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Processo n.º 447/04
1.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A imobiliária A. deduziu, junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, impugnação judicial da liquidação da contribuição especial a que se refere o Regulamento da Contribuição Especial (RCE) anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, que lhe havia sido efectuada no processo n.º 89/99, no montante de 15.707.381$00.
Invocou então a inconstitucionalidade e a ilegalidade da liquidação efectuada, com fundamento em aplicação retroactiva da contribuição especial, por dizer respeito a aumento de valor de prédio em relação ao qual foi requerida licença para emissão de alvará de construção anteriormente à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março (mais precisamente, em 17 de Novembro de 1997).
Formulou as seguintes conclusões:
“[...]
146. Em suma e em face do exposto supra, a liquidação impugnada é inconstitucional e ilegal, desde logo, porque a tributação em sede de Contribuição Especial resulta, no caso em apreço, de uma aplicação retroactiva do RCE.
147. A aplicação retroactiva decorre de o facto tributário se verificar integralmente em momento anterior à entrada em vigor do RCE;
148. Aquela liquidação é, ainda, ilegal e inconstitucional, uma vez que mesmo que a aplicação do RCE ao caso sub judice não fosse retroactiva, a tributação em sede de Contribuição Especial violaria os princípios constitucionais da tributação do rendimento real, da unicidade do imposto sobre o rendimento e da proporcionalidade.
149. A violação daqueles princípios é uma consequência, não só, do facto de ser abstractamente possível através da Contribuição Especial tributar-se quem suportou, por via da aquisição do prédio, o encargo da sua valorização – a adquirente – e não quem dela beneficia – a vendedora,
150. mas também, atento o facto do prédio ter sido posteriormente objecto de venda, da dupla tributação – manifestamente excessiva – em sede de Contribuição Especial e em sede de IRC, do rendimento resultante da valorização extraordinária daquele.
[...].”
Houve contestação do Representante da Fazenda Pública junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto (fls. 74 e seguinte), alegações da impugnante (fls. 90 e seguintes) e parecer do Ministério Público (fls. 116 e seguintes), tendo-se neste último sustentado o seguinte:
“[...] A liquidação é impugnada com dois fundamentos:
- a aplicação retroactiva do Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março e
- a inconstitucionalidade do Regulamento anexo a esse diploma. A contribuição especial incide sobre o aumento do valor dos prédios rústicos, resultante da possibilidade da sua utilização como terrenos para construção urbana – n.º 1 do art. 1º do Regulamento da Contribuição Especial anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, sendo devida pelos titulares do direito de construir em cujo nome seja emitido o alvará de licença de construção ou de obra, nos termos do art. 3º do mesmo Regulamento. Sendo o alvará de construção emitido em data posterior ao início da vigência do referido Decreto-Lei, não houve aplicação retroactiva desse diploma. No que toca à inconstitucionalidade, alega a impugnante que o referido Regulamento é inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da tributação do rendimento real, da unicidade do imposto sobre o rendimento e da proporcionalidade. No que toca ao primeiro dos fundamentos o que alega a impugnante é que a tributação especial é atentatória do princípio da tributação do rendimento real. Ora, o que o Decreto-Lei n.º 43/98 visou foi a tributação pelo aumento substancial [do valor] dos prédios e dos terrenos resultante dos investimentos efectuados ou a efectuar para a realização da CREL, CRIL, CRIP e CREP. De sorte que não poderia atender-se aos valores dos prédios e terrenos com base em dados adquiridos, pois a avaliação prevista no referido Regulamento tem por base aquela valorização. Por outro lado, a tributação efectuada não deixa de ser uma tributação real, uma vez que a avaliação efectuada não é uma avaliação presumida, assentando antes em critérios objectivos, cujo resultado não foi posto em causa. No que toca à violação do princípio da unicidade do imposto, alega a impugnante que «a concorrência de dois impostos na tributação do mesmo ganho – a Contribuição Especial no caso da mais-valia não realizada e o IRS ou IRC, no caso de mais-valia realizada com a venda – é absolutamente contraditória, nomeadamente com o princípio do rendimento acréscimo e o da unicidade do imposto
[assim, no original]. E que «é inconcebível que tendo o legislador criado um imposto sobre o rendimento – IRS e IRC – venha admitir a existência de um imposto, que ainda que parcialmente – nos casos em que o prédio sujeito àquela contribuição é posteriormente vendido pelo mesmo sujeito passivo –incide sobre o mesmo ganho». Ora, afigura-se-me que a contribuição especial nada tem a ver com as mais ou menos valias realizadas, mas antes com o aumento de valor dos prédios e dos terrenos nos termos do art. 1º, n.ºs 1 e 2, do referido Regulamento e de acordo ainda com o disposto no art. 2º do mesmo Regulamento. Quanto à violação do princípio da proporcionalidade, haverá que atender ao preâmbulo do Decreto-Lei n.º 43/98 quando refere que «os investimentos efectuados ou a efectuar para a realização da CRIL, CREL, CRIP, CREP, e respectivos acessos... vêm valorizar, substancialmente, os prédios rústicos e os terrenos para construção envolventes», justificando-se a criação de uma contribuição especial. A tributação à taxa de 30%, atendendo à valorização substancial dos terrenos e prédios – vistos os investimentos efectuados ou a efectuar – não ofende o princípio da proporcionalidade. Por um lado, porque a contribuição especial apenas incide sobre o aumento do valor dos prédios ou dos terrenos – arts. 1º e 2º do referido Regulamento – e não sobre o valor desses imóveis, e, por outro, e em consequência, não é certa a conclusão de que o contribuinte vê-se despojado de nada menos do que 56,18% do rendimento auferido, já considerado o efeito da relevação da Contribuição Especial como custo do exercício. Assim sendo, deve a presente impugnação ser julgada improcedente.
[...].”
2. Por sentença de 25 de Março de 2003 (fls. 122 e seguintes), o juiz do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto julgou inconstitucionais as normas conjugadas dos artigos 1º, n.º 2, e 2º do Regulamento da Contribuição Especial
(RCE) anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, por violação da norma do artigo 103º, n.º 3, da Constituição e, em consequência, decidiu anular a liquidação impugnada. Pode ler-se no texto da sentença, para o que aqui releva, o seguinte:
“[...] A primeira questão que importa decidir é de saber se ocorreu aplicação retroactiva do RCE anexo ao DL 43/98, de 3 de Março.
[...] No caso vertente está em causa o aumento de valor de áreas resultantes da demolição de prédios urbanos.
[...] A contribuição é devida pelos titulares do direito de construir em cujo nome seja emitido o alvará de licença de construção ou de obra – cfr. art. 3° do RCE. Como resulta das normas que acabámos de transcrever [os artigos 1º e 2º do RCE], a contribuição especial prevista no DL 43/98, de 3 de Março, enquadra-se nas chamadas «contribuições de melhoria», que são aquelas em que é devida uma prestação, em virtude de uma vantagem económica particular resultante do exercício de uma actividade administrativa, por parte de todos aqueles que tal actividade indistintamente beneficia [...]. Tais contribuições especiais são considerados impostos – cfr. art. 4° n.º 3 da LGT. Nos termos da própria lei, a contribuição especial criada pelo DL 43/98, de 3 de Março, incide sobre a valorização dos terrenos ocorrida entre 1 de Janeiro de
1994 e a data do requerimento da respectiva licença de construção. Ou seja, prevê-se nas normas conjugadas dos arts. 1° n.° 2 e 2° do RCE a tributação de um facto que ocorreu antes da entrada em vigor da lei que a determinou. Trata-se, portanto, de normas fiscais retroactivas. Com efeito, uma norma é retroactiva quando ela se refere na sua previsão a factos ocorridos anteriormente à sua entrada em vigor, tenham tais factos o valor de factos tributários ou de factos impeditivos [...]. Ora, nos termos do preceito constitucional contido no art. 103° n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei». Também a norma do art. 12° n.º 1 da Lei Geral Tributária reafirma, ao nível da legislação ordinária, esse princípio constitucional da proibição da retroactividade da lei fiscal:
«As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos». Donde, parece claro, padecem as normas fiscais referidas de inconstitucionalidade material por violação do art. 103° n.º 3 da CRP [...]. Tal inconstitucionalidade implica que essas normas não possam ser aplicadas e, consequentemente, conduz à ilegalidade do acto tributário de liquidação que nelas se sustentou. Procede, com este fundamento, a presente impugnação, resultando prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.
[...].”
3. Desta sentença que recusou a aplicação das mencionadas normas dos artigos 1º, n.º 2, e 2º do Regulamento da Contribuição Especial (RCE) anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (fls.128), tendo tal recurso sido admitido por despacho de fls. 129.
4. Nas alegações (fls. 138 e seguintes), formulou o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional as seguintes conclusões:
“1 – O facto tributário gerador ou constitutivo da «contribuição de melhoria» criada pelo Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, é o aumento de valor dos prédios ou terrenos, resultante da possibilidade da sua utilização como terrenos para construção ou reconstrução urbana, nas freguesias cujas acessibilidades foram excepcional e substancialmente melhoradas com as obras públicas cuja realização está na base da edição daquele diploma legal.
2 – Como critério orientador da avaliação pericial que irá determinar tal
«aumento de valor», causalmente ligado à realização dessas obras públicas, o artigo 2º do Regulamento aprovado pelo citado diploma legal manda atender ao valor hipotético que teriam os prédios em data anterior ao lançamento de tais obras públicas (que se estabelece com referência ao dia 1 de Janeiro de 1994), corrigido pelos coeficientes de desvalorização, e o valor actual de tais bens, à data em que se iniciou o processo de licenciamento que irá consumar e concretizar tal «aumento de valor».
3 – A ponderação da referida data – 1 de Janeiro de 1994 – surge, deste modo, como simples critério orientador do juízo pericial de avaliação, não tendo, deste modo, relação directa com o facto tributário, nem implicando sequer que se esteja perante um facto tributário de formação sucessiva, como ocorreria se a lei mandasse tributar os acréscimos de valor entretanto ocorridos em cada ano fiscal.
4 – O apelo à referida data, como meio de possibilitar aos peritos avaliadores um critério e ponto seguro de referência, para determinar o «valor hipotético» dos bens antes de iniciadas as obras públicas que os valorizaram, em nada afronta o princípio constitucional da proibição da retroactividade da lei fiscal.
5 – Termos em que deverá proceder o presente recurso, já que as normas que integram o objecto do presente recurso não colidem com o princípio da não retroactividade da lei fiscal, nem ofendem qualquer outra norma ou princípio constitucional.”
Também a A. produziu alegações (fls. 147 e seguintes), que concluiu do seguinte modo:
“1ª - Constitui fundamento do recurso a inexistência de inconstitucionalidade das normas sub judice em virtude de, por um lado, o facto tributário consubstanciado na emissão de licença de construção já ter ocorrido na vigência do RCE aprovado pelo Decreto-Lei n.º 43/98 e, por outro lado, porque a data e períodos indicados no art. 2º daquele Regulamento [constituem] um mero indicador para efeitos de avaliação o qual comporta aplicação retroactiva;
2ª - Integrando-se naqueles fundamentos questão cuja sindicância não pode, quer por força da natureza do recurso interposto, quer pela competência do Tribunal Constitucional, constituir objecto do mesmo, qual seja a da aferição do momento em que se deu por verificado o facto tributário em sede de Contribuição Especial;
3ª - E constituindo esta a trave mestra de toda a argumentação expendida nas alegações do recorrente, deve esse Venerando Tribunal Constitucional abster-se de conhecer do objecto do recurso por força do disposto, designadamente, nos arts. do art. 280º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, dos arts. 70º, n.º 1, alínea a), e 71º, n.º 1, ambos da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as redacções introduzidas pela Lei n.º 143/85, de 26 de Novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei n.º 88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro;
4ª - Tal conclusão não surge prejudicada por força da aplicação do princípio do aproveitamento dos actos processuais, uma vez que os restantes fundamentos daquele recurso somente permitiriam, em abstracto, suportar uma alegada constitucionalidade do art. 2º, n.º 1, do RCE e não da aplicação conjugada do mesmo com o art. 1º, n.º 2, do mesmo Regulamento;
5ª - O princípio enformador da proibição retroactiva das normas fiscais prevista no art. 103º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa é o da protecção das legítimas expectativas dos cidadãos contribuintes;
6ª - Atenta a factualidade dada como provada nos autos de impugnação, aquela legítima expectativa, digna de protecção legal, firmou-se na data da apresentação do requerimento para a emissão da licença de construção, anterior à entrada em vigor do RCE;
7ª - Logo, a tributação em sede de Contribuição Especial do «aumento de valor» dos prédios em apreço, por força da aplicação conjugada dos arts. 1º, n.º 2, e
2º do RCE, só ocorre mediante a aplicação retroactiva dos mesmos, pelo que é violadora do citado normativo constitucional;
8ª - Acresce que, mesmo apreciados em concreto os argumentos expendidos nas doutas alegações do ilustre Procurador-Geral da República Adjunto, os mesmos se afiguram ser insusceptíveis de suportar entendimento em sentido diverso;
9ª - Com efeito, e em primeiro lugar, a emissão do alvará de licença de utilização não constitui elemento da incidência objectiva, mas da incidência subjectiva;
10ª - Pelo que a sua verificação em momento posterior à entrada em vigor do RCE não afasta a retroactividade da aplicação do mesmo ao caso vertente;
11ª - Em segundo lugar porque, quer a data de 1 de Janeiro de 1994, quer o período compreendido entre a mesma e a data da apresentação do requerimento tendente à emissão da licença de construção, não são um mero critério orientador para efeitos de avaliação, sem qualquer relação com o facto tributário.
12ª - Efectivamente, tais data e períodos são elementos integrantes do próprio facto tributário;
13ª - Assim, qualquer aplicação do art. 2º do RCE, a período integralmente decorrido em momento anterior à sua entrada em vigor é inconstitucional por violação do disposto no art. 103º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
14ª - Logo, é manifesta a inconstitucionalidade do preceituado nos arts. 1º, n.º
2, e 2º do Regulamento da Contribuição Especial previsto no Decreto-Lei n.º
43/98, quando aplicados ao caso sub judice,
15ª - Pelo que bem andou o Meritíssimo Juiz do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto ao decidir no sentido da não aplicação dos citados preceitos por violação do disposto no art. 103º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.”
5. Notificado para se pronunciar sobre a questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pela recorrida, veio o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional dizer o seguinte (fls. 171 e seguintes):
“1º - Fundando-se o recurso interposto pelo Ministério Público na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, a sua cognoscibilidade depende apenas de ter ocorrido numa efectiva desaplicação das normas que integram o objecto do recurso, tal como é delimitado pelo recorrente.
2º - Sendo evidente que, no caso dos autos, o tribunal recorrido desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade, as normas que o recorrente tratou de especificar – pelo que naturalmente se verificam inteiramente os pressupostos de admissibilidade do tipo de recurso interposto.
3º - Afigurando-se que, na sua argumentação, a recorrida confunde os planos do objecto «normativo» de um recurso de constitucionalidade e das «questões» que o Tribunal Constitucional terá de resolver previamente, para concluir por um juízo de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de tais normas.
4º - E sendo evidente que, para realizar tal operação, cabe naturalmente, e por inteiro, nos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional a densificação e concretização dos princípios constitucionais – no caso, o da não retroactividade da lei fiscal – quer a interpretação das próprias normas de direito infraconstitucional, na medida em que ela seja necessária à formulação do juízo acerca da constitucionalidade dos preceitos legais desaplicados – nomeadamente, no que respeita à definição de qual seja o facto tributário relevante para a situação controvertida nos autos e a sua localização temporal.
5º - Termos em que deverá naturalmente conhecer-se do recurso, improcedendo a questão prévia suscitada.”
Cumpre apreciar e decidir.
II
6. Constitui objecto do presente recurso a apreciação da conformidade constitucional das normas dos artigos 1º, n.º 2, e 2º do RCE anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, numa determinada interpretação: a de que, sendo a licença de construção requerida antes da entrada em vigor do referido diploma, seria devida a contribuição especial por ele instituída, que, assim, incidiria sobre a valorização do terreno ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele requerimento.
Segundo o tribunal ora recorrido, as mencionadas normas, na interpretação descrita, contrariariam o disposto no artigo 103º, n.º 3, da Constituição, tendo sido, por isso, recusada a respectiva aplicação (supra, 2).
7. Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (supra, 3.), constitui seu pressuposto processual a recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma (ou interpretação normativa) que se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie.
Segundo a recorrida, o Tribunal Constitucional deveria abster-se de conhecer do objecto do presente recurso, pois que a identificação, pelo Ministério Público, nas suas alegações, de um facto tributário distinto daquele que foi considerado pelo tribunal recorrido implicaria que a questão a final submetida à apreciação do Tribunal Constitucional pelo Ministério Público não se reconduziria à questão analisada pelo tribunal recorrido; segundo o Ministério Público, esta argumentação não procederia, pois que a identificação de um facto tributário distinto daquele que foi considerado pelo tribunal recorrido não se repercutiria na delimitação do próprio objecto do recurso, constituído pelas normas cuja aplicação foi recusada.
Neste aspecto, assiste razão ao Ministério Público.
O que importa saber é se pode dar-se como verificado no caso o pressuposto processual do recurso interposto, ou seja, a recusa de aplicação de uma norma
(ou interpretação normativa) pelo tribunal recorrido, com fundamento em inconstitucionalidade.
Ora este pressuposto encontra-se preenchido, pois que o tribunal recorrido considerou inconstitucionais as normas dos artigos 1º, n.º 2, e 2º do RCE anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, na interpretação acima assinalada, e por isso recusou a sua aplicação. Como claramente se diz no texto do acórdão recorrido (supra, 2.):
“[...] Nos termos da própria lei, a contribuição especial criada pelo DL 43/98, de 3 de Março, incide sobre a valorização dos terrenos ocorrida entre 1 de Janeiro de
1994 e a data do requerimento da respectiva licença de construção. Ou seja, prevê-se nas normas conjugadas dos arts. 1º n.º 2 e 2º do RCE a tributação de um facto que ocorreu antes da entrada em vigor da lei que a determinou. Trata-se, portanto, de normas fiscais retroactivas.
[...]”.
A circunstância de o Ministério Público discordar das razões que levaram o tribunal recorrido a formular o juízo de inconstitucionalidade, por questionar o próprio facto tributário identificado por este tribunal, não pode obviamente implicar a impossibilidade de conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
É que, não sendo este recurso, ainda que obrigatório, um recurso em que se restrinjam os normais poderes de alegação do Ministério Público, tem de se admitir que o respectivo objecto se mantém inalterado ainda que o Ministério Público discorde das razões que levaram o tribunal recorrido a concluir no sentido da retroactividade das normas que recusou aplicar, por ter identificado um facto tributário diverso daquele que foi identificado pelo tribunal recorrido.
8. Julgada improcedente a questão prévia levantada pela recorrida, vejamos agora a questão de fundo.
Importa, para tanto, considerar o texto dos artigos 1º, n.º 2, e 2º, do Regulamento da Contribuição Especial (RCE), anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março:
“Artigo 1º
[...]
2 – A contribuição especial incide ainda sobre o aumento de valor dos terrenos para construção e das áreas resultantes da demolição de prédios urbanos já existentes situados nas áreas referidas no número anterior.
[...].
Artigo 2º
1 – Constitui valor sujeito a contribuição a diferença entre o valor do prédio à data em que for requerido o licenciamento de construção ou de obra e o seu valor
à data de 1 de Janeiro de 1994, corrigido por aplicação dos coeficientes de desvalorização da moeda constantes da portaria a que se refere o artigo 43º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, correspondendo, para o efeito, à data de aquisição a data de 1 de Janeiro de 1994 e à de realização a data da emissão do alvará de licença de construção ou de obra.
2 – Os valores que servem para determinar a diferença são determinados por avaliação nos termos do presente Regulamento.”
Como antes se assinalou, as normas dos preceitos transcritos serão analisadas numa específica interpretação, que é aquela que constitui o objecto do presente recurso: a de que a contribuição especial é devida nos casos em que a licença de construção tenha sido requerida antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, incidindo, como tal, sobre a valorização do terreno (no qual se pretende construir) ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele requerimento.
Não pode obviamente o Tribunal Constitucional controlar tal interpretação, sob o prisma da sua obediência às regras da interpretação da lei: nomeadamente, não pode o Tribunal Constitucional aferir se os citados preceitos legais deviam ter sido interpretados pelo tribunal recorrido do modo por que o foram, isto é, como sendo aplicáveis aos casos em que a licença de construção tenha sido requerida antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março. Ao Tribunal Constitucional compete apenas apreciar se a interpretação perfilhada (bem ou mal) pelo tribunal recorrido contraria a Constituição, particularmente o princípio da não retroactividade dos impostos.
9. A contribuição especial instituída pelas normas transcritas (na sua modalidade de contribuição de melhoria), embora seja conceitualmente diferenciada do imposto, está sujeita ao regime constitucional desta figura
(cfr. José Casalta Nabais, “Jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria fiscal”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 69,
1993, p. 387-434, p. 398).
E, de acordo com o n.º 3 do artigo 103º da Constituição, “ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei” (itálico acrescentado).
O princípio da não retroactividade dos impostos – consagrado nesta disposição com a quarta revisão da Constituição portuguesa, operada pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro – , “é, em geral, reconduzido ao princípio da protecção da confiança ínsito na ideia de Estado de direito democrático, ou mesmo ao princípio da capacidade contributiva” (cfr. José Casalta Nabais,
“Jurisprudência...”, ob. cit., p. 404, nota 57). Assim, antes da quarta revisão da Constituição, era já possível sustentar que “é [...] no princípio da confiança jurídica, enquanto dimensão inarredável da ideia de Estado-de-direito democrático, e não simplesmente no princípio da legalidade, que se encontrará
[...] um limite constitucional à admissibilidade de normas fiscais retroactivas”
(cfr. J. M. Cardoso da Costa, “O enquadramento constitucional do Direito dos Impostos em Portugal: a jurisprudência do Tribunal Constitucional”, in Perspectivas Constitucionais: Nos 20 anos da Constituição de 1976, Vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 397-428, p. 417).
Não obstante a norma do n.º 3 do artigo 103º da Constituição não resolver todos os problemas que, quanto à definição da lei fiscal retroactiva, se podem colocar (neste sentido, J. L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, Lisboa, Lex, 1998, p. 63), parece certo que nenhuma questão de retroactividade se coloca (e, portanto, nenhuma violação da pertinente proibição constitucional se verifica) quando o facto tributário seja instantâneo e tenha ocorrido na vigência da lei nova ou quando, sendo de formação sucessiva, tenha inteiramente ocorrido na vigência da lei nova.
10. Ora, a interpretação perfilhada pelo tribunal recorrido não considerou qualquer facto tributário de formação sucessiva.
Aliás, como salienta o Ministério Público nas suas alegações (fls.
144), as normas em apreço no presente recurso não pressupõem “um facto tributário de formação sucessiva, como sucederia se a lei mandasse contemplar autonomamente o acréscimo de valor ocorrido em cada ano ou período fiscal”.
O facto tributário pressuposto pela interpretação normativa acolhida pelo tribunal recorrido é, assim, um facto instantâneo.
Como, a propósito, salienta Jorge Bacelar Gouveia (“A irretroactividade da norma fiscal na Constituição portuguesa”, in Estudos de Direito Público, Vol. I, Principia, 2000, p. 257-301, p. 278), “a chave da determinação da retroactividade reside [...] na localização do nascimento do imposto, que é o da formação do facto tributário – não de qualquer outro momento posterior, como o do acto de liquidação”.
Não levanta obviamente qualquer problema de retroactividade – nem de resto levantou ao tribunal recorrido – a ponderação da data de 1 de Janeiro de 1994, nos termos do artigo 2º, n.º 1, do RCE, pois que a qualquer contribuição de melhoria subjaz a consideração de que ocorreu uma vantagem económica particular, o que só pode ser aferido por referência a uma situação patrimonial pretérita.
Contudo, tendo o tribunal recorrido considerado – num caso em que a licença para emissão de alvará de construção tinha sido requerida antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março – que o imposto incidia sobre o aumento do valor do prédio à data da apresentação do requerimento de licenciamento de construção, há que concluir que o facto tributário subjacente à interpretação normativa que constitui o objecto do presente recurso ocorreu num momento anterior à data da entrada em vigor do diploma que instituiu o imposto (o Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março).
Tal significa que essa interpretação normativa conduz ao pagamento retroactivo de um imposto, contrariando, por isso, o disposto no artigo 103º, n.º 3, da Constituição.
III
11. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucionais, por violação do princípio da não retroactividade dos impostos, consagrado no artigo 103º, n.º 3, da Constituição, as normas dos artigos 1º, n.º 2, e 2º do Regulamento da Contribuição Especial anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, na interpretação segundo a qual sendo a licença de construção requerida antes da entrada em vigor deste diploma seria devida a contribuição especial por este instituída, que, assim, incidiria sobre a valorização do terreno ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele requerimento;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida quanto ao julgamento de inconstitucionalidade.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2005
Maria Helena Brito Maria João Antunes Rui Manuel Moura Ramos Carlos Pamplona de Oliveira – vencido conforme declaração. Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanho o presente acórdão na parte em que julga inconstitucionais as normas em apreço. O quadro legal em que se desenvolvem as normas em causa, e seus antecedentes (DL 54/95 de 22MAR, maxime, artigo 2º), revelam que, ao contrário do que se afirma, o facto tributário aqui considerado ocorre quando é emitido o alvará, pois só então fica definitivamente assente o interesse jurídico de que depende – o concreto direito a construir que o alvará titula – e o sujeito passivo do imposto – o titular do direito em cujo nome é emitido o alvará (artigo 3º do mesmo diploma). E, na verdade, há boas razões para o legislador descortinar nesse momento a ocorrência do facto tributário, uma vez que a contribuição incide sobre o
“direito a construir”, e se sabe que é através do alvará que o particular fica investido na situação jurídica especial que permite a quem satisfaz determinados requisitos uma actividade de construção ou de obra, em princípio vedada a qualquer outro interessado. A circunstância de o artigo 2.º, n. 1 do DL 43/98 de 03MAR considerar a data em que é requerido o licenciamento para determinar o valor sujeito a contribuição,
é insignificante neste domínio e explica-se por motivos de que não cabe agora curar. Votei, portanto, no sentido do provimento do recurso.
Carlos Pamplona de Oliveira