Imprimir acórdão
Processo nº 734/96 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A. recorre para este Tribunal do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (de 27 de Junho de 1996), que confirmou a sentença do Juiz do 12º Juízo Cível da comarca de Lisboa que decretou o despejo do rés-do-chão
......... do nº ....... do prédio urbano sito na Rua .........., em .........., que aquela havia arrendado para sua habitação exclusiva, pelo prazo de seis meses, com início em 1 de Novembro de 1972, renovável por iguais períodos, mas onde não vive, antes aí habitando um filho dela com a companheira e um filho de ambos, recém-nascido - rés-do-chão de que é proprietária a autora da respectiva acção, empresa B..
O recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 65º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, 'na medida em que não ressalva as situações em que, segundo o regime anterior fixado no Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Julho de 1984, o prazo de caducidade no caso de facto continuado ou duradouro se contava a partir do conhecimento inicial do facto'.
Neste Tribunal, a recorrente concluiu assim as suas alegações, dizendo:
1. Após a entrada em vigor do Assento de 3 de Julho de 1984 a Ré, ora apelante, adquiriu o direito a não ser accionada com base em factos que o senhorio tem conhecimento há mais de um ano, conhecimento que no caso concreto se teria verificado em 1972.
2. Pretender-se que, com a entrada em vigor do nº 2 do artigo 65º do RAU, o problema se voltou a colocar no sentido do despejo ser possível, com base em que o prazo de um ano conta para o senhorio a partir da cessação do facto, implica uma aplicação retroactiva da lei na medida em que vai afectar um direito adquirido, o que o RAU não prevê e ao que se opõe o nº 3 do artigo 18º da Constituição, além de o nº 1 do artigo 12º do Código Civil.
3. Deve assim, em consequência, o processo baixar à primeira instância a fim de ser reformulado o douto despacho saneador no sentido de não resolver o problema levantado pela Ré, ora apelante, da caducidade da acção de forma negativa, e ser quesitado se o senhorio, ao arrendar o andar dos autos, teve ou não conhecimento que a Ré iria habitar ou não os dois andares ao mesmo tempo, de acordo com o que se alegou na contestação, repetindo-se assim o julgamento, por violação do nº 1 do artigo 12º do Código Civil e do nº 3 do artigo 18º da Constituição, isto é, por ilegalidade e inconstitucionalidade.
A recorrida formulou as seguintes conclusões:
1. O Assento de 3 de Julho de 1984 limitou-se a fixar doutrina obrigatória para os tribunais integrados na sua ordem, doutrina esta susceptível de ser por ele alterada.
2. Qualquer outro entendimento do referido Assento, com base no disposto no artigo 2º do Código Civil, seria inconstitucional, conforme douto Acórdão desse Tribunal de 7 de Dezembro de 1993.
3. Assim sendo, a lei ordinária pode consagrar, sem qualquer problema, doutrina diferente para o mesmo tipo de situações nele previstas.
4. O nº 2 do artigo 65º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, é aplicável ao caso dos autos, sem que isso implique qualquer aplicação retroactiva da lei, muito menos ilegal, tudo por força do disposto na parte final do nº 2 do artigo 12º do Código Civil e, bem assim, porque a situação de incumprimento contratual por parte da ora recorrente se mantinha à data da sua entrada em vigor, prolongando-se para além dela, até aos dias de hoje.
5. Não se verificou, pois, no caso das decisões proferidas nos autos qualquer inconstitucionalidade.
6. Acresce que, para efeitos da apreciação da constitucionalidade das decisões proferidas neste caso, nunca seria aplicável o nº 3 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa, pois a disposição legal referida na antecedente conclusão 4ª não consubstancia nenhuma lei restritiva de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
7. Na verdade, o ordenamento jurídico português não prevê qualquer direito ao incumprimento contratual.
8. Em última análise, estaria em causa um direito da ora recorrida (o direito à resolução do contrato de arrendamento por violação contratual por parte da ora recorrente) e nunca um direito desta.
9. Não merecem, por isso, qualquer censura as decisões dos tribunais comuns proferidas neste caso, o que se requer seja declarado, com as legais consequências.
2. Corridos os vistos, cumpre, então, decidir se é inconstitucional o nº 2 do artigo 65º do Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro), na medida em que não ressalva as situações em que, segundo o regime anterior fixado no assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Julho de 1984, o prazo de caducidade, no caso de facto continuado ou duradouro, se contava a partir do conhecimento inicial do facto.
II. Fundamentos:
3. Questão prévia do conhecimento do recurso:
A norma que se pretende ver apreciada sub specie constitutionis é a do nº 2 do artigo 65º do Regime do Arrendamento Urbano, na interpretação que acabou de se enunciar.
De facto - para além de, nas alegações, a recorrente falar num 'entendimento do artigo 65º, nº 2, do RAU que viola o nº 3 do artigo
18º da Constituição'; e de, ao alegar na Relação, ter sustentado que
'pretender-se que com a entrada em vigor do nº 2 do artigo 65º do RAU, o problema se voltou a colocar no sentido do despejo ser possível, com base em que o prazo de um ano conta para o senhorio a partir da cessação do facto, implica uma aplicação retroactiva da lei na medida em que vai afectar um direito adquirido, o que o RAU não prevê e ao que se opõe o nº 3 do artigo 18º da Constituição e nº 1 do artigo 12º do Código Civil' - foi essa a norma que ela indicou na resposta ao convite para proceder à sua identificação.
Nada obsta a que se aprecie a legitimidade constitucional de tal norma.
Na verdade, de um lado, a sua inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações para a Relação com um mínimo de clareza e precisão; e, de outro, o acórdão recorrido, conquanto se não tenha pronunciado de forma expressa sobre a questão, aplicou o mencionado nº 2 do artigo 65º com aquele sentido que a recorrente questiona ratione constitutionis.
5. A norma sub iudicio:
A acção de despejo (recte, a acção de resolução do contrato de arrendamento) foi proposta com fundamento em que, sendo o prédio arrendado destinado a habitação, a arrendatária não tinha nele residência permanente - fundamento previsto na alínea i) do nº 1 do artigo 64º do RAU
[correspondente à alínea i) do nº 1 do artigo 1093º do Código Civil].
A recorrente (ré na acção), sem negar o facto de o rés-do-chão que tomou de arrendamento não ser o centro ou a sede da sua vida familiar e social e da sua economia doméstica, sustentou que a autora (ora recorrida) sempre teve conhecimento de que aí habitavam também filhos seus, pelo que caducou, há muito, o direito de pedir a resolução do contrato.
O artigo 1094º do Código Civil dispunha que 'a acção de resolução do contrato deve ser proposta dentro de um ano, a contar do conhecimento do facto que lhe serve de fundamento, sob pena de caducidade'.
A jurisprudência e a doutrina dividiram-se quanto a saber se, estando em causa um facto duradouro ou continuado, o prazo de caducidade de um ano se devia contar do momento em que o senhorio teve conhecimento da respectiva violação contratual ou, antes, daquele em que tal facto cessou [Na jurisprudência, cf., inter alia, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Maio de 1972 e de 16 de Julho de 1981 (publicados no Boletim do Ministério da Justiça, nºs 217 e 309, páginas 92 e seguintes, e
329 e seguintes, respectivamente) e, bem assim, o assento do mesmo Supremo, de 3 de Maio de 1984 (publicado no Diário da República, I série, de 3 de Julho de
1984). Na doutrina, cf., entre outros, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, volume II (2ª edição), Coimbra, páginas 563 e seguintes; PEREIRA COELHO, Arrendamento, Lições ao curso do 5º ano de Ciências Jurídicas no ano lectivo de 1986-1987 (policopiadas), Coimbra, 1987, páginas 267 e seguintes; e BAPTISTA MACHADO, 'Pressupostos da Resolução por Incumprimento' (Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Teixeira Ribeiro, Boletim da Faculdade de Direito,
1979, II, páginas 344 e seguintes) e 'Resolução do Contrato de Arrendamento Comercial' (Parecer), in Colectânea de Jurisprudência, ano IX, 1984, tomo 2, páginas 15 e seguintes].
Para pôr termo à incerteza e insegurança jurídicas causadas por uma jurisprudência desencontrada, foi apresentado na Assembleia da República um projecto de lei, com vista a dar nova redacção ao citado artigo
1094º, por forma a consagrar-se que, estando em causa um facto continuado, o prazo de caducidade se devia contar a partir da data em que ele tivesse cessado.
De acordo com esse projecto, o artigo 1094º passaria a rezar assim:
1. A acção de resolução deve ser proposta dentro de um ano a contar do conhecimento do facto que lhe serve de fundamento, sob pena de caducidade.
2. O prazo de caducidade corre separadamente em relação a cada um dos factos; tratando-se de facto continuado, só corre a partir da data em que o facto tiver cessado.
Este projecto de lei foi discutido e chegou a ser aprovado na generalidade e, parcialmente, na especialidade. Mas por aí morreu, atento o facto de, entretanto, ter sido tirado pelo Supremo Tribunal de Justiça o já citado assento de 3 de Maio de 1984 (publicado no Diário da República, I série, de 3 de Julho de 1984), que é do seguinte teor: Seja instantâneo ou continuado o facto violador do contrato de arrendamento, é a partir do seu conhecimento inicial pelo senhorio que se conta o prazo de caducidade estabelecido no artigo 1094º do Código Civil.
Foi, entretanto, apresentado um novo projecto de lei
(Projecto de lei nº 249/V), que, aprovado, veio a transformar-se na Lei nº
24/89, de 1 de Agosto, cujo artigo 1º deu nova redacção ao mencionado artigo
1094º. Este ficou assim redigido:
1. A acção de resolução deve ser proposta dentro de um ano a contar do conhecimento do facto que lhe serve de fundamento, sob pena de caducidade.
2. O prazo de caducidade previsto no número anterior, quando se trate de facto continuado ou duradouro, conta-se a partir da data em que o facto tiver cessado.
No artigo 2º desta lei, dispôs-se que 'a presente lei não se aplica às acções pendentes em juízo à data da sua entrada em vigor'.
Posteriormente, foi publicado o actual Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro), a que pertence o artigo 65º, cujo nº 2 aqui está sub iudicio. Dispõe-se aí:
1. A acção de resolução deve ser proposta dentro de um ano, a contar do facto que lhe serve de fundamento, sob pena de caducidade.
2. O prazo de caducidade previsto no número anterior, quando se trate de facto continuado ou duradouro, conta-se a partir da data em que o facto tiver cessado.
O Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro (acabado de citar), na alínea a) do nº 1 do artigo 3º, revogou o mencionado artigo 1094º do Código Civil - mais propriamente, revogou os artigos 1083º a 1120º.
O nº 3 do mesmo artigo 3º estabeleceu, no entanto, que
'o disposto na alínea a) do nº 1 não prejudica a disposição transitória contida no artigo 2º da Lei nº 24/89, de 1 de Agosto' - o que significa que (à semelhança do que sucedera com o nº 2 do artigo 1094º do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 24/89) o disposto no nº 2 do artigo 65º do RAU não se aplica às acções que se encontrassem pendentes em juízo à data da entrada em vigor dessa Lei nº 24/89. Nessas acções, fosse instantâneo ou continuado o facto violador do contrato de arrendamento, o prazo de caducidade continuou a contar-se do conhecimento inicial desse facto pelo senhorio.
Do que se disse resulta que, quando a resolução do contrato de arrendamento para habitação se fundar no facto de o arrendatário não ter residência permanente no local arrendado, estando-se, como se está, em presença de uma violação contratual duradoura ou continuada (cf. PEREIRA COELHO, ob. e loc. cit.), o prazo de um ano para o senhorio propor a acção, 'sob pena de caducidade', 'conta-se a partir da data em que o facto tiver cessado'. Só assim não será (isto é, tal prazo só se contará a partir do conhecimento inicial daquele facto pelo senhorio), se a acção de resolução se achava pendente em juízo à data da entrada em vigor da Lei nº 24/89, de 1 de Agosto.
Pois bem: a recorrente entende que é inconstitucional o nº 2 do artigo 65º do Regime do Arrendamento Urbano, na medida em que este não ressalva (para o efeito de se lhe aplicar o regime fixado pelo assento de 3 de Maio de 1984, isto é, para o efeito de o prazo de caducidade se dever contar 'a partir do conhecimento inicial pelo senhorio' do facto violador do contrato) todas as situações anteriores de violação contratual duradoura ou continuada, mesmo que, à data da entrada em vigor da Lei nº 24/89, não se achasse pendente em juízo acção de resolução fundada no facto constitutivo dessa violação do contrato.
6. A questão de constitucionalidade:
6.1. Para a recorrente, a inconstitucionalidade da norma constante do nº 2 do artigo 65º do Regime do Arrendamento Urbano radica, pois, no facto de a interpretação que dela fez o acórdão recorrido, e que é a que se deixou indicada, importar 'uma aplicação retroactiva da lei na medida em que vai afectar um direito adquirido'. A saber: 'o direito de não ser accionada com base em factos [de] que o senhorio tem conhecimento há mais de um ano' - direito que, diz, ela 'adquiriu' com 'a entrada em vigor do assento de 3 de Julho de 1984'.
6.2. A recorrente não tem razão: antes de mais, ela não adquiriu o direito a não ser accionada com fundamento na falta de residência permanente no rés-do-chão que arrendou para sua habitação exclusiva, subsistente
à data da propositura da acção.
Admitir a aquisição de um tal direito significaria aceitar a possibilidade de adquirir o direito a persistir na prática de uma violação contratual.
Ora, isso não é, seguramente, consentido pelo ordenamento jurídico.
É certo que, como se ponderou nos acórdãos nºs 151/92 e
311/93 (publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volumes 21º e 24º, páginas 647 e seguintes, e 207 e seguintes, respectivamente), ao legislador é legítimo impor restrições aos direitos do proprietário privado (entre outras, a renovação obrigatória do contrato e a sujeição a numerus clausus das causas de resolução). O proprietário é, desse modo, chamado a ser solidário com o seu semelhante (princípio da solidariedade social); e o direito à habitação, sendo, embora, um direito cuja realização compete ao Estado - uma realização gradual, por ser um direito 'colocado sob reserva do possível' - vincula, no entanto e nessa medida, também a propriedade privada.
Trata-se de restrições impostas em nome da função social da propriedade, que arrancam da necessidade que o Estado tem de garantir aos cidadãos um grau mínimo de realização do direito a uma habitação condigna e, bem assim, do facto de ele, sozinho, sem essa colaboração dos particulares - a colaboração em que as restrições se traduzem - ser incapaz de garantir esse direito, mesmo num grau mínimo de realização.
A necessidade de realização do direito à habitação, ao menos num grau mínimo, impõe-na a natureza própria desse direito: ele é, de facto, uma exigência da dignidade da pessoa humana, daquilo que a pessoa, ontologicamente, é: um ser livre, com direito a viver com dignidade.
As apontadas restrições, sendo necessárias para a realização, em grau mínimo, do direito à habitação, não se traduzem em constrições excessivas dos direitos dos proprietários.
É que, sobre a propriedade privada, chamada a colaborar na realização do bem comum, incide uma hipoteca social.
Tais restrições justificam-se, quando se trate de garantir o direito à habitação do arrendatário ou dos familiares que com ele convivam em situação de dependência económica. Já, porém, não são legítimas, quando o arrendatário pretenda manter o local arrendado desabitado por tempo indeterminado [cf. o acórdão nº 32/97 (por publicar)]; quando estiver em causa a habitação de familiares que de si não dependam; ou quando o arrendatário aí nem sequer tiver residência permanente, como no caso acontece. Em tais hipóteses, as restrições ou carecem de fundamento material ou seriam desproporcionadas.
Repete-se, pois: a recorrente não adquiriu qualquer direito a não ser accionada com fundamento na falta de residência permanente, com conhecimento do senhorio, desde data anterior à da entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano - suposto, obviamente, que as coisas se passaram deste modo.
A norma do artigo 65º, nº 2, do Regime do Arrendamento Urbano, interpretada como foi pela decisão recorrida, não é, pois, a esta luz, inconstitucional.
6.3. Inconstitucionalidade existiria, sim, se - como pretende a recorrente - o senhorio ficasse impedido de propor a acção de resolução do contrato, pela tão-só circunstância de a situação de violação contratual (no caso, a falta de residência permanente) durar desde data anterior
à da entrada em vigor daquele Regime Jurídico, com seu conhecimento.
Esta conclusão decorre do facto de este Tribunal, pelo acórdão nº 299/95 (publicado no Diário da República, II série, de 22 de Julho de
1995), ter julgado inconstitucional, por violação do disposto no nº 1 do artigo
20º da Constituição, a norma que se contém no já mencionado assento de 3 de Maio de 1984 (publicado no Diário da República, I série, de 3 de Julho de 1984).
Nesse aresto, o Tribunal - depois de ponderar que tal assento reflecte 'uma visão proteccionista do arrendatário sem justificação fundada, 'incentivando e protegendo violações permanentes e actuais da lei ou dos contratos' -, sublinha que ele se suporta 'no entendimento de que a não propositura da acção de resolução do arrendamento dentro daquele prazo pelo senhorio [refere-se, obviamente, ao prazo de um ano contado do conhecimento do facto violador do contrato, mesmo que se trate de facto continuado] significa da sua parte uma renúncia ao direito de accionar'. E acrescenta: Simplesmente a renúncia assim imputada fictivamente ao locador [...] não pode seguramente valer para aqueles que venham a verificar-se no futuro. E não pode porque uma tal solução, para além de se colocar 'em contradição com o sistema de direito português (designadamente com o princípio normativo que inspira os preceitos dos artigos 288º, 809º e 840º do Código Civil)', envolveria também privação do direito de acção, a descoberto de qualquer fundamento justificativo, colidindo com a regra da proibição da indefesa. A indefensão que resulta da interpretação adoptada no assento [...] traduz-se em violação do direito à tutela efectiva por parte do locador, sob o ponto de vista do direito de acção, violação essa que se suporta numa renúncia fictiva e antecipada do respectivo direito, acrescendo que o prazo resultante daquele entendimento se revela desproporcionado, sem razoabilidade e despojado de fundamento jurídico material, de conteúdo objectivo e constitucionalmente legítimo, como aliás veio a ser reconhecido pela Lei nº 24/89. E assim sendo há-de ter-se a norma contida no assento de 3 de Julho de 1984 como inconstitucional, por violação do artigo 20º, nº 1, da Constituição.
6.4. Se, como pretende a recorrente, a norma sub iudicio fosse retroactiva, havia de ter-se em conta que, como se disse no acórdão nº
95/92 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 21º, páginas
341 e seguintes), 'fora do Direito Penal' (e fora, bem assim, do domínio das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias), 'uma lei retroactiva não
é, em si mesma, inconstitucional', embora possa sê-lo 'se essa retroactividade se traduzir na violação de princípios ou de disposições constitucionais autónomas'. E, de facto, o Tribunal já teve ocasião de, por diversas vezes, com fundamento na violação do princípio da confiança, que vai implicado no princípio do Estado de Direito, julgar inconstitucionais normas jurídicas não penais, nem restritivas de direitos, liberdades ou garantias, por serem retroactivas [cf., entre outros, os acórdãos nºs 93/84 (publicado nos Acórdãos citados, volumes 4º, páginas 153 e seguintes) e 71/87 (publicado no Diário da República, II série, de
2 de Maio de 1987)].
O Tribunal também já julgou inconstitucionais normas jurídicas que, embora não sendo retroactivas, não versando matéria penal, nem sendo leis restritivas de direitos, liberdades ou garantias, eram de aplicação imediata a situações jurídicas existentes. Tratou-se de situações de retrospectividade ou de retroactividade imprópria, em que, por ser imediatamente aplicável, a lei afectou de forma 'inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa' expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, desse modo violando aquele mínimo de certeza e de segurança que eles devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito. A este impõe-se, de facto, que organize a
'protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida' - para usar os dizeres do acórdão nº 330/90 (publicado nos Acórdãos citados, volume 17º, páginas 277 e seguintes). Um exemplo disto é o acórdão nº
287/90 (publicado nos Acórdãos citados, volume 17º, páginas 159 e seguintes), que julgou inconstitucional a norma do artigo 106º da Lei nº 37/87, de 23 de Dezembro (conjugado com os artigos 20º, nº 1, e 108º, nº 5, da mesma lei), que suprimiu o direito de recurso nos processos pendentes, por aplicação imediata dos novos valores das alçadas.
6.5. A norma sub iudicio não é retroactiva.
É que, como se disse atrás, ela 'não se aplica às acções pendentes em juízo à data' da entrada em vigor da Lei nº 24/89, de 1 de Agosto. Se alguma acção desse tipo ainda estava pendente no momento da entrada em vigor do mencionado artigo 65º, nº 2, o respectivo prazo de caducidade continuou a contar-se do conhecimento inicial, pelo senhorio, do facto violador do contrato de arrendamento.
A norma questionada aplica-se apenas para o futuro, pois que rege tão-somente para as acções de despejo propostas em momento em que, sendo a causa de pedir constituída por 'facto continuado ou duradouro', o respectivo prazo de caducidade se contava já 'a partir da data em que o facto tiver cessado' (cf. artigo 1094º, nº 2, do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 24/89, de 1 de Agosto). Aplica-se, no entanto, a situações de facto que concernem a relações jurídicas não terminadas, ou seja, a situações de violação contratual (continuadas ou duradoiras) vindas de trás, que, constituindo já antes fundamento de resolução do contrato de arrendamento, só são invocadas pelo locador já no domínio desta norma.
A norma aplica-se, assim, às relações jurídicas de locação 'já constituídas' que subsistiam 'à data da sua entrada em vigor', em conformidade com o que se prescreve na parte final do nº 2 do artigo 12º do Código Civil.
Trata-se, por conseguinte, de uma norma retrospectiva - ou, se se preferir, de um caso de retroactividade inautêntica.
Uma norma retrospectiva é uma norma que prevê consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor, mas que se mantêm nessa data (cf. o acórdão nº 232/91, publicado nos Acórdãos citados, volume 19º, páginas 341 e seguintes).
Uma lei retrospectiva não levanta o problema da retroactividade da lei. Coloca, porém, como se anotou - e semelhantemente ao que acontece com as leis retroactivas que não sejam leis penais, nem leis restritivas de direitos liberdades e garantias - a questão da eventual violação do princípio da confiança, que vai ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição.
Mas essa violação só se verifica, se a lei atingir 'de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou desproporcionadamente onerosa aqueles mínimos de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm que respeitar' (cf. acórdão nº 365/91, publicado nos Acórdãos citados, volume 19º, páginas 143 e seguintes), ou seja, 'a ideia de segurança, de certeza e de previsibilidade da ordem jurídica' (cf. citado acórdão nº 232/91). E tal sucede, quando os destinatários da norma sejam titulares de direitos ou de expectativas legitimamente fundadas que a lei afecte de forma 'inadmissível, onerosa ou demasiadamente onerosa'.
Nos dizeres do citado acórdão nº 232/91, 'uma norma retrospectiva só deve ser havida por constitucionalmente ilegítima quando a confiança do cidadão na manutenção da situação jurídica com base na qual tomou as suas decisões for violada de forma intolerável, opressiva ou demasiado acentuada. Num tal caso, com efeito, a confiança na situação jurídica preexistente haverá de prevalecer sobre a medida legislativa que veio agravar a situação do cidadão. E isso porque, tendo tal confiança, nesse caso, maior
'peso' ou 'relevo' constitucional do que o interesse público subjacente à alteração legislativa em causa, é justo que o conflito se resolva daquela maneira'.
Ora, já se viu que a circunstância de os senhorios não terem proposto as acções de despejo no ano subsequente ao conhecimento do facto
(continuado ou duradouro) violador do contrato, não faz nascer para os locatários qualquer direito a não mais serem despejados. E nem tão-pouco legitima qualquer expectativa nesse sentido. Essa expectativa só seria legítima, se pudesse considerar-se razoável a renúncia fictiva e antecipada, pelo senhorio, do direito de fazer cessar o contrato. Mas também se viu que não é de admitir essa renúncia fictiva e antecipada do direito de accionar o locatário, pois que ela - para além de se colocar 'em contradição com o sistema de direito português (designadamente com o princípio normativo que inspira os preceitos dos artigos 288º, 809º e 840º do Código Civil)' - traduzir-se-ia 'em violação do direito à tutela judicial por parte do locador'.
6.6. Conclusão: a norma sub iudicio, vista sob estoutra perspectiva, também não é inconstitucional.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 2 de Julho de 1997 Messias Bento Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca (com a declaração de que não subscrevo as considerações do acórdão quanto à retroactividade da lei no ponto 6.4. do acórdão) Bravo Serra (unicamente não subescrevo, na totalidade, algumas considerações formuladas no acórdão, sobre as decorrências que o 'princípio da solidariedade social', imporiam ao direito de propriedade - ponto
6.2 do acórdão) Luís Nunes de Almeida