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Processo n.º 177/05
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. A. e B. foram acusados pelo Ministério Público em processo comum,
para julgamento em tribunal colectivo, como “co-autores de um crime de burla
agravada p.p. nos termos do artigo 313º n.º 1 e 314º alínea c) do Código Penal –
actual artigo 217º n.º 1 e 218º n.º 2 alínea a) – em concurso com um crime de
falsificação de documentos transmissível por endosso, p.p. nos termos do artigo
228º n.º 1 alínea b) e n.º 2 do mesmo diploma – actual 256º n.º 1 alínea b) e
n.º 3”.
Por despacho de 31 de Janeiro de 1997, os arguidos foram declarados contumazes,
sendo suspenso o processo até que se apresentassem ou fossem detidos, nos termos
do artigo 336º do Código de Processo Penal, na redacção então em vigor.
A 30 de Novembro de 2004, vieram requerer que o procedimento criminal fosse
declarado extinto, por prescrição, nos seguintes termos:
'A. e B., ambos com domicílio no Largo …, freguesia de S. Victor, da cidade de
Braga, vêm ao processo crime identificado em epígrafe, dizer e requerer o
seguinte:
Os Arguidos encontram-se acusados pela prática, como co-autores, de um crime de
burla agravada p. e p. nos termos dos art. 313º, n° 1 e 314° al. c) do Código
Penal de 1982, actual art. 217° e 218°, n° 2, al. a) na redacção introduzida
pelo DL 48/95 de 15 de Março, em concurso com um crime de falsificação de
documento transmissível por endosso, p. e p. nos termos do art. 228°, n° 1 al.
b) e n° 2 do CP de 1982, actual art. 256°, n° 1, al. b) e n° 3, na redacção
introduzida pelo DL 48/95 de 15 de Março, por factos ocorridos no início do ano
de 1993.
Os Arguidos foram declarados contumazes, tendo sido publicado o respectivo
anúncio no dia 3 de Fevereiro de 1997.
Os factos constantes da acusação, a terem sido praticados, foram-no antes da
entrada em vigor do Código Penal, na redacção introduzida pelo DL 48/95 de 15 de
Março.
O prazo de prescrição do procedimento criminal, no caso em apreço, é de cinco
anos para o crime de falsificação e de dez para o crime de burla agravada e não
se verificaram quaisquer factos que o interrompessem ou suspendessem, nos termos
dos arts 119° e 120° do CP de 1982.
No domínio da vigência deste diploma legal, legislação aplicável aos factos em
alusão, a declaração de contumácia não tinha qualquer valor interruptivo ou
suspensivo do prazo prescricional do procedimento criminal, uma vez que este
instituto lhe era completamente desconhecido.
Aliás, se assim não fosse não haveria necessidade, na reforma do CP ocorrida em
1995, de consignar expressamente tal efeito à declaração de contumácia.
Acresce que, as causas de suspensão e interrupção do procedimento criminal não
podem ser integradas por analogia ao Código de Processo Penal de 1987 por
inconstitucionalidade orgânica (Cfr. Ac TRP de 10/10/2001 e Ac. TRP de
24/01/2001 em www.dgsi.pt), sendo certo que da autorização legislativa para a
reforma do Código de Processo Penal ocorrida em 1987 não se vislumbra qualquer
autorização para comutar o regime penal das causas de suspensão ou interrupção
do prazo de prescrição do procedimento criminal.
Deste modo, não é constitucionalmente lícito, e como tal tem vindo a ser
entendido pelo Tribunal Constitucional – Ac. 205/99 de 7 de Abril, Ac. 122/00 de
23 de Fevereiro, 483/2002, publicados, respectivamente, no DR, II série de
5/11/99, 6/6/00 e 10/1103, respectivamente –, que se possa extrair do art. 336°
do CPP de 1987 (actualmente arts 335° e 337°) a instituição de uma causa de
suspensão do procedimento criminal.
Embora o art. 119º do CP de 1982 consagrasse que a prescrição do procedimento
criminal ocorria 'para além dos casos especialmente previstos na lei, o
instituto da contumácia expresso no art. 336° do CPP de 1987 – 'suspensão dos
termos ulteriores do processo' – tinha apenas dimensão processual e em caso
algum se referia expressamente que determinava a interrupção ou suspensão da
prescrição do procedimento criminal.
De resto, a interpretar-se de forma diversa este preceito legal violar-se-ia de
forma clara e inequívoca os princípios da legalidade e tipicidade e,
consequentemente, os art.s 2°, 20°, n° 4, 27°, n° 1, 29°, n.s 1 e 3, 30°, n° 1 e
32° nºs 1 e 2 da CRP.
Por outro lado, a causa de interrupção prevista na al. d) do art. 120° do CP de
1982 não pode ser equiparada à declaração de contumácia, sob o pretexto de a
omissão desta dentre as causas de interrupção da prescrição, constituir uma
'lacuna insusceptível de ser preenchida' (Figueiredo Dias, Direito Penal
Português, Editorial Notícias, 1993, pág. 710), sob pena de violar o art. 29°,
n.º 1 e 3 da CRP.
Além disso, a declaração de contumácia e a marcação de dia para julgamento de
Arguidos ausentes, não são equiparáveis, pois são actos processuais com sentidos
totalmente diversos.
Por um lado, a marcação de julgamento no processo de Arguidos ausentes não
impedia a realização do julgamento e a sua eventual condenação à revelia.
No entanto, a declaração de contumácia implica a não realização de julgamento e
a suspensão dos ulteriores termos do processo até à apresentação do Arguido a
juízo.
Neste sentido foi proferido pelo Tribunal Constitucional o Ac. 412/03
(DR,II,5/2004, p. 2152) que declarou inconstitucionais os artigos 335° e 337° do
CPP conjugados com o art. 120º, n° 1 alínea d) do CP de 1982 (redacção
originária) por violação do art. 29°, n.º 1 e 3 da CRP na interpretação segundo
a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada, como causa de interrupção
do procedimento criminal, à marcação de dia para julgamento em processo de
ausentes.
Sem prescindir, a entender-se, o que não se concede face ao supra exposto, que a
declaração de contumácia estatuída no Código de Processo Penal de 1987 é uma
causa de suspensão da interrupção do procedimento criminal no domínio do Código
Penal de 1982, ou uma causa de interrupção por equiparação da contumácia ao
estatuído na al. d) do art. 120° deste diploma legal, o crime de falsificação,
em apreço neste autos, está prescrito, uma vez que já decorreu o prazo normal da
prescrição acrescido de metade, ressalvado o tempo em que esteve suspenso.
Pelo exposto, deve declarar-se extinto, por prescrição, o procedimento criminal,
devendo perfilhar-se o entendimento expresso, no Acórdão 412/03 proferido pelo
Tribunal Constitucional e não aplicar o Assento n° 10/2000 que, não constituindo
jurisprudência obrigatória, tem vindo a ser contrariado pela mais recente
jurisprudência - Acórdão do Tribunal Constitucional nºs 205/99 de 7 de Abril,
122/00 de 23 de Fevereiro, 483/2002, pub1icados, respectivamente, no DR, II
série de 5/11/99, 6/6/00 e 10/1/03.'
Este requerimento foi indeferido, por despacho de 10 de Dezembro de 2004, nos
seguintes termos:
“Atentos os fundamentos que constam da promoção antecedente, nomeadamente a
circunstância de a jurisprudência citada do Tribunal Constitucional não ser de
natureza obrigatória para os tribunais judiciais, e ainda o entendimento
perfilhado pelo Assento n.º 10/2000 do S.T.J., indefere-se o requerido pelo
arguido”.
Da promoção para a qual o despacho remete consta, para o que agora releva, o
seguinte: “[...] nos termos do Assento n.º 10/2000 (e uma vez que a
jurisprudência do Tribunal Constitucional invocada não é de natureza obrigatória
para os tribunais judiciais) promovo que os autos continuem a aguardar que os
arguidos se apresentem em juízo pois só este é o modo de fazerem cessar o estado
de contumácia”.
2. Vieram então os arguidos recorrer para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 de 15 de
Novembro (LTC), pretendendo a apreciação de:
– inconstitucionalidade material das normas contidas nos artigos 335º e 337º do
Código de Processo Penal de 1987, conjugadas com o n.º 1 do artigo 119º do
Código Penal de 1982 (versão originária) na interpretação segundo a qual a
declaração de contumácia constitui causa de suspensão da prescrição do
procedimento criminal, por violação dos princípios da legalidade e tipicidade
consagrados nos n.ºs 1 e 3 do artigo 29º da CRP e dos princípios do poder
punitivo do Estado baseado em critérios objectivos e protecção dos arguidos
contra abusos processuais, consagrados no n.º 4 do artigo 20º, n.º 1 do artigo
27º e n.º 1 do artigo 30º da CRP;
– inconstitucionalidade orgânica da norma contida no artigo 336º (actualmente
artigos 335º e 337º do Código de Processo Penal aprovado pelo DL 78/87 de 17 de
Fevereiro no uso da autorização conferida pela Lei n.º 43/86 de 26 de Setembro),
por violação do artigo 112º e da alínea c) do n.º 1 2 n.º 2 do artigo 165º da
CRP'.
3. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram alegações, que os
recorrentes concluíram da seguinte forma:
1. Os art. 335° e 337° do Código de Processo Penal de 1987 na redacção da
lei 59/98 de 25 de Agosto e art. 336° na versão originária do mesmo diploma,
conjugadas com o n° 1 do art. 119° do Código Penal de 1982 (versão originária),
na interpretação que lhes é dada pelo tribunal recorrido, segundo a qual a
declaração de contumácia constitui causa de suspensão do procedimento criminal,
viola o disposto no n° 4 do art. 20º , n° 1 do art. 27°, n° 1 do art. 30º , n° 2
do art. 112° e da al. c) do n° 1 e n° 2 do art. 165° da Constituição da
República portuguesa,
2. e estão, por isso, feridos de inconstitucionalidade material e orgânica,
3. o que deve ser declarado por este Tribunal Constitucional.
4. Ao aplicar as normas deles constantes, o douto despacho do Tribunal
Judicial da Comarca de Braga violou o disposto no art. 204° da lei Fundamental.
O representante do Ministério Público neste Tribunal concluiu a sua
contra-alegação da seguinte forma:
1. - As causas de suspensão da prescrição do procedimento criminal não
foram definidas no Código Penal de 1982, de forma taxativa e fechada,
admitindo-se a existência de outras especialmente previstas na lei.
2. - Entre estas, encontra-se a declaração de contumácia estabelecida
inicialmente no artigo 336° do Código de Processo Penal de 1987, implicando a
suspensão dos termos ulteriores do processo e que viria a ser expressamente
consagrada, a partir da reforma do Código Penal de 1995, no seu artigo 120°, n°
1, alínea c).
3. - A suspensão dos termos ulteriores do processo não comportando
qualquer ambiguidade, abrange necessariamente a suspensão do prazo prescricional
em curso, sob pena de deixar de ter sentido o regime de contumácia consagrado a
partir de 1987 e sem que isso implique violação de normas ou princípios
constitucionais.
4. - A existência legal de uma causa suspensiva do prazo de prescrição
verificada em data posterior à prática do facto criminoso, mas aplicada a
processo pendente não merece censura constitucional, mesmo na dimensão da
exigência da não retroactividade 'in pejus'.
5. - Atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, não
é de conhecer a invocada inconstitucionalidade orgânica, uma vez que qualquer
que fosse o sentido da decisão, nenhum efeito útil teria na decisão da questão
de mérito relativa à prescrição do procedimento criminal, sendo que a declaração
de contumácia ocorreu já na vigência da reforma de 1995, que a consagrou
expressamente como causa suspensiva do prazo de prescrição, na alínea c) do n° 1
do artigo 120° do Código Penal.
6. - Termos que não deverá proceder o presente recurso.
3. O relator convidou posteriormente as partes a pronunciarem-se sobre
a seguinte questão:
1. A. e B. recorreram para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea
b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), do despacho
de 10 de Dezembro de 2004 que indeferiu o seu requerimento de 30 de Novembro
anterior, para que fosse julgado extinto, por prescrição, o procedimento
criminal a que respeitam os presentes autos. Pretendem que seja apreciada:
“– [a inconstitucionalidade] material das normas contidas nos artºs 335º e 337º
do Código de Processo Penal de 1987, conjugadas com o n.º 1 do art.º 119º do
Código Penal de 1982 (versão originária) na interpretação segundo a qual a
declaração de contumácia constitui causa de suspensão da prescrição do
procedimento criminal, por violação dos princípios da legalidade e tipicidade
consagrados nos n.ºs 1 e 3 do art.º 29º da CRP e dos princípios do poder
punitivo do Estado baseado em critérios objectivos e protecção dos arguidos
contra abusos processuais, consagrados no n.º 4 do art.º 20º, n.º 1 do art.º 27º
e n.º 1 do art.º 30º da CRP;
– [a inconstitucionalidade] orgânica da norma contida no art.º 336º (actualmente
artºs 335º e 337º) do Código de Processo Penal aprovado pelo DL 78/87 de 17 de
Fevereiro no uso da autorização conferida pela Lei n.º 43/86 de 26 de Setembro,
por violação do art.º 112º e da al. c) do n.º 1 2 n.º 2 do art.º 165º da CRP'.
2. Verifica-se, em primeiro lugar, que a decisão recorrida aplicou apenas
o n.º 1 do artigo 336º do Código de Processo Penal de 1987 na sua versão
originária, e não os artigos “335º e 337º” resultantes da Lei n.º 59/98, de 25
de Agosto, a que manifestamente se referem os recorrentes a propósito da
inconstitucionalidade material.
Ora, nos termos do artigo 79º-C da LTC, o Tribunal Constitucional só pode
conhecer de normas efectivamente aplicadas pela decisão recorrida.
Assim, é plausível que se não conheça da inconstitucionalidade atribuída aos
referidos artigos 335º e 337º do Código de Processo Penal.
3. Em segundo lugar, sucede que na sua contra-alegação o Ministério
Público suscitou a questão do não conhecimento da invocada inconstitucionalidade
orgânica, porque o seu julgamento não teria qualquer utilidade.
4. Para além disso, e em terceiro lugar, é plausível que o Tribunal
Constitucional não venha a conhecer da invocada inconstitucionalidade material
por violação dos princípios da legalidade e da tipicidade criminal, por não
estar em causa uma questão de constitucionalidade normativa, susceptível de ser
conhecida no âmbito do recurso de constitucionalidade, mas antes uma
inconstitucionalidade atribuída à própria decisão.
Assim se decidiu, por exemplo, no acórdão n.º 331/2003 (Diário da República, II
série, de 17 de Outubro de 2003), numa questão semelhante embora referida ao
“complexo normativo constituído pelos artigos 335º e 337º, estes da versão
originária do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de
17 de Fevereiro, e 120º n.º 1 alínea d) este da versão originária do Código
Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, na interpretação de harmonia com a
qual a declaração de contumácia pode ser equiparada à marcação do dia para o
julgamento em processo de ausentes”, e, posteriormente, no acórdão n.º 336/2003
disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ , para cuja
fundamentação se remete.
5. Finalmente, é ainda plausível que se não possa conhecer da
inconstitucionalidade orgânica colocada pelos recorrentes quanto à norma do n.º
1 do artigo 336º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de criar
uma causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, por divergência
com a lei de autorização com base na qual foi aprovado o Decreto-Lei n.º 78/87,
a Lei n.º 43/86, da qual “não resulta qualquer autorização para comutar o regime
penal das causas de suspensão do procedimento criminal”.
Com efeito, a norma referida apenas foi interpretada dessa forma porque
conjugada com o n.º 1 do artigo 119º do Código Penal, como claramente resulta da
fundamentação do Assento n.º 10/2000, para o qual remete a decisão recorrida.
Não parece assim possível que o Tribunal possa conhecer da alegada
inconstitucionalidade orgânica, porque referida pelos recorrentes a uma norma
não aplicada, por si só, com o sentido acusado de ser inconstitucional.
6. Assim, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 704º do Código de
Processo Civil, aplicável por força do artigo 69º da LTC, notifique as partes
para se pronunciarem sobre a possibilidade de se não conhecer do objecto do
recurso.
Em resposta, dizem os recorrentes:
A decisão impugnada perfilhou o entendimento do Assento 10/2000 e considerou não
ser de natureza obrigatória a jurisprudência do Tribunal Constitucional citada
pelos Recorrentes no requerimento em que formularam o pedido de declaração de
extinção do procedimento criminal por prescrição.
Ora, tal como resulta desse requerimento, do de interposição de recurso para
este Tribunal e das alegações apresentadas, os Recorrentes referem a
inconstitucionalidade que invocam aos art. 335° e 337° do Código de Processo
Penal de 1987 na redacção da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, e art. 336° na
versão originária do mesmo diploma legal, conjugadas com o nº 1 do art. 119º do
Código Penal de 1982 - versão originária.
Assim, o objecto do presente recurso é a análise da inconstitucionalidade
material das normas contidas naqueles preceitos legais já que foram estes os
aplicados na decisão recorrida, interpretadas no sentido de que a declaração de
contumácia constitui causa de suspensão do procedimento criminal.
No que concerne à questão de se saber se o Tribunal Constitucional pode apreciar
a constitucionalidade - por violação dos princípios da legalidade, da tipicidade
(na sua exigência de proibição da retroactividade in pejus), do poder punitivo
do Estado, baseado em critérios objectivos, e da protecção dos arguidos contra
abusos processuais - das normas contidas nos art. 119º , n.º 1 , do Código Penal
de 1982, do ano 336°, nº 1, da versão originária do Código de Processo Penal de
1987 e dos ano 335° e 337° na versão actual deste diploma legal, na
interpretação e sentido com que foram aplicadas pelo Julgador na decisão
recorrida, sempre se dirá o seguinte:
Não oferece dúvidas que está vedado ao Tribunal Constitucional apreciar a
constitucional idade da decisão recorrida.
No entanto, pode e deve este Tribunal aferir da constitucionalidade do critério
normativo geral e abstracto - no sentido de que se aplica a outros casos e não
somente ao dos autos - que foi utilizado pelo Julgador.
No caso em apreço, não se pretende a verificação da concreta constitucionalidade
da decisão judicial, mas sim a das normas jurídicas contidas anos 119º n.º 1 do
Código Penal de 1982, do art. 336°, nº 1 da versão originária do Código de
Processo Penal de 1987 e art. 335° e 337° na versão actual, na interpretação e
com o sentido e alcance que o Tribunal a quo lhes atribuiu.
Assim, o julgador considerou que estas normas incluem a declaração da contumácia
como causa de suspensão do prazo do procedimento criminal.
Deste modo, as normas efectivamente aplicadas pelo tribunal recorrido são as que
ele próprio extraiu por interpretação dos anos 119° nº 1 do Código Penal de
1982, do ano 336°, nº 1 da versão originária do Código de Processo Penal de 1987
e 335° e 337° (versão actual), e são estas o objecto do recurso interposto para
este Tribunal.
Neste sentido veja-se a título exemplificativo o que se escreveu no acórdão nº
168/99 (não publicado):
'Quando das disposições legais em causa se extraem, ou podem extrair, diferentes
proposições normativas, ou diferentes interpretações, devem ser tomadas como
objecto da verificação da constitucionalidade as normas legais aplicadas, de
acordo com o sentido normativo decisivamente aceite pelo tribunal recorrido.'
O Julgador entendeu estar contida nas normas em apreço uma interpretação que não
cabe na sua litera1idade, violando, assim, os princípios da legalidade e
tipicidade constitucionalmente consagrados.
Na verdade, o princípio da legalidade impede que o julgador alcance, em
manifesta contradição com o princípio da tipicidade, uma norma cujo conteúdo
ultrapasse o sentido possível das palavras da lei.
Pela via da interpretação, o Tribunal a quo, afinal criou a seguinte norma,
inexistente à data dos factos:
'a declaração de contumácia suspende o prazo de prescrição do procedimento
criminal.'.
Esta criação de norma pelo Julgador implica a inconstitucionalidade da própria
norma criada, desde logo, porque viola a reserva de competência legislativa da
Assembleia da República (art 161°, al. c)).
Dir-se-á, por último, que nenhuma norma legal tem existência por si própria, na
medida em que todas as normas legais estão sempre (e quando se diz “sempre” quer
dizer-se mesmo “sempre”) sujeitas à interpretação de quem as aplica, por mais
óbvio, transparente e inequívoco que seja o seu sentido.
Subverteria por completo o poder censório do Tribunal Constitucional impedir-se
a verificação da constitucionalidade da interpretação concretamente adoptada
duma determinada norma ou conjunto de normas, a pretexto de que se trata de uma
interpretação e não de uma norma em si própria.
Aquela é, como se disse, indissociável desta, ao ponto de não poder existir uma
sem a outra. A norma que tem de ser sempre entendida como a norma e a sua
interpretação.
Aliás como ensina Gomes Canotilho: 'norma, interpretativamente mediatizada pela
decisão recorrida, porque a norma deve ser apreciada no recurso segundo a
interpretação que lhe foi dada nessa decisão' - cfr. Direito Constitucional e
Teoria Constituição, Coimbra, 1998, pág. 881
Desta forma, o critério normativo geral e abstracto efectivamente aplicado pelo
julgador, porque violador dos princípios basilares da Lei Fundamental, é
merecedor de controle e fiscalização por este Tribunal Constitucional.
Acerca da inconstitucionalidade orgânica da norma contida no ano 336° (versão
originária) do Código de Processo Penal suscitada pelos Recorrentes
acrescentar-se-á, ao que supra se expendeu, o seguinte:
O Tribunal a quo considerou que a declaração de contumácia constitui causa de
suspensão do procedimento criminal, consubstanciando tal decisão no disposto no
ano 336° versão originária do Código de Processo Penal, correspondente aos,
actualmente, art. 335° e 337°.
Aplicou, assim, esta norma no sentido que lhe foi atribuído pelo Assento
10/2000, ou seja que a declaração de contumácia constitui causa de suspensão do
procedimento criminal.
Deste modo é a norma contida no referido art. 336° que está ferida de
inconstitucionalidade orgânica, na interpretação que lhe foi dada pelo Julgador
perfilhando o entendimento do Assento 10/2000.
De resto, da Lei de autorização legislativa nº 43/86, de 26 de Setembro não se
faz qualquer referência a autorizar o Governo a instituir a contumácia como uma
causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal.
Em conclusão, na Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86, de 26 de Setembro,
não existe um suporte mínimo para que seja lícito extrair do artigo 336.º do
Código de Processo Penal de 1987 a instituição de uma causa de suspensão da
prescrição do procedimento criminal.
Por último, dir-se-á que a declaração de contumácia como causa suspensiva do
prazo de prescrição foi consagrada expressamente no nosso ordenamento jurídico
em 1995.
A norma que a consagrou não tem aplicação retroactiva pelo que, anteriormente a
esta data, a declaração de contumácia não tinha o efeito que, neste momento, lhe
é atribuída.
Pese embora a contumácia dos Recorrentes tenha sido declarada em 1997 os factos
que originaram a acusação ocorreram em 1993, data em que a declaração da
contumácia não tinha o efeito de suspender o procedimento criminal,
Pelo que, também por isso deve a suscitada inconstitucionalidade ser conhecida,
sendo manifesto o seu efeito útil.
4. Sustenta o Ministério Público que o Tribunal Constitucional não poderá
conhecer da alegada inconstitucionalidade orgânica, atenta a natureza
instrumental do recurso de constitucionalidade, pois, 'qualquer que fosse o
sentido da decisão, nenhum efeito útil teria na decisão da questão de mérito
relativa à prescrição do procedimento criminal, sendo que a declaração de
contumácia ocorreu já na vigência da reforma de 1995, que a consagrou
expressamente como causa suspensiva do prazo de prescrição, na alínea c) do n° 1
do artigo 120° do Código Penal'.
Todavia, não procede o obstáculo apontado, pois o despacho que indeferiu o
requerimento para que fosse julgado extinto o procedimento criminal tomou como
fundamentação o Assento n.º 10/2000 do Supremo Tribunal de Justiça. O aresto não
aplicou a aludida alínea c) do n° 1 do artigo 120° do Código Penal, na redacção
de 1995, pois apoiou-se unicamente na versão originária do n.º 1 do artigo 119º
do Código Penal de 1982, e no questionado artigo 336º do Código de Processo
Penal, para decidir.
Todavia, uma outra razão existe para que o Tribunal não conheça desta questão.
O recorrente aponta a inconstitucionalidade orgânica da norma do n.º 1 do artigo
336º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de criar uma causa de
suspensão da prescrição do procedimento criminal, por divergência com a lei de
autorização com base na qual foi aprovado o Decreto-Lei n.º 78/87, a Lei n.º
43/86, da qual “não resulta qualquer autorização para comutar o regime penal das
causas de suspensão do procedimento criminal”.
Ora, independentemente da validade dos contornos com que a questão é apresentada
– designadamente, saber se é equacionável uma questão de inconstitucionalidade
orgânica decorrente da aplicação abusiva da norma – o certo é que a norma, em si
mesma considerada, não comporta uma tal interpretação, pois se limita a dizer
que a declaração de contumácia 'implica a suspensão dos termos ulteriores do
processo até à apresentação ou à detenção do arguido'. O que se passa é que o
preceito foi interpretado em conjugação com o n.º 1 do artigo 119º do Código
Penal de 1982 e é a norma resultante dessa interpretação conjunta que concretiza
a determinação aqui questionada. É o que claramente revela o teor do Assento n.º
10/2000, para o qual remete a decisão recorrida.
Nestes termos, não pode o Tribunal Constitucional conhecer da alegada
inconstitucionalidade orgânica, porque referida a um preceito que não foi
aplicado com o sentido aqui acusado de ser inconstitucional.
5. Os recorrentes pretendem a apreciação da inconstitucionalidade
material “das normas contidas nos artigos 335º e 337º do Código de Processo
Penal de 1987, conjugadas com o n.º 1 do artigo 119º do Código Penal de 1982
(versão originária) na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia
constitui causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal”.
Ora, tal como se afirmou já, o fundamento jurídico do despacho recorrido deve
ser procurado no Assento 10/2000 (DR, 1ª série-A de 10 de Novembro de 2000), no
qual o Supremo Tribunal de Justiça fixou a seguinte jurisprudência: 'No domínio
da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a
declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do
procedimento criminal'.
Para assim decidir, o Supremo Tribunal de Justiça apreciou unicamente os artigos
336º n.º 1 do Código de Processo Penal de 1987, conjugado com o n.º 1 do artigo
119º do Código Penal de 1982. Daqui se deve concluir que a decisão recorrida,
cujo fundamento é extraído do aludido assento, aplicou apenas o n.º 1 do artigo
336º do Código de Processo Penal de 1987 na sua versão originária, e não os
artigos 335º e 337º resultantes da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, a que
manifestamente se referem os recorrentes a propósito da inconstitucionalidade
material.
Torna-se, por isso, até desnecessário verificar se os recorrentes impugnam
verdadeiramente uma norma jurídica ou uma outra realidade, a decisão
jurisdicional enquanto tal, embora sob pretexto de se apresentarem a sindicar
uma norma criada pelo tribunal por via interpretativa. Na verdade, é bem certo
que está fora do âmbito deste recurso a apreciação da decisão jurisdicional, o
momento de aplicação da norma à especificidade do caso concreto, pois só regras
gerais e abstractas ancoradas em preceitos jurídicos podem ser aqui sindicadas,
face ao caracter deste recurso normativo. Ora, a circunstância de se estar
impugnada a fórmula normativa decorrente da interpretação conjugada dos artigos
335º e 337º do Código de Processo Penal de 1987 com o n.º 1 do artigo 119º do
Código Penal de 1982, e de se haver constatado que o Tribunal recorrido não
aplicou os artigos 335º e 337º do Código de Processo Penal, determina que se não
conheça de nenhuma das apontadas normas, uma vez que, isoladamente considerada,
da norma do n.º 1 do artigo 119º do Código Penal de 1982 não extraiu o Tribunal
recorrido a interpretação normativa impugnada.
Na resposta que apresentaram ao despacho do relator, sustentam os recorrentes
que pretendem a análise da inconstitucionalidade material das normas contidas
nos preceitos legais impugnados, por terem sido aplicados na decisão recorrida
com o sentido de que a declaração de contumácia constitui causa de suspensão do
procedimento criminal. Mas foi já demonstrado que a decisão recorrida não
aplicou os artigos 335º e 337º do Código de Processo Penal na redacção da Lei
59/98 de 25 de Agosto, pois, remetendo para o referido Assento n.º 10/2000 do
Supremo Tribunal de Justiça, limitou o seu fundamento à norma constante do n.º 1
do artigo 336º do Código de Processo Penal. E esta norma não foi impugnada no
requerimento de interposição de recurso, ficando portanto fora do seu âmbito.
Em suma, não pode conhecer-se também nesta parte do objecto do recurso.
6. Em face do exposto, o Tribunal decide não conhecer do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC.
Lisboa, 16 de Novembro de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Maria Helena Brito
Artur Maurício