Imprimir acórdão
Processo nº 306/97 Plenário Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
1. O Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores vem, 'nos termos do nº 2 do artigo 278º da Constituição da República Portuguesa e dos artigos
57º e seguintes da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro' requerer, 'em processo de fiscalização preventiva, a apreciação da inconstitucionalidade das normas contidas no quadro anexo ao artigo 4º e no artigo 5º do artigo único do decreto da Assembleia Legislativa Regional nº 13/97, relativo à 'Adaptação à Região Autónoma dos Açores da Lei nº 8/93, de 5 de Março - Regime Jurídico da Criação de Freguesias', decreto recebido no respectivo Gabinete 'para efeitos de assinatura como decreto legislativo regional, nos termos do artigo 235º, nº 2, da Constituição' (requerimento entrado neste Tribunal Constitucional na data de
17 de Junho de 1997).
Fundamenta o pedido nas seguintes razões assim sintetizadas:
- À luz do artigo 167º, n), da Constituição, 'o 'regime de criação, extinção e modificação territorial das autarquias locais' integra a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, constituindo esta, de acordo com o nº 3 do artigo 115º e a alínea a) do nº 1 do artigo 229º, um limite negativo ao poder legislativo regional', sendo que 'no domínio do regime da criação de autarquias locais, a lei da Assembleia da República 'tem de esgotar a normação legislativa', não se limitando a reserva de competência legislativa' à criação ex novo de uma disciplina jurídica', compreendendo antes 'qualquer intervenção legislativa na matéria. Em rigor, a reserva absoluta de lei parlamentar significa que só a Assembleia da República pode emitir leis, interpretá-las, suspendê-las, modificá-las, revogá-las, renová-las ou codificá-las'.
- 'É certo que poderá opinar-se que a matéria da criação de freguesias é susceptível de ser qualificada como matéria de interesse específico, como parece resultar do preâmbulo do decreto da Assembleia Legislativa Regional nº 13/97. Contudo, vale no caso a jurisprudência constante desse Alto Tribunal de acordo com a qual 'onde esteja em causa uma matéria reservada à competência própria dos
órgãos de soberania, não há interesse específico para as regiões que legitime o poder legislativo das regiões autónomas (excepto no caso da alínea b) do nº 1 do artigo 229º)'.
- Também não se pode invocar 'o nº 2 do artigo 13º da Lei nº 8/93, de 5 de Março, alterada pela Lei nº 51-A/93, de 9 de Julho, onde se dispõe que 'a aplicação da presente lei às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira não prejudica a publicação de diploma legislativo regional que lhe introduza as adaptações decorrentes do condicionalismo geográfico e populacional', pois
'também esta norma enferma do vício de inconstitucionalidade, por violação do princípio da indisponibilidade da competência consagrado no nº 2 do artigo 114º da Constituição'.
- 'Nem se diga também que, esteando-se o decreto da Assembleia Legislativa Regional, em análise, na alínea d) do nº 1 do artigo 229º, este assume natureza substancialmente regulamentar, conquanto tal interpretação não é legítima à vista do conteúdo das normas aqui arguidas de inconstitucionalidade. Efectivamente, a nova 'redacção' dada pelo artigo único ao 'quadro anexo a que se refere o artigo 4º da Lei nº 8/93' e ao 'artigo 5º' da mesma lei assume claramente um carácter de normação primária e inovatória, incompatível, portanto, com a natureza de regulamento de execução. Basta pensar que o número de eleitores necessário para criar uma freguesia é alterado de 800, 1200, 1600 e
2000, consoante as situações, para um número único de apenas 300'.
- 'Deste modo, pretendendo a Assembleia Legislativa Regional ver consagrado em forma legislativa o regime agora contido no seu decreto, deveria ter lançado mão da sua competência de iniciativa legislativa junto da Assembleia da República, prevista no artigo nº 170º, nº 1, da Constituição.'
E conclui deste modo o pedido:
'Requer-se, nestes termos, a apreciação preventiva e a pronúncia pela inconstitucionalidade das normas constantes do 'quadro anexo ao artigo 4º da Lei nº 8/93' e do 'artigo 5º', por sua vez contidas no artigo único do decreto legislativo regional denominado 'Adaptação à Região Autónoma dos Açores da Lei nº 8/93, de 5 de Março - Regime Jurídico da Criação de Freguesias', por violação do artigo 115º, nº 3, e do artigo 229º, noº1, alínea a), conjugados com o artigo 167º, alínea n), todos da Constituição'.
Com o requerimento foi junto o citado Decreto Legislativo Regional, remetido,
'para fins de assinatura', pelo Presidente da Assembleia Legislativa Regional dos Açores e entrado no Gabinete do requerente na data de 9 de Junho de 1997.
2. Notificado o Presidente da Assembleia Legislativa Regional dos Açores para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, nada disse.
3. Cumpre decidir.
O citado Decreto Legislativo Regional nº 13/97, aprovado pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores, na Horta, em 28 de Maio de 1997, usando a epígrafe de: 'ADAPTAÇÃO À REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES DA LEI Nº 8/93, DE 5 DE MARÇO - REGIME JURÍDICO DA CRIAÇÃO DE FREGUESIAS', contém um artigo único, com o qual se passa a dar 'a seguinte redacção', relativamente a alguns artigos da Lei nº 8/93, de 5 de Março, com a alteração que foi introduzida no artigo 11º, nº 1, pela Lei nº 51-A/93, de 9 de Julho, leis que vieram dispor sobre o regime jurídico de criação de freguesias, em substituição da Lei nº 11/82, de 2 de Junho (os 'artigos 2º, 3º, os nºs 1 e 2 do artigo 5º, a alínea a) do nº 1 e os nºs 2 e 3 do artigo 7º, o nº 1 do artigo 11º, o artigo 13º e quadro anexo a que se refere o artigo 4º').
Por essa redacção, os citados artigos 2º, 3º, 7º, 11º e 13º, na parte tocada pelo legislador regional dos Açores, passam a reportar-se a figuras e entidades daquela Região Autónoma - por exemplo, onde se lê na Lei nº 8/93 'Assembleia da República' passa a ler-se 'Assembleia Legislativa Regional dos Açores', ou onde se lê 'Governo' passa a ler-se 'Governo Regional', ou ainda onde se lê 'lei' passa a ler-se 'Decreto Legislativo Regional' - mantendo-se, porém, o preceituado na Lei nº 8/93 nos correspondentes artigos deste diploma.
As questionadas normas do artigo 5º e do quadro anexo a que se refere o artigo
4º da mesma Lei nº 8/93 é que sofrem alteração de conteúdo, como se alcança deste confronto:
(Lei nº 8/93)
Artigo 5º
1 - A criação de freguesias fica condicionada à verificação cumulativa
dos seguintes requisitos:
a) Número de eleitores da freguesia a constituir não inferior a 800, nos
municípios com densidade populacional inferior a 100 eleitores e por
quilómetro quadrado, a 1200, nos municípios com densidade populacional
compreendida entre 100 e 199 eleitores por quilómetro quadrado, a 1600,
nos municípios com densidade populacional compreendida entre 200 e 499
eleitores por quilómetro quadrado, e a 2000, nos municípios com
densidade populacional igual ao superior a 500 eleitores por quilómetro
quadrado;
(Decreto Legislativo Regional)
Artigo 5º
1 - A criação de freguesias fica condicionada à verificação cumulativa
dos seguintes requisitos:
a) Número de eleitores da freguesia a constituir não inferior a 300;
b) Número de eleitores da sede da futura freguesia não inferior a 150;
c) Número de tipos de serviços e estabelecimentos de comércio e de
organismos de índole cultural, artística e recreativa existentes na área
da futura freguesia não inferior a 4;
d) Obtenção, de acordo com os níveis de ponderação constantes do quadro
anexo, de, pelo menos, 10 pontos, para as freguesias a constituir em
municípios com densidade populacional inferior a 100 eleitores por
quilómetro quadrado, 20 pontos, em municípios com densidade populacional
compreendida entre 100 e 199 eleitores por quilómetro quadrado, 30
pontos, em municípios com densidade populacional compreendida entre 200
e 499 eleitores por quilómetro quadrado, e 40 pontos, em municípios com
densidade populacional igual ou superior a 500 eleitores por quilómetro
quadrado.
2 - Nas sedes de município e nos centros populacionais de mais de 7500
eleitores a criação de freguesias fica condicionada à verificação
cumulativa dos seguintes requisitos:
a) Número de eleitores na futura freguesia não inferior a 7000 nos
municípios de Lisboa e Porto e a 3500 nos restantes municípios;
b) Número de eleitores da sede da futura freguesia não inferior a 100;
c) Número de tipos de serviços e estabelecimentos de comércio e de
organismos de índole cultural, artística e recreativa existentes na área
da futura freguesia não inferior a 3;
d) Obtenção, de acordo com os níveis de ponderação constantes do quadro
anexo, de, pelo menos, 10 pontos
2 - Nas sedes de município e nos centros populacionais de mais de 3000
eleitores a criação de freguesias fica condicionada à verificação
cumulativa dos seguintes requisitos:
a) Número de eleitores na futura freguesia não inferior a 600 eleitores;
b) Taxa de variação demográfica positiva e superior a 5% na área da
futura circunscrição, observada entre os dois últimos recenseamento
eleitorais intervalados de cinco anos.
3 - A criação de freguesias não pode privar as freguesias de origem dos
recursos indispensáveis à sua manutenção nem da verificação da
globalidade dos requisitos exigidos nos números anteriores.
4 - A observância dos requisitos mínimos estabelecidos para a criação de
freguesias não é exigível para as que se constituam mediante a fusão de
duas ou mais freguesias preexistentes.
b) .............................
3 - ............................
4 - ............................
Quadro anexo a que se refere o artigo 4º:
(da Lei nº 8/93)
”—————————————————————————————————————————————————————————————“
œ Pontuação œ
œ Indicadores œ 2 pontos œ 4 pontosœ 6 pontos œ 10 pontosœ
˜————————————————œ———————————œ—————————œ———————————œ——————————™
œEleitores da œ œ œ œ œ
œfreguesia œ 800a1199 œ1200a1599œ 1600a1999 œ 2000 ou +œ
˜————————————————œ———————————œ—————————œ———————————œ——————————™
œTaxa de variaçãoœ œ œ œ œ
œdemográfica da œ œ œ œ Superiorœ
œfreguesia œ -5,0%a 0% œ 0,1%a5% œ 5,1%a10% œ a 10% œ
˜————————————————œ———————————œ—————————œ———————————œ——————————™
œEleitores da œ œ œ œ œ
œsede œ 150a299 œ 300a499 œ 500a750 œ +750 œ
˜————————————————œ———————————œ—————————œ———————————œ——————————™
œNúmero de tipos œ œ œ œ œ
œde serviços e œ œ œ œ œ
œestabelecimentosœ œ œ œ œ
œna sede œ 4 a 6 œ 7 a 9 œ 10 a 12 œ + 12 œ
˜————————————————œ———————————œ—————————œ———————————œ——————————™
œAcessibilidade œ œAutomóvelœAutomóvel+ œAutomóvel+œ
œde transportes œ œ+transporœtransporte œdois tiposœ
œà sede œ Automóvel œte colec-œcolectivo œde trans- œ
œ œ œtivo não œdiário œporte co- œ
œ œ œdiário œ œlectivo œ
˜————————————————œ———————————œ—————————œ———————————œ——————————™
œDistância da œ œMais de œ œ œ
œsede proposta à œ œ3 Kms e œ œ œ
œsede da primiti-œ Menos de œmenos de œ 5 Kms a œMais de œ
œva freguesia œ 3 kms œ5 Kms œ 7 Kms œ7 Kms œ
•—————————————————————————————————————————————————————————————’
(do Decreto Legislativo Regional)
”—————————————————————————————————————————————————————————————“
œ Pontuação œ
œ œ 2 pontosœ 6 pontos œ 10 pontosœ
˜————————————————————————————œ—————————œ———————————œ——————————™
œEleitores da freguesia œ 300-599 œ 600-799 œ 800 ou + œ
˜————————————————————————————œ—————————œ———————————œ——————————™
œTaxa de variação demográficaœ œ œ Superior œ
œda freguesia œ 5,0%a0% œ 0,1%a5% œ a 5% œ
˜————————————————————————————œ—————————œ———————————œ——————————™
œEleitores da sede œ 100-199 œ 200-300 œ + 300 œ
˜————————————————————————————œ—————————œ———————————œ——————————™
œNúmero de tipos de serviços œ œ œ œ
œe estabelecimentos na sede œ 3 a 5 œ 6 a 8 œ + 8 œ
˜————————————————————————————œ—————————œ———————————œ——————————™
œAcessibilidade œ œAutomóvel+ œAutomóvel+œ
œde transportes œ œtransporte œtransporteœ
œà sede œAutomóvelœcolectivo œcolectivo œ
œ œ œnão diário œn/ diário œ
˜————————————————————————————œ—————————œ———————————œ——————————™
œDistância da sede proposta àœMenos de œ 1,5 Kms a œMais de œ
œsede da primitiva freguesia œ 1,5 Kms œ 3 Kms œ3 Kms œ
•—————————————————————————————————————————————————————————————’
São estas normas confrontadas as que constituem objecto do pedido do requerente e foram elas editadas pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores, 'ao abrigo do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 229º da Constituição e da alínea i) do nº 1 artigo 32º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores' e na base da seguinte ordem de considerações colhidas do preâmbulo do respectivo Decreto:
'Considerando que a Lei 8/93, de 5 de Março (Regime Jurídico de Criação de freguesias), com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei 51-A/93, de 9 de Julho, consagra no nº 2 do seu artigo 13º a possibilidade da sua aplicação às
Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira através de Decreto Legislativo Regional que lhe introduza as adaptações decorrentes dos condicionalismos geográfico e populacional;
Considerando que quanto mais próximos dos cidadãos estiverem os eleitos locais, melhores serão as soluções propostas para os problemas das populações;
Considerando que existem nos Açores comunidades com longa história de identificação social autónoma mas que ainda não estão organizadas em freguesias;
Considerando que a dimensão populacional das comunidades açorianas, como aliás reconhece a Lei supracitada, é menor do que no território continental;
Impõe-se, assim, a adaptação à Região da Lei nº 8/93, de 5 de Março, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei 51-A/93, de 9 de Julho'
4. O tronco comum na presente querela constitucional está na freguesia - e o momento da sua criação -, ente público autárquico territorial, de base electiva, que a Constituição consagra, sem definir, nos artigos 238º, nºs 1 e 2, e 245º a
248º, prevendo aí os seus órgãos representativos (e constando a regulamentação legal do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, a LAL: artigos 3º a 29º).
No quadro da administração local portuguesa, a freguesia, cujo papel e acção
(haja em vista a recente Lei nº 23/97, de 2 de Julho) se tem ultimamente reforçado - a 'nova freguesia que a realidade portuguesa criou, de Norte a Sul do país, após a Revolução do 25 de Abril' no dizer de Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 442 -, historicamente só no século XIX apareceu ligada à administração civil, primeiro como junta de paróquia, e consolidou-se como autarquia local a partir de 1878, com o Código Administrativo de Rodrigues Sampaio (veja-se, a propósito da freguesia na história, Freitas do Amaral, loc. cit., págs. 442 a 444, e mais desenvolvidamente António Cândido de Oliveira, Direito das Autarquias Locais, Coimbra Editora, págs 38 e seguintes; cfr. ainda o índice temático da História de Portugal, Círculo dos Leitores, a partir do Vol. III, no que toca a freguesia).
5. A criação de freguesias, que é o momento relevante para o presente caso, está agora disciplinada na citada Lei nº 8/93 - estava já, como autarquia local que é, na anterior Lei nº 11/82 - e tem de obedecer a um procedimento legislativo que nomeadamente é exigente quanto a determinados elementos de ponderação e indicadores a ter em conta e no que toca também à verificação cumulativa de um conjunto de requisitos enumerados no artigo 5º, além de outras importantes regras decorrentes do citado regime legal, como sejam as que se referem à instrução do processo (artigo 7º).
Tal regime é matéria da exclusiva competência da Assembleia da República
(reserva absoluta), que é indelegável, como decorre dos artigos 114, nº 2 e
167º, n), da Constituição, este na versão revista de 1989 (e é esta alínea invocada pelo legislador de 1993).
'Repare-se - diz António Cândido de Oliveira - que se fala no regime de criação e não na criação em concreto, pois devemos ter em conta o disposto na al. j) do art. 229º da CRP, segundo a qual as regiões autónomas têm o poder, nos termos a definir nos respectivos estatutos, de 'criar e extinguir autarquias locais, bem como a modificar a respectiva área, nos termos da lei' (loc. cit. pág. 330; a págs. 261, o mesmo Autor refere-se à 'competência das respectivas regiões autónomas, embora com respeito, como é óbvio, pelo regime legal estabelecido pela AR (art. 229º, nº 1, al. j), da CRP)').
Para Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao artigo 167º, a esfera do domínio absolutamente reservado em que só a Assembleia da República pode legislar releva também para o efeito de excluir a competência legislativa das regiões autónomas, tratando-se de domínio 'em que todos os actos legislativos têm de ser leis da AR', sendo a matéria da alínea n) do artigo 167º 'um caso típico de lei-quadro ou lei de enquadramento, que vincula as leis que lhe dão execução', como é o caso da Lei nº 8/93 (cfr. Constituição Anotada, 3ª ed., págs
662 e segs; a propósito dos poderes das regiões autónomas, que devem ser definidos nos respectivos estatutos, entendem os mesmos Autores que 'vários dos poderes aqui enunciados (no artigo 229º) não estão na disposição dos estatutos, mas sim de outras leis (leis comuns da República) para as quais a Constituição remete expressamente: é o caso das als. i) e j) ('nos termos da lei')', exactamente o caso da criação de freguesias, pág. 851).
E é este poder do legislador regional de, em concreto, criar freguesias - a freguesia A ou a freguesia B -, no respeito pela Lei nº 8/93, que decorre da citada alínea j), do nº 1 do artigo 229º e está reproduzido no artigo 32º, nº 1, alínea f), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores
(aprovado pela Lei nº 39/80, de 5 de Agosto, alterada pela Lei nº 9/87, de 26 de Março). Conquanto a Lei nº 8/93 refira no nº 2 do artigo 13º a aplicação 'às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira não prejudica a aplicação de diploma legislativo regional que lhe introduza as adaptações decorrentes do condicionalismo geográfico e populacional', o certo é que, à luz do citado artigo 114º, nº 2, a Assembleia da República não pode delegar no legislador regional toda ou parte de uma reserva de competência legislativa que é sua e só sua (ou seja, exclusiva). Se a autonomia regional implica uma concepção descentralizada do Estado, como é a que está presente na Constituição, e, em certo sentido, há aí uma policracia ou pluralidade de centros de poder, a verdade é que com esse quadro não briga uma reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República (não há em tais casos uma contracção dos poderes da Assembleia da República).
Tal norma do nº 2 do artigo 13º constava já do Projecto de Lei nº 153/VI, que esteve na origem da Lei nº 8/93 (cfr. Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 40, de 27 de Março de 1992), e não levantou nenhumas dificuldades quer a nível da Comissão de Administração do Território, Poder Local e Ambiente
(cfr. citado Diário, nºs 49, de 9 de Julho de 1992, e 15, de 16 de Janeiro de
1993), quer a nível da própria discussão nas reuniões plenárias da Assembleia da República, tendo sido votada por unanimidade (cfr. citado Diário, I Série, nºs 84, de 8 de Julho de 1992, e 31, de 20 de Janeiro de 1993), mas, e voltando a repetir, é constitucionalmente ilegítimo que um órgão de soberania, aqui, a Assembleia da República, possa delegar os seus poderes - in casu da esfera do domínio que lhe está absolutamente reservado - noutros órgãos, na hipótese a Assembleia Legislativa Regional dos Açores.
6. Como é reiteradamente afirmado pela jurisprudência deste Tribunal Constitucional, 'as assembleias legislativas regionais, quando editarem legislação ao abrigo do artigo 229º, nº 1, alínea a), da Constituição, se hão-de ater aos seguintes parâmetros de condicionamento e limitação da sua competência legislativa: (a) as matérias a tratar deverão ser de interesse específico para a região (parâmetro positivo); (b) tais matérias não podem estar reservadas à competência própria dos órgãos de soberania (parâmetro negativo);
(c) ao tratar legislativamente essas matérias, as assembleias legislativas regionais - para além de haverem de obedecer à Constituição - não podem estabelecer disciplina que contrarie 'leis gerais da República' (lê-se no acórdão nº 212/92, publicado no Diário da República, I Série-A, nº 166, de 21 de Julho, com identificação de outros arestos, e acrescentando-se ainda: 'Não basta, para que o poder legislativo regional se possa exercer validamente, que se trate de matérias não reservadas aos órgãos de soberania e também não basta que se trate de matérias de interesse específico. São precisas as duas coisas simultaneamente. Matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania são, desde logo, as que constituem a competência própria da Assembleia da República e do Governo, estando assim, umas e outras, vedadas ao poder legislativo regional'; na declaração de voto do Consº. António Vitorino junto àquele aresto, identificam-se fontes doutrinais, reconhece-se a 'abundante jurisprudência do Tribunal' e afirma-se que nos domínios de matérias reservadas aos órgãos de soberania 'ainda que se possa detectar um qualquer 'interesse específico' da região, sempre terá que prevalecer o princípio de repartição de competências entre os órgãos do poder político, carecendo absolutamente as assembleias legislativas regionais de poderes legislativos').
Sendo desnecessário outros desenvolvimentos e remetendo, pois, para a fundamentação dessa 'abundante jurisprudência do Tribunal' (cfr. Mário de Brito, Competência Legislativa das Regiões Autónomas, Scientia Jurídica, nºs
247/249, 1994, Separata), há apenas que aplicá-la ao caso sub judicio (cfr. ainda os acórdãos nºs 139/94 e 235/94, publicados no Diário da República, II Série, nº 25, de 30 de Janeiro de 1995, e I Série-A, nº 101, de 2 de Maio de
1994).
Então, e como decorre do que ficou dito, porque a competência legislativa das regiões autónomas está excluída em matérias da esfera do domínio absolutamente reservado da Assembleia da República, como é o regime da criação de freguesias, são inconstitucionais, por incompetência absoluta, as normas em causa editadas pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores, na medida em que invadem aquela esfera própria da Assembleia da República.
Acresce que o caminho seguido por aquela Assembleia Legislativa de passar a dar 'a seguinte redacção', relativamente a alguns artigos da Lei nº 8/93 (v. ponto 3. do acórdão), ainda que nem todos eles estejam incluídos no pedido do requerente, também não é constitucionalmente legítimo, pois, como se pode ler no acórdão deste Tribunal Constitucional nº 92/92, publicado no Diário da República, I Série-A, de 7 de Abril de 1992, o 'ordenamento jurídico regional há-de ser, com efeito, um ordenamento (especial) complementar do ordenamento jurídico nacional', não podendo 'ser um ordenamento paralelo ou de substituição deste último' ('O poder normativo regional não pode, por isso, pegar em legislação nacional e transformá-la em legislação regional, procedendo como que a uma novação do título (da fonte) dessa legislação' - acrescenta-se ainda no acórdão).
Voltando ao regime de criação de freguesias, ele consta, de acordo com o artigo 167º, n) da Constituição, de lei editada pela Assembleia da República - a citada Lei nº 8/93 - e as normas do seu artigo 5º e do quadro anexo ao artigo 4º não podiam ser 'adaptadas', como foram, pelo legislador regional, por via das normas ora questionadas, pretendendo-se assim alterar os critérios técnicos e os indicadores a pontuar que estão previstos nos artigos correspondentes da Lei nº 8/93.
O pretexto de 'adaptações decorrentes dos condicionalismos geográfico e populacional', com referência à ideia de aproximar os cidadãos dos 'eleitos locais', à existência 'nos Açores de comunidades com longa história de identificação social autónoma' e à 'dimensão populacional das comunidades açorianas', não pode nunca servir para desrespeitar uma lei quadro ou lei de enquadramento, como é a Lei nº 8/93, exactamente porque esta é o produto de uma competência legislativa reservada em absoluto à Assembleia da República, estabelecida no artigo 167º, n), da Constituição, e aí o critério do interesse específico terá de ceder perante o critério constitucionalmente vinculado das matérias reservadas aos órgãos de soberania (também decorre do nº 3 do artigo
115º que os decretos legislativos regionais 'versam sobre matérias de interesse específico para as respectivas regiões e não reservadas à Assembleia da República (...)').
No próprio Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores revela-se o cuidado de atribuir a competência à Assembleia Regional dos Açores para 'criar e extinguir autarquias locais (...), nos termos da lei' (artigo
32º, nº 1, f), sublinhado nosso), reconhecendo o nº 4 do mesmo artigo as
'matérias de interesse específico para a Região não reservadas à competência própria dos órgãos de soberania nem abrangidas por lei geral da República' (e o artigo 33º quando alude de modo exemplificativo a 'matérias de interesse específico para a Região', apenas inclui 'a tutela sobre as autarquias locais, sua demarcação territorial e alteração das suas atribuições ou das competências dos respectivos órgãos' - alínea b)).
Tanto basta para se concluir que estão feridas de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 167º, n), 229º, nº 1, a) e 115º, nº 3 da Constituição, as normas ora questionadas.
7. Termos em que, DECIDINDO, o Tribunal Constitucional pronuncia-se pela inconstitucionalidade, por violação dos artigos 167º, n), 229º, nº 1, a) e 115º, nº 3 da Constituição, das normas do quadro anexo ao artigo 4º e do artigo 5º contidas no artigo único do Decreto da Assembleia Legislativa Regional nº 13/97, relativo à 'Adaptação à Região Autónoma dos Açores da Lei nº 8/93, de 5 de Março
- Regime Jurídico da Criação de Freguesias', aprovado pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores, em 28 de Maio de 1997.
Lisboa, 9 de Julho de 1997 Guilherme da Fonseca Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Fernando Alves Correia Luís Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Bravo Serra Antero Alves Monteiro Diniz Tavares da Costa José de Sousa e Brito Armindo Ribeiro Mendes Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa