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Proc. nº 916/96
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes (Cons. Tavares da Costa)
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., médico, veio apresentar reclamação, nos termos do art.
76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional do despacho do Conselheiro relator no Supremo Tribunal Administrativo que não admitiu recurso de constitucionalidade por ele interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo proferido em 28 de Março de 1996.
O reclamante sintetizou do seguinte modo os fundamentos da sua reclamação:
' a) O S.T.A. aplicou efectivamente as normas do Regulamento dos Concursos de Habilitação ao grau de Chefe de Serviço Hospitalar julgado inconstitucional pelo Ac. Tribunal Constitucional nº 254/90, proc. nº 321/88, de 12/7/90.
b) E erradamente, por o ter feito contra o decidido pelo Tribunal Constitucional, na parte atinente à limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade às «situações constituídas», adoptando para esta ressalva um sentido que o T.C. não pode de modo algum ter querido.
c) E que o art. 282º, nº 4, do CRP não consente.
d) Mercê dessa errada interpretação, o STA acabou por praticamente inutilizar o principal conteúdo da declaração de inconstitucionalidade, que foi o de considerar que havia frontal e insanável colisão entre as normas do Regulamento e a Constituição da República.
e) E chancelou a continuação da produção de efeitos da norma inconstitucional por via da qual os recorrentes no recurso contencioso obtiveram o grau de chefe de serviço.
f) O STA interpretou e aplicou de forma excessiva a ressalva contida no Ac. do Tribunal Constitucional, e restringiu a declaração de inconstitucionalidade para além do que lhe era devido.
g) Com isso fez expandir a aplicação das normas inconstitucionalizadas.
h) O Acórdão violou as normas mencionadas no Ac. do Tribunal Constitucional, bem como (directamente) a regra do nº 4 do art. 282º da C.R.P..
i) E que inconstitucional é também o entendimento que o STA faz do art. 282º/4 da CRP e do Ac. do Tribunal Constitucional nº 254/90.
j) Esta última violação não pode aliás deixar de ser sindicável autonomamente, se necessário com base numa interpretação extensiva do art. 70º da Lei nº 28/82.
l) O presente recurso de constitucionalidade justifica-se pela impugnabilidade autónoma da decisão do STA, visto que aplicou realmente norma arguída de inconstitucional pelo reclamante durante o processo e já anteriormente declarada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, sem que se perfile sequer a questão da eventual intromissão deste na valoração da matéria de facto.
m) Mas não seria contra a letra da lei aceitar que o Tribunal Constitucional detenha competência (atribuída de modo ao menos implícito) para fiscalizar a deficiente execução, pelos Tribunais, das suas decisões, desde que observados os condicionalismos dos arts. 70º e segs. da Lei nº 28/82.' (a fls. 16 e 18 dos autos)
Submetida a reclamação à conferência no Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, foi mantido o despacho do relator. Pode ler-se nesse acórdão, proferido em 3 de Outubro de 1996:
' O despacho do relator, ora reclamado, que, como se disse, não admitiu o recurso interposto a fls. 174 do acórdão deste Tribunal Pleno de fls. 161 e segs., recurso interposto para o Tribunal Constitucional ao abrigo do art. 70º,
[nº 1], al. b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, fundamentou-se na consideração de que, no caso, este último Tribunal havia esgotado os seus poderes de cognição.
É que, ponderou-se no aludido despacho, não está em jogo a inconstitucionalidade das normas do regulamento do concurso em causa, uma vez que ela foi já apreciada - e de modo definitivo [-] por aquele Tribunal.
O que esteve em jogo no acórdão deste Tribunal Pleno foi o ponto de saber se a atribuição em concurso de habilitação de graus da carreira médica conferia ao[s] respectivo[s] interessados direitos por forma a poderem eles integrar uma situação adquirida, ressalvada pela declaração de inconstitucionalidade a seu tempo feita pelo Tribunal Constitucional.
Ora - ponderou-se no despacho reclamado - aquela noção de «situação adquirida»
é uma qualificação legal: para a sua determinação não se faz apelo, como, no caso, se não fez apelo no acórdão deste Tribunal Pleno, a qualquer norma ou princípio constitucional [...].
Pretende o ora reclamante que o aresto deste Tribunal Pleno, ao decidir como decidiu, aplicou normas do Regulamento dos Concursos de Habilitação ao grau de Chefe de Serviço Hospitalar, julgado inconstitucional pelo ac. do Tribunal Constitucional nº 254/90.
Trata-se, segundo se julga, de uma falsa questão.
As normas do citado Regulamento foram declaradas inconstitucionais - todas elas - por infracção ao disposto na al. b) do art. 229º da CRP (versão resultante da Lei nº 1/82, de 30 de Setembro).
Ora todas essas normas foram desaplicadas pelo citado aresto deste Tribunal Pleno em obediência à referida decisão com força obrigatória geral do Tribunal Constitucional [...].
Ora, o que ora reclamante pretende sindicar ao abrigo da alínea [b] do [nº 1] do art. 70º, da Lei nº 28/82, é o juízo que o acórdão deste Tribunal Pleno fez no caso, quanto às situações constituídas ao abrigo do citado regulamento.
Só que nesse âmbito nenhuma inconstitucionalidade de qualquer norma interveniente em tal juízo foi invocada pelo reclamante.
O que inviabiliza o recurso de constitucionalidade [...].' (a fls. 24 vº a 26)
2. Os autos subiram ao Tribunal Constitucional, depois de ter sido deferido um pedido de aclaração do anterior despacho no sentido de ser junta aos autos certidão das alegações do reclamante para o Pleno da Secção, do requerimento de interposição do recurso e do despacho reclamado.
3. No Tribunal Constitucional teve vista dos autos o Exmº. Procurador-Geral Adjunto, o qual preconizou, em parecer exarado a fls. 113 vº a
115, que fosse indeferida a reclamação. Nesse parecer considerou-se que o Tribunal Constitucional não dispunha de competência para sindicar o modo como os outros Tribunais executam as decisões daquele, mas que era 'perfeitamente viável a interposição de recurso de qualquer decisão judicial, proferida ulteriormente
à prolação de um juízo de declaração de inconstitucionalidade, se ele couber autonomamente na previsão de alguma das alíneas do nº 1 do art. 70º da Lei nº
28/82'. E afirmou-se depois:
' No caso dos autos, parece-nos ocorrer clara contradição entre o tipo de recurso de constitucionalidade interposto - fundado na alínea b) do nº 1 daquele art. 70º (fls. 110) - e a argumentação expendida pelo reclamante, segundo a qual o STA teria aplicado as normas regulamentares questionadas contra o decidido pelo Tribunal Constitucional no acórdão nº 254/90, na parte referente à limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade (cfr. designadamente fls. 12 e 13): é que tal perspectiva conduziria necessariamente à interposição do recurso fundado na alínea g) do nº 1 do referido art. 70º.
Consideramos, aliás, que a questão verdadeiramente debatida no recurso contencioso que originou a presente reclamação não tem a ver, nem com a
«aplicação» das normas regulamentares já declaradas inconstitucionais, embora sem eficácia retroactiva, nem com pretensas necessidades de aclaração ou
«interpretação» da declaração de inconstitucionalidade contida naquele acórdão, no que se refere à ressalva dos efeitos produzidos até à respectiva publicação.
Por um lado, é evidente que a decisão recorrida não aplicou as normas regulamentares já declaradas, com força obrigatória geral, inconstitucionais em colisão com o decidido no acórdão nº 254/90.
Por outro lado, parece-nos seguro que não carece de qualquer «interpretação» adicional a declaração de inconstitucionalidade contida no referido acórdão, no segmento relativo à ressalva dos efeitos produzidos - por a mesma não poder suscitar qualquer dúvida séria e relevante na sua aplicação: significa tal ressalva que a declaração de inconstitucionalidade não irá ter, no caso, eficácia «ex tunc», ficando resguardados os concretos efeitos jurídicos produzidos à sombra das normas regulamentares expurgadas do ordenamento jurídico.'
