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Procº nº 784/96
2ª Secção (Plenário) Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional:
I RELATÓRIO
1. Emerge o presente recurso de uns autos de instrução preparatória que com o nº 39/87 correm termos, no Tribunal de Instrução Criminal de Sintra, relativamente aos arguidos A. e B., por factos atribuídos à organização denominada «Forças Populares 25 de Abril» (FP 25), também designadas em abreviatura, «FUP-FP»(Frente de Unidade Popular/Forças Populares).
Correspondendo, indiciariamente, tais factos ao cometimento, durante o mês de Maio de 1986, de um crime de furto (artigo 296º do Código Penal de 1982) e dois crimes de roubo (artigos 306º, nºs 1 e 2 alínea a), e 5, com referência ao artigo 297º, nºs 1, alínea a), e 2 alínea h), também do Código Penal de 1982), foi promovida pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público a declaração de extinção do procedimento criminal por amnistia, isto na sequência da publicação da Lei nº 9/96, de 23 de Março.
Concluso o processo ao Mmº Juiz de Instrução Criminal, proferiu este o despacho de fls. 653/657 do vol. III, no qual, após declarar encerrada a instrução preparatória, recusou a aplicação da citada lei de amnistia, por a entender violadora do princípio da igualdade consignado no artigo 13º da Constituição.
Deste despacho, entretanto recorrido pelo Ministério Público para este Tribunal nos termos da alínea a) do nº 1 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, sublinhamos as seguintes passagens:
« Uma primeira dúvida que nos surge a respeito desta lei tem a ver com a sua real e efectiva generalidade no sentido de insusceptibilidade de determinação dos seus destinatários. É certo que a lei recorre a uma definição abstracta da classe de actos a que se aplica. Mas parecem não resultar dúvidas não só de que a motivação do legislador histórico tenha sido a de beneficiar uma organização perfeitamente identificável (veja-se a título de exemplo a discussão que antecedeu a aprovação da lei no Diário da Assembleia da República, I série nº 42, de 12 de Março 1996) mas também de que, em termos práticos, só os actos praticados por essa organização venham a caber dentro da previsão da lei. A delimitação temporal do âmbito dos actos que cabem na previsão da norma está longe de ser aleatória e só encontra justificação porque se pretende abranger o período de actividade dessa organização. A formulação abstracta disfarça aquilo que poderá ser uma verdadeira e efectiva amnistia individual, o que é geralmente aceite como limite material, à luz dos princípios do Estado de Direito e da igualdade da amnistia.
Qualquer amnistia envolve uma selecção de factos a amnistiar, segundo os tipos de crime, as categorias dos agentes ou outras circunstâncias.
É razoável, e não ofende o princípio da igualdade, que, como é usual, se distingam esses factos de acordo com a sua gravidade relativa. Essa gravidade pode, desde logo, ser determinada pelo tipo de crime e pela medida abstracta da pena que lhe corresponde. Mas também a categoria dos agentes (a sua idade, o facto de serem agentes polícias ou funcionários públicos) ou outras circunstâncias podem tornar mais ou menos graves, objectivamente e à luz dos fins próprios do sistema jurídico-penal, determinadas condutas. O legislador não está estritamente vinculado aos critérios de gravidade relativa já definidos no Código Penal, pode ser sensível a critérios de gravidade relativa ditados pela opinião pública numa determinada conjuntura histórica.
Se forem respeitados esses critérios, estamos perante um tratamento diferenciado de situações que são objectivamente diferentes. Os critérios que distinguem as várias situações não são arbitrários ou irracionais, na perspectiva dos fins do Estado de Direito.
No caso em apreço, impõe-se-nos reconhecer que se inverte o esquema usual e dado um tratamento mais favorável a situações que, de acordo com os fins do sistema jurídico-penal, são relativamente mais graves. Os crimes previstos nos artigos
300º e 301º do Código Penal (abrangidos pela amnistia em apreço) contam-se entre os mais graves do sistema jurídico-penal, se adoptarmos (o que é legítimo) como critério o da medida da pena correspondente. E é assim porque, como decorre da própria definição legal do tipo, com a sua prática se atingem, directa ou indirectamente, bens jurídicos pessoais e institucionais de mais relevância num Estado de direito.
Não vislumbramos que critério objectivo e racional possa justificar um tratamento mais favorável desses crimes. O que possa justificar que crimes idênticos possam beneficiar, ou deixar de beneficiar, da amnistia consoante sejam praticados por grupo, organização ou associação terrorista e seus membros ou sejam praticados por qualquer outra pessoa ou grupo.(1)
Também em relação a estas situações, a coerência do sistema jurídico penal apontaria para um tratamento mais desfavorável (e não mais favorável) dos crimes praticados por organizações terroristas e seus membros.
É certo que o legislador pretendeu limitar o alcance desta incongruência ao excluir do âmbito de aplicação da lei os crimes contra a vida e a integridade física. Mas nem por isso a apagou por completo.
Como vimos, há que reconhecer, em termos amplos e flexíveis, ao legislador parlamentar uma liberdade de conformação na selecção dos factos a amnistiar. Mas afigura-se-nos que, neste caso, foram claramente ultrapassados os limites dessa liberdade.
(1) Nas discussões que antecederam a aprovação da lei (ver o D.A.R. supracitado) veio a lume a intenção de com ela pôr termo às complexas vicissitudes processuais decorrentes da inconstitucionalidade de certas normas do C.P.P. de 1929 aplicadas em processos concretos ainda pendentes. Para além da questão de saber se seria a amnistia a forma mais curial de destrinçar o problema, essa motivação também não respeita o princípio da igualdade, pois situações idênticas podem ocorrer em casos não abrangidos pela amnistia, a que também se aplique o C.P.P. de 1929.»
2. Chegado o processo a este Tribunal, foi determinada, pelo Exmo. Conselheiro Presidente, nos termos do artigo 79º-A da Lei nº 28/82, a intervenção do Plenário.
Produziu, então, o Ministério Público as respectivas alegações, rematando-as com as seguintes conclusões:
'1º
'A norma constante do artigo 1º da Lei nº 9/96, de 23 de Março, ao amnistiar determinados tipos de crime contra a ordem e a tranquilidade pública e contra a paz pública, cuja comissão é conexionada com as vicissitudes de determinado período histórico, consideradas excepcionais e irrepetíveis, tendo como causa a realização de objectivos de pacificação social e de ressocialização dos arguidos, não pode configurar-se como acto individual ou como solução legislativa totalmente arbitrária ou discricionária.
2º
O legislador parlamentar detém, em sede de medidas de clemência, uma ampla discricionariedade legislativa, apenas se podendo configurar como violadoras do princípio da igualdade as normas editadas que se fundem em critérios totalmente desprovidos de qualquer base ou suporte material razoável
- mas sem que tal permita sindicar jurisdicionalmente da efectiva adequação dos critérios político-sociológicos que funcionaram como causa do acto amnistiante.'
Corridos, enfim, os pertinentes vistos, cumpre decidir.
II FUNDAMENTAÇÃO
A) A controvérsia em torno da Lei nº 9/96
3. Está em causa uma recusa de aplicação da Lei nº 9/ /96, de
23 de Março. Composta de dois artigos e intitulada 'Amnistia às infracções de motivação política cometidas entre 27 de Julho de 1976 e 21 de Junho de 1991', apresenta esta, com relevância para este processo, a disposição que se transcreve:
Artigo 1º
1 - São amnistiadas as infracções disciplinares e criminais, incluindo as sujeitas ao foro militar, praticadas por organização e seus membros compreendidos na previsão dos artigos 300º e 301º do Código Penal vigente, e nos correspondentes artigos 288º e 289º da versão do Código Penal aprovada pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, desde 27 de Julho de 1976 até 21 de Junho de 1991.
2 - Não são abrangidos pelo disposto no número anterior os crimes contra a vida e a integridade física previstos nos artigos 131º, 132º, 133º e 144º do Código Penal.
3 - Também não são abrangidas pelo disposto no nº 1 as infracções cuja punição resulte da aplicação do artigo 5º, nº 1, alínea a), do Código Penal.
As razões da amnistia averiguam-se através da nota justificativa que acompanhou o respectivo projecto da Lei nº 107/ /VII (Diário da Assembleia da República, II Série-A, 29/2/1996, p.410):
' Suscitou o Sr.Presidente da República, através de mensagem dirigida à Assembleia da República, em 5 de Fevereiro de 1996, a oportunidade de aprovação de uma amnistia dirigida à solução política do chamado caso das FUP/FP, cuja complexidade jurídica tem tornado extremamente difícil a sua solução judicial. Como o Presidente da República lembrou, já anteriormente uma solução do problema havia sido intentada sem, contudo, ter sido possível a sua concretização por hesitação do então partido maioritário. Volvidos vários anos, o problema subsiste, todavia, com desenvolvimentos que não prenunciam a possiblidade de uma solução de justiça em tempo razoável. Ocorre, no entanto, lembrar que a consolidação do regime democrático e o clima de estabilidade política e paz social dele decorrente de há muito aconselhariam um voltar de página nas querelas políticas de edificação do nosso sistema político. A generosidade que marcou o espírito do 25 de Abril em face do regime anterior e a tolerância cívica que deve ser apanágio dos democratas podem, pois, prevalecer na apreciação do caso das FP sem que o gesto deva, a qualquer título, ser entendido como de concordância - que não existe - com os objectivos e os métodos de tal organização, em si mesmos merecedores de óbvia reprovação. O apelo da generosidade e da tolerância, em nome da concórdia entre os Portugueses, não pode, no entanto, deixar de significar que o acto de clemência que a amnistia representa é dirigido a actos controversos de natureza política e não a crimes de sangue, sob forma praticada ou tentada, tanto por parte dos seus autores materiais como morais. Neste sentido, são excluídos do projecto de amnistia os crimes de homicídio e de ofensa corporal grave. Do que se trata é de verificar o facto da integração social adquirido pelos ex-membros das FUP/FP- -25, reconhecendo-se, em consequência, o esgotamento das actividades tidas como atentatórias do Estado de direito. Do que se trata, em síntese, é de operar uma clara distinção entre os actos de motivação e natureza políticas, por um lado, e, por outro, quaisquer crimes materiais contra a vida e a integridade física das pessoas - cuja prossecução, designadamente em sede judicial, deverá ser objecto de apreciação autónoma à luz do princípio constitucional da independência de poderes.'
O projecto de Lei foi imediatamente questionado quanto à sua constitucionalidade através de um recurso da sua admissibilidade, interposto por vários deputados (Diário da República, II Série-A, 29.2.96, p.411). Podem reduzir-se a três os argumentos invocados. Em primeiro lugar, trata-se da
'amnistia, em abstracto, de certos tipos de crime desde que praticados em certas circunstâncias, ainda que mais graves do ponto de vista jurídico-penal». Com efeito, o projecto 'amnistia apenas crimes praticados num determinado espaço de tempo, quando praticados exclusivamente no âmbito de uma organização terrorista, crimes estes que visam prejudicar, nomeadamente, a independência nacional, intimidar pessoas ou a população em geral. E assim, segundo o projecto, alguém que cometer um roubo ou furtar um veículo com intuito terrorista é amnistiado; quem cometeu os mesmos crimes mas sem finalidades terroristas, isto é, sem tanta gravidade, tem de cumprir a pena respectiva. Significa isto que o projecto de lei privilegia nitidamente - entre dois cidadãos que , porventura, tenham praticado crimes do mesmo tipo - os criminosos terroristas, mesmo quando estes tenham, por exemplo, visado prejudicar a independência nacional ou o funcionamento das instituições do Estado'. Viola, portanto o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição. Em segundo lugar, e na mesma linha de pensamento, deverá concluir-se que certos crimes mais graves nunca podem ser amnistiados. Nas palavras dos deputados recorrentes da admissibilidade: 'o problema é o de saber se certas categorias de crime, como são os crimes contra a Humanidade e crimes de responsabilidade, são ou não susceptíveis de amnistia. E manifestamente aqueles tipos de crimes que envolvem assaltos a bancos, rebentamento de bombas, furtos de veículos, raptos e sequestros e mesmo crimes de sangue que aterrorizam a população em geral não o poderão ser sem se consumar uma ofensa grave ao próprio escopo teleológico da Constituição da República Portuguesa e à sua matriz.' Em terceiro lugar, trata-se de uma lei que tem como única destinatária uma organização terrorista ligada às FP - 25 de Abril, tal como a «Nota justificativa» o refere'. 'Resulta daqui que os membros das FP-25 seriam privilegiados por esta lei da amnistia em razão das convicções políticas ou ideológicas que perfilhavam'. Viola-se, portanto, o nº 2 do artigo 13º da Constituição, que proíbe o privilegiamento em razão de convicções políticas ou ideológicas.
