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Processo n.º 888/05
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. deduziu reclamação do despacho do Conselheiro Relator do Supremo
Tribunal de Justiça que não admitiu o recurso que pretendia interpor para o
Tribunal Constitucional.
2. Resulta dos autos que:
2.1. No Tribunal Judicial de Vieira do Minho, A. interpôs, por apenso à
acção de investigação de paternidade intentada pelo Ministério Público que
contra si correu termos naquele tribunal, recurso de revisão da sentença
proferida e transitada em julgado que julgou procedente a acção e reconheceu
como sua filha a menor B.. Fundamentou tal recurso de revisão em documento
superveniente, invocando o disposto no artigo 771º, alínea c), do Código de
Processo Civil.
A pretensão foi rejeitada, por se ter entendido não existir motivo
para a revisão (decisão do Juiz de Vieira do Minho, de 19 de Abril de 2004, a
fls. 21 e seguintes, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães,
de 29 de Setembro de 2004, a fls. 52 e seguintes).
2.2. Nas alegações do recurso que interpôs do acórdão do Tribunal da
Relação de Guimarães para o Supremo Tribunal de Justiça formulou o recorrente A.
as seguintes conclusões (fls. 76 e seguintes):
“a) Padece o apesar de tudo douto Acórdão de vício insanável;
b) Na medida em que não atenta nos itens 25 e 26 da petição do Recurso
Extraordinário de Revisão de Sentença;
c) De igual sorte, limita-se a reiterar o teor da Sentença do Tribunal de 1ª
Instância, deste modo, não fazendo, também, uma apreciação correcta do documento
superveniente;
d) E, no mesmo sentido incorrecto, considera não verificado o segundo requisito
exigível para a Revisão de Sentença, conforme o art. 771º - al. c) do C.P.C.,
subsistindo ofensa directa do normativo art. 771º - al. c) do C.P.C.;
e) É nulo o Douto Acórdão, de acordo com o disposto no artigo 668º n.º 1 al. d)
do C.P.C. já que não se pronuncia sobre questões que devia apreciar;
f) Pelo que, deve esse Sumo Dicastério ordenar a remessa dos autos ao Tribunal
de 2ª Instância – Relação de Guimarães –, para que este reforme o, apesar de
tudo, Douto Acórdão;
g) Devendo, consequentemente, a Douta Sentença de 1ª Instância ser substituída
por outra que conheça da viabilidade do Recurso de Revisão de Sentença;
h) Nesta sequência, ordenando o prosseguimento dos autos de Recurso de Revisão
de Sentença […].
[...].”.
2.3. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 22 de Fevereiro de 2005
(fls. 94 e seguintes), negou provimento ao recurso. Depois de afastar a omissão
de pronúncia imputada pelo recorrente ao acórdão recorrido, disse o Supremo
Tribunal de Justiça, para o que agora importa considerar:
“[…]
Quanto à suficiência modificativa do documento como fundamento do recurso nos
termos da al. c) do art. 771°, dir-se-á o seguinte:
O documento oferecido é uma informação prestada pela «Companhia Portuguesa de
Produção de Electricidade, S.A.» tendente a demonstrar que o local em que teriam
ocorrido relações sexuais entre o Requerente e C. não lhes era acessível,
enquanto local vedado, com muro e cerca de 1,40m de altura.
A acção de investigação de paternidade foi julgada procedente com o duplo
fundamento da presunção de paternidade prevista no art. 1871°-1-e) C. Civil «por
ter resultado provado que a B. nasceu das relações de sexo havidas entre o R. e
a C.» e de que «ainda que assim não fosse, demonstrou-se a matéria do quesito
4°, que constitui prova directa sobre o facto em apreço».
Provou-se, com efeito, que «a menor B. nasceu em consequência da gravidez da C.,
a qual teve origem nas relações de sexo com o R.» e que «entre 22/2 e 21/6/92 a
C. teve, e só teve, relações de sexo com o R.», tendo-se procedido a dois exames
hematológicos com os resultados de 99,97% e 99,9999988%.
Quer dizer, a par do fundamento da exclusividade do trato sexual, a acção teria
sempre de proceder com o fundamento nos exames laboratoriais, feita que estava a
respectiva prova, falando-se mesmo, quando assim é, de «acções laboratoriais»
(cfr. acs. STJ de 18/4/96, e 11/3/99, BMJ 456°-334 e 485°-418).
Ora, o documento apresentado só poderá fundamentar a revisão se, confrontado com
os demais elementos probatórios produzidos, tiver força probatória suficiente
para impor a alteração das respostas transcritas e infirmar o resultado dos
exames.
Dito doutro modo, é necessário que prove factos incompatíveis ou inconciliáveis
com os provados na decisão a rever, evidenciando um julgamento errado de factos
relevantes na decisão da causa.
Sucede, porém, que o documento não contém factos extintivos do direito que foi
declarado, revelando-se o respectivo conteúdo perfeitamente conciliável ou
compatível com a factualidade em que assentou o reconhecimento desse mesmo
direito, pois que, mesmo concedendo relevância ao facto invocado, não é a
circunstância de haver uma vedação do local com muro e cerca metálica com 1,40m
de altura que, só por si, deva considerar-se impeditiva do acesso, notório que é
tal não constituir, por causas várias, obstáculo de difícil transponibilidade.
Acresce que, ainda que fosse portador de conteúdo útil para os fins visados, o
documento sempre careceria da força probatória exigível.
Com efeito, é ele um documento particular que contém declarações emitidas por
terceiro.
Não é mais que um depoimento escrito, produzido fora do processo, de livre
apreciação e, como tal, inidóneo para, por si só, determinar qualquer
modificação da decisão de facto – arts. 366°, 376° e 396° C. Civil (cfr., ainda,
como caso paralelo, o art. 712°-1-c) CPC).
[...].”.
2.4. Requerida pelo recorrente “a rectificação, aclaração ou reforma do
acórdão”, foi tal pedido indeferido por acórdão de 24 de Maio de 2005 (fls. 115
e seguinte).
2.5. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, através de
requerimento assim redigido (fls. 119 e seguinte):
“[…]
II. […] Salvo melhor opinião, o presente recurso satisfaz os requisitos ínsitos
nos art.ºs 75º e 75º [assim, no original] da L.T.C. (Lei do Tribunal
Constitucional), remissivo ao art.º 70º, n.º 2 (remissivos aos art.ºs 72º, n.º 1
e 76º da Lei n.º 28/82 de 15/11, com a Redacção da Lei n.º 13-A/98, de 26/02) já
que se encontram esgotadas as vias do Recurso Ordinário;
III […] sendo certo que nos autos subsiste violação dos Princípios Estruturantes
da Constituição e, designadamente, por ofensa dos art.ºs 13º (Princípio da
Igualdade), 20º (Princípio do Acesso ao Direito e da Tutela Jurisdicional
efectiva), 202º (Função Jurisdicional) e 209º; todos da C.R.P. (6ª Revisão – Lei
Constitucional n.º 1/2004, de 24/07),
Pelo que, tendo legitimidade, e sendo o recurso tempestivo, […] requer a V.ª
Ex.ª se digne promover a admissão do presente recurso para o Tribunal
Constitucional.
[…].”.
2.6. O Conselheiro Relator, no Supremo Tribunal de Justiça, decidiu não
admitir o recurso para o Tribunal Constitucional (despacho de 21 de Junho de
2005, a fls. 121), nestes termos:
“Não encontro, no processo, invocada a inconstitucionalidade de qualquer das
normas aplicadas nas decisões proferidas, recusada a aplicação de qualquer
preceito com fundamento em inconstitucionalidade ou alegada a violação de
princípios constitucionais.
Consequentemente, inverificada qualquer das situações previstas nas als. do n.º
1 do art. 70º da Lei n.º 28/82, e visto o disposto nos art.ºs 75º-A e 76º da
mesma Lei, não é possível admitir o recurso interposto, indeferindo-se o
requerido.
[...].”.
2.7. A. veio, ao abrigo do disposto no artigo 76º, n.º 4, da Lei do
Tribunal Constitucional, deduzir reclamação do despacho de não admissão do
recurso para o Tribunal Constitucional, através do requerimento de fls. 2 e
seguintes (fls. 10 e seguintes) dos presentes autos, em que se lê:
“1º. Atempadamente, por requerimento seu de 14/06/2005, o Recorrente interpôs
recurso para este Venerando Tribunal Constitucional.
2º. Por, aliás, Douto Despacho do Ex.mo. Sr. Juiz Conselheiro junto da 1ª Secção
do Supremo Tribunal da Justiça, foi o mencionado requerimento indeferido, com
fundamento em não verificação de quaisquer das situações previstas no art.º 70º,
n.º 1 da Lei 28/82.
3º. Ressalvada mais douta opinião, e sem detrimento da muita estima e
consideração pelo Mui Ilustre Magistrado «a quo», afigura-se-nos que queda tal
decisão, precipitada e redutora.
4º. Na verdade, se o Ilustre julgador entendia que se não verificavam as
situações previstas no normativo art.º 70º, n.º 1 da Lei 28/82, impendia sobre
si o poder-dever de prévia notificação ao recorrente, nos termos do art.º 75º-A,
n.º 5 da L.T.C.;
5º. Ou seja, entendendo-se que o requerimento de interposição de recurso não
indicava alguns dos elementos previstos no artigo, constituía autêntico
poder-dever do MM. Juiz «a quo» convidar o recorrente a prestar essa indicação
no prazo de 10 dias (ut art.º 75º-A, n.º 5 da [LTC]).
6º. Não o fazendo, o apesar de tudo Douto Despacho enferma, em humilde opinião,
de gravosa e insuprível nulidade.
7º. Nulidade esta a conhecer por este Venerando Tribunal Constitucional, por via
da Reclamação ora deduzida, nos termos do art.º 76º, n.º 4 da [L.T.C.].
8º. Sem desdouro, porém, no seu referido requerimento de Interposição de Recurso
para o Tribunal Constitucional, de 14/06/2005, o recorrente justifica
expressamente quais as normas constitucionais violadas pelos, apesar de tudo,
Doutos Arestos, a saber:
Art.º 13º, art.º 20º, art.º 202º e art.º 209º da Constituição da República
Portuguesa.
[...].”.
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional emitiu parecer, do seguinte teor (fls. 33 v.º):
“A presente reclamação carece obviamente de fundamento sério, já que o
recorrente não suscita – nem durante o processo, nem no requerimento de
interposição do recurso de constitucionalidade, nem sequer no âmbito da presente
reclamação – qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, especificando
ou identificando, em termos minimamente inteligíveis, qual a norma ou
interpretação normativa que considera inconstitucional, o que priva naturalmente
de objecto idóneo o recurso de fiscalização concreta interposto.”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. O ora reclamante pretendeu interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, invocando
que “nos autos subsiste violação dos Princípios Estruturantes da Constituição e,
designadamente, por ofensa dos art.ºs 13º (Princípio da Igualdade), 20º
(Princípio do Acesso ao Direito e da Tutela Jurisdicional efectiva), 202º
(Função Jurisdicional) e 209º; todos da C.R.P.” (supra, 2.5.).
O Conselheiro Relator, no Supremo Tribunal de Justiça, não admitiu o
recurso por entender que nos autos não tinha sido “invocada a
inconstitucionalidade de qualquer das normas aplicadas nas decisões proferidas,
recusada a aplicação de qualquer preceito com fundamento em
inconstitucionalidade ou alegada a violação de princípios constitucionais”, pelo
que considerou “inverificada qualquer das situações previstas nas als. do n.º 1
do art. 70º da Lei n.º 28/82” (supra, 2.6.).
Na reclamação agora deduzida, o reclamante vem sustentar, em
síntese, que no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal
Constitucional invocou “expressamente quais as normas constitucionais violadas
pelos, apesar de tudo, Doutos Arestos, a saber: Art.º 13º, art.º 20º, art.º 202º
e art.º 209º da Constituição da República Portuguesa” (supra, 2.7.).
5. É patente que o recurso que o ora reclamante pretendia interpor não
pode ser admitido.
O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional – a única alínea susceptível de ser invocada no caso dos
autos, muito embora não tenha sido indicada no requerimento de interposição do
recurso – é o recurso que cabe das decisões dos tribunais “que apliquem norma
cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”.
Para que o Tribunal Constitucional possa conhecer de um recurso
fundado nessa disposição, exige-se que o recorrente suscite, durante o processo,
a inconstitucionalidade da norma (ou interpretação normativa) que pretende que
este Tribunal aprecie e que tal norma (ou tal norma, com essa interpretação)
seja aplicada no julgamento da causa, não obstante a acusação de
inconstitucionalidade que lhe foi dirigida.
Decorre claramente dos autos que o ora reclamante não suscitou,
durante o processo, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
Observem-se, designadamente, as alegações de recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça (fls. 76 e seguintes, supra, 2.2.) – a peça processual a ter em conta,
atento o disposto no artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
Aliás, nem no requerimento de interposição do recurso para o
Tribunal Constitucional (supra, 2.5.), nem na reclamação do despacho de não
admissão de tal recurso (supra, 2.7.) – que, de todo o modo, não poderiam ser
considerados momentos adequados para dar como cumprido o ónus de invocação da
questão de inconstitucionalidade “durante o processo” perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida – o ora reclamante identificou a norma ou
interpretação normativa aplicada na decisão recorrida que considera
inconstitucional e que pretende submeter ao julgamento deste Tribunal. Por
outras palavras, o ora reclamante não chegou sequer a definir o objecto idóneo
de um recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade. Limitou-se a
invocar certas normas ou princípios constitucionais que, em sua opinião, teriam
sido violados, o que é substancialmente diferente e insuficiente para dar como
verificado o ónus a que se referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º
2, da Lei do Tribunal Constitucional.
Tanto basta para concluir que o recurso não podia ser admitido e que
a presente reclamação tem de ser indeferida.
III
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal
Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte)
unidades de conta.
Lisboa, 13 de Dezembro de 2005
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos