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Processo nº 620/05
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de recurso, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em
que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., Lda., foi interposto
recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº
1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal, de 11 de Maio de 2005.
Esta decisão, acolhendo argumentação da ora recorrida, considerou que a Portaria
nº 1056/2002, de 20 de Agosto, que aprovou o Regulamento do Apoio às Actividades
Musicais de Carácter Profissional e de Iniciativa não Governamental para o Ano
de 2003 enfermava de inconstitucionalidade formal, por violação do disposto no
artigo 112º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa (CRP), na redacção
vigente à data em que foi emitida tal Portaria.
2. A ora recorrida interpôs no Supremo Tribunal Administrativo recurso
contencioso de anulação do despacho do Senhor Secretário de Estado Adjunto do
Ministro da Cultura, de 20 de Maio de 2003, que homologou a “Acta final e
decisória” do Júri do Concurso de Apoio às Actividades Musicais de Carácter
Profissional e de Iniciativa não Governamental para o Ano de 2003, regulado pelo
Regulamento mencionado.
Pelo acórdão recorrido, o Supremo Tribunal Administrativo concedeu provimento ao
recurso contencioso e anulou o acto recorrido por vício de violação de lei. É o
seguinte, para o que agora releva, o teor da decisão recorrida:
«A primeira questão colocada pela Recorrente é a da inconstitucionalidade formal
da Portaria n.º 1056/2002, de 20 de Agosto.
Esta Portaria aprovou regulamentos de apoio às actividades teatrais, musicais,
de dança e transdisciplinares de carácter profissional e de iniciativa não
governamental para o ano de 2003, designadamente os seguintes:
a) Regulamento do Apoio às Actividades Teatrais de Carácter
Profissional e de Iniciativa não Governamental para o Ano de 2003 (anexo I);
b) Regulamento do Apoio às Actividades da Dança de Carácter Profissional e de
Iniciativa não Governamental para o Ano de 2003 (anexo II);
c) Regulamento do Apoio às Actividades Musicais de Carácter Profissional e de
Iniciativa não Governamental para o Ano de 2003 (anexo III);
d) Regulamento do Apoio a Projectos Transdisciplinares de Carácter Profissional
e de Iniciativa não Governamental para o Ano de 2003 (anexo IV).
No caso em apreço, o procedimento administrativo que esteve subjacente ao acto
recorrido fez aplicação do Regulamento do Apoio às Actividades Musicais de
Carácter Profissional e de Iniciativa não Governamental para o Ano de 2003.
Do texto dessa Portaria não consta qualquer referência a diploma legislativo que
essa Portaria vise regulamentar ou que defina a competência subjectiva ou
objectiva para a sua emissão.
O art. 112.º, n.º 8 da C.R.P., na redacção da Lei Constitucional 1/2001, de 12
de Dezembro, vigente à data em que foi emitida aquela Portaria, estabelece o
seguinte:
8. Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou
que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão.
Esta norma constitucional estabelece «a precedência da lei relativamente a toda
a actividade regulamentar» e o «dever de citação da lei habilitante por parte de
todos os regulamentos»). «Esta disciplina é, em principio extensiva a todas as
espécies de regulamentos, incluindo os chamados regulamentos independentes (cfr.
Artigo 112.º/77 e 8), ou seja, aqueles cuja lei se limita a definir a
competência subjectiva para a sua emissão.
«A função da exigência da identificação expressa consiste não apenas em
disciplinar o uso do poder regulamentar obrigando o Governo e a Administração a
controlarem, em cada caso, a habilitação legal de cada regulamento), mas também
em garantir a segurança e a transparência jurídicas, sobretudo relevantes à luz
da principiologia do estado de direito democrático)».
Por isso, a indicação expressa do diploma legislativo que se visa executar ou
das normas que definem a competência subjectiva e objectiva para a emissão do
regulamento independente não pode ser dispensada mesmo que, eventualmente, sejam
identificáveis, com forte probabilidade, aquele diploma ou normas.
No caso daquela Portaria, está-se perante um regulamento independente, pois não
se visa dar execução a qualquer diploma legislativo.
Por outro lado, não se indica naquela Portaria qualquer norma que defina a
competência subjectiva ou objectiva para a sua emissão.
Assim, tem de se concluir que a referida Portaria, enferma de
inconstitucionalidade formal.
Por isso, o acto recorrido, que homologou a decisão do júri proferida em
procedimento administrativo em que foi aplicada aquela Portaria, enferma de
Vício de violação de lei, que justifica a sua anulação (art. 135.º do C.P.A.).
4 – Afectando a inconstitucionalidade formal do referido Regulamento a
globalidade das suas normas, torna-se desnecessário apreciar se ele enferma de
outros vícios de inconstitucionalidade.
Por outro lado, estando afectada de inconstitucionalidade formal também a norma
que estabelece os critérios para apreciação de candidaturas (art.º 9.º do
Regulamento do Apoio às Actividades Musicais de Carácter Profissional e de
Iniciativa Não Governamental para o Ano de 2003), fica prejudicado o
conhecimento das questões de ilegalidade do acto recorrido por adição de novos
parâmetros em relação aos aí previstos e por falta de ponderação de todos os
elementos relevantes para a decisão, a que o júri se havia vinculado com base
nos critérios previstos naquele Regulamento.
Para além disso, estando afectado pela referida inconstitucionalidade todo o
procedimento administrativo em que se baseou o acto recorrido, torna-se
desnecessário apreciar se o acto recorrido enferma dos vícios procedimentais e
de forma que lhe são imputados pela Recorrente.
Termos em acordam em
- conceder provimento ao recurso contencioso;
- anular o acto recorrido por vício de violação de lei».
3. Desta decisão foi interposto o presente recurso de constitucionalidade.
Recebidos os autos neste Tribunal, alegou apenas o recorrente, concluindo pela
seguinte forma:
«1 – Por força do princípio da primariedade ou precedência da lei sobre o
regulamento, todos os regulamentos dotados de eficácia externa devem conter
menção expressa da respectiva lei habilitante.
2 – Sendo as normas regulamentares em causa nos presentes autos susceptíveis de
produzir efeitos na esfera jurídica dos administrados que participem nos
concursos públicos ali previstos – e sendo o mesmo totalmente omisso quanto à
referência da lei habilitante, mostra-se violado o preceituado no n° 7 do artigo
112° da Constituição da República Portuguesa, o que conduz à confirmação do
juízo de inconstitucionalidade formulado pelo acórdão recorrido».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11 de Maio de 2005, recusou a
aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade formal, da Portaria nº
1056/2002, de 20 de Agosto, que, para além do mais, aprovou o Regulamento do
apoio às Actividades Musicais de Carácter Profissional e de Iniciativa não
Governamental para o Ano de 2003, por violação do artigo 112º, nº 8, da CRP.
Na versão vigente à data da aprovação desta Portaria – 18 de Julho de 2002 –,
publicada no Diário da República, I Série – B, de 20 de Agosto de 2002, dispunha
o nº 8 daquele artigo da CRP que “Os regulamentos devem indicar expressamente as
leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva
para a sua emissão”.
Sobre o sentido e alcance deste preceito constitucional, cujo texto se mantém
desde a Lei Constitucional nº 1/82 e que hoje consta do nº 7 do artigo 112º,
«disse este Tribunal no acórdão nº 76/88 (Diário da República, I Série, nº 93,
de 21 de Abril de 1988, p. 1547 ss):
“É, pois, claro, […] que abrangidos pela regra bidireccional do nº 7 do artigo
115º [nº 7 do artigo 112º] da Constituição da República Portuguesa estão todos
os regulamentos, nomeadamente os que provenham do Governo […] e dos órgãos
próprios das autarquias locais […]. Todos esses regulamentos, de um ou de outro
modo, estão umbilicalmente ligados a uma lei, à lei que necessariamente precede
cada um deles, e que, por força do disposto no nº 7 do artigo 115º da
Constituição da República Portuguesa, tem de ser obrigatoriamente citada no
próprio regulamento.
O papel dessa lei precedente – di-lo o nº 7 do artigo 115º – não é sempre o
mesmo.
Umas vezes a lei a referir é aquela que o regulamento visa regulamentar. Será
esse o caso dos regulamentos de execução stricto sensu ou dos regulamentos
complementares.
Outras vezes a lei a indicar é a que define a competência subjectiva e objectiva
para a sua emissão. De facto, no exercício do poder regulamentar têm de ser
respeitados diversos parâmetros, e assim é que «cada autoridade ou órgão só pode
elaborar os regulamentos para cuja feitura a lei lhe confira competência, não
podendo invadir a de outras autoridades ou órgãos (competência subjectiva)» e
nessa «feitura deverá visar-se o fim determinante da atribuição do poder
regulamentar (competência objectiva)» – Afonso Rodrigues Queiró, «Teoria dos
regulamentos», Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXVII, nºs 1-2-3-4, p.
19. A necessidade de citação dessa lei definidora da competência, subjectiva e
objectiva da autoridade ou órgão que emite o regulamento, verificar-se-á
designadamente no caso dos regulamentos autónomos.”
A exigência de indicação da lei habilitante formulada pelo artigo 115º, nº 7,
[112º, nº 8] da Constituição da República Portuguesa (actual artigo 112º, nº 8
[112º, nº 7]) tem, assim, como objectivo, por um lado, disciplinar o uso do
poder regulamentar, obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada
caso, se podem ou não emitir determinado regulamento, e, por outro lado,
garantir a segurança e a transparência jurídicas, dando a conhecer aos
destinatários o fundamento do poder regulamentar.
Como este Tribunal disse no acórdão nº 357/99 (Diário da República, II Série, nº
52, de 2 de Março de 2000, p. 4255), “não impõe a lei constitucional que a
indicação da lei definidora da competência conste de um qualquer trecho
determinado do Regulamento”. A Constituição exige todavia que a menção seja
“expressa”, recusando deste modo a legitimidade de referências meramente
implícitas à base legal autorizante» (Acórdão do Tribunal Constitucional nº
345/01, não publicado).
Não oferecendo dúvida o carácter regulamentar do diploma em apreço (que, nos
termos do respectivo sumário, aprova os regulamentos de apoio às actividades
teatrais, musicais, de dança e transdisciplinares de carácter profissional e de
iniciativa não governamental para o ano de 2003) e não resultando do respectivo
teor qualquer referência à lei que visa regulamentar ou que define a competência
subjectiva ou objectiva para a sua emissão, é patente a inconstitucionalidade
formal da Portaria nº 1056/2002, por violação do disposto, actualmente, no nº 7
do artigo 112º da CRP
III. Decisão
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 112º, nº 7, da Constituição
da República Portuguesa, a Portaria nº 1056/2002, de 20 de Agosto;
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere
ao julgamento de inconstitucionalidade.
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2006
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos
Maria Helena Brito
Artur Maurício