empresas operadoras reservar-lhe a confidencialidade do número de telefone, não o incluindo na lista telefónica nem o divulgando através dos serviços informativos, mediante o pagamento da taxa prevista em tarifário'.
Por sua vez, os preços dos serviços de telecomunicações, aprovados pelo Conselho de Administração de A.., constam de aviso publicado no Diário da República, III Série (Suplemento), nº 72, de 26 de Março de 1993 (págs. 5664
(18/21):
A. Aviso
Nos termos do nº 2 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 207/92, de 2 de Outubro, publicam-se os preços de serviços de telecomunicações, aprovados pelo conselho de administração, ao abrigo do nº 1 do mesmo artigo, para entrarem em vigor no dia 1 de Abril de 1993, podendo estas ser aplicadas à medida que as condições técnicas o permitam.
Estes preços incluem IVA à taxa de 16%.
A.., 11 de Março de 1993 - O Presidente do Conselho de Administração, B.
Taxa Periódica/Mensal
Código Valor Confidencialidade;
Acesso analógico (Linha de Rede) 3190 2200$
2. O artigo 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa estabelece, dentre o elenco dos 'direitos, liberdades e garantias pessoais', o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar.
Tal direito 'analisa-se principalmente em dois direitos menores: (a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrém (cfr. Código Civil, artigo 80º)' [Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1993, pág. 181].
O critério constitucional relevante para delimitar aquele direito pessoal fundamental deverá, por sua vez, segundo aqueles autores, 'arrancar dos conceitos de 'privacidade' (nº 1, in fine) e 'dignidade humana' (nº 2), de modo a definir-se um conceito de esfera privada de cada pessoa, culturalmente adequado à vida contemporânea'.
'O âmbito normativo do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada e familiar deverá delimitar-se, assim, com base num conceito de
'vida privada' que tenha em conta a referência civilizacional sob três aspectos:
(1) o respeito dos comportamentos; (2) o respeito do anonimato; (3) o respeito da vida em relação' [autores e ob. cit., pág. 182].
Um dos aspectos em que é susceptível de se desdobrar o direito ao anonimato ou 'à solidão', a permanecer 'ignorado e solitário', imune a intromissões não consentidas de terceiros na sua esfera pessoal - [cfr. François Rigaux, L'élaboration d'un 'right of privacy' par la jurisprudence américaine, in Revue Internationale de Droit Comparé, nº 4, 1980, págs. 709 e seguintes] - traduz-se precisamente no reconhecimento da faculdade de oposição á genérica divulgação e publicitação de elementos susceptíveis de potenciarem ingerências não pretendidas ou consentidas na esfera pessoal de cada indivíduo, incluindo o acesso por quaisquer terceiros ao respectivo domicílio.
Como refere Rita Amaral Cabral ['O Direito à Intimidade da Vida Privada', Universidade de Lisboa, Estudos em Memória do Prof. Doutor Paulo Cunha, pág. 399] o direito á reserva sobre a intimidade da vida privada tutela a vida íntima 'o que significa que a privacidade compreenderá, por exemplo, o passado da pessoa, os seus sentimentos, factos atinentes à sua saúde, a respectiva situação patrimonial e mesmo o seu domicílio que é, indiscutivelmente, o principal baluarte da vida privada'.
3. O preceito legal ora impugnado, ao condicionar o exercício do direito à privacidade, no que se refere ao acesso por terceiros ao domicílio do assinante do serviço telefónico, ao pagamento de uma taxa, cujo montante é fixado de modo unilateral e discricionário pelo Conselho de Administração da A., constitui restrição excessiva ao direito fundamental concedido pelo nº 1 do artigo 26º da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, tal restrição não se configura como necessária e adequada à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, pelo que viola o preceituado no artigo 18º, nº 2 da Lei Fundamental.
Configura-se, na realidade, como perfeitamente legítimo que um qualquer cidadão possa optar por privilegiar o seu interesse no 'anonimato', na reserva sobre a localização e acesso ao seu domicílio, relativamente ao interesse na facilitação da comunicação com quaisquer terceiros, potenciado pela ampla e tendencial publicitação decorrente da norma contida no citado nº 4 do artigo 27º.
4. Acresce que a devolução da fixação da referida 'taxa de confidencialidade' para mero 'tarifário' potencia um risco que, na presente situação, se consumou plenamente: o de, através da fixação de uma taxa exorbitante, se procurar desencorajar o efectivo exercício do direito à privacidade do assinante - criando-lhe um limite artificial, tendente a arbitrariamente fazer prevalecer interesses de ordem comercial e de publicidade subjacentes à divulgação das 'listas telefónicas'.
Na verdade, compreende-se mal que o preço do 'serviço' prestado ao assinante através de uma simples 'omissão' - das informações sobre tal matéria - seja mensalmente devido e superior ao próprio peço devido pela 'positiva' prestações-base do serviço telefónico, traduzida na assinatura mensal de acesso
à rede.
5. O respeito pelo direito à privacidade dos assinantes do serviço telefónico deverá traduzir-se num 'dever' (e não num 'poder') das empresas operadoras, não sendo legítimo condicionar o seu exercício ao pagamento de quaisquer 'taxas', já que simples 'omissão' em que se consubstancia a pretendida confidencialidade do domicílio não traduz a prestação de um serviço autónomo ao assinante.
É, deste modo, inconstitucional, por violação do preceituado nos artigos 26º, nº 1 e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa o segmento da norma questionada através do presente pedido de fiscalização abstracta'.
Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade da norma impugnada. Concluiu, então:
'A. O Direito à privacidade, exceptuando as suas decorrências vertidas em direitos autónomos, expressamente garantidos pela Constituição e pela lei, é uma posição jurídica activa variável em razão dos seus titulares e da fisiologia do caso concreto, sendo susceptível de sofrer restrições por parte do legislador quando entre em relação de tensão com outros direitos fundamentais como os de informação e de ser informado.
B. Algumas das suas vertentes como as da publicitação da localização de domicílio e acesso a número telefónico dos cidadãos assinantes do Serviço Telefónico Público não integram o núcleo da reserva do direito de intimidade, pelo facto de a sua exposição ao contacto exterior permitida pela natureza das coisas e pela própria lei justificar uma garantia legal menos espessa e, consequentemente, uma maior faculdade de limitação nos termos dos arts. 18º, nº
2 e 26º, nº 2 da CRP.
C. No caso em exame, o direito dos cidadãos em serem informados e o direito e interesse qualificado das empresas operadoras de um serviço público em informarem a colectividade torna adequado o condicionamento do interesse de resguardo dos cidadãos relativamente à publicitação do acesso ao seu domicílio, realizado pelo disposto no nº 4 do art. 27º do Decreto-Lei nº 199/87, de 30 de Abril.
D. O art. 27º, nº 4 do Decreto-Lei nº 199/87 cuja declaração de inconstitucionalidade é requerida, não determina a publicidade de todos os meios de acesso ao domicílio dos assinantes, mas apenas os referentes à divulgação do número telefónico, não procedendo os argumentos do requerente segundo os quais o preceito permitiria também a publicitação da localização do respectivo domicílio.
E. A opção dada pelo preceito sindicado ao assinante para, caso o pretenda, requerer a confidencialidade do respectivo número mediante o pagamento de uma taxa, conforma uma excepção ao princípio de transparência nas comunicações que no plano legal pauta a actividade dos operadores do SFP, excepção que se destina a facilitar o interesse do cidadão em garantir um eventual resguardo de aspectos da sua privacidade.
F. Como derrogação excepcional ao referido princípio, a pretensão do cidadão ao secretismo encontra-se legalmente sujeita a caução, revelando-se a medida legislativa que por esta via condiciona o exercício dessa vertente variável do direito de resguardo da privacidade, como necessária e adequada à salvaguarda de outros direitos fundamentais e de interesses públicos'.
2 - Na pendência deste processo, o Governo editou o Decreto-Lei nº
240/97, de 18 de Setembro. O artigo 1º deste Decreto-Lei aprova o Regulamento de Exploração do Serviço Fixo de Telefone, o artigo 2º fixa uma norma transitória fazendo aplicar o novo regime aos contratos antes celebrados, e o artigo 3º revoga o Decreto-Lei nº 199/87, de 30 de Abril.
II - A norma do artigo 27º, nº 4, do Regulamento do Serviço Público Telefónico, aprovado pelo Decreto-Lei nº 199/87, de 30 de Abril, foi revogada, na revogação total desse mesmo Decreto-Lei. A determinação que continha, 'desde que o assinante expressamente o indique, poderão as empresas operadoras reservar-lhe a confidencialidade do número de telefone, não o incluindo na lista telefónica nem o divulgando através dos seus serviços informativos, mediante o pagamento da taxa prevista em tarifário', já não encontra mesmo correspondência em lugar nenhum do novo Regulamento de Exploração do Serviço Fixo de Telefones.
Este Regulamento trata a matéria da confidencialidade do número de telefone num outro sentido: no artigo 16º, nº 3, alínea b), faz incluir no contrato a celebrar entre operador e assinante a 'indicação expressa da vontade do assinante sobre a inclusão ou não dos respectivos elementos pessoais nas listas telefónicas (...)' e, no artigo 38º, nº 3, determina expressamente que
'nos casos em que o assinante expressamente o indique, deve o operador reservar-lhe a confidencialidade do número de telefone, ou da morada, ou de ambos, não os incluindo em listas do serviço telefónico, nem o divulgando através dos correspondentes serviços informativos, sem qualquer encargo adicional'.
III - Uma questão prévia
1 - A norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada já não está, pois, em vigor. Isso não conduz a uma necessária conclusão de que o processo se tornou inútil por falta de interesse jurídico no conhecimento do pedido. A revogação, porque opera ex nunc, não tem a mesma dimensão da eficácia da declaração de inconstitucionalidade (ou de ilegalidade) com força obrigatória geral. Esta declaração produz, em regra, efeitos ex tunc, ou seja, é eficaz desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional. Se essa norma está revogada, com a declaração de inconstitucionalidade são também atingidos os efeitos que ela porventura produziu, durante o tempo em que vigorou. É por isso que a revogação, só por si não faz desaparecer o interesse jurídico no conhecimento do pedido (cfr. CRP, artigo 282º, nº 1, cfr., ainda, Pareceres da Comissão Constitucional nºs. 1/80 e 4/81 in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 11º, p. 27 e segs., e vol. 14º, p. 205 e segs., respectivamente; e os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 17/83, 12/88,
238/88, 319/89, 415/89, 73/90, 135/90, 465/91 e 763/93, publicados in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º vol., p. 93 e segs., e no Diário da República, I Série, de 30 de Janeiro de 1988, e II Série, de 21 de Dezembro de 1988, de 28 de Junho de 1989, de 15 de Setembro de 1989, de 19 de Julho de 1990, de 7 de Setembro de 1990, de 2 de Abril de 1992 e de 20 de Janeiro de 1994).
Mas o regime-regra da eficácia da declaração de inconstitucionalidade consagrado no artigo 282º, nº 1, da Constituição tem as excepções previstas nos números 3 e 4 do mesmo artigo, consistentes na ressalva dos casos julgados e nos efeitos de alcance mais restrito que o Tribunal Constitucional pode fixar quando o exigirem a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo. E se neste caso a norma em apreço está revogada, e se entende que a eficácia da eventual declaração de inconstitucionalidade não deve exceder os efeitos próprios da revogação, então deixa de haver interesse jurídico no conhecimento do pedido. É que uma declaração proferida nestas circunstâncias estaria totalmente destituída de eficácia [cf., neste sentido, os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs.
238/88, 415/89 e 465/91, cits., e 135/90, D.R., I Série, de 7 de Setembro de
1990; em sentido contrário, porém, cf., as declarações de voto dos Conselheiros Mário de Brito (acórdão nº 238/88) e Vital Moreira (acórdão nº 415/89) e, na doutrina, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo II, Constituição e Inconstitucionalidade, 3ª ed., 1991, págs. 504-505].
Importa então ponderar se o Tribunal Constitucional haveria, no caso em apreço, de proceder a uma limitação de efeitos de uma eventual declaração de inconstitucionalidade da norma revogada do artigo 27º, nº 4, do Regulamento do Serviço Público Telefónico, aprovado pelo Decreto-Lei nº 199/87, de 30 de Abril, de tal modo que essa declaração não pudesse exceder os efeitos da revogação.
2 - Como se afirmou no acórdão nº 308/93 deste Tribunal 'a limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade [e de ilegalidade] com força obrigatória geral constitui um meio de atenuar os riscos de incerteza e de insegurança advenientes dessa declaração. É que, ao declarar a inconstitucionalidade de uma norma com força obrigatória geral, o Tribunal Constitucional contribui para o reequilíbrio da ordem jurídica, mas, simultânea e quase paradoxalmente, cria um factor de incerteza e de insegurança (...). Assim, ao limitar os efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional deve fazer um juízo de proporcionalidade, cotejando o interesse na reafirmação da ordem jurídica - que a eficácia ex tunc da declaração plenamente potencia - com o interesse na eliminação do factor de incerteza e de insegurança - que a retroactividade, em princípio, acarreta. Nesta ponderação, o Tribunal Constitucional deve atender às exigências da segurança jurídica (entendida em sentido estrito), da equidade (como solução justa a aplicar aos efeitos concretamente já produzidos pela norma declarada inconstitucional) e do interesse público (...)'.
No caso sub judice, a eficácia desenvolvida por uma eventual declaração de inconstitucionalidade consistiria na afirmação incondicional da reserva da vida privada para o âmbito de vida regulado pela norma impugnada, do artigo 27º, nº 4, do Regulamento do Serviço Público Telefónico, aprovado pelo Decreto-Lei nº 199/87. Nesse sentido vão agora as novas determinações do legislador, a consagrar a confidencialidade do número de telefone, sem limites.
Uma outra dimensão da eficácia de uma eventual declaração de inconstitucionalidade se articula com essa e é a da recomposição da situação material dos assinantes onerados com a norma. Mas a eficácia ex tunc de uma eventual declaração de inconstitucionalidade atravessaria todos os anos económicos da empresa operadora do Serviço Público de Telefone, fazendo emergir novos cálculos sobre processos encerrados, no sentido de repor as taxas cobradas por determinação da norma do artigo 27º, nº 4.
Um fundamento de segurança jurídica emerge, pois, a fazer que o Tribunal aqui houvesse de proceder no sentido da limitação de efeitos de uma eventual declaração de inconstitucionalidade da norma impugnada.
A declaração não excederia, por esse modo, os efeitos produzidos pela revogação da norma do artigo 27º, nº 4, do Regulamento do Serviço Público Telefónico. Ora, estando essa norma revogada, não existe interesse no conhecimento do pedido.
IV - Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 27º, nº 4, do Regulamento do Serviço Público Telefónico, aprovado pelo Decreto-Lei nº 199/87, de 30 de Abril.
Lisboa, 22 de Outubro de 1997 Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Fernando Alves Correia Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Messias Bento Alberto Tavares da Costa Guilherme da Fonseca José de Sousa e Brito Armindo Ribeiro Mendes Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa