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Processo n.º 73/05
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A., B. e mulher C. vêm reclamar, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), do despacho de não admissão de recurso de constitucionalidade, proferido pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra, em 8 de Novembro de 2004.
1.1. A acção de que emerge o recurso cuja admissibilidade cumpre apreciar foi intentada, no Tribunal Judicial de Sabugal, pelos ora reclamantes contra D. e mulher E., pedindo a condenação destes a demolir uma vacaria e uma pocilga no prazo de um mês, bem como no pagamento da quantia de 20 000$00 por cada dia de atraso no cumprimento da ordem de demolição.
1.2. Tendo a acção sido julgada improcedente por sentença de 22 de Janeiro de 2004, contra esta decisão interpuseram os autores recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, culminando as respectivas alegações com a formulação das seguintes conclusões:
“1.ª – Os autores são os donos de uma casa de habitação composta de rés-do-chão, 1.º andar e águas furtadas, sita na Rua ----------------- ou Rua
--------------, em ------------------;
2.ª – Todos os autores utilizam essa casa como habitação;
3.ª – A mesma casa é a única que os autores possuem para passar férias e nela passa também a autora a Páscoa, o Carnaval e feriados prolongados;
4.ª – Os réus construíram, em terreno seu, em 1999, ou seja, 15 anos após a edificação da casa dos autores e a cerca de 31,90 metros desta, um barracão onde se encontra instalada uma vacaria;
5.ª – Nesse estábulo, ou vacaria, desenvolve-se grande quantidade de moscas, mosquitos, melgas e moscas varejeiras que invadem a casa dos autores e obriga-os a ter as portas e janelas da casa sempre fechadas e impede-os de utilizar o terraço da mesma;
6.ª – Os insectos referidos entram na casa pelos furos de respiração e escoamento de águas;
7.ª – «A actividade desenvolvida pelos réus provoca prejuízo substancial para o prédio dos autores, uma vez que
8.ª – destinando-se o mesmo a habitação (ainda que não permanente) está impedida a sua total usufruição» – sentença em recurso, fls. 121 dos autos;
9.ª – «Chamando à colação a matéria de facto provada, temos que a actividade desenvolvida pelos réus viola o direito ao ambiente e os direitos à saúde e ao repouso dos autores» – mesma sentença e local;
10.ª – De tal modo que se torna impossível a sua usufruição (pelos autores ou por quem quer que seja);
11.ª – O direito ao repouso, ao sossego, à tranquilidade, própria e da família, e à saúde são hoje completamente reconhecidos como direitos de personalidade – cfr. artigos 3.º e 25.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; artigo 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; artigos 25.º,
64.º e 66.º da Constituição da República Portuguesa; artigo 70.º do Código Civil; e artigos 1.º, 22.º e 41.º da Lei de Bases do Ambiente, e ainda a longa lista de decisões e pareceres que, no mesmo sentido, citámos no corpo desta alegação e que aqui damos por integralmente reproduzidos, para evitar repetições enormes e fastidiosas;
12.ª – Os direitos de personalidade são direitos absolutos que prevalecem sobre os demais como o direito de propriedade ou o direito ao exercício de uma actividade económica – sentença recorrida, a fls. 121 dos autos, e jurisprudência aí citada; e Acórdão da Relação de Lisboa, de 27 de Fevereiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência, tomo I, pág. 115;
13.ª – Os direitos de personalidade são de nível superior aos de propriedade e prevalentes – Acórdão da Relação de Coimbra, 1997, tomo IV, pág.
23;
14.ª – A propriedade é um bem ao serviço do homem e não podem os respectivos direitos jamais equilibrar os pratos da balança onde se contraponham direitos de personalidade – mesmo aresto;
15.ª – Sempre terão de ser valorados desigualmente, para os efeitos do n.º 2 do artigo 335.° do Código Civil, prevalecendo, em caso de espécies diferentes, o que deve considerar-se superior;
16.ª – Ainda sobre os poderes jurídicos atribuídos ao titular do respectivo direito de personalidade pedimos vénia para dar aqui por reproduzida a opinião citada no corpo das alegações, pelo Prof. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, pág. 368;
17.ª – «Os direitos de personalidade implicam uma obrigação de respeito tout court» – Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, pág. 128 e seguintes;
18.ª – Os autores, ao intentarem a presente acção, visaram defender não só o seu direito de propriedade, mas também e principalmente os seus direitos de personalidade;
19.ª – Equacionando mesmo só os aspectos materiais, teríamos de um lado (dos réus) o sacrifício da transferência das vacas do local onde estão, e, do outro lado (dos autores) o abandono de casa de habitação;
20.ª – Evidencia-se, assim, sobre todos os aspectos a prevalência dos direitos dos autores;
21.ª – Mas, como resulta do exposto, o problema tem outros contornos: num plano, conflitualidade entre os direitos de propriedade, noutro plano, direito de propriedade de um lado contra direito de propriedade e direito de personalidade do outro;
22.ª – Dir-se-á, ainda, que a procedência do pedido dos autores, contrariamente ao que parece informar o pensamento da decisão recorrida, não atenta de forma relevante contra a actividade económica dos réus, nem mutila o seu direito ao trabalho; apenas implicará construir um barracão noutro sítio (e os réus possuem vários, como se demonstrou no corpo desta alegação) e mudar para lá as vacas;
23.ª – Interessa salientar que, desde que a actividade dos réus constitui um «prejuízo substancial» para o prédio dos autores, nem interessa se tal prejuízo advém de um uso normal do prédio dos réus – Pires de Lima e Antunes Varela, atrás citados;
24.ª – O dramático ambiente, pintado na douta sentença, com a
«destruição» da vacaria é de todo irrealista e fora do contexto da equacionação do problema que está em análise;
25.ª – Como irrealista é o pensamento de que haveria outras soluções compatibilizadoras dos interesses das duas partes;
26.ª – Se os réus limpam a vacaria todos os dias, dela retirando todos os excrementos dos animais (resposta ao quesito 20.º) e isso não evita a invasão de insectos maléficos e tornam impossível a usufruição da casa dos autores, evidente ressalta que só a demolição desta vacaria, com a sua possível transferência para local mais afastado, é a solução apta a pôr fim à conflitualidade descrita;
27.ª – Deve, ainda, dar-se provimento à pedida alteração ao quesito
5.°, o que vem reforçar (embora de reforço não precise) o panorama fáctico já assente;
28.ª – Como disposições legais violadas, dão-se aqui por transcritas, para além de todas as numerosas referidas ao longo desta alegação, especialmente as também já indicadas: artigos 25.°, n.º 1, 64.° e 66.° da Constituição da República Portuguesa, artigos 1.°, 6.°, 22.° e 41.° da Lei n.º
11/87, de 7 de Abril, e artigos 70.º e n.º 2 do 335.° do Código Civil.”
1.3. Ao recurso foi negado provimento pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de Julho de 2004, que, após desatender a pretensão de alteração da matéria de facto, desenvolveu a seguinte argumentação jurídica:
“Como resulta do já exarado no precedente relatório, os autores visam com a presente acção fundamentalmente pôr termo, com a demolição, em prazo curto, da vacaria e pocilga existentes no prédio dos réus, às emissões de ruídos, cheiros pestilentos e proliferação de insectos danosos que delas emanam e que atingem o prédio de habitação de férias dos autores na aldeia referenciada do concelho do Sabugal, tornando muitíssimo incómoda, senão praticamente impossível, a sua normal utilização.
Estamos assim no domínio desde logo da responsabilidade civil extracontratual por violação de direitos de personalidade.
Direitos que são objecto de firme tutela no nosso ordenamento jurídico, conforme o artigo 70.º e seguintes do Código Civil e que mais não são do que uma emanação dos princípios gerais sobre os direitos fundamentais definidos na Constituição.
Preceitua, com efeito, o artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil
(doravante pertencerão a este diploma os demais, salvo expressa menção em contrário) que «a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral».
O Código não concretiza, porém, todos esses direitos, sendo, no entanto, comummente aceite que neles se podem e devem incluir o direito à integridade física e moral das pessoas e à saúde, incluindo o direito ao repouso, ao sono, ao ambiente e à qualidade de vida, de resto devidamente salvaguardados nos artigos 25.° e 66.° da Constituição.
E para defesa de tais direitos, preceitua o n.º 2 do artigo 70.º que
«independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, a fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida».
Ora, entre essas providências estão as que confere o artigo 1346.° do Código Civil, normativo invocado em primeira linha pelos recorrentes para peticionar o fecho da exploração agro-pecuária dos réus, normativo que, no
âmbito da regulamentação do direito de propriedade de imóveis, dispõe que «o proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e outros quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultam da utilização normal do prédio de que emanem».
Quanto à noção de «prejuízo substancial», é sabido que ele envolve um dano real e de natureza essencial, a ser apreciado objectivamente e atendendo
à natureza e finalidade do prédio.
Também a Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87, de 7 de Abril) confere, no seu artigo 40.°, n.º 4, a protecção dos cidadãos ameaçados ou lesados por tais formas de agressão ao seu direito de fruir de um ambiente de vida humana sadio e equilibrado, atribuindo-lhes o direito de pedir a cessação das causas da violação e também, claro, a respectiva indemnização.
Mas, como é bem sabido, não raras vezes tais direitos de personalidade entram em conflito com outros direitos, muitos deles também fundamentais, como acontece com o direito de propriedade e à iniciativa económica privada (artigos 61.° e 62.° da Constituição), bem como o direito ao trabalho, nomeadamente ao exercício de uma legítima actividade agro-pecuária, como base de subsistência de uma família, como é o caso.
E quando tal colisão sucede, deve, como se explanou na douta sentença, o conflito de interesses ser decidido ou resolvido de acordo com as regras estatuídas no artigo 335.°.
Ora, como regra, e como vem sendo dominantemente entendido pela jurisprudência e pela doutrina, os direitos de personalidade, que são de espécie e valor superior àqueles de que falámos, não só por tal decorrer da primazia que lhes confere a Constituição, como por terem expressa consagração universal e europeia, por via das convenções que vigoram na ordem internacional, devem prevalecer sobre aqueles [V., com interesse, os acórdãos do Supremo resenhados no Acórdão desta Relação, de 19 de Fevereiro de 2004, Colectânea de Jurisprudência, XXIX, tomo I, pág. 35, e, na doutrina, G. Canotilho e outro, Fundamentos da Constituição, pág. 136 e seguintes, e R. Capelo de Sousa, Direito Geral de Personalidade, pág. 581 e seguintes].
Porém, esse sacrifício deve ser exercitado apenas e na medida ou proporção estritamente necessária à salvaguarda do direito prevalecente.
Ou seja, não se pode abdicar, e parece-nos isso verdade tão evidente quanto as declaradas no conhecido preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos, de que quaisquer direitos básicos ou fundamentais podem sofrer limitações e constrangimentos decorrentes da própria normalidade da vida social e das necessidades do desenvolvimento económico, como caminho para a obtenção de novos e maiores benefícios para o conjunto dos cidadãos.
No entanto, não é em abstracto que se encontra a via correcta para a solução das questões que surgem nesta sede, mas antes em concreto, face a cada caso peculiar, devendo, como correctamente se ajuizou no recente Acórdão desta Relação, de 19 de Fevereiro de 2004, tentar-se por entre as várias formas ou modos de exercício dos direitos achar-se a solução mais razoável e conforme aos direitos constitucionalmente consagrados; e só quando de todo não seja possível graduar em coexistência os direitos conflituantes é que haverá em ultima ratio de proceder ao sacrifício de um deles.
Essencial é, portanto, que as medidas a tomar sejam orientadas pelos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, traduzindo-se o primeiro na adequada proporção entre os valores em confronto e aquilatar em que medida o sacrifício que se impõe ao titular de um direito se justifica face à lesão do outro e consistindo o segundo na proibição do uso de um meio intolerável para quem é afectado pela medida restritiva.
Ora justamente a sentença apelada acabou por não dar atendimento ao pedido formulado pelos autores que peticionavam a «demolição da vacaria e da pocilga» e «no prazo de um mês, com pagamento de uma sanção pecuniária de 20
000$00, por cada dia de atraso», tendo em conta que das alegadas emissões nocivas que impendiam sobre o seu prédio de habitação distante cerca de 30 metros, a nível de invasão de nuvens de insectos, cheiros pestilenciais, ruídos constantes de vacas e de porcos e ensurdecedor de uma máquina de ordenha, apenas se provou a primeira – invasão de insectos –, não se justificando por desrazoável, ponderando a utilização por escassos períodos (férias e feriados) da casa e por constituir a criação da gado e ordenha a única fonte de sustento dos réus, a adopção de medida tão drástica, podendo haver outra soluções intermédias de compatibilização de direitos, mas não passíveis de aplicar sob pena de se infringirem os limites impostos pelo artigo 661.º do CPC – condenação em objecto diverso do pedido.
E é contra essa ponderação que os autores vêm com um longo esforçado requisitório, explicitando que o uso da expressão «demolição» não implicava significado literal, antes o encerramento e transferência para outro local da vacaria, enquanto foco comprovado da proliferação e invasão de insectos na sua casa, tornando-a imprópria para habitação.
Temos de reconhecer que, no caso vertente, a compatibilização de interesses entre os direitos de personalidade dos autores e de legítima fruição em ambiente sadio e higiénico da sua casa de férias fortemente ameaçados devido
à enorme quantidade de insectos provenientes do pavilhão dos réus por ali se albergarem um número significativo de vacas leiteiras (20 a 25) e mau grado a invocada e provada limpeza diária do estrume nela acumulado e da subsistência económica do agregado familiar destes, que vive dessa actividade, se afigura de difícil solução.
E a interrogação posta pela senhora Juíza cremos que tem alguma razão de ser.
Com efeito, a satisfação do direito dos autores, de que não se questiona a superioridade, ainda que relativizada na sua dimensão temporal, só resultará com o encerramento definitivo da vacaria dos réus, e a inutilização em termos práticos do pavilhão construído?
Ou seja, não haverá outros meios ou processos, designadamente o uso de produtos repelentes de insectos, a instalação de redes de protecção e operações de limpeza mais eficazes para impedir ou atenuar, em termos significativos, a acumulação e propagação de insectos nocivos para o prédio vizinho dos autores?
E quando a lei fala de providências adequadas – artigo 70.º, n.º 2, do Código Civil – será, dadas as circunstâncias, a medida do encerramento das instalações, pondo em risco, senão mesmo inviabilizando, a própria exploração, já que paredes meias com a respectiva casa de habitação, dos réus a única que permitirá a justa salvaguarda dos direitos de personalidade e da utilidade habitacional do prédio dos autores?
Cremos que não, de resto neste mesmo sentido e numa situação similar se pronunciou esta Relação, em Acórdão publicado na Colectânea de Jurisprudência, 2000, tomo I, pág. 23.
Não releva que para o caso os recorrentes tenham invocado, em jeito de argumento de última hora, que para os recorridos não constituiria sacrifício incomportável a mudança de instalações para local mais afastado, por disporem de mais terrenos, pois essa matéria não consta da base instrutória, nem sequer dos articulados e só agora, em sede de recurso e em função da decisão proferida, nela vêm falar a propósito dos depoimentos prestados por algumas testemunhas.
Os recorrentes parecem esquecer que não se deslocam estabelecimentos com a dimensão do que está aqui em foco e que as fotografias juntas patenteiam como quem muda peças num tabuleiro de xadrez!
Por outro lado, a desproporção de uma medida tão gravosa como o é a do encerramento ou fecho de uma unidade produtiva, ainda se torna mais patente quando é certo todos sabermos a grave crise que atravessa a nossa agricultura, e o abandono crescente das terras e dos campos, o que não deixa de brigar com a consciência jurídica geral, limite intransponível para o exercício de qualquer direito subjectivo, mesmo que de personalidade ou ambiental.
Deste modo, as reticências da M.ma Juíza em ir por tal caminho, em
«ir por aí», parecem-nos, ao invés do alegado, inteiramente pertinentes e justificadas, tanto mais que ficou por demonstrar grande parte dos proclamados e porventura mais deletérios efeitos da proximidade do pavilhão-vacaria dos réus, pelo que de modo algum podemos concordar com a pretensão maximalista dos recorrentes também nesta parte, reiterando a aplicação de medida que no fundo teria o mesmo impacto negativo na esfera dos direitos sociais e económicos daqueles do que o seu pedido, entendido na acepção literal de demolição completa de tais instalações.”
1.4. Notificados deste acórdão, dele vieram os autores interpor recurso para o Tribunal Constitucional, através do seguinte requerimento:
“1. O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, e pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro.
2. No seu recurso de apelação para o Tribunal recorrido, os recorrentes invocaram e apelaram, em defesa dos seus direitos de personalidade, que consideravam violados, para os artigos 25.°, 64.° e 66.° da Constituição da República Portuguesa (conclusões 11.ª e 28.ª das referidas alegações, que aqui se dão por reproduzidas).
Igualmente chamaram em apoio da sua tese os artigos 3.° e 25.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que também aqui se têm por reproduzidas (conclusão 11.ª das ditas alegações), e que fazem parte integrante do direito português (artigo 8.° da Constituição).
3. Sucede que o aresto da Relação, ora em apreço, afastou a aplicação daquelas normas constitucionais com a invocação do princípio
«consciência jurídica geral», que classificou como «limite intransponível para o exercício de qualquer direito subjectivo, mesmo que de personalidade ou ambiental» (sic).
Erigiu, pois, tal princípio em norma de valor superior a todos os direitos reconhecidos e protegidos pela Constituição, designadamente o mais nobre: o direito à vida (Constituição, artigo 24.°, n.º 1).
No caso em análise, à integridade moral e física, à saúde, à habitação em condições de higiene e conforto, que o Acórdão recorrido reconhece serem superiores aos que se lhes contrapõem como direitos colidentes: «Com efeito, a satisfação do direito dos autores, de que não se questiona a superioridade» (sic) – fls. 13, linhas 7 e 8, do Acórdão.
O referido princípio da «consciência jurídica geral», como superlativo a todos (mesmo todos) os direitos subjectivos, não tem sequer assento constitucional, em medida alguma, e a sua aplicação violou, no caso concreto, princípios, direitos, liberdades e garantias dos recorrentes constitucionalmente consagrados nos termos expostos, além de que é arbitrário, desadequado às circunstâncias e de limites incomensuráveis e, por isso, indetermináveis, o que tudo converge na sua inconstitucionalidade.
São inconstitucionais as normas que infringem o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados – artigo 277.º, n.º 1.
Nos pleitos submetidos a julgamento não podem os Tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados – artigo 404.°.
E os argumentos que fundamentam o Acórdão recorrido não são suficientes para justificar uma derrogação tão frontal do texto constitucional.
4. Pretendem, por isso, os recorrentes que seja apreciada e declarada a inconstitucionalidade do referido princípio e da sua aplicação efectiva in casu.
5. Porque é óbvio e ressalta, cristalinamente, do texto da decisão que a elevação do dito princípio a imperante do exercício de qualquer direito subjectivo mesmo que de personalidade ou ambiental, é que constituiu a ratio decidendi do julgado.
6. Aspecto importante, de grande relevo, no caso sub judicio, é o requisito específico imposto ao abrigo da alínea b): norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Ora, na hipótese em julgamento, verifica-se o caso excepcional de os interessados não terem disposto de oportunidade processual para levantar a questão da inconstitucionalidade da norma (ou princípio), que agora se pede, por esta só ter surgido e sido invocada com a prolação da decisão de que se recorre.
Aos interessados não era exigível que antevissem a possibilidade de descoberta e aplicação de tal princípio que foi, afinal, a ratio decidendi, no caso concreto, de modo a impor-se-lhes o ónus de suscitar a questão antes da decisão, o que só seria possível a quem possuísse o dom da adivinhação.
Trata-se de caso excepcional e anómalo em que não se torna possível aplicar a regra da arguição da inconstitucionalidade até à decisão – Breviário do Direito Processual Constitucional, de Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, pág. 52.
Nada justifica, por consequência, que o seu exame escape ao controlo específico da constitucionalidade – é dizer, à jurisdição e à competência do Tribunal Constitucional.
Nestes termos e por estarem em tempo e terem legitimidade, requerem a V. Ex.a que se digne admitir o presente recurso, que deverá subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.”
1.5. O recurso para o Tribunal Constitucional não foi admitido, pelo despacho do Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra, de 8 de Novembro de 2004, com os seguintes fundamentos:
“Importa, assim, decidir da admissibilidade do presente recurso, como se estatui no n.º 1 do artigo 78.° da Lei n.º 85/89.
Ora, a este propósito, a lei é perfeitamente clara.
Como os próprios recorrentes reconhecem, apenas cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões judiciais, nos termos da alínea b) do n.° 1 do citado artigo 70.° da Lei do Tribunal Constitucional, que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Não é o caso dos autos, pois em momento algum do processo na 1.ª instância ou no próprio recurso da sentença para este Tribunal, suscitou ele a inconstitucionalidade de qualquer norma aplicada ao caso sub judice.
Daí que os recorrentes venham invocar a verificação de uma situação dita excepcional ou anómala e que se traduziu em que no acórdão se fez apelo a um princípio dito de «consciência jurídica geral», com assento constitucional e que se declarou prevalecer sobre os demais direitos de personalidade e outros.
Ora, sem quebra do devido respeito, não nos parece que os recorrentes tenham entendido o contexto em que surge a referência ao dito princípio de consciência jurídica geral.
Este princípio mais não é do que a consagração dos princípios, também constitucionais, da proporcionalidade e da razoabilidade devidamente valoradas na sentença para se resolver o conflito ou colisão dos direitos de que se ocupam os autos, valoração essa que mereceu o beneplácito deste Tribunal.
Basta ter em conta o que se disse a fls. 192 do acórdão:
«Essencial é portanto que as medidas a tomar sejam orientadas pelos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, traduzindo-se o primeiro na adequada proporção entre os valores em confronto e aquilatar em que medida o sacrifício que se impõe ao titular de um direito se justifica face à lesão do outro e consistindo o segundo na proibição do uso de um meio intolerável para quem é afectado pela medida restritiva».
O Tribunal a quo entendeu à luz destes princípios, igualmente estruturantes da República Portuguesa, que não se justificava a aplicação da drástica medida pedida na acção e este Tribunal também assim o considerou, nada justificando, pois, a surpresa dos recorrentes perante a decisão e que no fim de contas assenta nos mesmos fundamentos da sentença da 1.ª instância.
A chamada «consciência jurídica geral» não é, pois, outra coisa do que o limite que a própria Constituição marca ao exercício dos direitos fundamentais. Estes estão sujeitos a restrições «necessárias» para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos – n.° 2 do artigo
18.º da Constituição.
Aqui chegados, temos, pois, de concluir que não estamos confrontados com qualquer situação anómala ou excepcional do tipo das descritas pelo Dr. Guilherme da Fonseca, justificativas da falta de oportunidade processual para os recorrentes levantarem a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão de que pretendem recorrer (in Breviário de Direito Processual Constitucional, págs. 46-47).
Deste modo, o recurso, com os invocados fundamentos, não tem cabimento, antes nos parecendo manifestamente infundado, indo consequentemente indeferido, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 76.º, n.ºs 1 e 2, da Lei do Tribunal Constitucional.”
1.6. É contra este despacho de não admissão de recurso de constitucionalidade que vem deduzida a presente reclamação, na qual os reclamantes desenvolvem a seguinte argumentação:
“Os recorrentes sentem-se mal julgados – com o máximo respeito o dizem – quando o douto despacho profligado profere que lhe parece manifestamente infundado o recurso interposto.
De todo o seu conteúdo colhem os recorrentes a ideia – sempre com vénia e respeito – que o seu autor não dá abrigo, em seu alto critério, à valorosíssima máxima atinente a recursos: odiosa restringenda favorabilia amplianda.
Os recorrentes pensam que se mantêm válidas as razões que expressaram no seu requerimento de interposição de recurso.
Contrariamente ao que é dito na decisão impugnada, os recorrentes estão conscientes de que entenderam o contexto em que surgiu a referência ao princípio da «consciência jurídica geral».
Escreveu-se nessa decisão que em momento algum do processo na 1.ª instância ou no próprio recurso para o Tribunal da Relação se suscitou a inconstitucionalidade de qualquer norma aplicada no caso sub judice.
Pois não: as normas aplicadas não eram inconstitucionais.
Não era a constitucionalidade das normas que estava em causa, mas a interpretação que lhes fora dada.
Só essa poderia ser a faceta a fazer cair as decisões no âmbito do Tribunal Constitucional.
Frise-se, no entanto, que o Tribunal Constitucional pode julgar inconstitucional, com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada. Está isso nos seus poderes de cognição.
Mas aquela situação só durou até ao momento em que o Tribunal da Relação, na sua decisão, e ex novo vem invocar o princípio da «consciência jurídica geral», que elevou à categoria de «limite intransponível para o exercício de qualquer direito subjectivo, mesmo que de personalidade ou ambiental».
Não podiam os recorrentes, como é óbvio, ter alcunhado esta norma, de que o Tribunal da Relação lançou mão para matar todas as questões que no processo flutuavam, de inconstitucional, antes de a conhecerem. Os recorrentes não têm o dom da adivinhação.
Ainda, em manifesta oposição com o douto despacho reclamado, afigura-se-nos – e para nós sem sombra de dúvida – que a situação em apreço é exactamente das do tipo das descritas pelo Dr. Guilherme da Fonseca justificativas da falta de oportunidade processual para os recorrentes levantarem a questão da inconstitucionalidade antes de proferida a decisão:
«... existem casos excepcionais ou anómalos em que o interessado, por não ter disposto de oportunidade processual para levantar a questão antes de proferida a decisão, a levantou após a sua prolação e o TC a considerou atempadamente suscitada.
Trata-se de casos em que não se torna possível aplicar a regra da arguição da inconstitucionalidade até à decisão; casos em que tal exigência é dispensada por se ter verificado uma situação excepcional ou anómala que justifica essa dispensa.
A jurisprudência do TC permite-nos constatar a existência de três tipos de situações:
(...)
c) ao interessado não foi exigível que antevisse a possibilidade de aplicação da norma ao caso concreto, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da decisão.» – Dr. Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, Breviário de Direito Processual Constitucional, pág. 52.
No processo se veio travando a controvérsia acerca da valoração e superiorização dos direitos dos contendores: direitos económicos dos réus – a exploração de uma vacaria; direitos de personalidade e também de propriedade dos autores – à habitação, ao descanso, à saúde.
Nessa perspectiva decorreu todo o pleito.
A superioridade dos direitos dos autores é inquestionável.
Basta um olhar sobre a nossa mais prestigiada doutrina e sobre a jurisprudência, referenciadas nos autos.
O próprio acórdão recorrido, da Relação, o perfilha sem ambiguidades: «... a satisfação do direito dos autores de que não se questiona a superioridade» – fls. 13 do Acórdão.
O mesmo tribunal assim vinha julgando e proclamando: «Os direitos de personalidade são de nível superior aos de propriedade e prevalentes» – Acs. das Relações de 1997, tomo IV, pág. 23.
E, no mesmo documento, doutrinou: a propriedade é um bem ao serviço do homem, não podem os respectivos direitos jamais equilibrar os pratos da balança onde se contraponham direitos de personalidade.
E era neste palco – repete-se – que se encontrava a contenda, quando surge, pela primeira vez, propulsionado pela Tribunal recorrido, o arrasador princípio da «consciência jurídica geral», que tudo suplanta, que tudo submerge, «limite intransponível para o exercício de qualquer direito subjectivo, mesmo que de personalidade ou ambiental».
«Limite intransponível para o exercício de qualquer direito subjectivo», de qualquer direito subjectivo, público ou privado, seja ele qual for, o direito à vida incluído, portanto, e seja ele exercido como for.
A tal barreira intransponível será então a negação do poder atribuído aos próprios sujeitos do interesse, ou seja, a negação dos direitos mesmos.
Defende o despacho reclamado que tal princípio mais não é do que a consagração dos princípios também constitucionais de proporcionalidade e razoabilidade.
Sempre com o devido respeito, não concordamos: nunca aqueles princípios poderão ser limite intransponível para o exercício de todos os direitos subjectivos, mesmo que de personalidade ou ambiental.
Tal retumbante afirmação contém, dentro de si, a nosso ver, uma perigosa e inaceitável hipérbole.
É que, tendo como perspectiva as garantias resultantes directamente da própria Constituição, é evidente que, quanto a elas, inexiste qualquer liberdade de conformação, ampliadora ou restritiva, de julgar que, por isso, não poderão deixar de ser aplicadas, não podendo, por maioria de razão, ser editada norma que afecte o seu conteúdo essencial, como sucedeu in casu: norma que paralisa o exercício de todo e qualquer direito subjectivo.
Não podia o julgador, a súbitas, e na decisão final, imprevistamente, editar um princípio que seja obstáculo intransponível, isto é, falando claro, que elimina, que risca da Constituição todo e qualquer direito subjectivo – os de personalidade incluídos, obviamente – e por qualquer forma de exercício. Catapultando para o mundo do inexistente, do nada, toda a protecção jurídica estruturada e definida na Constituição, catálogo de garantias concretas, em nome de um vago princípio da «consciência jurídica geral», em lugar algum definido e autonomizado.
Na opinião pública, a justiça é alguma coisa de bastante arbitrário. O que a um parece justo, ao outro parece injusto e ambos sustentam, de boa fé, o seu modo de sentir com armas tão iguais que muitas vezes é embaraçoso saber a qual dar razão. Diz-se que foi o que sucedeu a Henrique IV ao ouvir dois litigantes a quem respondeu: «Têm ambos razão».
Não se pode, assim, afirmar que há um princípio de «consciência jurídica geral», que se sobrepõe ao exercício de todos os direitos subjectivos.
Isso é que não se compagina no contexto de um Estado de Direito.
De outro modo, estava aberta a porta ao julgador para violar ele as fronteiras do direito e da segurança jurídica.
Diz-se, no despacho reclamado, que nada justifica a surpresa dos recorrentes perante a decisão.
Justificada ou não, no critério do mui respeitável e digno autor do despacho, o certo é que os recorrentes foram envolvidos pela surpresa da decisão.
E surpresa e apreensão por tal decisão lhes retirar um direito que julgam ter: de verem a sua pretensão apreciada pelo mais Alto Tribunal.
E convém deixar aqui bem claro que o recurso visa apenas, como, mui transparentemente, ressalta do teor do requerimento de interposição, ver apreciada e declarada a inconstitucionalidade do princípio que o Tribunal da Relação editou e erigiu em «limite intransponível para o exercício de qualquer direito subjectivo, mesmo que de personalidade ...» (cfr. n.º 5 desse requerimento). Não se confunde a eventual inconstitucionalidade da decisão em si mesma, mas a inconstitucionalidade do normativo aplicado.
A terminar esta reclamação, apenas uma reflexão sobre os princípios de proporcionalidade e razoabilidade ponderados nas decisões das instâncias, relativas ao caso concreto, trazidas à colação pelo douto despacho reclamado, embora nos pareçam – com todo o respeito o dizemos – descabidos, quando apenas se trata e só de ajuizar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de um normativo. Diremos apenas que as eventuais lesões dos direitos, em concreto, postos em confronto eram estes:
– Deslocar um barracão, onde estava instalada uma vacaria, num meio essencialmente rural, fora do perímetro urbano;
– Deixar uma família de utilizar, com normalidade, a sua casa, porquanto «No estábulo (dos réus) desenvolve-se grande quantidade de moscas, mosquitos, melgas e moscas varejeiras, que invadem a casa dos autores, entrando pelos furos de respiração e escoamento de águas, incomodam devido aos seus zumbidos e picadas e obriga-os a ter as portas e janelas da casa sempre fechadas, impedindo-os de utilizar o terraço» – n.º 7 da sentença da 1.ª instância, a fls. 119 dos autos.
Não cremos que tenha cabimento, aqui e agora, a questão factual em concreto discutida nos autos; não quisemos, porém, deixar de vincar a nossa posição.
Concluímos dizendo que quereríamos ter dito melhor as nossas razões; não soubemos, mas apelamos para o suprimento que nos virá de V. Excelências, no sentido de nos permitir introduzir o pleito no Tribunal Constitucional, como nos parece ser nosso direito e será de Justiça.”
1.7. O Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra proferiu despacho de manutenção da decisão reclamada, do seguinte teor:
“Ponderados os argumentos aduzidos pelos reclamantes, não vemos razões para alterarmos o nosso despacho de indeferimento.
Com efeito, entendemos que os recorrentes não suscitaram a inconstitucionalidade de qualquer das normas aplicadas no acórdão proferido e que desatendeu o seu pedido de demolição da vacaria dos recorridos.
Cremos que não poderão invocar a surpresa da interpretação das normas atinentes à colisão de direitos, quando é certo que o acórdão acolheu no essencial a fundamentação do tribunal de 1.ª instância para não dar guarida ao pedido formulado.
Com efeito, sobre as partes que interpõem recurso para o Tribunal Constitucional com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC recai o ónus de analisar as diversas possibilidades interpretativas susceptíveis de vir a ser seguidas e adoptarem as necessárias precauções, o que constitui jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional.
Nada disso nos parece resultar da análise do recurso interposto pelos recorrentes da sentença da 1.ª instância, pelo que decidimos manter o despacho posto em crise.”
1.8. No Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
“A presente reclamação é manifestamente improcedente, já que os ora reclamantes não suscitaram, durante o processo e em termos processualmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para servir de base ao recurso de fiscalização concreta interposto – e sendo ainda evidente que o acórdão da Relação, confirmativo do decidido em 1.ª instância, não pode seguramente perspectivar-se como «decisão-surpresa», susceptível de dispensar o recorrente do cumprimento daquele ónus.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Como resulta da exaustiva transcrição feita das peças processuais pertinentes, está em causa na presente reclamação o adequado cumprimento, pelos recorrentes, do ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade das normas aplicadas na decisão recorrida como ratio decidendi.
Ora, independentemente da questão de se saber se a invocação, no acórdão recorrido, da “consciência jurídica geral” é de qualificar como de tal forma surpreendente e inesperada que dispensaria os recorrentes de, prevenindo a possibilidade dessa invocação, suscitarem a questão da sua desconformidade constitucional antes de proferida a decisão ora impugnada, o que surge como decisivo para o desfecho desta reclamação é a constatação de que essa invocação não assume autonomia como fundamento decisório.
Com efeito, a verdadeira ratio decidendi do acórdão recorrido está no reconhecimento de que, tal como fora sustentado na primeira instância, a medida de demolição peticionada pelos autores recorrentes surgia como desproporcionada e desrazoável por serem congemináveis outras soluções que, salvaguardando adequadamente o direito “prevalente” dos autores, não fossem tão “drásticas” para os réus. Recordem-se as seguintes passagens do acórdão recorrido:
“E a interrogação posta pela senhora Juíza cremos que tem alguma razão de ser.
Com efeito, a satisfação do direito dos autores, de que não se questiona a superioridade, ainda que relativizada na sua dimensão temporal, só resultará com o encerramento definitivo da vacaria dos réus, e a inutilização em termos práticos do pavilhão construído?
Ou seja, não haverá outros meios ou processos, designadamente o uso de produtos repelentes de insectos, a instalação de redes de protecção e operações de limpeza mais eficazes para impedir ou atenuar, em termos significativos, a acumulação e propagação de insectos nocivos para o prédio vizinho dos autores?
E quando a lei fala de providências adequadas – artigo 70.º, n.º 2, do Código Civil – será, dadas as circunstâncias, a medida do encerramento das instalações, pondo em risco, senão mesmo inviabilizando, a própria exploração, já que paredes meias com a respectiva casa de habitação, dos réus a única que permitirá a justa salvaguarda dos direitos de personalidade e da utilidade habitacional do prédio dos autores?
Cremos que não, de resto neste mesmo sentido e numa situação similar se pronunciou esta Relação, em Acórdão publicado na Colectânea de Jurisprudência, 2000, tomo I, pág. 23.” (sublinhado agora acrescentado).
O apelo, mais adiante, à “consciência jurídica geral” surge, assim, como mera reiteração, por outras palavras, da invocação do princípio da proporcionalidade, na perspectiva da “concordância prática” de direitos fundamentais conflituantes. Como se refere no acórdão recorrido:
“Por outro lado, a desproporção de uma medida tão gravosa como o é a do encerramento ou fecho de uma unidade produtiva, ainda se torna mais patente quando é certo todos sabermos a grave crise que atravessa a nossa agricultura, e o abandono crescente das terras e dos campos, o que não deixa de brigar com a consciência jurídica geral, limite intransponível para o exercício de qualquer direito subjectivo, mesmo que de personalidade ou ambiental.
Deste modo, as reticências da M.ma Juíza em ir por tal caminho, em
«ir por aí», parecem-nos, ao invés do alegado, inteiramente pertinentes e justificadas, tanto mais que ficou por demonstrar grande parte dos proclamados e porventura mais deletérios efeitos da proximidade do pavilhão-vacaria dos réus, pelo que de modo algum podemos concordar com a pretensão maximalista dos recorrentes também nesta parte, reiterando a aplicação de medida que no fundo teria o mesmo impacto negativo na esfera dos direitos sociais e económicos daqueles do que o seu pedido, entendido na acepção literal de demolição completa de tais instalações.” (sublinhados agora acrescentados)
Isto é: a invocação da “consciência jurídica geral” surge no contexto da aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, que, estes sim, constituem a verdadeira ratio decidendi da solução jurídica mantida no acórdão recorrido, nada de novo lhes acrescentando, e tanto assim que, mesmo sem invocação daquela “consciência”, o sentido da solução seria o mesmo. Por outro lado, os fundamentos desta solução são essencialmente os da sentença da 1.ª instância, pelo que carece de sentido a alegação da surpresa dos recorrentes com o decidido no acórdão recorrido.
Não tendo os recorrentes suscitado, antes de proferido o acórdão recorrido, a inconstitucionalidade dos princípios jurídicos neste aplicados como ratio decidendi – os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade na perspectiva da concordância prática dos direitos fundamentais em confronto –, tendo tido oportunidade processual para o fazer, surge como inadmissível o recurso de constitucionalidade interposto.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 1 de Março de 2005
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos