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Processo n.º 707/2005
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Supremo Tribunal de Justiça, A. foi condenado, pela 2ª Vara Criminal de
Lisboa, como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto
e punível pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na
pena de seis anos de prisão.
2. O arguido interpôs recurso da decisão condenatória, tendo o Tribunal da
Relação de Lisboa, por acórdão de 23 de Junho de 2005, negado provimento ao
recurso.
3. A. interpôs recurso do acórdão de 23 de Junho de 2005 para o Supremo
Tribunal de Justiça.
O recurso não foi admitido por decisão com o seguinte teor:
Recurso interposto pelo arguido A.
Este arguido foi condenado na pena de 6 anos de prisão pela prática de um crime
de tráfico de estupefacientes.
O acórdão proferido por esta Relação […] que conheceu do recurso por ele
interposto, negou provimento ao mesmo, confirmando a decisão da 1ª instância.
Por razões idênticas às atrás explanadas, e uma vez que lhe não pode ser
aplicada pena superior a 6 anos de prisão pelo crime pelo qual foi condenado,
não se admite o recurso interposto
As razões “atrás explanadas”, referidas pelo Tribunal da Relação de Lisboa,
constam da decisão que indeferiu um recurso interposto por outro arguido e são
as seguintes:
O arguido foi condenado, na 1ª Instância, nas penas de 6 anos de prisão, 1 ano
de prisão e 7 meses de prisão pela prática, respectivamente, de um crime de
tráfico de estupefacientes, um crime de detenção ilegal de arma de defesa e de
um crime p. e p. no artigo 275º, nº 4, do C. Penal e, em cúmulo jurídico, na
pena de 6 anos e seis meses de prisão.
Esta Relação, conhecendo do recurso pelo mesmo interposto, negou provimento ao
mesmo, confirmando inteiramente a decisão recorrida.
Nos termos do disposto no artigo 400º, nº 1, alínea f) do CPP, não é admissível
recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem
decisões da primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena
de prisão não superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções.
O mencionado preceito, ao reportar‑se a pena aplicável, tem em vista a moldura
penal abstracta correspondente ao crime ou crimes (em caso de concurso), mas há
que respeitar os limites impostos pela proibição de “reformatio in pejus”,
estabelecida no artigo 404º do CPP, de que resulta, no caso, não ser aplicável
pena superior a 6 anos e 6 meses de prisão, em cúmulo jurídico, ao concurso de
crimes.
Assim, não se admite o recurso.
O recorrente deduziu reclamação da decisão que não admitiu o recurso nos
seguintes termos:
1° - O arguido interpôs recurso da douta sentença condenatória de fls. dos autos
por estar em tempo e deter legitimidade.
2º - O recurso, bem como a respectiva motivação foram entregues em tempo e por
quem para tal tinha legitimidade (o mandatário da arguida, devidamente e
regularmente mandatado nos autos, mediante substabelecimento) ou seja, não
cabendo, no caso, qualquer dos requisitos de rejeição de recurso, a que se
refere o nº 2 do artº 414º do CPP.
3° - E, muito menos, como se verá, não cabendo também “in casu” qualquer das
causas de inadmissibilidade taxativa a que alude o artº 400º do CPR.
4º - Na verdade, ao crime de tráfico de droga p. e p. pelo artº 21º DL 15/93 é
aplicável (em abstracto) a pena de 4 a 12 anos de prisão.
5º - Pelo que, sendo o máximo legal de 12 anos (a moldura em abstracto aplicável
ao sobredito crime pelo qual indubitavelmente o recorrente foi condenado),
falece por completo a argumentação aduzida no douto despacho reclamado de que o
acórdão da Relação seria irrecorrível “uma vez que lhe não pode ser aplicada
pena superior a 6 anos de prisão pelo crime pelo qual foi condenado” (douto
despacho reclamado, a fls.239 verso, linhas 17 e 20).
6º - Como resulta com clareza do texto da lei penal adjectiva (art. 400º alínea
f) do CPP), não será admissível recurso “De acórdãos condenatórios proferidos,
em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de primeira instância, em
processo por crime a que seja aplicável pena não superior a 8 anos...”
7º - O douto despacho recorrido parece, com o devido e merecido respeito,
confundir a expressão “a que seja aplicável”, com a expressão “a que seja
aplicada pena” ou “a que tivesse sido aplicada pena” de 8 anos de prisão, o que
de facto sucedeu no caso concreto.
8º - Mas - ainda com o muito e merecido respeito - não será esse o sentido do
legislador. Atente-se que o sentido da lei é tornar irrecorríveis decisões de 1ª
instância, mantidas pela Relação, em crimes a que em sede de moldura abstracta o
limite máximo da pena de prisão não exceda os oito anos de prisão.
9º - Sendo precisamente os casos limite aqueles que respeitam a crimes punidos
com pena de prisão até 8 anos, o que não é, manifestamente, o caso dos autos.
10º - Diversa interpretação restritiva da lei (como aquela que faz o douto
despacho reclamado), constituiria, com o devido e merecido respeito,
interpretação inconstitucional do citado preceito legal (o artº 400º alínea f)
do CPP), ao impossibilitar o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em
processo crime, num caso, como o dos autos, em que a moldura penal abstracta se
mostra superior aos oito anos de prisão, violando-se assim de forma restritiva e
não autorizada, quer o comando do artº 61º nº1 alínea h) do CPP quer – e
fundamentalmente - o texto constitucional que possibilita o recurso, como uma
das garantias de defesa do arguido em processo penal (“maxime” o art. 32º nº 1
da Lei Fundamental e o essencial princípio nele consignado). Pelo que o referido
artº 400º alínea f) do CPP se interpretado com a dimensão e o alcance em que o
faz o douto despacho reclamado (possibilitando a irrecorribilidade de um
acórdão, que confirmou pena anterior de 1ª Instância, em crime punido com
moldura penal de 4 a 12 anos de prisão), se mostra ferido de verdadeira
inconstitucionalidade material, por violação, entre outros, dos arts. 32º nº l,
18º nº 3 da Constituição da República.
11º - Ou seja, num caso como o dos autos, em que o crime imputado ao recorrente
é punido com prisão entre 4 e 12 anos de prisão, este intervalo de punição não
se encontra contemplado na expressão “a que seja aplicável pena de prisão não
superior a oito anos”, já que o seu limite máximo (em abstracto) ultrapassa
largamente os referidos oito anos.
12º - Pelo que requer a admissão do presente recurso, indicando-se como
elementos com que se pretende instruir a reclamação: o douto acórdão recorrido,
a interposição e motivação do recurso, o douto despacho reclamado (de
fls.2394/2395) e esta reclamação. (O que desde já se alega em cumprimento do
disposto no artº 405º, nº 3 “in fine” do CPP).
O Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 17 de
Agosto de 2005, indeferiu a reclamação, com o seguinte fundamento:
Ao recorrente A. foi aplicada pena de prisão inferior a oito anos, tal como já
explicou a Relação de Lisboa (fls. 162 verso).
O recurso não é admissível com fundamento no artigo 400º, nº 1, alínea f), do
C.P.P. – o que traduz jurisprudência dominante no Supremo.
4. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do artigo 70º,
nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação do artigo
400º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal.
O recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1. O artº 400º alínea f) do C.P.P., se interpretado com a dimensão e o alcance
em que o faz o douto despacho reclamado (impossibilitando o recurso de um
acórdão da Relação que confirmou pena de 6 anos de prisão em crime punido com
moldura penal entre 4 e 12 anos de prisão), mostra-se ferida da verdadeira
inconstitucionalidade material, por violação, entre outros, dos artºs 32º nº 1 e
18º nº 2 da Lei Fundamental.
2. Numa interpretação de um homem/mulher médios, o legislador, ao escrever, no
mencionado artigo (o 400º alínea f) do C.P.P.) a expressão “a que seja aplicável
pena de prisão não superior a oito anos”, quis concerteza dizer “cuja moldura
penal aplicável não exceda os oito anos de prisão”, não fazendo qualquer sentido
outra interpretação.
3. A interpretação restritiva da Lei feita pelas instâncias (Relação e Supremo
“in casu”) do referido artº 400º alínea f) do C.P.P. - viola a Constituição da
República, mormente o disposto no artº 18º nº 2 da Constituição, porquanto se
está assim a operar (por via interpretativa) uma restrição do direito de recurso
dos arguidos em caso de não haverem sido condenados com pena de prisão igual ou
superior a 8 (oito) anos.
4. Se dúvida existir na redacção da Lei, a mesma deve ser decidida a favor e não
contra o arguido.
Pelo que deverá conceder-se provimento ao interposto recurso, declarando-se que
o artº 400º alínea f) do C.P.P., se interpretado com a dimensão de que “a pena
aplicável” inserta no texto da Lei, equivale a “a pena aplicada na instância”,
viola frontalmente a Constituição da República e mormente o disposto nos seus
artºs 18º nº 1 e 2 e 32º nº 1 e 3, não podendo, por via disso, ser aplicada
pelos Tribunais (artº 277º da Lei Fundamental).
O Ministério Público contra‑alegou, concluindo o seguinte:
1 - A norma constante da alínea f) do nº 1 do artigo 400° do Código de Processo
Penal, na interpretação segundo a qual não é admissível o acesso ao Supremo, em
via de recurso interposto pela defesa, quando a pena concretamente aplicada ao
arguido - e insusceptível de agravação - for inferior ao patamar ali previsto
não viola qualquer norma ou princípio constitucional.
2 - Termos em que deverá improceder o presente recurso.
Cumpre apreciar.
II
Fundamentação
5. O artigo 400º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal, tem a seguinte
redacção:
Artigo 400º
(Decisões que não admitem recurso)
1. Não é admissível recurso:
(…)
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que
confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja
aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de
infracções;
(…)
A decisão recorrida sustentou que da decisão que condena o arguido numa pena
concreta inferior a oito anos de prisão (no caso, seis anos de prisão), não
obstante o crime ser punível em abstracto com pena superior a oito anos de
prisão (no caso, pode ir até 12 anos de prisão, nos termos do nº 1 do artigo 21º
do Decreto Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro), não cabe recurso a interpor pelo
arguido. Entendeu, para tanto, que, por força da proibição da reformatio in
pejus (artigo 409º do Código de Processo Penal), a pena a determinar em sede de
recurso nunca ultrapassará os seis anos de prisão, pelo que fica aquém do limite
da alínea f) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal.
A interpretação normativa que é submetida à apreciação do Tribunal
Constitucional engloba, no seu teor, a proibição da reformatio in pejus, na
medida em que a pena “aplicável” pelo tribunal ad quem tem por limite máximo a
pena concretamente aplicada. Com efeito, por força daquela proibição, não será
legalmente possível aplicar, em sede de recurso, pena superior. Refira‑se que
esta interpretação, perfilhada pelo Supremo Tribunal de Justiça em vários
acórdãos, não pode hoje considerar‑se maioritária (cf., entre outros, o acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça de 16/10/2003, Proc. 2604/03‑5 – Rel. Cons. Simas
Santos –, que faz a síntese do estado da jurisprudência sobre essa matéria).
O arguido entende que tal interpretação da alínea f) do nº 1 do artigo 400º do
Código de Processo Penal é inconstitucional, por violação dos artigos 18º, nºs 1
e 2, e 32º, nºs 1 e 3, da Constituição.
6. O Tribunal Constitucional já apreciou a conformidade à Constituição da norma
que constitui objecto do presente recurso. Com efeito, nos Acórdãos
nºs 451/03, 102/04 e 640/04 (consultável em www.tribunalconstitucional.pt), o
Tribunal Constitucional concluiu pela não inconstitucionalidade da norma
apreciada em casos idênticos ao dos presentes autos.
No Acórdão nº 640/04, o Tribunal Constitucional, citando jurisprudência anterior
sobre a questão, entendeu o seguinte:
Lembrando esta jurisprudência, disse-se no acórdão n.º 495/03 (que pode
consultar-se em http://www.tribunalconstitucional.pt), o seguinte:
“Ora é exacto que o Tribunal Constitucional já por diversas vezes observou que
«no nº 1 do artigo 32º da Constituição consagra-se o direito ao recurso em
processo penal, com uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido. Mas
a Constituição já não impõe, directa ou indirectamente, o direito a um duplo
recurso, ou a um triplo grau de jurisdição. O Tribunal Constitucional teve já a
oportunidade para o afirmar, a propósito dos recursos penais em matéria de
facto: “não decorre obviamente da Constituição um direito ao triplo grau de
jurisdição, ou ao duplo recurso” (acórdão nº 215/01, não publicado)».
Esta afirmação, feita no acórdão n.º 435/01 (disponível, tal como o acórdão n.º
215/01, em http://www.tribunal constitucional.pt) foi proferida justamente a
propósito da apreciação da alegada inconstitucionalidade da “norma do artigo
400º, nº1, alínea f) do CPP', tendo o Tribunal Constitucional concluído, tal
como, aliás, já fizera nos acórdãos n.ºs 189/01 e 369/01 (também disponíveis em
http://www.tribunalconstitucional.pt) que “ não viola o princípio das garantias
de defesa, constante do artigo 32º, nº 1 da Constituição”.
A verdade, todavia, é que a apreciação então realizada tomou sempre como objecto
tal norma interpretada no sentido de que a mesma se “refere (...) claramente à
moldura geral abstracta do crime que preveja pena aplicável não superior a 8
anos: é este o limite máximo abstractamente aplicável, mesmo em caso de concurso
de infracções que define os casos em que não é admitido recurso para o STJ de
acórdão condenatórios das relações que confirmem a decisão de primeira
instância” (cit. acórdão n.º 189/01).
Sucede, porém, que o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a questão de
constitucionalidade que o ora reclamante pretende que seja apreciada no recurso
que interpôs, no acórdão
n.º 451/03 (também disponível em www.tribunalconstitucional.pt), nos seguintes
termos:
«É certo que a interpretação normativa agora em causa não coincide com a que foi
apreciada no Acórdão n.º 189/01 - neste a questão tinha directamente a ver com a
pena aplicável em caso de concurso de infracções.
A verdade, porém, é que, no confronto com o artigo 32º n.º 1 da Constituição, a
questão da conformidade constitucional da interpretação normativa adoptada no
acórdão recorrida se coloca nos mesmos termos.
Com efeito, a resolução da questão de constitucionalidade passa por saber quais
os limites de conformação que o artigo 32º n.º 1 da CRP impõe ao legislador
ordinário, em matéria de recurso penal.
E a resposta é dada no Acórdão n.º 189/01 no sentido de não haver vinculação a
um triplo grau de jurisdição e de ser constitucionalmente admissível uma
restrição ao recurso se ela não for desrazoável, arbitrária ou desproporcionada.
Ora, não podendo o Tribunal Constitucional censurar as interpretações normativas
que, no estrito plano do direito infraconstitucional, são feitas nas decisões
recorridas, a inadmissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de
uma decisão proferida em 2º grau de jurisdição que confirma a condenação
decretada em 1ª instância, - quando esse recurso é apenas interposto pelo
arguido e, por força da proibição da reformatio in pejus, o STJ nunca poderá
impor pena superior a 7 anos de prisão -, afigura-se racionalmente justificada,
pela mesma preocupação de não assoberbar o STJ com a resolução de questões de
menor gravidade (como sejam aquelas em que a pena aplicável, no caso concreto,
não ultrapassa o referido limite), sendo certo que, por um lado, o direito de o
arguido a ver reexaminado o seu caso se mostra já satisfeito com a pronúncia da
Relação e, por outro, se obteve consenso nas duas instâncias quanto à
condenação.
Tanto basta para entender que a questionada interpretação normativa não incorre
em violação do artigo 32º n.º 1 da Constituição.
(...)
No caso, o que sucedeu foi que o tribunal ' a quo' integrou no conceito de 'pena
aplicável' constante da norma do artigo 400º n.º 1 alínea f) do CPP, também, as
situações em que, confirmada pela relação a decisão condenatória proferida em 1ª
instância e sendo o recurso apenas interposto pelo arguido, nunca o STJ pudesse
aplicar pena superior a oito anos de prisão».
Estas razões, mais directamente dirigidas à alínea f) mas que valem para o
domínio de previsão comum (e, no caso, concorrente) das duas normas, que está na
base da dupla fundamentação adoptada pelo acórdão recorrido – neste passo, o
problema de constitucionalidade é sempre o do terceiro grau de jurisdição ou do
duplo grau de recurso –, são suficientes para concluir que o sentido normativo
questionado não viola o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, na vertente do
direito ao recurso em processo penal.
7. Convocando esta jurisprudência, o Tribunal Constitucional reconhece que o
recorrente já dispôs de um grau de recurso. Assim, não se verifica qualquer
violação do direito ao recurso consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição,
na dimensão que impõe a previsão pelo legislador ordinário de um grau de
recurso.
Todavia, a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota
nesta dimensão. Na verdade, tal garantia, conjugada com outros parâmetros
constitucionais, pressupõe, igualmente, que na sua regulação o legislador não
adopte soluções arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades
de recorrer – mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos
e não constitucionalmente obrigatórios (assim, vejam‑se os Acórdãos do
Tribunal Constitucional nºs 1229/96 e 462/2003, consultáveis em
www.tribunalconstitucional.pt).
A questão de constitucionalidade objecto do presente recurso coloca, na verdade,
um problema de violação do princípio da igualdade articulado com o direito ao
recurso. E isso sucede na medida em que da interpretação normativa em causa
apenas resulta um condicionamento da recorribilidade para o arguido e não já
para o Ministério Público. Com efeito, o Ministério Público ao recorrer no
sentido do agravamento da responsabilidade do arguido impede o funcionamento do
artigo 409º do Código de Processo Penal. E o mesmo se passa, de acordo com tal
dimensão normativa, com o assistente.
O Tribunal Constitucional, no citado acórdão nº 640/2004, também apreciou a
conformidade à Constituição da norma impugnada, tendo por parâmetro o princípio
da igualdade de armas. No aresto referido, depois de sublinhar que o processo
penal não é um “processo de partes”, explicitou que o fundamento da
inadmissibilidade do recurso nesta constelação de casos é a pouca relevância da
questão a decidir aferida em função da pena que pode ser aplicada em concreto.
O Tribunal realçou também que, no âmbito de um recurso a interpor pelo
Ministério Público, a defesa poderá ainda pugnar pela atenuação da pena ou até
pela absolvição.
No entanto, cabe evidenciar de novo que a interpretação normativa que veda a
possibilidade de recurso depende, no seu teor, da proibição da reformatio in
pejus. Por outro lado, o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 499/97 (D.R., II
Série, de 21 de Outubro de 1997), referiu que o fundamento constitucional da
proibição da reformatio in pejus é a protecção do direito de recorrer, removendo
a lei, por via de tal proibição, uma inibição natural que poderia limitar a
iniciativa de interpor recurso por parte da defesa. Mas, na questão de
constitucionalidade de que agora se trata, o funcionamento da proibição da
reformatio in pejus, instituto que, como se viu, encontra a sua justificação na
tutela constitucional do direito de recurso, tem um efeito “periférico” ou
“colateral” que se traduz numa limitação do direito de recorrer. Assim, trata‑se
de uma decorrência lateral da proibição da reformatio in pejus que ultrapassa a
essência do seu sentido constitucional.
8. Por força do funcionamento da proibição da reformatio in pejus incorporada
na citada dimensão normativa é, pois, negada a universalidade de uma regra de
irrecorribilidade (no sentido de abranger todos os sujeitos processuais), já que
a proibição de reforma da decisão em desfavor do arguido não funciona na
perspectiva da acusação.
Na verdade, mesmo que fosse aceitável constitucionalmente uma limitação do
recurso apenas quanto ao arguido, não se justificaria que o Ministério Público
também ficasse limitado quando pretendesse interpor o recurso no exclusivo
interesse da defesa. Uma tal hipótese levaria à consagração de uma regra em que
a recorribilidade seria limitada para tudo o que implicasse o interesse da
defesa e já não quando estivesse em causa o agravamento da posição do arguido.
O argumento segundo o qual a igualdade não estaria em causa com esta
interpretação normativa por força do estatuto do Ministério Público não é
procedente, pois a função do Ministério Público não se circunscreve à
representação do interesse da acusação.
Não é, por conseguinte, o estatuto do Ministério Público que se reflecte na
presente interpretação normativa, mas apenas um funcionamento anómalo da
proibição da reformatio in pejus.
Por outro lado, a argumentação a partir do estatuto do Ministério Público não
abrange sequer o assistente.
Verifica‑se, portanto, uma arbitrária e desproporcionada desigualdade entre a
posição do arguido e a posição da acusação quanto ao direito ao recurso.
Ante estas razões, conclui-se pelo desrespeito da igualdade na regulamentação do
direito ao recurso.
9. Por fim, a garantia constitucional do direito ao recurso pressupõe uma
determinação prévia desse direito e das condições do respectivo exercício, que o
torne susceptível de reconhecimento pelo respectivo titular no momento relevante
para o seu exercício – o da notificação do acórdão – e que não o condicione ao
comportamento de outros sujeitos processuais. Ora, também neste plano se divisa
um enfraquecimento da garantia constitucional do direito ao recurso na
interpretação normativa em crise.
III
Decisão
10. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar
inconstitu-cional, por violação do direito ao recurso conjugado com o princípio
da igualdade (artigos 32º, nº 1, e 13º, nº 1, da Constituição), a norma
constante da alínea f) do nº 1 do artigo 400° do Código de Processo Penal, na
interpretação segundo a qual não é admissível o recurso interposto apenas pelo
arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, quando a pena de prisão prevista no
tipo legal de crime for superior a oito anos, mas a pena concretamente aplicada
ao arguido – insusceptível de agravação por força da proibição da reformatio in
pejus – tenha sido inferior a oito anos.
Nestes termos, é concedido provimento ao recurso e revogada a decisão recorrida,
que deverá ser reformulada de acordo com o presente juízo de
inconstitucionalidade.
Lisboa, 15 de Novembro de 2005
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos (Com a declaração de que
assim me afasto após melhor reflexão, da conclusão dos acórdãos n.º s 451/03
e 102/04, que subscrevi, mas onde no entanto o Tribunal se limitou a apreciar
a questão de constitucionalidade sob a perspectiva da não consagração
constitucional de um terceiro grau de recurso, e não já nos mais alargados
termos
ora constantes dos nº s 7 e 8 do presente acórdão.)