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Processo nº 64/05
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal
Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e são recorridos o Ministério
Público e B., foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão do
Tribunal da Relação de Coimbra, de 15 de Novembro de 2004.
O recorrente pretende a apreciação da norma contida no artigo 150º, nº 1, alínea
b), do Código de Processo Civil (por lapso, revelado pelo próprio teor da norma
reproduzida, é referido pelo recorrente o nº 2), interpretada e aplicada pela
decisão recorrida no sentido de que só seria permitida a prova [da apresentação
a juízo de acto processual, mediante remessa pelo correio, sob registo] através
da exibição do talão do registo postal.
2. Em 15 de Outubro de 2003, o Tribunal da Relação de Coimbra proferiu acórdão
que, por maioria, confirmou decisão do 1º Juízo Criminal da Comarca de Coimbra
que, em 24 de Abril de 2003, condenou o arguido e ora recorrente, pela prática
de um crime de coacção grave, previsto e punido pelos artigos 154º, nº 1 e 155º,
nº 1, alínea a), do Código Penal.
O arguido requereu a aclaração deste acórdão, tendo sido indeferido o pedido por
decisão de 10 de Dezembro de 2003 (fl. 202). Não se verificando actividade
processual posterior, baixaram os autos à primeira instância e foi elaborada a
conta final. Notificado para pagamento de custas da sua responsabilidade, veio
então o arguido arguir a invalidade da remessa do processo à conta, uma vez que
tinha sido por si interposto recurso do acórdão de 15 de Outubro de 2003 para o
Tribunal Constitucional. Juntou cópias de talão de registo de correio, de
relatório de envio de telecópia e do requerimento (fls. 216 e 219 e segs.).
3. Para apreciação da questão, os autos regressaram ao Tribunal da Relação de
Coimbra, onde foi proferido despacho, convidando o arguido a comprovar, em dez
dias, a entrega do requerimento de interposição de recurso naquele tribunal. É o
seguinte, para o que ora releva, o respectivo teor:
“(…) Como se verifica da recensão dos autos não deu entrada neste Tribunal, pelo
menos não está junto aos autos por ter entrado, qualquer requerimento de
interposição de recurso.
Para comprovar as suas afirmações, designadamente a de que entrou em 7/1/04,
neste Tribunal o recurso para o TC, juntou as fotocópias acima indicadas, porém,
a de fls. 223, dito relatório de envio, que para além de ser em grande parte
ilegível, em nada estabelece uma relação com este processo, e, muito menos que
comprove o envio do referenciado requerimento de interposição de recurso, pois
não se consegue ler donde veio, nem consta uma folha-face de telecópia, e, o
mesmo se diga da fotocópia de fls. 224, que não contém qualquer elemento
identificador do processo, da carta a que se refere ou do requerimento de
interposição de recurso.
Tudo se resume, afinal, em comprovar a entrada do dito requerimento de
interposição de recurso neste Tribunal.
Ora,
a certificação da entrega de peças processuais em juízo, vem regulada no artigo
150º do Código de Processo Civil.
Os documentos entregues para certificação não são originais e para além disso,
como se disse, não permitem estabelecer uma relação com a entrega alegada,
designadamente não obedecem aos requisitos do preceituado.
Nestes termos, notifique o requerente para em 10 dias comprovar a entrega do
requerimento de recurso neste Tribunal”.
4. O arguido requereu então que fosse ordenada a “pertinente, e subsequente,
tramitação processual”, tendo juntado documento comprovativo do registo postal e
organizado rol de testemunhas.
5. Proferido despacho pelo relator, indeferindo o requerido, o ora recorrente
requereu que sobre a questão recaísse acórdão, mediante requerimento no qual foi
suscitada a questão de constitucionalidade ora em apreço, nos seguintes termos:
“(…) Ora, ainda que nenhuma força probatória fosse de admitir a “tal talão”,
como refere o M.mo Juiz Desembargador Relator, isso, em homenagem ao velho
princípio ainda hoje dominante em matéria recursal, segundo o qual favorablia
amplianda, odiosa restringenda, deveria ter conduzido a que se ordenasse a
produção de prova testemunhal, como foi oportunamente requerido.
E ainda: o facto de o art. 150°/b) referir expressamente o talão do aviso
postal, não significa ex adverso do que se refere no (douto) despacho que isso
queira significar, contra todos os princípios vigentes no processo penal, em
sede de direito probatório e designadamente, o decorrente do art. 125° do CPP,
que só esse meio de prova possa ser admitido. Uma tal concepção, a prevalecer,
feriria de, morte não só o disposto no art. 32°, n° 1. como o art. 205°, ambos
da CRP e no art. 6° da Lei Orgânica, dos Tribunais, entre outros, da mesma,
densificações, ao nível do direito legislado, deste último comando do direito
supra legal (…)”.
6. O Tribunal da Relação de Coimbra, em conferência, confirmou a decisão do
relator, por acórdão datado de 15 de Novembro de 2004. Deste, importa reter o
seguinte:
“(…) Quanto ao envio por registo postal
O original, agora apresentado, do talão de registo não permite também fazer a
comprovação a que se refere 150º/l/b) do Código de Processo Civil.
Com efeito, se não se pode exigir que do talão conste o número do processo, o
certo é que dele tem de constar o nome do remetente, que tem de ser o de quem
remete a carta.
Se para identificação, no escritório de advogado, a empregada põe no remetente o
nome do cliente e não o nome de quem efectivamente remete, fica-se sem a
possibilidade de comprovar a afirmação do requerente de que por aquela carta se
remeteu do escritório de advogado a peça processual referida.
O sistema pode ser bondoso para a organização administrativa do escritório de
advogado, mas torna impossível comprovar a remessa porque a indicação do
remetente não é verdadeira.
Aliás no presente caso não vem somente a indicação do nome do cliente, mas a de
um Dr. … (do que se pode ler) que não corresponde ao nome do ilustre advogado
que assina a peça processual.
E o artigo 150º/b), citado, só permite o talão do registo postal, para prova da
expedição da carta, não se prevendo a prova testemunhal. O original do talão
agora junto, permitiria, se correctamente preenchido, reclamar junto dos
serviços dos correios, de modo a saber da entrega; porém, o que se poderia
apurar com este talão seria que um Dr. … (B.) remeteu para a 5ª secção Relação
Cª. R …, Palácio justiça, uma carta registada, e nunca, como se alega, que essa
carta fosse remetida do escritório do ilustre advogado signatário do
requerimento, como se alega”.
7. Interposto recurso para este Tribunal, foram produzidas alegações pelo
recorrente, que conclui pela seguinte forma:
“B1: A questão dos autos configura um ‘incidente’ no âmbito de um processo
penal, pelo que deve submeter-se às regras e aos princípios gerais deste ramo de
direito. Por conseguinte,
B2: devem V.as Ex.as, atentas as circunstâncias do caso concreto, declarar
materialmente inconstitucional a norma da alínea b) do n° 2 do artigo 150º do
Código de Processo Civil, aplicada, na hipótese, ao abrigo do disposto no art.
4°, do Código de Processo Penal
B3: quando interpretada e aplicada no sentido de que a prova da remessa de um
determinado ‘papel’, materializador da prática de um acto processual, num
processo penal, só poderia fazer-se mediante documento
B4: uma vez que uma tal interpretação viola ostensivamente o disposto nos
artigos 32°, n° 1, norma esta directamente aplicável, como decorre do artigo 18°
B5: e 208°, todos da Constituição da República,
B6: mas ainda os artigos 6° e 114°, da Lei Orgânica dos Tribunais, como
concretizadores que são do disposto no referido artigo 208° da Constituição
B7: o artigo 125°, do Código de Processo Penal, norma de natureza análoga
àquelas formalmente de matriz constitucional (art. 16°, n° 1, da Constituição)
B8: e ainda o disposto nos números 1 e 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados,
aprovado pela Lei n° 15/2005, de 16 de Janeiro
B9: normas estas também concretizadoras e densificadoras das imunidades e
prerrogativas constitucionalmente conferidas aos advogados”.
8. O Ministério Público contra-alegou, sustentando a inconstitucionalidade da
norma, nos seguintes termos:
“No caso dos autos, parece-nos evidente que o recorrente actuou com a diligência
devida, nomeadamente ao praticar o acto em causa, quer mediante o envio de
telecópia, quer através do recurso à via postal registada, não perecendo
admissível que – por razões puramente formais – se considerem precludidas ambas
as formas de praticar o acto.
Não abrangendo o presente recurso a apreciação da constitucionalidade das normas
que actualmente regem a prática de actos por fax, importa apenas verificar se a
interpretação normativa, atinente aos requisitos essenciais para o uso da via
postal registada, se conformam com as exigências, nomeadamente, do processo
equitativo.
E a resposta é, a nosso ver, claramente negativa. Desde logo, não resulta de
qualquer preceito legal ou regulamentar a exigência, formulada pelo tribunal ‘a
quo’, de expressa identificação, no talão de registo, do próprio mandatário que
precede à expedição, não se vendo minimamente por que razão a referenciação
nesse talão, não do advogado, mas da própria parte, dificultaria
substancialmente a identificação do processo a que o expediente se destinava, ou
impedia que – através de presunção natural – se concluísse que uma peça
processual enviada para o Tribunal para o provavelmente único – processo em que
era ‘parte’ o arguido teria sido proveniente do escritório do respectivo
defensor.
Não nos parece, por outro lado, compatível com a referida exigência do processo
equitativo a absoluta proscrição de quaisquer diligências probatórias, que visem
certificar – primeiro, perante os CTT – o destino e entrega do expediente postal
registado; e, em segundo lugar, apurar perante os próprios funcionários da
secretaria qual o destino que lhe teria – se objecto de efectiva entrega em
juízo – sido dado.
É que – perante a interpretação normativa realizada na Relação – os riscos da
remessa do expediente por via postal registada passariam, na prática, a recair
inteiramente sobre a parte ou sujeito processual que legitimamente se serve de
tal forma para praticar em juízo um acto processual – ficando sujeito a que o
Tribunal lhe impusesse, quanto ao preenchimento do talão de registo, ónus ou
exigências que não decorrem directa e expressamente da lei de processo e
vedando-lhe, na prática, o direito a produzir a demonstração de que ocorreu
efectivo extravio do expediente registado por razões que lhe não são
imputáveis”.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. O recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, como o
presente, tem uma feição sui generis, uma vez que é restrito à questão da
inconstitucionalidade suscitada, tal como dispõem os artigos 280º, nº 6, da
Constituição da República Portuguesa (CRP) e 71º, nº 1, da LTC. Esta
característica impõe que o Tribunal aceite a decisão sob recurso, enquanto tal,
cabendo-lhe tão-somente averiguar da conformidade constitucional da norma
aplicada. É, por isso, agora indiferente saber se a norma foi correctamente
aplicada pelo Tribunal recorrido.
Nos presentes autos de recurso, conforme decorre do relatório que antecede e
assinala o Ministério Público nas suas alegações, está apenas em causa a questão
de constitucionalidade relativa à apresentação a juízo, por correio registado,
de uma peça processual. Na verdade, embora o arguido haja alegado também a
apresentação da mesma peça por telecópia, tal matéria não integra o âmbito do
recurso, uma vez que, quanto à mesma, não foi, tal como exigido pelo artigo 72º,
nº 2, da LTC, suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa,
durante o processo.
O presente recurso visa, pois, a apreciação da conformidade constitucional da
interpretação que o Tribunal da Relação de Coimbra fez do artigo 150º, nº 1,
alínea b), do Código de Processo Civil. Considerou a decisão recorrida, quanto a
esta norma, que o artigo 150º, nº 1, alínea b), só permite o talão do registo
postal, para prova da expedição da carta, não se prevendo a prova testemunhal; e
que, para tal prova, o original do talão tem de estar correctamente preenchido,
ou seja, dele deve constar o nome de quem efectivamente remete a carta, isto é,
o do ilustre advogado que assina a peça processual, e não o nome do cliente.
Caso contrário, fica-se sem a possibilidade de comprovar a afirmação do
requerente de que por aquela carta se remeteu do escritório de advogado a peça
processual referida.
Porém, no que respeita a esta dimensão interpretativa (quanto ao modo de
preenchimento do talão de registo postal), verifica-se que a mesma não integra o
objecto do presente recurso. Constitui pressuposto do recurso previsto na alínea
b) do nº 1 do artigo 70º da LTC a suscitação, de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, da questão de
inconstitucionalidade cuja apreciação é pedida ao Tribunal Constitucional (cf.,
ainda, artigos 72º, nº 2, e 75º-A, nº 2, da LTC) e da análise dos autos decorre
que, quanto a esta dimensão interpretativa, não foi suscitada qualquer questão
de constitucionalidade pelo recorrente, tão-pouco sendo referida no requerimento
de interposição de recurso para este Tribunal e nas alegações aqui produzidas.
No caso presente, sendo embora identificáveis aquelas duas dimensões
interpretativas, é de concluir, pois, diferentemente do que resulta das
alegações do Ministério Público, que apenas a primeira pode ser apreciada no
âmbito do presente recurso de constitucionalidade.
2. O preceito em causa dispõe, na redacção em vigor à data da respectiva
aplicação (introduzida pelo Decreto-Lei nº 324/2003, de 27 de Dezembro, diploma
que entrou em vigor, no que agora releva, em 1 de Janeiro de 2004, conforme
disposto no seu artigo 16º), pela forma seguinte:
“Artigo 150º
(Apresentação a juízo dos actos processuais)
1 – Os actos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes são
apresentados a juízo por uma das seguintes formas:
a) (…)
b) Remessa pelo correio, sob registo, valendo como data da prática do acto
processual a da efectivação do respectivo registo postal;
(…)”.
Interpretando esta disposição, que aplicou num processo penal, o Tribunal
recorrido entendeu que a apresentação a juízo de actos processuais que devam ser
praticados por escrito, mediante remessa pelo correio, sob registo, só pode ser
comprovada através do talão do registo postal. Atendendo à pretensão do
recorrente, está, pois, em causa a questão de saber se a alínea b) do nº 1 do
artigo 150º do Código de Processo Civil assim interpretada viola o disposto nos
artigos 32º, nº 1, e 208º da CRP.
3. Dispõe o artigo 32º, nº 1, da CRP que o processo criminal assegura todas as
garantias de defesa, incluindo o recurso, o que “engloba indubitavelmente todos
os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua
posição e contrariar a acusação” (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1993, anotação ao artigo 32º,
ponto II.). Por outras palavras, nas do Acórdão do Tribunal Constitucional nº
445/97 (Diário da República, I Série, de 5 de Agosto de 1997), “naquelas
garantias, indubitavelmente, compreende-se um direito do arguido a poder
pronunciar-se sobre as questões que, directa ou indirectamente, se repercutem na
pretensão punitiva do Estado e da qual ele é alvo”.
Ora, como a norma cuja apreciação é pedida a este Tribunal tem a ver com a prova
da apresentação a juízo de determinado acto processual e não propriamente com a
prova relativa aos factos que integram o objecto do processo, não se pode
concluir pela violação do disposto no artigo 32º, nº 1, da CRP. Na verdade, em
causa está apenas a forma como pode ser comprovada aquela apresentação e,
consequentemente, a prática do acto processual correspondente, como pode ser
comprovada, pois, a apresentação a juízo de requerimento de interposição de
recurso, mediante remessa pelo correio, sob registo.
Atendendo ao objecto da prova – a apresentação a juízo de requerimento de
interposição de recurso, mediante remessa pelo correio, sob registo – e ao meio
de prova admitido – prova documental, já que se trata de talão de registo postal
– há que concluir, ainda, que a interpretação do tribunal recorrido não comporta
uma limitação arbitrária ou desproporcionada em matéria de produção de prova,
não havendo, consequentemente, violação da exigência constitucional de processo
equitativo (artigo 20º, nº 4, da CRP).
4. Atendendo ao teor do artigo 208º da CRP (Patrocínio forense) – a lei assegura
aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o
patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça – impõe-se
a conclusão de que o artigo 150º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil,
quando interpretado no sentido de que a apresentação a juízo de actos
processuais que devam ser praticados por escrito, mediante remessa pelo correio,
sob registo, só pode ser comprovada através do talão do registo postal, não
contende, de todo em todo, com esta norma constitucional.
Resta, assim, concluir que a norma em causa não viola o disposto nos artigos
32º, nº 1, e 208º da CRP.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a alínea b) do nº 1 do artigo 150º do Código
de Processo Civil, quando interpretada no sentido de que a apresentação a juízo
de actos processuais que devam ser praticados por escrito, mediante remessa pelo
correio, sob registo, só pode ser comprovada através do talão do registo postal;
e, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 20 (vinte) unidades de conta a taxa de
justiça.
Lisboa, 14 de Dezembro de 2005
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Artur Maurício