Imprimir acórdão
Proc nº 154/97. Plenário. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. O Representante do Ministério Público junto deste Tribunal, fundado no nº 3 do artigo 281º da Constituição e no artº 82º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, veio solicitar que fosse apreciada e declarada com força obrigatória geral 'a inconstitucionalidade da norma constante do Assento nº 2/93, emergente do Acórdão do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República, I Série-A, de 10 de Março de 1993, enquanto - com referência ao disposto nos artigos 1º, alínea f) do Código de Processo Penal, conjugado com os artigos 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3,
309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2 e 379º, alínea b) do mesmo Código - interpreta como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'.
Baseou a entidade peticionante o seu pedido na circunstância de a dita norma ter sido julgada desconforme à Lei Fundamental, por violação do princípio constante do nº 1 do artigo 32º da Constituição, através dos Acórdãos deste Tribunal números 279/95, 16/97 e 58/97.
2. Notificado o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei nº
28/82, nenhuma «pronúncia» veio a ser por ele apresentada.
Cumpre decidir.
II
1. Em 27 de Janeiro de 1993, e precedendo pedido formulado em tal sentido por um arguido que, antecedentemente, tinha sido condenado por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que, na sua perspectiva, seguia uma posição interpretativa da lei oposta àquela que foi seguida por um outro aresto daquele Alto Tribunal, veio o mesmo Supremo, ex vi dos artigos 437º e seguintes do vigente Código de Processo Penal, a tirar um acórdão no qual, por entre o mais, se fixou uma jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais com o seguinte teor:-
Para os fins dos artigos 1.º, alínea f), 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º,
309.º, n.º 2, 359.º, n.ºs 1 e 2, e 379.º, alínea b), do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave.
Desse acórdão, que veio a ser publicado na 1ª Série-A do Diário da República de 10 de Março de 1993 sob a designação de «Assento n.º
2/93», veio a ser interposto recurso para o Tribunal Constitucional que, por intermédio do Acórdão nº 279/95 (que se encontra publicado na 2ª Série do jornal oficial de 28 de Julho de 1995), o veio a revogar.
1.1. Aí foi julgado 'inconstitucional - por violação do princípio constante do artigo 32º, nº 1 da Constituição - o disposto no artigo
1º, alínea f), do Código de Processo Penal, conjugado com os artigos 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2, e 379º, al. b), e interpretado nos termos constantes do Assento 2/93, como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'.
Após a prolação desse aresto, este Tribunal, por meio do Acórdão nº 16/97 (publicado no Diário da República, 2ª Série, de 28 de Fevereiro de 1997) veio a julgar inconstitucional 'o Assento nº 2/93, publicado no Diário da República, I Série-A, de 27 de Janeiro de 1993, enquanto interpreta como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ele, oportunidade de defesa', tendo, no Acórdão nº 58/97 (ainda inédito), sido efectuado um julgamento de desconformidade com a Lei Fundamental precisamente nos mesmos termos dos agora transcritos.
1.2. Neste contexto, poder-se-ia, numa postura mais formalista, afirmar que, in casu, não se reunia o condicionalismo pressuposto pelo nº 3 do artigo 281º da Constituição e pelo artº 82º da Lei nº 28/82, já que a «norma» cuja declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral se visa - ou seja, e estritamente, a constante do «Assento nº 2/93 » - não foi, ela mesma, ainda julgada desconforme à Constituição em três casos concretos.
E, em abono dessa postura, haveria que não passar em claro as considerações ínsitas no Acórdão nº 279/95 no passo em que, ao se determinar aí quais as realidades normativas a que o recurso então em causa se havia de reportar, se decidiu que elas diziam respeito à 'apreciação da constitucionalidade do artigo 1.º, n.º 1, alínea f), do CPP, na interpretação que' lhe foi dada na decisão na ocasião sob censura, integrando essa interpretação outras disposições do mesmo corpo de leis [mais exactamente as constantes dos artigos 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 1, em conjugação com o artº 120º, 359º, e 379º, alínea b)] que vêm a utilizar o conceito considerado naquelas alínea, número e artigo.
Efectivamente, escreveu-se nesse Acórdão nº 279/95:-
'..................................................
...................................................
Neste caso, porém, importa reter a circunstância de se estar perante o próprio processo de que resultou o acórdão de fixação e não perante uma aplicação - autonomizada do processo que o originou - desse acórdão, aplicação essa decorrente do seu carácter obrigatório.
A este propósito, ocorre sublinhar que 'os assentos não são os próprios acórdãos do tribunal pleno, mas estritamente as proposições normativas de estrutura geral e abstracta que se autonomizam, formal e normativamente, desses acórdãos', que o mesmo é dizer que estes, 'originados embora numa decisão jurisprudencial que deles constitui pressuposto jurídico,
(...) normativamente objectivam, para além dessa decisão, uma prescrição que fica a valer geral e abstractamente para o futuro' (correspondem as citações ao Acórdão do Plenário deste Tribunal nº 810/93, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Março de 1994).
Ora, neste caso, tratando-se de fiscalização concreta - necessariamente indissociável da específica relação processual em que incidentalmente aparece - emergente do próprio recurso de fixação de jurisprudência que originou o Assento 2/93, o carácter autónomo deste não é relevante no processo em que o mesmo foi interposto. Neste processo a decisão
'tem eficácia', mas não 'constitui jurisprudência obrigatória', nas palavras do nº 1 do artigo 445º do CPP.
...................................................
..................................................'
1.2.1. Simplesmente, se se atender à «norma» resultante do
«Assento nº 2/93», há-de convir-se que ela, na realidade das coisas, veio conferir ao conceito alteração substancial dos factos, tal como consta da
«definição legal» levada a efeito pela alínea f) do nº 1 do artº 1º do Código de Processo Penal, uma determinada interpretação (que, naturalmente, se projecta naqueloutros artigos, já acima indicados, para os quais se torna necessária a utilização daquele mesmo conceito) segundo a qual nele se não integra a simples alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, ainda que essa alteração se traduza na subsunção a uma figura criminal mais grave.
E se assim é, então concluir-se-á que o presente pedido, ao se reportar ao «Assento 2/93», intenta, ao fim e ao resto, a apreciação da norma constante da aludida alínea f) do nº 1 do artº 1º do Código de Processo Penal com a sobreposição interpretativa resultante daquele Assento, interpretação essa que se vai repercutir nas demais disposições daquele Código, já acima citadas.
Ora, na senda de um tal raciocínio, somos levados a extrair que essa mesma «norma» foi, igualmente, objecto de um juízo de inconstitucionalidade por banda do Acórdão nº 279/95, e, desta arte, não procederiam as razões de harmonia com as quais não estaria, no caso, reunido o condicionalismo previsto no artº 82º da Lei nº 28/82.
De outro lado, os Acórdãos números 16/97 e 58/97, conquanto na sua parte decisória sobre o juízo de inconstitucionalidade se reportem unicamente ao «Assento nº 2/ /93», tendo em conta que este fez apelo a determinadas normas do Código de Processo Penal onde se projectava o conceito de alteração substancial dos factos, necessariamente se não desligaram, naquele juízo, das faladas normas pelo modo como, quanto a tal conceito, foram interpretadas pelo citado «Assento».
2. Duas outras questões, para além da antecedentemente tratada, se podem ainda colocar.
Consiste a primeira, justamente, em saber se a decisão de resolução do conflito, constante de acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, pode englobar o conceito de norma a que se referem nomeadamente os artigos 277º, nº 1, e 281º da Constituição; a segunda, por seu turno, liga-se com a questão de saber se, tendo o decidido pelo acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 sido revogado pelo Acórdão nº 279/95, emitido por este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, a «norma» que emergiu do «Assento» que aquele aresto consagrou ainda se deve perspectivar como detendo, do ponto de vista jurídico, plena efectividade.
2.1. Concernentemente à primeira das agora equacionadas questões, deverá anotar-se que, definido que ficou que o presente pedido há-de ser reportado a determinadas normas constantes do diploma adjectivo criminal, numa determinada interpretação que lhes foi conferida pelo «Assento nº 2/93», nem sequer, em verdade, se tornaria necessário abordar tal questão.
No entanto, sempre se dirá, quanto a ela, que este Tribunal
- e excepção feita ao vertente pedido - apenas uma vez foi solicitado que apreciasse e declarasse com força obrigatória geral a inconstitucionalidade de uma «norma» extraída de um acórdão produzido pelo Supremo Tribunal de Justiça em recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.
Sobre esse pedido veio a incidir o Acórdão nº 421/96 deste Tribunal (publicado na 2ª Série do Diário da República de 21 de Maio de 1996), que veio a decidir dele não tomar conhecimento, e isso em virtude de se ter entendido que se não verificava, no caso então em apreço, 'a subsistência de qualquer interesse de conteúdo prático apreciável ou com relevo bastante, susceptível de justificar' tal conhecimento. E, por força da solução conferida a essa questão prévia, não veio a ser enfrentado o problema de saber se a jurisprudência obrigatória alcançada nos termos do artº 445º do Código de Processo Penal poderia de ser entendida como «norma» susceptível de ser submetida a fiscalização de constitucionalidade.
Todavia, no já citado Acórdão nº 16/97 um tal problema foi expressamente tratado, sendo conferida solução afirmativa à questão que ele acarretava.
Para tanto, discreteou-se assim:-
'..................................................
...................................................
A jurisprudência obrigatória que se contém no Assento nº 2/93, traduzir-se-á numa realidade normativa susceptível de desencadear a fiscalização de constitucionalidade por parte deste Tribunal?
Vejamos.
A coberto da autorização concedida pela Lei nº 43/86, de 26 de Setembro, mais concretamente pelo seu artigo 2º, nº 2, alínea 75), o Código de Processo Penal de 1987, no Livro IX (Dos recursos), Título II (Dos recursos extraordinários), capítulo I (Da fixação de jurisprudência), instituiu nos artigos 437º a 448º, o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência que abrange o recurso no interesse da unidade do direito.
Neste quadro normativo, os acórdãos que resolvem o conflito gerado por decisões contraditórias invocadas como fundamento do recurso e fixam a jurisprudência, têm força obrigatória para os tribunais judiciais (artigo 445º, nº 1), podendo vir a ser reexaminados e modificados pelo plenário das secções criminais (artigo 447º, nº 2).
Estes acórdãos, que têm vindo a ser designados de assentos, distinguem-se no entanto dos assentos emitidos ao abrigo do artigo 2º do Código Civil, preceito este, aliás, já revogado pelo artigo 4º, nº 2, do Decreto-Lei nº
329-A/95, de 12 de Dezembro.
Com efeito, enquanto nestes últimos, a fixação da doutrina pelo Supremo Tribunal de Justiça se concretizava através da criação de uma norma jurídica com eficácia erga omnes, a decisão tirada pelo plenário das secções criminais constitui jurisprudência obrigatória apenas para os tribunais judiciais. Há-de dizer-se, porém, quanto a esta específica distinção que em bom rigor as decisões criminais (o processo penal e o direito criminal), pela sua natureza e sentido, se circunscrevem, nos seus efeitos, ao universo judiciário, isto é, aos tribunais e às instituições que os coadjuvam no exercício e concretização das suas competências.
...................................................
..................................................'
E, após um excurso sobre a jurisprudência constitucional a respeito do conceito de norma utilizado nos artigos 277º e seguintes do Diploma Básico, prosseguia o acórdão que se tem vindo a transcrever:-
'..................................................
...................................................
Ora, à luz desta jurisprudência e dos princípios nela definidos a propósito do conceito funcional de norma e dos diversos critérios com que se deve operar em ordem à sua consecução - e tão válidos são eles no domínio da fiscalização abstracta como na da fiscalização concreta -, há-de dizer-se que a jurisprudência obrigatório para os tribunais definida nos termos do artigo 445º do Código de Processo Penal, deve ter-se por sindicável em sede de fiscalização de constitucionalidade.
E deve ter-se por sindicável pois que a decisão que resolveu o conflito da jurisprudência originador do recurso extraordinário não tem a natureza se uma simples decisão judicial que se traduz na obrigatoriedade para os tribunais judiciais da doutrina que nela se contém.
Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça, em tais casos, acaba por definir critérios de decisão e regras de conteúdo interpretativo que, não só vinculam os restantes tribunais judiciais como a ele próprio, a menos que, nos termos do artigo 447º, nº 2, proceda ao seu reexame e modificação. Cumpre porém acentuar, que a auto-revisibilidade destas decisões se acha condicionada pelo facto de a iniciativa do processo pertencer ao Procurador-Geral da República e deste depender o juízo de avaliação sobre a interposição do recurso.
Nestas decisões, para além de se dizer o direito aplicável ao caso concreto (no processo em que o recurso extraordinário foi interposto), aquele Tribunal cria direito, estabelecendo regras de interpretação e entendimento aplicáveis a casos futuros.
Deste modo, a não se admitir, relativamente às 'normas' contidas nestas decisões, a sua sujeição ao controlo de constitucionalidade, ao arrepio do sistema de fiscalização constitucionalmente instituído, acabaria por pertencer ao Supremo Tribunal e não ao Tribunal Constitucional a última palavra sobre a sua conformidade ou desconformidade constitucional.
................................................... .
................................................... '
Não se considerando necessário aditar o que quer que seja às transcritas razões, concluir-se-á que as proposições interpretativas resultantes dos acórdãos prolatados pelo Supremo Tribunal de Justiça em recursos extraordinários para fixação de jurisprudência ao abrigo dos artigos 437º e seguintes do Código de Processo Penal hão-de visualizar-se como «normas» para efeitos de fiscalização operada por este Tribunal, e cujo conceito tem vindo por ele, desde o seu Acórdão nº 26/85 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 26 de Abril de 1985), a ser prosseguido.
2.2. Focalizar-se-á agora a acima designada segunda questão que, recorda-se, consiste em saber se - atendendo à revogação (levada a efeito pelo Acórdão deste Tribunal nº 279/95) do acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça e do qual emergiu o «Assento nº 2/93» - se poderá dizer que a injunção nele contida alguma vez produziu, ou continua a produzir, efeitos (ou, se se quiser, se ela é, ou alguma vez foi, um acto que contém uma regra de conduta ou um critério de decisão, designadamente para os tribunais).
É certo que, a partir do momento em que a própria decisão do Supremo Tribunal de Justiça que resolve o conflito jurisprudencial é revogada, a proposição normativa resultante de tal resolução não deve ter qualquer eficácia, ao menos em termos de poder vir a constituir um critério de decisão para os juízes dos tribunais judiciais na solução jurídica a conferir aos casos em que se coloque um problema de aplicação de norma cuja interpretação veio a ser imposta por aquela proposição.
Contudo, a verdade é que, não obstante o concreto aresto de que emergiu o «Assento nº 2/93» ter sido objecto de impugnação por meio de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, esse mesmo aresto veio a ser publicado na 1ª Série-A do Diário da República.
Neste circunstancionalismo, é crível que, pelo menos, alguns tribunais judiciais continuem a acatar a doutrina interpretativa firmada pelo dito «Assento». E daí não ser de arredar um entendimento de acordo com o qual a proposição normativa constante desse «Assento» continua a dever ser perspectivada como uma fonte intencional de direito oriunda de um dado centro jurígeno ou de um dado centro que, em certos casos, assume funções jurígenas
(cfr., sobre a problemática das fontes de direito e, de entre estas, a jurisprudência uniformizadora, Oliveira Ascenção, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Uma Perspectiva Luso-Brasileira, 168 segs.), sendo prova disso a ocorrência de decisões tais como aquelas que originaram os recursos decididos pelos Acórdãos deste Tribunal números 16/97 e 58/97, que foram lavradas em momentos posteriores à revogação operada pelo Acórdão nº 279/95.
Tem, assim, toda a utilidade o conhecimento deste pedido, pelo que isso é quanto basta para que se conclua pela existência de interesse quanto à sua apreciação, independentemente de uma tentativa em se conferir, tão exactamente quanto possível - questão certamente revestida de acentuadas dificuldades -, resposta à situação fenomenológica decorrente da revogação do acórdão de 27 de Janeiro de 1993.
3. Isto posto, impõe-se debruçar agora a atenção sobre a
«norma» em crise que, como resulta daquilo que acima ficou exposto, será a constante da alínea f) do nº 1 do artº 1º do Código de Processo Penal projectada nos (ou conjugada com os) artigos 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2,
359º, nºs 1 e 2, e 379º, al. b), na interpretação, conferida pelo «Assento 2/
/93», segundo a qual não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave.
Deflui da leitura do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 1993 de onde veio a resultar a «norma» ora em apreço, que a simples alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, ainda que essa alteração se traduza na subsunção a uma figura criminal mais grave, se não compreende no conceito de «alteração substancial» definido na aludida alínea f) do nº 1 do artº 1º e, consequentemente, quando um tribunal a efectue, não tem de prevenir o arguido dessa alteração com o fim de lhe possibilitar oportunidade de defesa.
Foi precisamente na medida em que esta não obrigatoriedade decorria da «norma» sub specie que os Acórdãos invocados no pedido a consideraram contrária ao princípio constitucional do asseguramento das garantias de defesa postulado pelo nº 1 do artigo 32º da Constituição, cabendo agora, de novo, equacionar e decidir o problema.
3.1. No domínio do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto nº 16.489, de 15 de Fevereiro de 1929, os poderes cognitivos do tribunal quanto ao enquadramento jurídico dos factos constavam dos artigos 447º e 448º, sendo que, segundo o primeiro, era lícita a condenação por infracção diversa daquela pela qual o réu foi acusado, desde que os respectivos elementos constassem do despacho de pronúncia ou equivalente (respeitada que fosse a competência do tribunal - cfr. seu § 1º).
Essa disposição foi objecto de acentuado labor doutrinal, sendo conhecidas obras de folêgo a esse respeito elaboradas, tais como, a título exemplificativo, o estudo de Beleza do Santos publicado nos anos 63º a 65º da Revista de Legislação e Jurisprudência e subordinado ao título A Sentença condenatória e a pronúncia em processo penal, a obra de Eduardo Correia Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, além do tratamento que lhe conferiram, por entre outros, Silva e Sousa (no artigo Condenações penais de surpresa, publicado na Revista dos Tribunais, 67º), Cavaleiro de Ferreira (Curso de Direito Penal, III) e Castanheira Neves (Scientia Iuridica, nº 78).
No vigente Código de Processo Penal não se encontram disposições semelhantes às acima citadas do seu antecessor, estatuindo-se no nº
1 do artº 359º que uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, cominando-se a sentença com o vício de nulidade caso nela se venha a impor condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia [artº 379º, alínea b)].
Perante essas disposições, surgiu determinada jurisprudência e até certa doutrina que, fundada no entendimento de que o arguido se deve defender da imputação fáctica que lhe é assacada, cabendo aos tribunais, até por via do artigo 206º da Constituição, a qualificação jurídica, sustentaram que o legislador, ao estatuir os artigos 359º, nº 1, e 379º, alínea b), não desejou afastar-se em muito do que fora consagrado no artº 447º do Código de Processo Penal de 1929 (cfr. Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e a sua Relevância no Processo Penal Português, e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Junho de 1991 - publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1991, III, 29 e seguintes - e de 26 de Fevereiro de 1992, este proferido no Procº nº 42.222, justamente o aresto que foi objecto do recurso extraordinário originador do «Assento nº 2/93»).
Todavia, outra jurisprudência, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça, de que é exemplo o acórdão de 18 de Janeiro de 1991 (in Colectânea cit. 1991, I, 5), enveredou por outro caminho, precisamente suportada na abrangência do princípio do contraditório, quer quanto à matéria de facto, quer quanto 'ao tratamento que a esta é dado para o efeito de a subsumir aos preceitos incriminadores'.
3.2. No seu Acórdão nº 173/92 (Diário da República, 2ª Série,
de 18 de Setembro de 1992), a propósito da norma ínsita no nº 2 do artº 418º do Código de Justiça Militar e na parte em que permite que o tribunal condene por infracção diversa daquela pela qual o arguido foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os factos que subsumem o tipo se encontrem descritos no libelo acusatório, interrogava-se este Tribunal, após discretear sobre os fundamento e
'alcance do princípio do contraditório, expresso na regra da tramitação contraditória de determinadas fases do processo', se um tal princípio seria respeitado pela norma então em apreciação, tendo concluído pela negativa.
Na verdade, escreveu-se aí:-
'..................................................
...................................................
A acusação, libelo, ou requerimento acusatório, bem como o despacho judicial que os aprecia, representam a síntese da pretensão punitiva do Estado-Administração face ao arguido. São o coroar de todo um trabalho de investigação e de análise jurídica tendente à apresentação da causa ao tribunal do julgamento. Ora, assim como parece perfeitamente razoável que a defesa, na fase do julgamento, possa beneficiar, em princípio, de quaisquer deficiências da acusação em matéria de descrição dos factos, assim também não repugnará que a defesa beneficie de quaisquer deficiências da acusação em matéria de qualificação jurídico-penal desses mesmos factos, principalmente quando sobre a acusação recaiu uma pronúncia feita por um juiz, pronúncia que, ao fim e ao cabo, constitui um primeiro crivo de apreciação dos fundamentos factuais e jurídicos de tal acusação. Pelo menos, essa solução não parece menos razoável do que permitir a possibilidade de uma condenação que manifestamente exceda a pretensão punitiva constante da acusação e recebida na pronúncia.
...................................................
...................................................
Mas, de qualquer modo, quando não se queira subordinar o poder de julgamento do tribunal a um eventual erro de qualificação da acusação e da pronúncia, então indispensável será obter um dispositivo processual que permita uma correcta qualificação sem que isso implique prejuízo para a defesa do arguido.
É que o arguido não tem de ser sacrificado no altar da correcta qualificação jurídico-penal da matéria de facto; e uma eventual alteração final do enquadramento jurídico desta não tem necessariamente de fazer-se à custa do sacrifício dos seus direitos de defesa.
...................................................
..................................................'
E, no enfrentamento específico da questão de constitucionalidade, observou-se:
'..................................................
...................................................
É certo que a necessidade desta indicação [reportava-se ao dever da acusação e da pronúncia indicarem a lei que proíbe e pune os factos, com a fito de destinar esclarecer principalmente o arguido sobre a imputação jurídico-penal que lhe era dirigida] não decorre de norma constitucional expressa; mas decorre necessariamente do princípio do contraditório, e particularmente do princípio da acusação e da defesa, na medida em que tal defesa não pode ser eficazmente assegurada se não puder ter por referência e por objecto uma incriminação legal precisa (mesmo que eventualmente se admita a possibilidade de uma rectificação posterior dessa incriminação, que é justamente a matéria que aqui se discute.
...................................................
...................................................
Ora a referida preparação da defesa pode ser gravemente prejudicada não só se a acusação for omissa no que diz respeito à incriminação legal dos factos, mas também se, depois de encerrada a discussão, o tribunal vier a optar por uma qualificação jurídico-penal com que a defesa não contava.
Não só a estratégia da defesa do arguido como a própria utilidade da defesa produzida podem resultar inteiramente frustrados por essa surpresa processual, conforme notam Silva e Sousa e Eduardo Correia:...........................................
..................................................'
Concluiu assim o acórdão que se vem transcrevendo que o consentimento legal da faculdade de alteração, pelo tribunal, da subsunção jurídico-criminal dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sem que ao arguido seja processualmente proporcionada a possibilidade de ser advertido dessa alteração e de adequar a ele a sua defesa, violava o princípio constante do nº 1 do artigo 32º do Diploma Básico.
3.2.1. De seu lado, o Acórdão nº 279/95 não assumiu, quanto ao normativo in specie, postura substancialmente diversa, o que identicamente sucedeu com os Acórdãos números 16/97 e 59/ /97.
Nele foi sublinhado (conquanto, em direitas contas, se não pusesse em causa a liberdade que aos tribunais deve assistir quanto à qualificação jurídica) que no domínio do processo penal a afirmação de uma tal liberdade havia de compatibilizar-se com uma real eficácia das garantias de defesa que, quanto a tal processo, são exigidas pela Lei Fundamental.
E assim é, de facto.
Naquelas garantias, indubitavelmente, compreende-se um direito do arguido a poder pronunciar-se sobre as questões que, directa ou indirectamente, se repercutem na pretensão punitiva do Estado e da qual ele é alvo; e, em consequência, para que se efective adequadamente um tal direito, mister é que a lei adjectiva criminal preveja os adequados mecanismos possibilitadores, quer para alertar o arguido de que o tribunal do julgamento entende que não foi correcta a subsunção jurídico- -penal levada a efeito na acusação ou na pronúncia - subsunção essa que implicaria uma condenação criminal menos grave do que aquela intentada pelo juízo do julgamento -, quer para lhe facultar a oportunidade de, quanto à nova qualificação, exercer cabalmente os seus direitos de defesa.
Como tem sido enfatizado pelas doutrina e jurisprudência constitucionais, as 'garantias de defesa não podem deixar de incluir a possibilidade de contrariar ou contestar todos os elementos carreados pela acusação' (palavras do Acórdão nº 54/87 deste Tribunal publicado no Diário da República, 1ª Série, de 17 de Março de 1987), sendo um dos significados jurídico-constituionais do princípio do contraditório 'o direito do arguido ... de se pronunciar e contraditar ... argumentos jurídicos trazidos ao processo'
(Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3ª edição, 206).
Pois bem:
Sendo facilmente admissível perante a realidade das coisas que diferente pode ser a estratégia da defesa consoante a qualificação jurídico-criminal dos factos cujo cometimento é imputado ao arguido, há-de reconhecer-se que - independentemente da liberdade que deve ser concedida ao tribunal do julgamento para proceder a uma correcta subsunção jurídica - uma alteração da qualificação que foi acolhida na acusação ou na pronúncia pode vir a ter, e até por vezes acentuadamente, repercussão nos objectivos pelos quais aquela estratégia foi delineada.
Para obstar a um tal inconveniente não é forçoso que a porventura incorrecta qualificação jurídico-penal levada a efeito na acusação ou na pronúncia venha a subsistir na decisão do julgamento. Bastará que a perspectiva assumida pelo tribunal do julgamento seja transmitida ao arguido e lhe seja dada oportunidade de, quanto a ela e caso o deseje, se defender.
3.2.1. Ora, a norma constante da alínea f) do nº 1 do artº 1º do Código de Processo Penal, na sobreposição interpretativa do «Assento nº 2/92» e com a projecção que tem, inter alia, no nº 1 do artº 359º e na alínea b) do artº 379º, não só não contempla a dação daquela transmissão, como também não faculta ao arguido a possibilidade de se defender quanto à nova qualificação pelo que, nessa medida, se posta como contrária aos ditames que se extraiem da expressão condensada «garantias de defesa», utilizada no nº 1 do artigo 32º da Constituição.
III
Em face do que se deixa exposto, este Tribunal declara inconstitucional, com força obrigatória geral - por violação do princípio constante do nº 1 do artigo 32º da Constituição -, a norma ínsita na alínea f) do nº 1 do artº 1º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos
120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2 e 379º, alínea b) do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 e publicado, sob a dedignação de «Assento nº 2/93», na 1ª Série-A do Diário da República de 10 de Março de 1993 - aresto esse entretanto revogado pelo Acórdão nº 279/95 do Tribunal Constitucional -, no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, mas tão somente na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa.
Lisboa, 25 de Junho de 1997 Bravo Serra Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Maria da Assunção Esteves Fernando Alves Correia Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa