Imprimir acórdão
Proc.Nº 87/96
Sec. 1ª
Rel. Cons. Vítor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1 - Em 20 de Outubro de 1993, foi levantado à firma A. um processo de contra-ordenação laboral, tendo a empresa A. vindo arguir a nulidade da notificação de tal processo. Deferida esta arguição e notificada para responder à acusação de falta de pagamento de diferenças salariais e de subsídios, veio responder alegando prescrição do procedimento relativamente a alguns dos créditos, e a inconstitucionalidade da norma do nº3, do artº 10º do Decreto-Lei nº 69-A/87, de 9 de Fevereiro, na redacção dada pelo artº 1º do Decreto-Lei nº 50/92, de 9 de Abril e pelo artº 1º do Decreto-Lei nº 124/93, de
16 de Abril.
A entidade autuante, na fundamentação da decisão, concluiu pela inexistência de prescrição do procedimento contra-ordenacional, mantendo-se a obrigação de pagamento das diferenças salariais, não prescrítiveis enquanto se mantiver a relação laboral que as originou. Quanto à arguição de inconstitucionalidade, a entidade autuante afastou-a por entender que não existia qualquer violação do princípio da igualdade.
Assim, o Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho (IDICT) decidiu aplicar à arguida a coima de 200 000$00, fixando as custas do processo em 3 024$00 e condenando-a no pagamento das diferenças salariais apuradas no montante de Esc: 1 349 254$00.
2.- A arguida A. notificada desta decisão e não se conformando com ela, interpôs recurso para o Tribunal de Trabalho, apresentando logo a respectiva motivação. Nesta, suscitou as seguintes questões: perda de poder de decisão por parte da autoridade recorrida, por decurso do prazo para emitir a decisão; nulidade do despacho do instrutor do processo e dos termos subsequentes deste; nulidade da decisão na parte relativa à condenação nas diferenças salariais; a prescrição do procedimento contra-ordenacional; a amnistia da infracção; e, finalmente, a da inconstitucionalidade do nº 3 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 69-A/87, de 9 de Fevereiro.
Remetidos os autos ao Tribunal do Trabalho de Barcelos, foi aí lavrada decisão que afastou todas as questões suscitadas e confirmou a decisão recorrida.
A arguida, ainda inconformada com o decidido, interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, recurso que logo motivou, formulando as seguintes conclusões:
'1. A Decisão do Exmo. Delegado do I.D.I.C.T. de fls. 53 a fls. 56 é tomada
85 dias após o recebimento da proposta de 30.5.94, devendo ter-se como relevante o decurso do prazo que para tal efeito a Lei prevê, quer pela confrontação (e consequências) com os prazos que a recorrente está obrigada a respeitar, quer por que também a autoridade recorrida deve obediência à Lei a ao direito, devendo assim ter-se como inválida tal Decisão - conf. nº 1, artº 56º, Dec.Lei nº 491/85, de 26.11; artº 3º, Cód. P. Adm. e nº 2º, artº 266º, Constituição.
2. A nova diligência de recolha de prova levada a cabo pela autoridade recorrida a fls. 46 e fls. 47, à revelia da recorrente que intervinha no processo já desde fls. 29, traduz uma clara violação do direito de audição que lhe é garantido, que deve entender-se como uma ampla faculdade de se pronunciar sobre todos os elementos de prova carreados pelo I.D.I.C.T., justificando-se, pois, seja declarada a nulidade do processado a partir de fls. 45 - conf. artº
50º, Dec.Lei nº 433/82, e artigos 4º e 59º do Cód.P.Adm.
3. O poder do I.D.I.C.T. está limitado à aplicação da coima, estando absolutamente vedado a tal autoridade declarar (i. é, 'condenar') a obrigação da recorrente no pagamento das diferenças salariais apuradas no Mapa de fls. 3 e ss., por tal representar uma função jurisdicional que é privativa dos Tribunais, sendo que, a manter-se o juízo expresso na douta sentença, suscita-se aqui a inconstitucionalidade que decorre da interpretação seguida quanto à norma em questão - conf. al. c), do nº 1, do artº 56º, Dec.Lei nº 491/85; nº 3, artº 10º, Dec.Lei nº 69 - A/87; artº 205º Constituição e nº 3, artº 80º, Lei nº 28/82.
4. O facto ilicito imputado à recorrente apresenta diversas variações ao longo dos vários meses do período de Janeiro de 1992 a Julho de 1993 (quanto aos trabalhadores, salários, categorias, diferenças apuradas, etc...), não podendo ter-se como uma actuação única, mas diferenciada em relação a cada período, pelo que, a recorrente, terá praticado diversas contra-ordenações, mostrando-se prescrito o respectivo procedimento - conf. artº 1º, e al. b), artº 27º, Dec.Lei nº 433/82.
5. As diversas contra-ordenações por que a recorrente seria responsável mostram-se amnistiadas - conf. al. ff), artº 1º, Lei nº 15/94 e nº 1, artº 10º, Dec.Lei nº 69 - A/87.
6. A obrigação de pagamento das diferenças salariais apuradas no Mapa de fls.
3 e ss., não goza de autonomia no processo de contra-ordenação, pelo que, prescrito o respectivo procedimento ou amnistiada a coima não pode apreciar-se a existência daquela obrigação.
7. A previsão da 2ª parte, do nº 3, do artº 10º, do Dec.Lei nº 69 - A/87 releva-se inconstitucional, por estabelecer uma discriminação injustificada, atribuindo aos trabalhadores meios de exigir os seus direitos que não se prevêem para as entidades patronais - conf. artº 13º Constituição.'
Também o Ministério Público apresentou naquele tribunal, as respectivas contra-alegações, em que concluiu pela improcedências de todas as conclusões apresentadas pela recorrente e arguida.
Entretanto, após ter sido resolvida uma questão de pagamento de guias, o processo prosseguiu, tendo o Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto tido vista dos autos, neles emitindo, em 4 de Abril de 1995, o respectivo parecer, o qual foi do seguinte teor:
...'1. O recurso em apreço tem por alvo a sentença proferida a fls. 73 e seguintes que julgou improcedente a impugnação judicial da decisão do Exmo. Delegado da Delegação do Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho exarada a fls. 53 e seguintes e na qual a arguida A. foi condenada a pagar coima de 200 mil escudos, 1.349.254$00 de diferenças salariais e custas do processo.
Recorre a arguida, nos termos da motivação de recurso junta a fls. 85 e seguintes.
2. Vistos os autos nos termos dos artigos 416º e 417º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal, aqui aplicáveis por força do disposto nos artigos 41º, nº 1, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, e 1º do Decreto-Lei nº 491/85, de 26 de Novembro, verifica-se que o recurso é admissível (artigo 73º, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 433/82), mas não é tempestivo (artigo 74º, nº 1 do Decreto-Lei nº 433/82), intempestividade que obsta ao conhecimento do recurso.
Senão, vejamos.
A sentença recorrida foi notificada ao mandatário da arguida, através de carta registada, que foi expedida em 6 de Dezembro de 1994 (cfr. nota de registo e cota de fls. 79).
Ora, considerando-se efectuada a notificação em 9 de Dezembro de 1994
(terceiro dia posterior ao do registo, nos termos do nº 3 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 121/76, de 11 de Fevereiro) e sendo de cinco dias o prazo de interposição do recurso, conforme o estatuído nº 1 do artigo 74º do Decreto-Lei nº 433/82, expirou em 16 de Dezembro de 1994 o prazo para recorrer, sendo certo que só em 4 de Janeiro de 1995 a arguida se apresentou a interpor recurso (fls.
85).
O prazo para interposição de recurso é judicial, peremptório e improrrogável, pelo que, o seu decurso faz extinguir o direito à interposição do recurso.
É certo que o recurso foi admitido na 1ª instância (fls. 138), trata-se, porém, de decisão provisória que não vincula este tribunal superior (cfr. artigo
687º, nº 4 do C. P. Civil, aplicável por força dos conjugados artigos 4º do C. P. Penal, 41º, nº 1 do Decreto-Lei nº 433/82 e 1º do Decreto-Lei nº 491/85, de
26 de Novembro).'
O parecer do relator de 24 de Abril, adoptou a posição exarada pelo Ministério Público, entendendo que o recurso tinha sido extemporaneamente apresentado. E sem que à arguida fosse dado conhecimento quer do parecer do Ministério Público quer do despacho do relator, foram os autos com vista aos adjuntos e à conferência.
Na conferência veio a adoptar-se a posição inicialmente defendida no parecer do Ministério Público e, pelo Acórdão 5 de Junho de 1995, a Relação decidiu não tomar conhecimento do recurso, por extemporaneidade.
A arguida, notificada desta decisão, veio arguir a sua nulidade assente essencialmente no facto de o acórdão ter adoptado a posição exposta pelo Ministério Público no seu parecer, posição esta de que a arguida não teve conhecimento, pelo que não teve oportunidade para se opor às razões nesse parecer expendidas.
Neste requerimento, a arguida levanta a questão da constitucionalidade da norma do artigo 416º do Código de Processo Penal de 1987
(adiante, CPP) respeitante aos pareceres do Ministério Público, questão esta já apreciada e decidida pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 651/93 (in, Diário da República, IIª Série, de 31 de Março de 1994), de que transcreve a parte decisória.
O relator ouviu o representante do Ministério Público que se pronunciou no sentido do indeferimento do requerido, não só pelo facto de o artigo 32º, nº1, da Constituição, não ser aplicável ao caso em apreço, uma vez que se refere às garantias do processo criminal, como também porque o parecer em causa se não pronunciou 'sobre o objecto do recurso, o fundo da causa, limitando-se a preparar o exame preliminar do processo a efectivar pelo Exmo. Juiz Desembargador Relator,(...) posição processual essa dominada por critérios de estrita legalidade e insusceptível de poder agravar a posição da recorrrente'.
Na sequência desta pronuncia, o relator exarou parecer no sentido de que não ocorria a nulidade invocada pela recorrente e, remetendo logo os autos à conferência, após vistos, veio esta a proferir, em 20 de Novembro de 1995, um Acórdão no qual decidiu dar por reproduzido pelos seus fundamentos o parecer do relator e, correspondentemente, desatender a invocada nulidade.
É deste acórdão conjuntamente com o anterior, que decidiu não tomar conhecimento do recurso, que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do nº1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciar a norma do artigo 416º do Código de Processo Penal, que a arguida considera violadora das garantias de defesa do acusado, constantes do nº1 do artigo 32º da Constituição, na interpretação assumida pelo acórdão, no sentido de que não agrava a posição da arguida a não notificação de um parecer do Ministério Público que, pela primeira vez, se pronuncia pelo não conhecimento do recurso, em sede de contra-ordenação laboral.
A firma recorrente apresentou neste Tribunal as suas alegações que concluiu do seguinte modo:
'1. O presente processo é de contra-ordenação laboral seguindo rigorosamente os preceitos reguladores do processo criminal - cfr. artº 1º Dec.-Lei nº491/85,
3 nº1, artº 41º, Dec.-Lei nº 433/82.
2º O Ministério Público no Tribunal da Relação do Porto, quando o processo lhe foi com vista, suscitou a questão nova da extemporaneidade do recurso que até então não havia sido levantada - mesmo na Resposta ao recurso que o Ministério Público apresentou no Tribunal do Trabalho de Barcelos - elaborando sobre a mesma o Parecer a que deu o nº 90/95.
3º Tal parecer passou a integrar o processo, que seguiu logo para o Exmo Relator e para a conferência, que viria a acolher os argumentos expostos no citado parecer, tudo sem que à recorrente fosse dada a mínima possibilidade de rebater as novas razões trazidas aos autos.
4º O Tribunal da Relação interpretou o disposto no artigo 416º do Cód. Proc. Penal em evidente benefício da posição do Ministério Público e prejuízo da recorrente, a quem jamais deu oportunidade de refutar os fundamentos do citado Parecer.
5º A interpretação seguida pelo Tribunal da Relação do citado dispositivo legal mostra-se inconstitucional por não assegurar todas as garantias de defesa da recorrente que o n1 do artigo 32º da Constituição consagra.
Pelo seu lado, o Ministério Público nas suas contra-alegações concluiu como se segue:
'1º Não viola os princípios da igualdade de armas, do contraditório e das garantias de defesa a circunstância de, no âmbito do processo contra-ordenacional, não ser notificado ao arguido o parecer emitido na sequência da vista a que alude o artigo 416º do Código de Processo Penal, em que o representante do Ministério Público no tribunal ad quem se limita a suscitar a questão prévia da manifesta extemporaneidade do recurso interposto, a qual deveria ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, aquando do exame preliminar pelo relator.
2º Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
3.- A questão que vem suscitada nos autos, tem, desde logo, que ver com a aplicação dos princípios que regem o direito criminal ao direito contra-ordenacional e ainda com a aplicação a esse direito contra-ordenacional das garantias constitucionais reconhecidas no direito penal.
A recorrente entende que, nos presentes autos de contra-ordenação, em que é arguida, se fez uma aplicação de interpretação normativa do artigo 416º, nº1 do CPP em violação do princípio constitucional das suas garantias de defesa.
O objecto do recurso é, portanto, a inconstitucionalidade da norma do artigo 416º do CPP, enquanto aplicada ao processo de contra-ordenação laboral, e interpretada em termos de não impor a notificação do parecer do Ministério Público ao arguido quando nele se suscita uma «questão nova» - o não conhecimento do recurso - que pode prejudicar a posição do arguido.
Vejamos.
4. - A Constituição da República Portuguesa, pelo seu artigo 168º, nº1, alínea d), reserva para a Assembleia da República a competência para legislar sobre o regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo, assim se estabelecendo um máximo de garantias na legislação sobre tal matéria.
No mesmo sentido estabelece-se expressamente no artigo
32º, nº 8, da Constituição, ainda que sob a epígrafe «Garantias do Processo Criminal», que nos processos de contra-ordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.
Por outro lado, o Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, que institui o regime geral das contra-ordenações, estabelece no seu artigo 32º a aplicabilidade, como direito subsidiário, das normas do Código Penal, nos seguintes termos: 'Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal'.
Uma solução idêntica adopta a lei geral das contra-ordenações no respeitante ao processo contra-ordenacional.
Com efeito, o Decreto-Lei nº 433/82, depois de regular a questão da competência para o processamento das contra-ordenações e de aplicação das respectivas coimas (artigos 33º a 40º), estabelece como direito subsidiário ao processo de contra-ordenação, sempre que do diploma não resulte o contrário, os preceitos reguladores do processo criminal(artigo 41º, DL nº 433/82).
Por último, determina-se no artigo 43º do Decreto-Lei nº
433/82 que o processo das contra-ordenações obedecerá ao princípio da legalidade.
Finalmente, importa referir que, para além da norma geral que prevê a aplicação subsidiária do processo penal, o diploma que estabelece o regime geral das contra-ordenações, em matéria de recurso da decisão do juiz de instância para a Relação, quando este o admite - como é o caso dos autos - prevê também que o recurso seguirá a tramitação do recurso em processo penal, tendo em conta as especialidades que resultam deste diploma
(artigo 74º, nº4, do Decreto-Lei nº 433/82), sendo todas estas normas do diploma que estabelece o regime geral aplicáveis em processo por contra-ordenação laboral (artigo 1º do Decreto-Lei .nº 491/85, de 26 de Novembro).
Fica, assim, plenamente justificado que, nos presentes autos, em recurso para o Tribunal da Relação, se tenha utilizado a norma do artigo 416º do CPP. Com efeito, este preceito estabelece que, antes de ser apresentado ao relator, o processo vai com vista ao Ministério Público junto do Tribunal de recurso.
E foi na utilização desta oportunidade processual que o Ministério Público junto do Tribunal da Relação suscitou a questão contra a qual se rebelou a ora recorrente: a extemporaneidade do recurso levantado contra a sentença do tribunal de 1ª instância que julgou improcedente a impugnação judicial da decisão que lhe aplicou a coima.
Este parecer do Ministério Público, como se referiu, levou à decisão judicial de rejeição do recurso interposto, sem que à recorrente tivesse sido dada oportunidade para aduzir as suas razões de oposição a tal parecer, o que, em seu entender, diminuiu as suas garantias de defesa.
5. - A empresa A. recorrente, como se extrai das respectivas alegações, coloca a questão de constitucionalidade no âmbito da aplicabilidade da norma constante do nº 1 do artigo 32º da Constituição. Todavia, a via de abordagem mais correcta só em segunda linha terá de se situar nesse plano, o que é desde logo indiciado pela própria natureza de direito subsidiariamente aplicável que tem que ser reconhecida à norma do artigo 416º do Código de Processo Penal, aqui sindicada.
Assim, em um primeiro momento, e com aplicação do artigo
79º-C da Lei do Tribunal Constitucional, a análise a que haverá que proceder deverá passar pela norma constante do nº 8 do artigo 32º da Lei Fundamental que, como se referiu, manda assegurar nos processos por contra-ordenação os direitos de audiência e defesa do arguido.
O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado sobre a natureza do ilícito contra-ordenacional no sentido de que não deve acolher-se uma estrita equiparação entre esse ilícito e o ilícito criminal (cfr. Acórdão nº
158/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol, pag. 713 e segs), mas sem deixar de sublinhar a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contra-ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matérias de processo penal. Porventura um desses princípios, comuns a todos os processos sancionatórios, que mais constrições impõe ao legislador será, desde logo por directa imposição constitucional, o da audiência e correlativa defesa do arguido, inseridos em um desenvolvimento processual em que o princípio do contraditório deverá ser mantido, como forma de complementar a estrutura acusatória, que não dispositiva, da actuação dos poderes públicos. Imediatamente aplicáveis são esses princípios logo na fase administrativa do processo contra-ordenacional, por exigência do nº 8 do artigo 32º da Constituição. Mas não fará sentido aceitar que os mesmos não tenham projecção na fase recursória posterior, que corresponde à jurisdicionalização daquele processo. Na verdade, esta segunda fase significa um reforço das garantias do particular (cfr. o Acórdão citado) a quem é imputada determinada infracção e seria incongruente introduzir nela alguma modulação que não fosse no sentido do acréscimo daquelas mesmas particulares garantias que a Constituição expressamente consagrou neste domínio.
É esta a perspectiva que se entende dever ser seguida na apreciação da questão de constitucionalidade sub judicio, que não é uma questão nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional, mas que tem sido vista até aqui no contexto do Processo Penal. Só que a matéria é precisamente daquelas em que mais proximidade entre os dois ordenamentos processuais deverá existir, e as conclusões obtidas naquele plano serão susceptíveis de transposição para aquele em que agora estamos situados.
6. - Sobre o visto do Ministério Público, o Tribunal Constitucional tem uma jurisprudência já firmada, uniforme, ainda que com votos de vencido.Com efeito, o Tribunal começou por apreciar a norma do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929, norma esta qualificada de homóloga da do artigo 416º, agora em apreço.
O Acórdão nº 150/93 (in Diário da República, IIª Série, de 29 de Março de 1993), tirado em plenário, depois de expor as anteriores decisões do tribunal sobre a matéria, concluiu que a norma do artigo 664º não violaria a Constituição se interpretada no sentido de que os réus terão a possibilidade de responderem, nos casos em que o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronunciar em termos de poder agravar a posição dos mesmos (cfr. Acórdão nº 150/93, in Diário da República, IIª Série, de 29 de Março de 1993).
Este entendimento veio a ser posteriormente estendido à norma do artigo 416º do CPP pelos Acórdãos nºs 651/93,(citado pela recorrente), da 2ª Secção e 396/94, da 1ª Secção (in Diário da República, IIª Série, respectivamente, de 31 de Março de 1994 e 11 de Novembro de 1996)
Assim, a norma do artigo 416º do CPP apenas será inconstitucional, por violação dos nºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição, se aos réus ou arguidos não for dada possibilidade de responder ao parecer do Ministério Público quando este se pronunciar em termos de agravar a posição dos réus.
Este entendimento foi fundamentado pela forma seguinte, no Acórdão nº 150/93:
'Por força do artigo 664º do Código de Processo Penal de 1929 ,os recursos antes de irem aos juízes que têm de os julgar, irão com vista ao Ministério Público, se a não tiver tido antes.
Também o nº 1 do artigo 707º do Código de Processo Civil incluído nas disposições por que se rege o recurso de apelação, manda que, apresentadas as alegações, se dê vista do processo ao Ministério Público, se não tiver alegado nem respondido no tribunal superior, para se pronunciar sobre a má fé dos litigantes e a nota de revisão efectuada pela secretaria e para promover as diligências adequadas, quando verifique a existência de qualquer infracção da lei'.
Para afastar qualquer e possível inconstitucionalidade daquele artigo 664º, poderia ser-se tentado a interpretá-lo com o âmbito restrito que lhe é fixado pelo preceito correspondente do Código de Processo Civil.
Mas a restrição constante desse preceito não se coaduna com a posição do Ministério Público no processo penal.
Nem por isso, todavia, se deverá concluir pela inconstitucionalidade da norma.
Como ensina o Prof. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional,
5ª ed., totalmente refundida e aumentada, 1991, parte II, Capítulo III, E, II,
'no caso de normas polissémicas ou plurisignificativas deve dar-se preferência
à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a Constituição' (sobre o mesmo princípio e no mesmo sentido v. ainda autor e obra citados, parte IV, capítulo 27,B, IV, nº 3.3, capítulo 29, B ,nº 3.3, e C, II ,nº 1.3.2, e capítulo
30, C, II).
Ora, foi em obediência a esse princípio, e pelas razões constantes do Acórdão nº 398/89, citado no acórdão recorrido, e a que este faz apelo, que se concluiu pela inconstitucionalidade da norma, na interpretação dele constante.
Entende-se, na verdade, que, para assegurar as 'garantias de defesa' constantes do artigo 32º, nºs 1 e 5, da Constituição, basta que, após o parecer do Ministério Público, o réu tenha possibilidade de lhe responder.
Mas a resposta do réu só se justifica, como se salientou naqueles acórdãos, quando o Ministério se pronuncie em termos de poder agravar a sua posição, e não sempre que o Ministério Público se pronuncie, sejam quais forem os termos em que o faça'.
É esta jurisprudência que aqui se adopta com referência ao artigo 416º do CPP de 1987, uma vez que as razões então invocadas valem, como se referiu, para esta norma, agora questionada.
7. - No caso dos autos, se é certo que a questão suscitada no parecer foi uma questão prévia, processual, relativa à extemporaneidade do recurso interposto e não uma questão relacionada com o mérito do próprio recurso e com a infracção de que foi acusada e pela qual foi condenada a arguida, o certo é que, não tendo podido expor no processo os seus argumentos relativos a tal questão prévia, a arguida viu-se impossibilitada de exercer quanto a tal aspecto processual o direito de contraditar o parecer do Ministério Público, parecer este que foi decisivo para a não admissão do recurso.
É, por isso, manifesto que o parecer do Ministério Público que, pela primeira vez, suscita uma questão prévia respeitante ao não recebimento do recurso por extemporaneidade, questão sobre a qual a arguida não teve oportunidade de responder exercendo o direito de contraditório, e que vem a ser fundamento da decisão de não admitir o recurso, é um parecer que, objectivamente, agrava a posição da arguida, na medida em que esta fica impossibilitada de poder fazer valer os seus argumentos relativamente ao mérito do recurso, que não chega a ser considerado.
O que significa que o entendimento dado á norma do artigo 416º do CPP no presente processo, não assegurou á recorrente todas as garantias do seu direito de defesa, constitucionalmente reconhecido, pelo que esta interpretação tem de ser julgada inconstitucional.
III - DECISÃO:
8.- Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucional a norma do artigo 416º do Código de Processo Penal aplicada em processo de contra-ordenação laboral e aí interpretada em termos de não impor a notificação à arguida do parecer do Ministério Público em que se suscita, pela primeira vez, a questão prévia do não recebimento do recurso por extemporaneidade, por violação do artigo 32º, nºs 1,5 e 8, da Constituição da República Portuguesa e, em consequência, conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade formulado.
Lisboa, 2 de Julho de 1997 Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa