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Proc. nº 654/95
1ª Secção Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - O Tribunal da Comarca de Leiria, em processo de expropriação por utilidade pública, sendo expropriante a Junta Autónoma das Estradas e expropriadas A. e B. e marido, fixou em Esc. 9.718.548$00 o valor da parcela de terreno destinada à construção da Variante da ..........., na Estrada Nacional
.........
A sentença, que assim se afastou do quantum indemnizatório antes determinado pelos árbitros - que era de Esc. 22.669.200$00 - considerou que a parcela expropriada havia de ser classificada como 'terreno situado fora do aglomerado urbano ou em zona diferenciada do aglomerado urbano', já que a infra-estrutura 'drenagem de esgotos' criada em momento posterior à declaração de utilidade pública, não podia relevar por efeito do artigo 29º do Código das Expropriações de 1976 [aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro e aplicável ao caso].
Os expropriados recorreram da sentença para o Tribunal da Relação de Coimbra. E, em acórdão de 13 de Junho de 1995, a Relação julgou procedente o recurso, retomando os critérios e o montante de indemnização que foram fixados pelos árbitros.
O acórdão estrutura-se numa linha argumentativa em que relevam dois momentos essenciais:
O primeiro momento: é o que significa que o cálculo da indemnização deve ser referido ao momento em que o expropriado a recebe: 'Na perspectiva dos autores [Menezes Cordeiro e Miguel Teixeira de Sousa], que se subscreve, a indemnização terá de ser referida ao momento em que o expropriado a vai, efectivamente, receber, podendo ir-se mesmo além do valor indicado pelos peritos quando até ao momento da decisão (quando) surjam outros elementos actuais atendíveis.
Diferentemente, o actual Código das Expropriações (Decreto-Lei nº
438/91, de 9/11), no seu artigo 23º, manda calcular a indemnização com referência à data da declaração de utilidade pública, determinando depois a actualização à data da decisão final do processo de acordo com a evolução do
índice dos preços ao consumidor, com exclusão da habitação.
Mas não é este o diploma aplicável, como se viu.
Deste modo, aquando da arbitragem já havia rede de drenagem de esgotos, e aquando da avaliação pelos peritos, já tal rede estava em funcionamento, a menos de 50 metros de distância da parcela expropriada que entestava com E.N. pavimentada e com rede de electricidade e de abastecimento de
água, numa zona rodeada por prédios de habitação e edifícios comerciais e industriais, na cidade de Leiria, o que tudo não pode ser escamoteado [...].
Sendo assim, faz parte do aglomerado urbano de acordo com o artigo
62º nº 1 do D.L. 794/76, de 5 de Novembro (ex vi artigo 131º do D.L. 845/76), segundo o qual se entende por aglomerado urbano o núcleo de edificações autorizadas e respectiva área envolvente, possuindo vias públicas pavimentadas e que seja servido por rede de abastecimento domiciliário de água e de drenagem de esgotos, sendo o seu perímetro definido pelos pontos distanciados de 50 metros das vias públicas onde terminam aquelas infra-estruturas urbanísticas [...]'.
O segundo momento: é o que significa que o artigo 29º do Código das Expropriações de 1976 é inconstitucional:
'Obtemperar-se-á, porém, que a recente implantação da rede de esgotos não poderá ser atendida mercê do estatuído no artº 29º do Cód. das Expropriações, por aí se textuar que para a determinação do valor do bens se não pode tomar em consideração a mais valia resultante de obras, melhoramentos públicos ou infra-estruturas realizadas nos últimos dez anos, da própria declaração de utilidade pública da expropriação ou, ainda de quaisquer circunstâncias ulteriores a essa declaração, dependentes da vontade do expropriado ou de terceiro (nº 1) [...].
A razão de ser deste normativo, como refere Fernando Alves Correia in As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, a pág. 141, prende-se com a consideração de que a mais valia pertence à colectividade e não ao proprietário expropriado, sendo de toda a justiça que, tendo as obras sido custeadas com recursos provenientes da Contribuição de todos os cidadãos, esse valor seja recuperado pela comunidade (nº 1), visando-se com a não consideração das benfeitorias levadas a cabo pelo expropriado, posteriormente à declaração da utilidade pública, evitar que ele intencionalmente crie condições para o avolumar da indemnização (ibidem., pág. 148 e segs.).
Só que se nos afigura que aquele artº 29º é inconstitucional, o que se declara, por violação do princípio constitucional da igualdade, contemplado no artigo 13º nº 1 da Constituição da República, não podendo assim ser aplicado pelo julgador.
Se assim não fosse, criar-se-iam flagrantes situações de desfavor, sem fundamento razoável bastante, em confronto com outros proprietários que poderiam transaccionar os seus prédios pelo seu valor real e corrente a que aludem os artºs. 27º nº 2 e 28º nº 1 do Cód. Expropriações em referência [...]'.
O Ministério Público interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro. E, em alegações, concluiu assim:
'
1º
Não implica violação do princípio da justa indemnização, constante do nº 2 do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, a circunstância de, no cômputo da indemnização devida ao expropriado, se dever tomar em consideração o valor dos bens face às circunstâncias e condições de facto existentes à data da declaração de utilidade pública, não se atendendo às mais-valias decorrentes de obras públicas ou infra-estruturas urbanísticas posteriores àquela data.
2º
Não constitui violação do princípio constitucional da igualdade a circunstância de - ao contrário do proprietário expropriado, que viu os seus direitos extinguirem-se com o acto expropriativo - os proprietários não atingidos pela expropriação poderem, no futuro, vir a alienar os seus direitos em condições eventualmente mais vantajosas, beneficiando designadamente - e na medida em que não esteja implementada satisfatoriamente uma tributação das mais-valias decorrentes de obras públicas entretanto realizadas - do incremento do valor patrimonial dos seus bens'.
II - A fundamentação
1. O acórdão recorrido, da Relação de Coimbra, julgou inconstitucional a norma do artigo 29º, nº 1 [e a do nº 2 que lhe vai ligada] do Código das Expropriações de 1976, numa complexa interpretação a fazer relevar, primeiro, o momento a que se reportam as mais-valias que se acrescentam ao bem expropriado e, depois, o problema dos limites que, com independência da determinação desse momento, se põem à consideração delas no cálculo da indemnização.
A norma do 29º do Código das Expropriações de 1976 diz assim:
'1 - Para a determinação do valor dos bens, não pode tomar-se em consideração a mais-valia resultante de obras, melhoramentos públicos ou infra-estruturas realizadas nos últimos 10 anos, da própria declaração de utilidade pública da expropriação ou, ainda, de quaisquer circunstâncias ulteriores a essa declaração, dependentes da vontade do expropriado ou de terceiro.
2 - Para efeitos do número anterior, consideram-se obras ou melhoramentos públicos e infra-estruturas todos aqueles cuja realização tenha sido financiada ou predominantemente comparticipada, em numerário ou em materiais, pelo estado ou seus organismos autónomos, autarquias locais, empresas concessionárias de serviços públicos, pessoas colectivas de utilidade pública administrativa ou empresas públicas'.
2. A questão de constitucionalidade do artigo 29º, nº 1, impostada pela conformação concreta da interpretação do acórdão recorrido da Relação de Coimbra, exige a solução de dois problemas reciprocamente conexos: 1º - o da legitimidade dos limites impostos pela norma e 2º - o da determinação do momento constitucionalmente adequado a partir do qual devem ser consideradas as mais-valias, no caso de a sua inclusão no valor da indemnização ser admissível.
3. O primeiro problema, da validade constitucional dos limites que decorrem da norma do artigo 29º, nº 1, do Código das Expropriações de 1976 é, afinal, o problema da legitimidade das chamadas 'claúsulas de redução'. Com estas claúsulas, a lei pretende descontar ao valor global da indemnização do bem expropriado, as mais-valias que esse bem internalizou por obra dos poderes públicos. A doutrina e a jurisprudência que aceitem estas claúsulas, fundam-nas numa ideia 'comutativa' de compensação do poder público, que assim não indemnizará o expropriado pelo valor acrescido do bem, resultante, ainda que por forma indirecta, de obra sua. E a isso chamam 'a vertente do interesse público da expropriação'. Foi assim que decidiu, com um voto de vencido, mas para uma diferente hipótese, o acórdão nº 314/95, D.R., II série, de 31-10-1995.
Esta dimensão de inter-compensação entre particular e comunidade no caso da expropriação [que o Sr. Procurador-Geral Adjunto, em alegações, assimila
à teoria da diferença no Direito Civil] só é porém legítima se ela não interfere com a justa indemnização e a igualdade na vertente externa da expropriação, isto
é, se ela resiste à comparação da situação do particular expropriado com a situação dos demais particulares, nas mesmas circunstâncias. Isso funda a justificação da exclusão do valor da indemnização das mais-valias que resulte da própria declaração de utilidade pública ou, como é este caso, sobrevenham em momento posterior ao da declaração de utilidade pública, para tomar como exemplo certos desideratos do artigo 29º do Código das Expropriações de 1976, aqui em análise.
4. No sentido de infirmar a violação do princípio da igualdade, o Sr. Procurador-Geral Adjunto, em alegações, adverte para que a situação do particular expropriado não é idêntica à situação dos demais particulares. Estes permanecem titulares dos bens e, assim, das mais-valias que nesses bens se vêm incorporar, enquanto o particular expropriado tem a titularidade do bem intersectada pela expropriação, pelo que se quebra toda a relação entre sujeito e direito.
Diz, em dado passo, o Sr. Procurador-Geral Adjunto:
'A circunstância de a expropriação envolver a irremediável extinção do direito sobre o bem expropriado será, deste modo, um elemento que torna materialmente justificado que determinados 'lucros cessantes' futuros - ulteriores à 'alienação forçada' do direito - possam não ser tidos em consideração no cômputo da indemnização devida ao expropriado.
Nesta perspectiva - assente a legitimidade constitucional do acto expropriativo e da 'cláusula de redução' emergente da norma em apreciação, à face do nº 2 do artigo 62º da Constituição da República Portuguesa - dilui-se substancialmente a invocada 'desigualdade de tratamento' entre proprietários expropriados e não expropriados, que acabará por ser idêntica à que, porventura, se pudesse verificar entre proprietários que alienaram, em certo momento, o seu direito sobre determinado bem e os que - por o terem conservado no seu património - podem no futuro vir a aliená-lo em condições mais vantajosas.
Ou seja: apenas ocorreria desigualdade de tratamento constitucionalmente relevante se o preço eventualmente obtido, em certo momento, pelos proprietários que alienassem um prédio de que eram titulares fosse arbitrária e injustificadamente diverso do montante indemnizatório emergente de um acto expropriativo, reportado a esse mesmo momento.
Não importará, pelo contrário, violação do princípio da igualdade a circunstância de a determinação da indemnização devida ao expropriado dever assentar nas 'circunstâncias e condições de facto existentes à data da declaração de utilidade opública', não sendo lícito tomar em consideração 'a mais-valia que resultar da própria declaração de utilidade pública da expropriação para todos os prédios sa zona em que se situa o prédio expropriado'
(cfr. artigo 22º do Código das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei nº
438/91, de 9 de Novembro) ou da realização de obras públicas ou infra-estruturas urbanísticas posteriores à data da declaração de utilidade pública'.
É verdade isso, que o momento constitucionalmente adequado para a consideração das mais-valias incorporadas no bem expropriado é o da declaração de utilidade pública [como agora vem dizer o novo Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro]. É até esse momento que o particular atingido detém um status sobre a coisa em identidade com o status dos demais particulares sobre coisas com as mesmas características. Por isso que a exclusão das mais-valias posteriores à declaração de utilidade pública não atenta contra os mandados constitucionais da igualdade e justa indemnização.
III - Nestes termos, decide-se:
a) - Não julgar inconstitucional a norma do artigo 29º, nº 1, do Código das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro, na medida em que exclui da determinação do valor dos bens as mais-valias incorporadas posteriormente ao momento da declaração de utilidade pública;
b) - Determinar a reforma da decisão recorrida em harmonia com o precedente julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 2 de Julho de 1997 Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma Armindo Ribeiro Mendes Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz José Manuel Cardoso da Costa