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Processo nº 11/97
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No Tribunal do Trabalho de Lisboa, A. intentou acção declarativa, de condenação emergente de contrato individual de trabalho contra a B., peticionando a declaração de ilicitude do seu despedimento pela Ré, a condenação desta no pagamento das retribuições que deixou de auferir e a sua reintegração sem prejuízo da categoria e antiguidade.
Todavia, por despacho de 16 de Outubro de 1995, na sequência da publicação da Portaria nº 102/95, de 31 de Março, que revogou a autorização para o exercício de actividade da B., e determinou a sua liquidação em conformidade com a legislação aplicável, foi declarada extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.
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2 - Desta decisão levou a Autora recurso ao Tribunal da Relação de Lisboa, suscitando nas alegações a questão de inconstitucionalidade das normas dos artigos 1º, § 2º, 12º, 21º, corpo e nº 5, 36º e 38º do Decreto-Lei nº
30 689, de 27 de Agosto de 1940, que teriam sido aplicados como normas fundamento do despacho impugnado.
Por acórdão de 27 de Novembro de 1996, aquele Tribunal concedeu provimento ao recurso, revogou a decisão agravada e determinou o prosseguimento da acção até final.
Para tanto, depois de se invocar a jurisprudência estabelecida pelo Tribunal Constitucional sobre a matéria, aduziu a fundamentação seguinte:
'Perfilhamos inteiramente a douta argumentação expendida naqueles Arestos, acrescentando apenas que, se no domínio da vigência da Constituição de
1933 a atribuição de funções jurisdicionais a órgãos não jurisdicionais (como a referida comissão liquidatária) era algo que se compreendia e inseria na lógica do sistema corporativo então reinante hoje, face à actual C.R.P. - 2ª revisão, de 1989 - essa intromissão da Administração Pública no exercício de funções reservadas ao Juiz é claramente inadmissível - cf. arts. 205º e 206º da C.R.P.
-.
No caso sub juditio não pode esquecer-se que os créditos reclamados pela trabalhadora na presente acção judicial dependem da qualificação do contrato de que emergem, como contrato de trabalho (a R. qualifica-o como de prestação de serviços), operação essa exclusivamente jurisdicional, e que por isso não pode ser confiada a uma entidade (comissão liquidatária) não independente e que não está (ou pode não estar) apenas sujeita à lei, sob pena de violação frontal do art. 206º da C.R.P.
A decisão recorrida não pode pois manter-se, na medida em que se baseou no § 2º do art. 1º, arts. 21º, corpo e nº 5, 34º, 36º e 38º, todos do D.L. nº 30
689, de 27/8/940, ofensivos dos arts. 205º e 206º da C.R.P., como tal inválidos, nos termos do nº 3 do art. 3º da C.R.P. e cuja aplicação esta Relação recusa - art. 280º, nº 1, al. a), da Lei Fundamental.'
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3 - Em conformidade com o disposto nos artigos 280º, nºs 1, alínea a) e 3 da Constituição e 70º, nº 1, alínea a) e 72º, nº 3, da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, na redacção da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, trouxe o Ministério Público os autos em recurso obrigatório a este Tribunal.
Nas alegações que entretanto ofereceu, o senhor Procurador-Geral Adjunto concluiu assim:
'1º - As normas constantes do § 2º do artigo 1º, do corpo do artigo
21º e seu nº 5 e do artigo 34º do Decreto-Lei nº 30 689, de 27 de Agosto de
1940, quando interpretadas em termos de vedarem a um trabalhador do estabelecimento bancário em liquidação o recurso à via judiciária para efectivação dos direitos de que entenda ser titular em consequência de despedimento que considera ilícito - impondo-lhe a dedução da sua pretensão perante a comissão liquidatária nomeada, a quem incumbiria exclusivamente apreciá-la - violam o direito de acesso aos tribunais e o princípio constitucional da reserva da função jurisdicional, consagrados nos artigos 20º,
205º e 206º da Constituição da República Portuguesa.
2º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida'.
A recorrida veio aos autos manifestar concordância com a peça alegatória do Ministério Público.
Passados os vistos legais, cabe apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - Considerando a necessidade de adoptar normas especiais que regessem a liquidação de bancos e casas bancárias foi editado o Decreto nº
19212, de 8 de Janeiro de 1931, posteriormente complementado por numerosa legislação (cfr. Decretos nºs 19597, de 15 de Abril de 1931, 20287, de 7 de Setembro de 1931, 21246, de 17 de Maio de 1932, 22311, de 15 de Março de 1933,
22420, de 8 de Abril de 1933, 23013, de 1 de Setembro de 1933, 23222, de 13 de Novembro de 1933 e 24264, de 31 de Julho de 1934).
Aquando da publicação do Código de Processo Civil de 1939, o diploma que o aprovou - Decreto-Lei nº 29637, de 28 de Maio de 1939 - manteve o regime instituído por aquela normação, exceptuando no seu artigo 3º, § único, da revogação da legislação anterior sobre processo civil e comercial (incluindo o Código de Falências), as disposições especiais de processo sobre liquidação de casas bancárias.
Entretanto, com o confessado objectivo de 'harmonizar as disposições legais sobre liquidação de estabelecimentos bancários com as da lei geral de processo, de modo que apenas divirjam onde a particular natureza dos interesses a regular assim o recomende' (cfr. exposição preambular) foi publicado o Decreto-Lei nº 30689, de 27 de Agosto de 1940, que determinou a revogação do Decreto nº 19212 e da sua legislação complementar.
Este diploma compreende oito capítulos, assim distribuídos: Suspensão de pagamentos dos estabelecimentos bancários (Cap. I); Declaração de falência (Cap. II); Comissário do Governo e comissão liquidatária (Cap. III); Verificação do passivo (Cap. IV); Valorização e liquidação do activo (Cap. V); Pagamento aos credores (Cap. VI); Disposições especiais relativas às sociedades
(Cap. VII) e Disposições finais (Cap. VIII).
Nele se estabelece um processo de liquidação coactiva dos estabelecimentos bancários que suspendam pagamentos e não restabeleçam, no prazo de noventa dias a contar da data daquela suspensão, as condições normais de funcionamento.
Quando tal aconteça, por portaria do Ministro das Finanças será retirada a autorização de exercício do comércio bancário e ordenada a imediata liquidação desses estabelecimentos, constituindo tal portaria, para todos os efeitos, declaração de falência não sujeita a impugnação ou recurso (o Decreto-Lei nº 23/86, de 18 de Fevereiro, veio revogar tacitamente a norma impeditiva do recurso, passando assim a ser consentida a impugnação contenciosa junto do Supremo Tribunal Administrativo).
A prática de todos os actos necessários à liquidação e partilha da massa dos estabelecimento bancários, nomeadamente, a administração da massa, a verificação do passivo e a valorização e liquidação do activo e pagamento dos credores, é da competência de uma comissão liquidatária presidida por um comissário de nomeação governamental.
A decisão recorrida, depois de convocar para resolução do caso em apreço o quadro normativo deste diploma, assim sumariamente sintetizado, recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação das normas dos artigos 1º, § 2º, 21º, corpo e nº 5, 34º, 36º e 38º.
Todavia, em bom rigor, estes dois últimos normativos, inscritos no capítulo referente à verificação do passivo - o primeiro, regendo sobre a contestação das reclamações de créditos deduzidos perante a comissão liquidatária, e o segundo, prescrevendo sobre o regime processual aplicável no caso de os reclamantes serem remetidos para os meios comuns pela Inspecção do Comércio Bancário - por não disporem de uma directa conexão com a matéria da causa, já que o credor optou por deduzir a sua pretensão através de uma acção judicial, não podem ter-se como fundamento normativo daquela decisão, não integrando por isso o objecto do recurso que fica assim circunscrito às demais normas ali desaplicadas.
Estas normas, concretamente o § 2º do artigo 1º, artigo 21º, corpo e nº 5 e o artigo 34º, dispõem da seguinte formulação:
Artigo 1º
Às instituições comuns de crédito, neste decreto designadas genericamente por estabelecimentos bancários, que suspendam pagamentos é concedido para se resconstituírem o prazo de noventas dias a contar da data da suspensão.
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§ 2º Nenhum credor por crédito anterior à data da suspensão de pagamentos poderá intentar acção ou execução ou prosseguir numa ou noutra contra o estabelecimento bancário devedor, salvo nos casos previstos neste decreto.
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Artigo 21º
À comissão liquidatária compete, salvas as restrições constantes deste decreto, praticar todos os actos necessários à liquidação e partilha da massa do estabelecimento bancário e especialmente:
.................................................
5º Verificar o direito à restituição ou separação de bens e verificar, classificar e graduar os créditos sobre a massa;
.................................................
Artigo 34º
Os credores só podem reclamar a verificação, classificação e graduação dos seus créditos à comissão liquidatária.
As reclamações deverão ser apresentadas no prazo marcado nos anúncios publicados nos termos do § 1º do artigo 23º.
O comissário do Governo deverá passar recibo de entrega sempre que lhe seja solicitado.
§ único. A comissão liquidatária verificará, classificará e graduará, independentemente de reclamação, os créditos que repute verdadeiros à face dos documentos e da escrituração.
Segundo o acórdão impugnado tais normas violam o disposto nos artigos 205º e 206º da Constituição.
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2 - Este Tribunal definiu e elaborou já, a propósito do regime jurídico instituído pelo Decreto-Lei nº 30 689, uma abundante jurisprudência apreciando a legitimidade constitucional de diversas das suas normas quando confrontadas, nomeadamente, com o princípio da reserva da função jurisdicional consagrado nos artigos 205º e 206º da Constituição (cfr. por todos, os acórdãos
443/91, 179/92 e 449/93, Diário da República, II Série, de, respectivamente, 2 de Abril e 18 de Setembro de 1992 e 29 de Abril de 1994)
Considerou-se então que a liquidação coactiva dos estabelecimentos bancários assume um carácter administrativo, dirigida que é, prioritariamente, à prossecução dos interesses públicos a cargo da Administração, não se descurando embora os interesses dos particulares, cuja participação é assegurada pela comissão liquidatária.
Todavia, depois de se acentuar que tal forma de liquidação, representando embora um procedimento administrativo, transporta já dimensões materiais de justiça, em termos de acautelar e defender os interesses particulares dos credores e titulares do respectivo estabelecimento, concluiu-se no sentido de que algumas das suas normas representavam manifesto desvio à garantia da via judiciária assegurada pelo texto constitucional.
Com efeito, no acórdão nº 443/91, cit., foram julgados inconstitucionais, além de outras, as normas dos artigos 21º, corpo e nº 5 - parte em que se confere à comissão liquidatária poderes para verificar, classificar e graduar os créditos sobre a massa - e 34º, corpo, primeiro período, e no acórdão nº 179//92, também citado, decidiu-se no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 34º, em ambos os arestos por violação do princípio da reserva da função jurisdicional.
Nestas normas, cuja legitimidade constitucional está em causa no presente recurso, atribui-se à comissão liquidatária uma competência de
índole materialmente jurisdicional, qual seja, a de verificar, classificar e graduar os créditos sobre a massa (artigo 21º corpo e nº 5), sendo que, apenas perante tal entidade, podem os credores reclamar a verificação, classificação e graduação dos seus créditos (artigo 34º), sendo assim manifesta a sua inconstitucionalidade, como largamente se demonstrou naqueles arestos, cuja fundamentação aqui se dá por acolhida.
O acórdão recorrido desaplicou ainda, com fundamento em inconstitucionalidade, a norma do § 2º do artigo 1º, enquanto limita o acesso à via judiciária relativamente aos credores do estabelecimento bancário que detenham créditos anteriores à suspensão dos pagamentos.
Este preceito não pode deixar de ser integrado no quadro normativo que define as competências da comissão liquidatária no domínio da verificação, classificação e graduação dos créditos sobre a massa, pois que, ao impedir aos credores o acesso ao tribunal para reconhecimento dos seus direitos, impõe-lhes que deduzam as suas pretensões perante aquela comissão à qual são conferidos amplos poderes de instrução, apreciação e decisão. Aos credores apenas se consente a via judiciária para efectivação dos seus direitos mediante a impugnação contenciosa da decisão administrativa que se venha a pronunciar sobre a matéria (artigo 26º, § 1º); ou em consequência de o interessado ser remetido para os 'meios comuns' por se entender que a matéria litigiosa reveste particular complexidade (artigo 38º).
Talqualmente as normas já antes referidas também esta não pode deixar de se haver por inconstitucional, e no caso em apreço, como bem acentua o senhor Procurador-Geral Adjunto, com a particular consideração de através dela resultar precludida a via judicária ao trabalhador que se considera ilicitamente despedido pela sua entidade patronal, forçando-o a deduzir a sua pretensão - não circunscrita à exigência de cumprimento de uma pura obrigação pecuniária - perante uma comissão liquidatária de natureza administrativa, a que competiria então decidir matérias de interesse e ordem pública.
Conclui-se assim no sentido da sua inconstitucionalidade por violação do disposto nos artigos 20º, nº 1, 205º e 206º da Constituição.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 21º, corpo e nº 5 - na parte em que se confere à comissão liquidatária poderes para verificar, classificar e graduar os créditos sobre a massa - e dos artigos 1º, §
2º e 34º, todos do Decreto-Lei nº 30 689, de 27 de Agosto de 1940, por violação do disposto nos artigos 20º, nº 1, 205º e 206º da Constituição.
b) Negar provimento ao recurso e confirmar, no que à questão de constitucionalidade respeita, o acórdão recorrido.
Lisboa, 25 de Junho de 1997 Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa