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Proc. nº 696/96
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional :
I RELATÓRIO
1. Emerge o presente recurso de uns autos de expropriação por utilidade pública, em que é expropriante a A. e expropriada B.. Nestes, proferida decisão arbitral (v.fls. 167 - vol I) e adjudicadas as parcelas em causa à expropriante, procedeu-se à notificação nos termos do artigo 50º nº 4 do DL nº 438/91, de 9 de Novembro.
Vieram então as partes interpor recurso dessa decisão arbitral
(a A. a fls. 193 e segs. e a B. a fls. 211 de vol II), tendo o Tribunal de Pombal, após avaliação por peritos, proferido a sentença de fls. 504/507 (vol III), fixando em 2.604.000$000 a indemnização a pagar pela expropriante à expropriada.
Inconformada com tal valor apelou a expropriada para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, através do Acórdão de fls. 675/686, anulou os laudos dos peritos e actos posteriores, incluindo a sentença, determinando que se fizesse nova avaliação.
Deste Acórdão pretendeu recorrer a expropriante para o Supremo Tribunal de Justiça. Este alto Tribunal, porém seguindo parecer emitido oportunamente pelo Relator, decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso, por considerar excluído pelo CE o recurso para o Supremo Tribunal, nas situações em que está em causa apenas o valor indemnizatório.
Anteriormente, quando ouvida sobre o parecer do Relator, havia a expropriante atacado tal entendimento, juntando dois pareceres subscritos respectivamente pelos Professores Doutores Gomes Canotilho e Lebre de Freitas defendendo a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal quanto ao valor a indemnizar, face ao Código das Expropriações de 1991. Nessa peça (a fls.696 - vol IV) escreveu a expropriante :
' A interpretação que considera o procedimento de arbitragem em processo de expropriação como tendo carácter jurisdicional, atribuindo-lhe os efeitos de uma decisão de primeira instância, é inconstitucional por se fundar numa visão inconstitucional da natureza da arbitragem, por entender esta arbitragem' como cabendo na previsão do artigo 211º nº 2 da Constituição e por coarctarem o direito ao recurso para a instância jurisdicional máxima em processos de valor normalmente avultado e em que está em causa o direito fundamental de propriedade, tudo com ofensa dos artigos 20º, 62º, 205º nº 4 e 211º da Constituição.'
2. Assim surge o recurso da expropriante para este Tribunal, formulado em termos idênticos aos da passagem transcrita, acrescentando-se :
' A questão da inconstitucionalidade do entendimento como jurisdicional do procedimento dito de arbitragem perante a entidade expropriante, com a consequência de o DL nº 438/91 dever ser interpretado no sentido de negar o direito ao recurso de revista, foi levantada pela recorrente logo que pôde fazê-lo, isto é, após a notificação do douto despacho de fls. 693 do Exmº Senhor Conse-lheiro Relator que decidiu não ser admissível o recurso para este Tribunal.' (refere-se ao Supremo Tribunal de Justiça)
Admitindo o recurso produziu apenas a recorrente/expropriante alegações, rematadas pelas seguintes conclusões:
' 1 - O, aliás douto, acórdão em recurso atribui natureza jurisdicional à decisão de arbitragem em processo de expropriação por utilidade pública.
2 - Essa decisão não tem natureza jurisdicional revestindo a configuração de instrumento de composição não jurisdicional de conflitos, não podendo funcionar como alternativa aos meios de tutela jurisdicional ordinária, onde vigora plenamente o princípio da contrariedade.
3 - Já assim se compreenderá a harmonia da norma do artigo 37º do novo Código das Expropriações com o nosso sistema jurídico-constitucional ao permitir a plenitude de recurso de acordo com a regra geral das alçadas.
4 - Essa admissibilidade de recurso, em toda a plenitude, é a única consentânea com o princípio da interpretação das leis conforme à Constituição por forma a maximizar a protecção jurisdicional em matéria de direitos, liberdade e garantias.
5 - A, aliás douta, decisão recorrida, julgando em contrário, interpretou inconstitucionalmente as normas dos artigos 37º, 51º, nº 1 e 64º nº 2 do DL nº
438/91.'
Corridos que se mostram os pertinentes vistos, cumpre decidir.
II FUNDAMENTAÇÃO
3. A primeira questão que se coloca, prende-se com a exacta delimitação do objecto do recurso, determinando quais as normas que, operantemente, levaram o Supremo Tribunal de Justiça a não admitir o recurso intentado interpor pela expropriante.
Inexiste no Código das Expropriações de 1991, contrariamente ao que sucedia - como veremos - com o diploma anterior, uma norma que expressa e inequivocamente vede o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça. Assim, este alto
Tribunal para alcançar tal conclusão, desenvolve um processo argumentativo assente em diversas normas, em função do qual reafirma uma regra interpretativa, consagrada desde 30 de Maio de 1995 (o Acórdão aqui recorrido é de 27 de Junho de 1996) no Assento (Acórdão) nº 10/97, recentemente publicado no jornal oficial
[Diário da República - I Série - A de 15 de Maio de 1997; decorre o desfasamento temporal entre a prolação do Assento e a sua publicação da circunstância do processo em que este se originou (o recurso nº 85860) ter subido a este tribunal, onde originou o Acórdão nº 259/97 de 18 de Março de 1997 (decisão ainda inédita)].
Utilizando as palavras deste mesmo Assento, podemos formular a regra interpretativa em causa nos seguintes termos:
' O Código das Expropriações, aprovado pelo DL nº 438/91, de 9 de Novembro, consagra a não admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que tenha por objecto decisão sobre a fixação do valor da indemnização devida.'
Neste resultado interpretativo - que é o que em substância está em causa no presente recurso - convergem várias normas lidas e conjugadas de determinada forma. É este o momento indicado para transcrever, do Acórdão recorrido, as passagens em que esse resultado assenta.
Depois de referir o enquadramento legal anterior ao DL nº
438/91, afirma o Supremo Tribunal:
' Em matéria de recursos o novo Código dispõe:
- No artigo 37º:
'Na falta de acordo sobre o valor global da indemnização, será este fixado por arbitragem, com recurso para os tribunais, de harmonia com a regra geral das alçadas ! (Corresponde como se vê - ao primeiro inscrito do artigo 46º nº 1 do código de 1976, a que se amputou o segundo inscrito, onde se dizia não haverá, porém, recurso das decisões de Relação para o Supremo Tribunal de Justiça').
- No artigo 51º nº 1:
Da decisão arbitral cabe recurso para o Tribunal da Comarca da situação dos bens a expropriar ou da sua maior extensão, a interpor no prazo de 14 dias, nos termos dos artigos 56º e seguintes'.
- E no artigo 64º nº 2 :
'A sentença será notificada às partes, podendo dela ser interposto recurso com efeito meramente devolutivo para o Tribunal da Relação!
(Corresponde, quase literalmente, ao disposto no artigo 83º nº 4 do anterior Código).
Da omissão no transcrito artigo 37º da parte em que, no correspondente artigo
46º nº 1 do Código das Expropriações de 1976, expressamente se excluía o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça já se entendeu ter sido intencional essa supressão e ser, portanto, hoje admissível um tal recurso (v. acórdão deste Tribunal de 17 de Junho de 1993, na Colectânea de Jurisprudência - Acs do STJ, I, tomo 2, p.155 e vº).
Com todo o respeito com o entendimento que aí fez vencimento, temos razões para não o perfilhar.
Em primeiro lugar, seria estranho que o legislador tivesse querido admitir de novo um quarto grau de jurisdição em matéria de expropriações, sem deixar expressa essa intenção, em termos que não deixassem qualquer dúvida, quer no preâmbulo do novo diploma legal, quer nos preceitos (ou algum deles) que aí disciplinam a matéria dos recursos, sobretudo quando o novo código vinha substituir outro, onde houve um tal cuidado relativamente a posição diametralmente oposta.
A circunstância de o legislador não ter mantido no artigo 37º aquela segunda parte do nº 1 do artigo 46º do Código, de 1976 não tem, forçosamente, o sentido de alteração do regime anterior quanto aos graus de jurisdição.
Pode, perfeitamente, interpretar-se essa atitude do legislador pela pretensão de apresentar um novo articulado normativo, despojado de quanto lhe parecia desnecessário.
Com efeito, dos transcritos artigos 37º, 51º nº 1 e 64º nº 2 resulta que da decisão arbitral cabe recurso para o Tribunal de Comarca e da sentença deste pode haver recurso para o Tribunal da Relação, de harmonia com a regra geral das alçadas (v. artigos 678º do Código de Proc. Civil e 20º nº 1 da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais).
Se mais se não diz, não há razão para pretender que pode haver recurso do acórdão do Tribunal da Relação para O Supremo Tribunal de Justiça.
De resto, observe-se que o recurso da sentença do Juiz do Tribunal de Comarca para o Tribunal da Relação tem efeito meramente devolutivo (v. artigo 64º nº 2) o que é típico dos recursos de revista (v. artigo 723º do Cód. de Proc.Civil) quando não versem questões sobre o estado das pessoas, pois o recurso interposto da sentença do Juiz do Tribunal de Comarca tem, em regra, efeito suspensivo (v. artigo 692º nº 2 do Código de Proc.Civil).
A atribuição do efeito meramente devolutivo ao recurso interposto da sentença que, em processo de expropriação, apreciou o recurso da arbitragem só pode ter o sentido de se reconhecer tal decisão como de 2ª instância, sendo, portanto, aquele recurso o último possível.'
Constitui, assim, objecto do presente recurso a conjugação interpretativa dos artigos 37º, 51º nº 1 e 64º nº 2 do DL nº 438/91, enquanto conduz à conclusão de que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça está vedado nos processos de expropriação por utilidade pública, que tenham por objecto a questão do valor da indemnização (obviamente, quando o valor da acção possibilita, em termos de alçada, tal recurso).
4. A interpretação seguida pelo Supremo Tribunal, já constituiu comando expresso no anterior Código, aprovado pelo DL nº 844/76, de 11 de Dezembro (v. respectivamente os artigos 46º nº 1 e 83º nº 4 deste), que, já por si, mantinha regime idêntico ao do DL nº 71/76, de 27 de Janeiro (v.nº 7 do preâmbulo e artigo 43ºº nº 1 e 56º nº 1 e 80º nº 4, lidos conjugadamente).
O sistema de limitação dos graus de recurso em matéria de expropriações, tem como antecedente o regime que vigorou até 1953 (v. artigo 14º nº 3 da Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948 e artigos 23º e 31º § 2º do Regulamento sobre Expropriações, promulgado pelo Decreto nº 37758, de 22 de Fevereiro de 1950).
Não obstante, entre 1953 e 1976 vigorou a admissibilidade de recursos, relativamente ao quantitativo indemnizatório, até ao Supremo Tribunal de Justiça (v. artigos 1º, 2º e 8º da Lei nº 2063, de 3 de Junho de 1953 e, posteriormente, o artigo 41º nº 3 do Decreto nº 43587, de 8 de Abril de 1961, que remetia para o artigo 8º da Lei nº 2063).
Mesmo na vigência do regime decorrente do Código das Expropriações aqui em causa a possibilidade de acesso à jurisdição do Supremo não estava genericamente afastada. Como refere José Osvaldo Gomes (Expropriações por Utilidade Pública, Lisboa 1997. p.392):
' a inadmissibilidade dos recurso para o Supremo Tribunal de Justiça só respeitava aos acórdãos dos tribunais da relação relativos ao valor da indemnização e ao valor da reversão de bens expropriados proferidos pelo juiz da comarca em recurso da decisão dos árbitros.
Deste modo, e salvo se o valor da causa não o permitisse, era admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, entre outros, das decisões sobre :
- O incidente de habilitação (v. artigo 45º nº 1 do CE 76);
- O pedido de pagamento em prestações de indemnizações (v. artigo 53º nº 1 alíneas d) e e) do CE 76);
- O incidente da partilha da indemnização (v. artigo 45º nº 3 alínea d) do CE
76);
- A caducidade da declaração de utilidade pública (v. artigo 9º nº 2 do CE 76).'
Note-se que esta mesma questão foi objecto de pronunciamento por este Tribunal no Acórdão nº 279/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22º vol., 1992, p.955), onde se decidiu (embora num processo de reclamação e a propósito da exaustão dos recursos ordinários) pela não relevância constitucional do entendimento, seguido na decisão da Relação aí recorrida, segundo o qual numa situação não ligada à fixação do quantitativo indemnizatório, era necessário, para efeito de esgotamento dos recursos, nos termos do artigo 70º nº 2, da LTC, a interposição de recurso para o Supremo Tribunal, como condição de acesso ao Tribunal Constitucional (v. no mesmo sentido o Acórdão nº 535/92, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23º vol.,
1992, p.601).
Tenha-se presente, a este respeito, que o Supremo Tribunal de Justiça estabeleceu em 24 de Julho de 1979, através do Assento nº 7/79 (Diário da República I Série de 3/11/79 e BMJ 289, 138) doutrina no sentido de ser susceptível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos gerais, o acórdão da relação que em processo de expropriação por utilidade pública julgue sobre a forma de pagamento da indemnização fixada'.
5.Na decisão objecto do presente recurso está em causa uma interpretação, reportada ao Código das Expropriações de 1991, que na ausência de uma opção expressa do legislador, faz permanecer, em certo sentido , o trecho do Código anterior ('Não haverá, porém, recurso das decisões da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça') eliminado na lei vigente.
Trata-se, como é fácil de perceber, de uma questão processualmente controversa (vejam-se os votos de vencido formulados no já citdao Acórdão nº 10/97 do Supremo Tribunal de Justiça), mas que não perde, como se sublinha no Acórdão nº 259/97, esse carácter de mera controvérsia jurisprudencial despida de relevância constitucional e, 'não compete a este Tribunal (...) intervir nas 'contendas jurisprudenciais' (...) a não ser que resulte, da solução encontrada, uma dimensão normativa constitucionalmente parametrizável e, como tal, sujeita à sua apreciação.'
Tomando por base o Parecer junto pela recorrente, da autoria do Prof. Gomes Canotilho, 'ponto de apoio metódico pertinente' seria, 'neste caso, o princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição' (fls.
705- vol IV), significando este que, 'em caso de dúvidas interpretativas se opte pela alternativa que maximize a realização das finalidades constitucionais'
(conclusão 10 a fls. 707 - vol IV), maximização esta que decorreria da interpretação contrária à seguida na decisão recorrida, ao ampliar, através do acesso ao Supremo, as 'garantias mínimas constitucionalmente estabelecidas em termos de tutela jurisdicional'.
Relativamente à interpretação em conformidade com a Constituição, refere Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, Tomo II,
3ª ed., Coimbra 1991, p. 264) :
'A interpretação conforme à Constituição não consiste (...) tanto em escolher entre vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito o que seja mais conforme com a Constituição quanto em discernir no limite - na fronteira da inconstitucionalidade - um sentido que, embora não aparente ou não decorrente de outros elementos de interpretação, é o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental.'
Ora, neste caso não se confrontam interpretações em que uma afronte directamente o texto constitucional. Como veremos, ambas as interpretações (a do Acórdão recorrido e a que aceitasse recurso para o Supremo Tribunal) seriam conformes à Constituição, embora a interpretação defendida pela recorrente se mostre mais abrangente de um ponto de vista jusfundamental. Este Tribunal, porém, não associa esta atitude mais amigável para com a tutela jurisdicional, à interpretação constitucionalmente conforme, quando - e é o que aqui sucede - a outra interpretação (a - chamemos-lhe assim - 'menos amigável') não deixa de garantir um efectivo direito ao recurso, embora em menos graus ( e estamos a prescindir, obviamente, da discutível, qualificação da fase arbitral como jurisdicional).
Com efeito, sobre situação idêntica escreveu-se no já citado Acórdão nº 259/97:
' vem-se considerando que a garantia da via judiciária, mormente quando traduzida no 'direito de recurso a um tribunal e de obter dele uma decisão jurídica sobre toda e qualquer questão juridicamente relevante' (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra 1993, p. 164) integra no seu âmbito o próprio direito de defesa contra actos jurisdicionais, exercível mediante o recurso para (outros) tribunais - cfr., inter alia, o acórdão nº 287/90, publicado no Diário citado, II Série, de 20 de Fevereiro de 1991 - sem, no entanto, se estar perante um ilimitado direito ao recurso em todas as matérias, como se inestringível fosse.
Na verdade, se o texto Constitucional é omisso quanto ao limite máximo dos graus de jurisdição, também o é quanto ao mínimo - ressalvando-se a área das garantias de defesa em processo criminal, nos termos do n~1 do artigo 32º - entendendo-se que a protecção do direito passa pela sua não afectação substancial 'enquanto via de defesa contra actos jurisdicionais e de controlo da objectividade da realização do direito' (cfr. o acórdão nº 715/96, ainda inédito, entre outros), sem prejuízo de, respeitado esse limite, o legislador ordinário poder ampliar ou restringir os recursos.'
Significa isto que a interpretação seguida (não esquecendo, aliás, ter sido efectivamente garantido, com o recurso do Tribunal de Comarca para o Tribunal da Relação, um «duplo grau de jurisdição») não se mostra constitucionalmente ilegítima.
III DECISÃO
6. Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar, consequentemente a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita. Lisboa, 2 de Julho de 1997 José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Fernando Alves Correia Bravo Serra Luís Nunes de Almeida