Com base neste juízo, o mesmo Magistrado do Ministério Público considerou não ser questionável que os recorrentes no recurso contencioso haviam adquirido efectivamente o grau de chefe de serviço à sombra das referidas normas regulamentares, não tendo sido postergada tal situação jurídica por efeito da declaração de inconstitucionalidade operada através do acórdão nº 254/90. E acrescenta-se no parecer:
' O que verdadeiramente está em litígio é saber em que medida é que tal situação jurídica fundada nas normas regulamentares declaradas inconstitucionais com efeitos «ex nunc», é susceptível de se repercutir na validade de um concurso de provimento, de que haviam [os recorrentes no recurso contencioso, ora reclamados] sido administrativamente excluídos, em momento anterior à prolação do acórdão que declarou a inconstitucionalidade das ditas normas regulamentares, mas atribuindo-lhes efeitos apenas para o futuro; ou seja, trata-se de determinar em que medida é que a titulariedade do grau de chefe de serviço, de que inquestionavelmente beneficiavam os recorrentes à data do concurso, é susceptível de conduzir ao «desapossamento do lugar» em que o ora reclamante havia sido provido, como consequência da anulação do concurso.
Ora, tal questão jurídica - traduzida em apurar perante uma «colisão de direitos», qual deverá, afinal, prevalecer - não passa seguramente pela interpretação e aplicação do decidido no acórdão nº 254/90, mas pela aplicação dos princípios e normas de direito infraconstitucional que regem sobre a validade e invalidade dos concursos de provimento e sobre a tutela das situações jurídicas através deles adquiridas.'
Na sequência deste entendimento da situação sub judicio, o Exmº. Representante do Ministério Público entende que não pode admitir-se um recurso fundado na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional porque o reclamante não teria identificado e questionado as normas de direito infraconstitucional afinal aplicadas pelo acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo.
4. Foram corridos os vistos legais.
O primitivo relator apresentou projecto de acórdão em que propunha que se indeferisse a presente reclamação, mas a sua posição não congregou os votos da maioria dos Juízes da Secção, pelo que ocorreu mudança de relator.
Passar-se-á, por isso, em seguida à apreciação do objecto da reclamação.
II
5. Importará descrever brevemente a situação que esteve na origem do recurso contencioso onde veio a ser proferido o acórdão que o ora reclamante pretendeu impugnar através de recurso de constitucionalidade, o qual, porém, não veio a ser admitido, dando origem à presente reclamação.
O reclamante candidatou-se à vaga do lugar de chefe de serviço de urologia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, aberta por concurso interno de provimento, nos termos do Regulamento aprovado pela Portaria nº 231/86, de 21 de Maio, conforme aviso publicado no Diário da República, II Série, de 16 de Setembro de 1988.
O júri do concurso deliberou, por unanimidade, em 20 de Março de 1989, admitir condicionalmente esse concorrente e outro e excluir os restantes seis candidatos, com base na interpretação do parecer da Procuradoria-Geral da República de 11 de Março de 1988 - proc. nº 93/87, publicado no citado jornal oficial, II Série, de 27 de Setembro de 1988 - homologado por despacho da Ministra da Saúde, de 14 de Julho de 1988, e da circular da Direcção-Geral dos Hospitais nº 14/89.
A lista provisória viria a converter-se em definitiva.
Em 12 de Maio de 1989 o júri do concurso classificou os candidatos admitidos, graduando o ora reclamante em primeiro lugar, o que foi homologado por despacho do Director-Geral dos Hospitais, de 6 de Julho seguinte.
Os seis candidatos excluídos recorreram hierarquicamente para o Ministro da Saúde que, no entanto, em 21 de Março de 1991, negou provimento ao recurso, confirmando o anterior despacho.
Inconformados, recorreram contenciosamente os interessados e, subsequentemente, o Supremo Tribunal Administrativo (STA), por acórdão de 11 de Março de 1993 da sua 1ª Secção, concedeu provimento ao recurso, anulando o despacho ministerial.
Para atingir esse desiderato, o STA teve presente que os seis candidatos excluídos tinham obtido, em 7 de Agosto de 1987, o grau de chefe de serviço hospitalar em concurso aberto pela Secretaria Regional dos Assuntos Sociais da Região Autónoma dos Açores, segundo aviso publicado no jornal oficial dessa Região Autónoma, II Série, de 28 de Maio de 1987, nos termos do
'Regulamento dos Concursos de Habilitação para o Grau de Chefe de Serviço Hospitalar da Carreira Médica Hospitalar e dos Concursos de Provimento dos Lugares de Chefe de Serviço Hospitalar da mesma Carreira dos Quadros dos Estabelecimentos Dependentes da Secretaria Regional dos Assuntos Sociais', publicado no Diário da República, II Série, de 4 de Março de 1987 (Suplemento).
