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Proc.Nº 279/96 Acórdão Nº 659/97
Sec. 1ª
Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. A. intentou pelo Tribunal do Trabalho de Viana do Castelo uma acção ordinária emergente de contrato individual de trabalho contra a firma B., pretendendo a sua condenação no pagamento de quantias que considera em dívida, o reconhecimento de certa categoria profissional, a declaração de que o contrato de trabalho que o ligava à empresa era sem termo, bem como que fora despedido sem justa causa, com todas as consequências legais daí derivadas. A causa veio a ser julgada por sentença de 20 de Dezembro de 1994,que decidiu julgar ilícito o despedimento do autor, condenando a ré a reintegrar o autor no seu posto de trabalho, a pagar-lhe as retribuições que devia ter auferido desde o despedimento e uma dada quantia a título de diferenças salariais, em parte a liquidar em execução de sentença.
A ré não se conformando com tal decisão interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 10 de Julho de 1995, decidiu negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Ainda inconformada, a ré interpôs recurso do acórdão da Relação para o Tribunal Constitucional, pretendendo que se apreciasse a inconstitucionalidade das normas do nº 1, alínea e), e do nº 3 do artigo 42º, do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, por considerar que violam os artigos
13º e 18º da Constituição da República Portuguesa (adiante, CRP).
2.- Neste Tribunal, a recorrente apresentou alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
'1. O contrato de trabalho a termo celebrado em 01.6.92 entre a recorrente
(empresa) e o recorrido (trabalhador) traduz um ajuste livre de vontades em termos e por forma a que aquela facultasse a este a prestação da sua actividade profissional.
2. Tais contraentes reduziram a escrito todas as condições que a lei prevê omitindo apenas conscientemente a 'indicação do motivo justificativo', exigência esta que se crê não pode considerar-se relevante quando confrontada com as outras imposições legais.
3. Nada justifica que o intérprete centralize toda a sua atenção em tal omissão desvalorizando em consequência o conjunto das cláusulas, quer porque tudo resultou da livre negociação das partes, quer porque a falta de tal cláusula deve ter-se como de pouca importância.
4. O douto entendimento adoptado pelas instâncias quanto ao disposto na alínea e), do nº1, em conjugação com o disposto no nº 3, do artigo 42º, do Dec.Lei nº
64-A/89 é claramente ofensivo dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade consagrados nos artigos 13º e 18º da Lei Fundamental.
5. A relevância atribuída pelas instâncias à referida omissão representa imposição absolutamente injustificada, já que, nenhuma das partes contraentes questionou a sua liberdade de negociação e ambas quiseram inequivocamente fazer reflectir nos termos do contrato a correspondência de direitos e deveres que assim clausularam.
6. A obrigação 'da indicação do motivo justificativo' traduz na realidade o estabelecimento de um privilégio inaceitável em favor do trabalhador, beneficiando-o injustificadamente - circunstância que tem subjacente uma suposta situação económica débil - prejudicando correspondentemente, a entidade patronal, que se vê, sem razão aparente, coarctada nos seus direitos - por supostamente dispor de uma situação económica mais sólida.'
Pelo seu lado, o trabalhador e recorrido também alegou, concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
'1. O princípio da igualdade postula que a lei se aplica igualmente a situações iguais, desigualmente a situações diferentes.
2. Consignando a Constituição a garantia da segurança no emprego, a excepcionalidade do contrato a termo obriga à sua submissão a regras uniformes, genéricas e universais a que devem subordinar-se empregador e trabalhador.
3. Não viola o princípio da igualdade a sentença que manda aplicar lei expressa sobre a elaboração de um contrato a termo, que o empregador não respeitou, grosseiramente.
4. Empregado e empregador não são livres para formularem os contratos de trabalho que quiserem, de forma arbitrária, estando obrigados a formular os contratos de acordo com os princípios legais que enformam a matéria.
5. A obrigação de indicação de motivo justificativo não é um privilégio de uma das partes contratantes, mas a consequência da excepcionalidade da contratação a termo, face à garantia constitucional da segurança no em prego.
6. Da utilização do contrato a termo (revestido das respectivas exigências legais) não resultará uma situação de favor ou desfavor de uma das partes contratantes, já que qualquer delas retirará, por igual, todas as consequências jurídicas daquela contratação excepcional.
7. O douto Acórdão sub juditio não fez aplicação de lei ou princípio inconstitucional.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
3.- A questão que vem colocada ao Tribunal é a de saber se a norma que se pode extrair da conjugação do disposto na alínea e), do nº1 com o disposto no nº3 do artigo 42º do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade.
O artigo 42º em apreço, regulando a forma dos contratos de trabalho a prazo, dispõe como se segue:
Artigo 42º
1. O contrato de trabalho a termo, certo ou incerto, está sujeito a forma escrita, devendo ser assinado por ambas as partes e conter as seguintes indicações:
a) Nome ou denominação e residência ou sede dos contraentes;
b) Categoria profissional ou funções ajustadas e retribuição do trabalhador;
c) Local e horário de trabalho;
d) Data do início do trabalho;
e) Prazo estipulado com indicação do motivo justificativo ou, no caso de contratos a termo incerto, da actividade , tarefa ou obra cuja execução justifique a respectiva celebração ou o nome do trabalhador substituído;
f) Data da celebração.
2. Na falta da referência exigida pela alínea d) do nº1,considera-se que o contrato tem início na data da sua celebração.
3. Considera-se contrato sem termo aquele em que falte a redução a escrito, a assinatura das partes, o nome ou denominação, bem como as referências exigidas na alínea e) do nº1 ou, simultaneamente, nas alíneas d) e f) do mesmo número.
Assim, a norma que vem questionada pela recorrente é uma norma que estabelece que, se considerará como celebrado sem sujeição a termo o contrato de trabalho em que tiver sido fixado um termo, sem indicação, porém, do motivo justificativo da inclusão dessa cláusula.
Segundo a recorrente, a liberdade de contratação das partes seria manifestamente violada e violada em favor do contraente trabalhador com grave restrição dos direitos de contratação da empresa, através da imposição absolutamente injustificada da obrigação de mencionar o motivo justificativo da contratação a termo.
Vejamos.
4. - De acordo com a definição legal, o contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta (artigo 1º do Decreto-Lei nº 49 408, de 24 de Novembro de
1969). Assim, o trabalho objecto do contrato de trabalho tem de revestir a característica de trabalho dependente, isto é, de trabalho que envolve a submissão do trabalhador aos diversos poderes do empregador e simultaneamente cria um mútuo condicionamento resultante da interacção dos recíprocos direitos e deveres que resultam da relação jurídica nascente.
Porém, para além deste aspecto, o momento da celebração de um contrato de trabalho é o momento que torna definitiva a natureza específica da dependência do trabalhador: a prestação laboral é uma actividade que afecta a própria personalidade do indivíduo, colocando o trabalhador, a partir desse momento, na dependência funcional do empregador. Daí que não se possa, com inteira propriedade, falar de plena autonomia da vontade em Direito do Trabalho e, por isso, também, na celebração do contrato individual de trabalho.
O Direito do Trabalho parte efectivamente da constatação de situações reais de liberdade e de desigualdade, pelo que se afasta de uma perspectiva contratualista, em que se tomam as partes como iguais e livres (cf. Lobo Xavier, Curso de Direito do Trabalho, Ed. Verbo, pág. 87), pelo que, para poder realizar uma das finalidades a que tende - a igualdade substancial dos contraentes - teve de optar pela atribuição ao trabalhador de um estatuto mínimo legalmente definido e que contraria a perspectiva paritária corrente nos restantes contratos.
Esta concepção dogmática do moderno Direito do Trabalho não deixou de exercer alguma influência no vigente Direito Constitucional laboral.
De facto, a Constituição garante aos trabalhadores, no artigo 53º, a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos, considerando-se que uma tal garantia constitui uma manifestação essencial da fundamentalidade do direito ao trabalho e da ideia conformadora da dignidade que lhe vai ligada, deixando a Constituição claro o reconhecimento de que as relações de trabalho subordinado não se configuram como relações entre iguais, ao jeito das que se estabelecem no sistema civilístico dos contratos (cf. Acórdão nº 581/95, in Diário da República, Iª Série-A, de 22 de Janeiro de 1996).
A consagração constitucional da segurança no emprego com a proibição do despedimento sem justa causa, leva, em princípio, ao reconhecimento de que deve existir estabilidade no emprego. Assim, a garantia da estabilidade da posição do trabalhador na relação de trabalho e a sua não funcionalização aos interesses da entidade patronal- cf. acórdão nº 107/88, deste Tribunal, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º Vol., pág. 7 e segs.
- impõe-se ao legislador ordinário de tal forma que este tem a obrigação de erigir todo um conjunto de instrumentos legislativos que visem, a realização, em concreto, daquela garantia constitucional.
O condicionamento da possibilidade legal da celebração do contrato de trabalho a prazo é, ao lado da excepcionalidade dos regimes de suspensão e da caducidade do contrato de trabalho, um desses instrumentos.
Vejamos em que termos.
A Lei de Autorização Legislativa nº 107/88, de 17 de Setembro, estabelecia no seu artigo 2º, alínea j), a possibilidade de o Governo vir a concretizar uma revisão do contrato de trabalho a termo, tendo em conta os objectivos de retoma da aceitação da contratação a termo incerto ao lado da contratação a termo certo ou a prazo. Para o efeito, a legislação a editar pelo Governo deveria proceder à delimitação clara das situações que legitimariam a contratação a termo; deveria determinar a exigência da forma escrita para o contrato, com indicação expressa da circunstância justificativa da estipulação do termo, bem como a redução da duração máxima do contrato a termo quando fosse objecto de renovações, o reconhecimento ao trabalhador do direito a uma compensação pecuniária pela caducidade do contrato que seja proporcional à sua duração e a proibição de rotação dos trabalhadores admitidos a termo na ocupação do mesmo posto de trabalho.
Em execução do assim projectado, o Decreto-Lei nº
64-A/89 procedeu à reforma do regime jurídico do contrato de trabalho a prazo constante do Decreto-Lei nº 781/86, de 28 de Outubro.
Os traços distintivos deste novo regime regulador do contrato a termo, podem alinhar-se da seguinte forma:
- tipificação por forma taxativa das situações em que é admitida a celebração do contrato a termo, sempre com a indicação expressa, em qualquer caso, do motivo justificativo;
- enumeração, também taxativa, das situações em que a duração do contrato pode ser inferior a seis meses;
- tentativa de desmotivação da celebração de contratos por prazos curtos, ainda que superiores a seis meses, limitando as renovações a duas, com um prazo máximo de duração do contrato de três anos consecutivos;
- enumeração taxativa das situações em que é possível celebrar um contrato a termo incerto;
- conversão dos contratos a termo em contratos sem termo quando o prazo fixado for excedido;
- a previsão de uma compensação por caducidade do contrato.
Assim, a forma relativamente ampla pela qual era permitida, na legislação anterior (Decreto-Lei nº 781/76), a celebração de contratos a prazo, foi profundamente alterada, passando agora a possibilidade de contratar a termo a ser mais limitada, restringindo-se rigorosamente às situações tipificadas na lei e sempre condicionando a validade do acordo sobre o prazo do contrato à indicação do motivo justificativo do termo, sob pena de, não contendo tais elementos, o contrato vir a ser considerado sem termo.
A norma questionada respeita à forma do contrato de trabalho a termo, impondo que este tipo de contrato tem de ser reduzido a escrito e de conter as menções que constam dos respectivos números e alíneas, sob pena de a falta de algumas dessas menções converter o contrato em contrato de trabalho de duração indeterminada, considerando a jurisprudência laborística que esta exigência da forma escrita é uma formalidade ad substanciam.
Temos, assim, que a garantia constitucional da segurança no emprego pressupõe e implica a garantia da estabilidade na relação laboral, do que resulta ser o contrato de trabalho sem prazo (ou com prazo de duração indeterminado) o tipo de contrato que melhor assegura aqueles interesses dos trabalhadores e dos fins sociais que a actividade laboral visa realizar, de onde resulta ser o contrato a termo a excepção e o contrato sem termo a regra.
Com efeito, se fosse inteiramente livre a celebração de contratos de trabalho a termo mais ou menos curto, então o empregador não mais necessitava de trabalhadores permanentes, que não poderia despedir: a garantia de segurança no emprego ficava totalmente esvaziada, pois ao empregador bastava não renovar os contratos no termo do prazo para dispensar o trabalhador.
Desta resumida análise do regime do contrato de trabalho a termo, deriva que as partes ao celebrá-lo não são totalmente livres, devendo respeitar as exigência legais referenciadas.
5. - Mas será a exigência legal de fazer constar do contrato escrito de trabalho a termo certo o motivo justificativo do termo, sob pena de o contrato se converter em contrato de duração indeterminada, uma exigência que viole o princípio da igualdade e o da proporcionalidade?
A resposta, adiante-se desde já, não pode deixar de ser negativa.
Analisemos, em primeiro lugar, a perspectiva de violação do princípio da igualdade.
O artigo 13º da Constituição, depois de estabelecer que
'todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei' (nº
1), determina no nº 2 que 'ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social'.
O âmbito de pro
ção do princípio da igualdade ínsito neste preceito, abrange diferentes dimensões: a proibição do arbítrio, que torna inadmissível não só a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, apreciada esta de acordo com critérios objectivos de relevo constitucional, mas também o tratamento idêntico de situações manifestamente desiguais; a proibição de discriminação que não permite quaisquer diferenciações entre cidadãos baseadas em categorias meramente subjectivas e, por último, a obrigação de diferenciação como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação pelos poderes públicos de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, 'Constituição da República Portuguesa Anotada',1º vol., 3ª ed., Coimbra, 1993, pp.127 e segs.).
A igualdade consiste, assim, em tratar por igual o que é essencialmente igual e tratar diferentemente o que essencialmente for diferente. A igualdade não proíbe, pois, o estabelecimento de distinções, o que com ela se proíbe são as distinções arbitrárias ou sem fundamento material bastante. Tais distinções são materialmente infundadas sempre que assentam em motivos que não oferecem um carácter objectivo e razoável, ou seja, quando a norma em causa não apresenta qualquer fundamento material razoável.
No caso em apreço não se vislumbra a violação de qualquer um destes aspectos da igualdade. De facto, da exigência legal não resulta qualquer situação de arbítrio, discriminação; acresce que a obrigação de indicação do motivo justificativo no contrato a termo não cria nem reveste um
«privilégio inaceitável» para o trabalhador: como se referiu, foi a excepcionalidade da contratação a termo e a necessidade da limitação da sua utilização pelos empregadores que levou o legislador não só à tipificação taxativa das situações em que é possível, como também à criação de uma série de garantias desmotivadoras da celebração desses contratos, tudo em nome da realização efectiva da estabilidade e segurança no emprego.
Inexiste, assim, qualquer violação do princípio da igualdade, uma vez que não sendo a posição das partes no contrato de trabalho, como se mostrou, inteiramente paritária, o seu tratamento, para ser respeitador da igualdade, não poderá ser também paritário. Aliás, a obrigatoriedade de indicação do motivo justificativo do termo tem em vista, sem dúvida, o posterior controlo jurisdicional dos pressupostos do contrato, com vista ao seu eventual sancionamento, pela conversão em contrato sem termo.
Por outro lado, a consequência jurídica da inobservância quer da forma escrita do contrato quer da indicação do motivo justificativo prevista no nº 3 do artigo 42º do Decreto-Lei nº 64-A/89 não pode taxar-se de excessiva ou desproporcionada, como faz a recorrente.
Na verdade, trata-se de exigências formais (para as quais, como se referiu, a jurisprudência sempre reconheceu a natureza de formalidades ad substanciam), cuja inobservância levaria, pelos princípios gerais e a não existir a norma em causa, à nulidade do contrato, solução esta que viria a beneficiar quem tiraria proveito da inobservância, na medida em que impossibilitaria o trabalhador de provar a existência do contrato e a sua razão de existir, pelo que a solução constante do nº3 do artigo 42º, considerando nula apenas a estipulação do termo, é uma sanção adequada e proporcionada que se justifica por, de certo modo, compensar a desigualdade inicial das posições dos contratantes.
Nos termos expostos, não ocorre qualquer violação do princípio da igualdade ou da proporcionalidade, pelo que o recurso não merece provimento.
III - DECISÃO:
6.- Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa, 4 de Novembro de 1997 Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Armindo Ribeiro Mendes José Manuel Cardoso da Costa