A validade desse concurso suscitou, no entanto, dúvidas que originaram consulta à Procuradoria-Geral da República e o subsequente parecer já aludido, ministerialmente homologado, que, além do mais, entendeu padecer o Regulamento, por ter procedido à regulamentação do Decreto-Lei nº 310/82, de 3 de Agosto, na parte relativa aos concursos de habilitação e de provimento da carreira médica hospitalar, de inconstitucionalidade por ofensa dos artigos 229º, alínea b), segunda parte, e 234º da Constituição da República.
A requerimento do Procurador-Geral da República, o Tribunal Constitucional, pelo acórdão nº 254/90, publicado no Diário da República, I Série, de 6 de Setembro de 1990, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas desse Regulamento, aprovado por despacho conjunto de 3 de Fevereiro de 1987 (Diário da República, II Série, de 4 de Março de
1987), quer na sua versão originária quer na que resulta do despacho conjunto de 7 de Maio de 1987 (Diário citado, II Série, de 20 desse mês e ano), por violação do disposto no artigo 229º, b), da CR, na versão da Lei nº 1/82, de 30 de Setembro.
O Tribunal Constitucional decidiu, ainda, limitar os efeitos da inconstitucionalidade, por forma a salvaguardar as situações constituídas ao abrigo do Regulamento, até à data da publicação do acórdão no Diário da República, o que ocorreu em 6 de Setembro de 1990.
A esta luz, a 1ª Secção do STA considerou não poder deixar de ser incluída na salvaguarda dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade a situação subjectiva dos recorrentes cujo grau ou categoria de chefe de serviço fora obtido em 7 de Agosto de 1987, ao abrigo do Regulamento em causa, integrando o que o acórdão nº 254/90 considerou como 'situação constituída'.
E, assim ponderando, mais se observou que o despacho ministerial recorrido fez errada interpretação daquele acórdão, como tal decretando-se a sua anulação.
Foi, então, a vez de o ora reclamante - e, bem assim, o Ministro da Saúde - recorrerem para o Pleno da Secção que, no entanto, por acórdão de 28 de Março de 1996, negou provimento a ambos os recursos, seguindo o entendimento professado na anterior decisão, não obstante nas respectivas alegações o recorrente, ora reclamante, defender, nomeadamente, ter a Subsecção feito errada interpretação e aplicação do acórdão nº 254/90 e do preceito do artigo 268º, nº
4, da Constituição.
6. Impõe-se ver em que termos suscitou o ora reclamante as questões atinentes à aludida errada interpretação e aplicação do acórdão nº
254/90.
Nas alegações do recurso jurisdicional interposto para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo, o ora reclamante discordou da anulação do despacho da Ministra da Saúde que afastara do concurso os seis médicos que haviam obtido nos Açores o grau de chefe de serviço hospitalar em concurso de habilitação aberto pela respectiva Secretaria Regional dos Assuntos Sociais, afirmando o seguinte:
' Pois bem: é com base neste acórdão e nesta ressalva [refere-se ao acórdão do Tribunal Constitucional nº 254/90 e à limitação de efeitos aí operada] nele feita, que a Subsecção concede agora provimento ao recurso contencioso interposto pelos médicos graduados nos Açores da respectiva exclusão do concurso de provimento, com o argumento de que o Tribunal Constitucional, validando as normas regulamentares em causa, validou também o grau obtido em aplicação delas, e consequentemente o direito de os recorrentes se apresentarem ao concurso de provimento para a vaga de chefe de serviço de urologia do Hospital de Santa Maria [...].
3. Salvo o devido respeito, a decisão recorrida interpretou e aplicou erradamente ao caso o julgado do Tribunal Constitucional [...].
Ter o grau significa apenas e só ter sido aprovado num concurso de habilitação, ou seja, ter passado a primeira etapa das duas que são necessárias à consumação da verdadeira situação jurídica concreta constituída - a investidura em determinado lugar do quadro de uma instituição hospitalar com a categoria correspondente.
Ter o grau é ter pouco - é estar habilitado a candidatar-se ao concurso de provimento, e nada mais.
É algo que nada tem de palpável, substancial, de CONCRETO, como exige o acórdão [...].
O grau corresponde afinal ao que em Direito se designa por mera expectativa
[...].
A protecção do interesse do titular duma expectativa não é uma protecção sólida e logo actuante, mas uma protecção virtual, que «torna mais próxima e mais provável» a aquisição do direito [...].
Em primeiro lugar, a aquisição do grau de chefe de serviço não é susceptível de entrar na categoria das «situações concretas que se tenham contituído à sombra daquele bloco regulamentar» [...].
O que deverá então entende-se por situações concretas constituídas à sombra de tais normas?
A resposta não será possível sem fazer intervir o interesse ou valor jurídico que determinou o Tribunal Constitucional a fazer a ressalva daquelas situações - a «segurança jurídica» (loc. cit.) [...].
Decididamente, nada inculca que tenha sido a situação de mera titularidade de um grau a preocupação que levou o T.C. a atenuar os efeitos da declaração de nulidade do regulamento.' (a fls. 87 a 91 dos autos)
Segundo a tese do ora reclamante nas mesmas alegações, o Tribunal Constitucional, ao operar a limitação de efeitos da inconstitucionalidade relativamente à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral,
'estaria preocupado - isso sim - com os médicos ao tempo da saída do Acórdão já colocados, por obra de subsequentes concursos de provimento [...]. Essas, as verdadeiras «situações concretas constituídas» ao abrigo das normas declaradas inconstitucionais - recorde-se que o regulamento censurado pelo T.C. abrangia não só os concursos de habilitação como também os de provimento (fls. 25)'. Por isso, seria para ele evidente que 'a inutilização de um grau obtido à sombra da norma inconstitucional é coisa que nada belisca a invocada segurança jurídica'.
E, analisando o mecanismo da limitação de efeitos da inconstitucionalidade regulado no art. 282º da Constituição, escreveu o ora reclamante na referida alegação:
' Assim, afora o caso da eliminação do efeito repristinatório de que trata o nº
1 [do art. 282º da Constituição] (que aqui não nos importa), e do poder de ampliação quanto à ressalva dos casos julgados a que alude o nº 2, os poderes
«normativos» que o nº 4 confere ao T.C. consistem em afastar a produção de efeitos «ex tunc» da declaração de nulidade, fazendo-a coincidir com o momento da declaração de inconstitucionalidade, ou o da data da publicação do acórdão no DR (outros exemplos de limitação de efeitos retroactivos são dificilmente configuráveis) [...].'
A partir deste entendimento concluiu o reclamante:
' O que o T.C. decidiu foi apenas que, por razões de alegada segurança jurídica, não iriam ser afectadas, não iriam ser «mexidas», situações criadas à sombra do regulamento inconstitucional.
Esse o verdadeiro sentido duma decisão de não retroacção, de contemporização com efeitos já constituídos, que não se consente vão ser inutilizados. O comando do acórdão do Tribunal Constitucional impõe passividade perante os factos passados; não legitima operações activas (e agressivas) de supressão de actos e seus efeitos e criação em sua substituição de outros actos e efeitos [...].
Interpretar doutra forma o Acórdão do T.C. é desvirtuar o que nele foi previsto unicamente como uma reserva, uma declaração limitativa da decisão propriamente dita, que foi a de proclamar a inconstitucionalidade do regulamento e a consequente nulidade das respectivas normas.
E que a reserva ou ressalva do nº 4 do art. 282º jamais pode ir ao ponto de inutilizar o principal conteúdo da sentença, e esse é o de que as normas do regulamento autonómico dos Açores estão em frontal e insanável colisão com a Constituição da República!!'
Nas mesmas alegações, o ora reclamante desenvolveu outras argumentações, de forma paralela, nomeadamente no puro plano do Direito Administrativo, debatendo se não se estaria perante uma situação de colisão de direitos subjectivos públicos.
7. No requerimento de interposição do recurso, o ora reclamante limitou-se a afirmar que pretendia 'recorrer para o Tribunal Constitucional do Acórdão de que foi notificado, com fundamento no disposto no art. 70º, [nº 1], al. b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (cfr., entre outras, a conclusão n) das alegações)' (esta conclusão n) refere que 'decidindo de outro modo, a subsecção fez errada interpretação e aplicação do Acórdão do Tribunal Constitucional, do preceito do art. 282º/4 da CRP e dos preceitos jurídicos atrás invocados').
O despacho de rejeição do recurso baseou-se na consideração de que o Tribunal Constitucional havia esgotado os seus poderes de cognição ao prolatar o acórdão nº 254/90 e que tinha sido posta ao Supremo Tribunal Administrativo uma questão de aplicação de direito infraconstitucional, sem implicações constitucionais, ou seja, 'a de saber se a atribuição em concurso de habilitação de graus da carreira médica conferia ao respectivo interessado direito por forma a qualificar tal como uma situação adquirida, ressalvada pela declaração de inconstitucionalidade a seu tempo feita pelo Tribunal Constitucional'. Tratar-se-ia de uma qualificação legal: nela não se fez apelo a qualquer norma ou princípio constitucional (despacho certificado a fls. 111 e vº dos presentes autos).
8. Afigura-se evidente que o recorrente, a par de outras linhas argumentativas, pôs à consideração do Pleno de Secção de Contencioso Administrativo uma determinada questão de inconstitucionalidade normativa. Sustentou ele que a Subsecção de Contencioso Administrativo, no acórdão recorrido, aplicara as normas do Regulamento açoreano dos Concursos de Habilitação e de Provimento, não obstante terem sido declaradas inconstitucionais, com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional, por ter erradamente interpretado a limitação de efeitos determinada ao abrigo do art. 282º, nº 4, da Constituição por este Tribunal.
Por outro lado, não parece susceptível de se pôr em causa que o acórdão recorrido aplicou as normas do referido Regulamento, considerando validamente obtido o grau de chefe de serviço hospitalar pelos seis concorrentes excluídos do concurso de provimento. E tal aplicação operou-se por força da limitação de efeitos da inconstitucionalidade declarada pelo Tribunal Constitucional no referido acórdão nº 254/90, tendo o Supremo Tribunal Administrativo interpretado em certo sentido essa limitação de efeitos.
Poder-se-á, assim, afirmar que estão verificados os pressupostos de admissibilidade deste recurso de constitucionalidade?
É o que passará a averiguar-se.
9. Para responder à questão posta, vale a pena atentar no modo como a Constituição regula a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, proferida pelo Tribunal Constitucional em processos de fiscalização abstracta sucessiva e estabelece o mecanismo de limitação de efeitos da inconstitucionalidade (arts. 281º e 282º).
De um modo geral, tem-se entendido que os acórdãos do Tribunal Constitucional que declaram, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade (ou, em certos casos, a ilegalidade) de certa norma, além de traduzirem o exercício de uma actividade jurisprudencial, revestem-se da natureza de uma fonte imediata de direito, embora não devam qualificar-se como leis.
No dizer de Oliveira Ascensão, 'a força obrigatória geral caracteriza a fonte de direito: significa que se criam ou revelam regras jurídicas'. E, como refere o mesmo civilista ainda, 'há, nos acórdãos com força obrigatória geral, a declaração abstracta do Direito que é' (' Os Acórdãos com força obrigatória geral do Tribunal Constitucional como fontes do Direito', in Nos Dez Anos da Constituição, ob. colectiva organizada por Jorge Miranda, Lisboa, 1986, págs.
251 e segs.). Gomes Canotilho e Vital Moreira, ao caracterizarem o conceito de força obrigatória geral que qualifica as declarações de inconstitucionalidade proferidas pelo Tribunal Constitucional, no domínio de fiscalização abstracta de constitucionalidade, consideram necessários dois elementos para a densificação desse conceito:
'(1) Vinculação de todos os órgãos constitucionais, de todos os tribunais e de todas as autoridades administrativas pelas sentenças do TC declarativas de inconstitucionalidade ou ilegalidade (efeito de vinculação); (2) força de lei das decisões de declaração de inconstitucionalidade (ou de ilegalidade), o que implica o alargamento da obrigatoriedade das sentenças a todas as pessoas físicas e jurídicas (e não apenas aos poderes públicos) juridicamente afectadas, nos seus direitos ou obrigações, pela norma declarada inconstitucional (ou ilegal)' (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, págs. 1033-1034)
Embora esses acórdãos que contêm as declarações de inconstitucionalidade não se confundam com as leis, nem tenham a mesma natureza, a verdade é que 'são semelhantes às leis quanto a alguns efeitos', embora não possam ser objecto de um pedido de declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, nem possam ser revogados ou alterados pelo próprio Tribunal Constitucional (falta a auto-revisibilidade que caracteriza a actividade legislativa). Eles operam a declaração de nulidade de normas jurídicas, o que implica que, por vezes e sem rigor, se fale de 'legislação negativa' a seu propósito.
E quando, nos termos do nº 4 do art. 282º da Constituição, o próprio Tribunal Constitucional opera uma limitação de efeitos da inconstitucionalidade, esse órgão manipula 'com certa amplitude' os efeitos das sentenças, no exercício de uma possibilidade, conferida pela Constituição, 'de exercer poderes tendencialmente normativos, embora vinculados aos pressupostos objectivos constitucionalmente fixados (segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo)' (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág.
1042; cfr.Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 2ª ed., revista e actualizada, Coimbra, 1992, págs. 27-28, 59 e segs.).
10. Face ao que fica afirmado, pode compreender-se facilmente que os órgãos de fiscalização da constitucionalidade (a Comissão Constitucional, primeiro; o Tribunal Constitucional após 1983) tenham sido confrontados com recursos de constitucionalidade, no domínio da fiscalização concreta, em que se pôs a questão de saber se os outros tribunais tinham aplicado de forma correcta as declarações de inconstitucionalidade ou até as limitações de efeitos determinados pelo Tribunal Constitucional.
Assim, no acórdão nº 415, a Comissão Constitucional deferiu a reclamação de um despacho do relator no Supremo Tribunal de Justiça que não admitira um recurso de constitucionalidade interposto pelo Ministério Público em processo penal, invocando o magistrado recorrente que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça entendera e aceitara a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de um segmento do art. 439º do Código de Processo Penal de 1929 'em medida superior à declarada pelo Conselho de Revolução'. Considerou-se nesse acórdão que quando um tribunal recusa a aplicação de uma norma, parcialmente declarada inconstitucional, em segmento reputado não abrangido pela declaração de inconstitucionalidade, tem de abrir-se o recurso de constitucionalidade para se apreciar a correcção desse juízo referente ao excesso da área ou do âmbito da inconstitucionalidade (in Apêndice ao Diário da República, de 18 de Janeiro de 1983, págs. 59 e seguintes; esta solução foi criticada por Afonso Rodrigues Queiró em comentário publicado na Revista da Legislação e Jurisprudência, ano 115º, pág. 153). No subsequente acórdão que conheceu do recurso, a Comissão Constitucional veio a confirmar o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (cfr. acórdão nº 449, in Apêndice, de 23 de Agosto de 1983).
E idêntica orientação tem sido seguida pelo Tribunal Constitucional, com aplauso da doutrina (vejam-se os acórdãos nºs. 257/89, 214/90, 186/91,
318/93, entre muitos, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., tomo II, pág. 799, 16º vol., pág. 581, 19º vol., pág. 259, 25º vol., pág.
811; sobre esta jurisprudência, consultem-se Cardoso da Costa, ob. cit., pág.
29, nota 28; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, II, 3ª ed., Coimbra, 1995, pág. 445, nota 4; Miguel Galvão Telles, 'A Competência da Competência do Tribunal Constitucional', in Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional, ob. colectiva, Coimbra, 1995, págs. 115 e seguintes).
Merece especial destaque o caso do acórdão nº 214/90 (doutrina repetida pelos acórdãos nºs. 251/90 e 253/90, inéditos). Estava em causa um recurso interposto de decisão de concessão de um visto pelo Tribunal de Contas, não obstante os dispositivos legais que fundavam esse visto terem sido declarados inconstitucionais com força obrigatória geral pelo acórdão nº 267/88, publicado no Diário da República, I Série, de 21 de Dezembro de 1988. O Tribunal Constitucional não censurou a decisão recorrida, por entender que o Tribunal de Contas interpretara e aplicara correctamente a limitação de efeitos determinada nesse acórdão nº 267/88 (limitação dos efeitos da inconstitucionalidade, 'por forma a salvaguardar a validade dos actos de natureza financeira ou orçamental praticados até à data da publicação do presente acórdão ao abrigo das normas inconstitucionalizadas'). Deve referir-se que se tratava de um recurso interposto ao abrigo da norma correspondente à alínea g) do nº 1 da actual redacção do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, tendo o referido acórdão nº 214/90 admitido sem discussão a sua competência para conhecer do recurso.
Comentando este acórdão, refere Miguel Galvão Telles que o Tribunal Constitucional, ao aceitar verificar se o caso concreto se encontrava ou não abrangido pela ressalva da limitação de efeitos, havia reconhecido implicitamente - e, do ponto de vista do autor do comentário, correctamente -
'valor vinculativo (geral) à ressalva estabelecida ao abrigo do nº 4 do art.
282º, de tal modo que os tribunais, incluindo o próprio Tribunal Constitucional, ficarão vinculados a aplicar as normas, apesar de inconstitucionais, no domínio ressalvado' (estudo citado, ob. cit., pág. 116, nota 20).
11. A circunstância de, no caso concreto, o recorrente ter interposto recurso com base na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional não se reveste de qualquer relevância, ao contrário do sustentado pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, o qual - recorda-se - entende que o recurso teria eventual viabilidade se tivesse sido interposto ao abrigo da alínea g) do mesmo número, artigo e lei.
E não se reveste de qualquer relevância porque o ora reclamante suscitou a questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo (ao sustentar que o acórdão recorrido interpretara de forma demasiado ampla a limitação de efeitos constante do acórdão nº 254/90, considerando constitucional um regime que o ora reclamante entendia ser inconstitucional por força da declaração de inconstitucionalidade) e o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo aplicou as normas do Regulamento que o ora reclamante sustentara serem inconstitucionais.
12. Verificam-se, pois, os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto, pelo que a reclamação deve proceder.
13. Acrescentar-se-á uma última consideração.
Diferentemente do sustentado pelo acórdão recorrido, com o aplauso do Exmº. Procurador-Geral Adjunto, a questão suscitada, em sede de controlo concreto de constitucionalidade pelo ora reclamante, não releva de modo algum da interpretação e aplicação de normas infraconstitucionais sobre o regime administrativo dos concursos de provimento no âmbito da carreira médica hospitalar. Se assim fosse, o Tribunal Constitucional carecia de competência para sindicar o julgamento do Supremo Tribunal Administrativo (cfr. art. 71º, nº
1, da Lei do Tribunal Constitucional).
Verdadeiramente o que está em causa é o âmbito da 'área', 'domínio' ou
'extensão' da limitação de efeitos da inconstitucionalidade. Por isso, não é possível fazer uma prognose segura sobre a procedência ou improcedência da tese do recorrente quanto ao fundo, quando se está a apreciar os pressupostos do recurso de constitucionalidade, tanto mais que o Tribunal recorrido não fundamentou a rejeição do recurso na sua manifesta falta de fundamentos.
14. Importará, assim, verificar se o Tribunal recorrido restringiu a declaração de inconstitucionalidade, ressalvando situações jurídicas não contempladas pela limitação de efeitos constantes do acórdão nº
254/90.
III
15. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide o Tribunal Constitucional julgar procedente a presente reclamação, revogando o despacho reclamado e o acórdão que o manteve, devendo ser proferido novo despacho a admitir o recurso.
Lisboa, 10 de Julho de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa (vencido nos termos da declaração de voto junta)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei no sentido do indeferimento da reclamação.
O recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, implica uma identificação normativa, na perspectiva constitucional, relativa à validade dos concursos de provimento e à tutela das situações jurídicas através delas constituídas, o que não se acha feito.
Na verdade, não sendo caso de recurso com base na aplicação de norma anteriormente julgada inconstitucional por este Tribunal
[alínea g) daquele nº 1], a reacção do ora reclamante centra-se, nuclearmente, em discutir se a titularidade do grau de chefes de serviço que, à data do concurso, os recorrentes detinham, pode afectar o reclamante na titularidade do lugar em que foi provido, em consequência da anulação do concurso.
O problema não se coloca, obviamente, em sede de sindicância do decidido pelo tribunal a quo, para o que faleceria competência ao Tribunal Constitucional (nº 1 do artigo 71º da Lei nº 28/82). Mas já se põe, com toda a naturalidade, em relação à aplicação e à interpretação das normas e princípios constitucionais postos em crise pelo decidido, no plano infra-constitucional.
Ora, nesta perspectiva, entendi que, não passando o problema pela interpretação e aplicação do decidido no acórdão nº 254/90, não ocorreu oportuna identificação normativa de suposta inconstitucionalidade, inviabilizando, assim, a interposição de recurso com base na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
José Manuel Cardoso da Costa