Em resposta, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias pronunciou-se, por maioria, pela não inconstitucionalidade e pela rejeição do recurso (Diário da Assembleia da República, II Série-A, 2.3.1996, p. 422- -4), seguida pelo plenário, com votos a favor do PS, do PCP e de Os Verdes e votos contra do PSD e do CDS-PP. É interessante referir os argumentos jurídicos com que a maioria entendeu rejeitar os fundamentos do pedido. Quanto ao primeiro e segundo argumento, diz-se que:
'A amnistia, porque é um pressuposto negativo da punição e não um pressuposto negativo da punibilidade, não está relacionada com a falta de dignidade punitiva do facto. Assim, nenhum princípio há que circunscreva a possibilidade de uma amnistia a bagatelas penais.
Por outro lado, deve realçar-se que é o próprio Código Penal que torna possível a isenção de pena em crimes como o de organização terrorista e de terrorismo.
Optando, claramente, pelo aniquilamento do dever de executar a sanção, quando o comportamento dos arguidos seja de tal forma que a tutela dos bens jurídicos, que o direito penal visa proteger, se mostre melhor assegurada com a isenção de pena do que com o prosseguimento do processo crime.
Assim, esta opção do legislador mais alicerça a conclusão de que a Assembleia da República não está impedida de escolher para amnistiar crimes como os que constam do projecto de lei.'
Quanto ao terceiro argumento, a resposta da Comissão é especialmente interessante porque, ao recorrer a uma interpretação objectiva, implica de facto uma alteração substancial do próprio elemento subjectivo histórico:
' O articulado não contém qualquer limitação à amnistia no que toca aos motivos que levaram à prática dos crimes. Não se aplicará, portanto, apenas aos casos de alegada motivação política, e muito menos será restrita aos casos em que os seus agentes estejam indiciados ou pronunciados como elementos das FP-25 de Abril.
Assim, não se vê que o projecto de lei padeça de qualquer inconstitucionalidade.'
4. Abstraindo da divisão política entre os deputados e dos aspectos emocionais que se revelaram no debate parlamentar (Diário cit., I Série, 2.3.1996, p. 1197-1217), os argumentos jurídicos trocados, que se ponderarão a seguir, reflectem a controvérsia que tem acompanhado a evolução da lei e da jurisprudência portuguesas sobre a amnistia, tal como acontece noutros países. O próprio parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais hesita entre dizer que «a amnistia, porque significa o apagamento de crime, representa derrogação do sistema legal punitivo» e que «a amnistia não representa propriamente o apagamento do crime, mas antes apagamento do dever de executar a sanção». Ora esta última tese, que o parecer utiliza para fundamentar a distinção entre pressuposto negativo da punição e pressuposto negativo da punibilidade, é característica daqueles autores que, não obstante reconheçam que atrás da distinção constitucional entre o perdão genérico e a amnistia «está ainda a concepção tradicional da distinção entre medidas de graça relativas ao facto ou ao agente por uma parte, e relativas à consequência jurídica por outra», entendem que uma tal distinção, se na verdade se aceita, todavia não deve considerar-se susceptível de fundar efeitos jurídicos diversos reconduzindo-se portanto a um dispensável e inconveniente luxo de conceitos»
(assim: Figueiredo Dias, Direito Penal Português. Parte Geral, II., Coimbra,
1993, pp. 689, 691, cf. p.692). Defendem-se, deste modo, as seguintes proposições: o regime jurídico da amnistia é o de um pressuposto negativo da punição, trata-se tão só de «impedir-se que o agente apreciado sofra a sanção a que poderia vir a ser (ou a que já foi) condenado»; por consequência a amnistia tem o mesmo regime jurídico do perdão genérico, devendo este ser considerado
«uma verdadeira amnistia» e portanto dispensável como conceito ; daqui deriva que não se relaciona com «a falta de dignidade punitiva do acto».
Atendo-nos à primeira proposição, notar-se-á que ela descreve apenas o principal efeito jurídico da amnistia, deixando em aberto os efeitos jurídicos que podem separar a amnistia do perdão, como o da restituição dos direitos de que a condenação privou o criminoso ou de aproveitar aos reincidentes e criminosos por tendência, ou o do apagamento da sanção no registo, por exemplo. Mas mesmo que o regime destes últimos efeitos seja idêntico na amnistia e no perdão, tal não é uma necessidade conceptual, mas uma proposta de política legislativa que pode ser ou não seguida pelo legislador ordinário. Assim, segundo o artº 75º, nº 4, do Código Penal, a amnistia é equiparada ao perdão genérico e ao indulto como não obstando à verificação da reincidência. Do mesmo modo, este Tribunal não julgou inconstitucional o nº 4 do artigo 11º do Dec.-Lei 24/84 (Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local) que impede a destruição retroactiva de efeitos produzidos pela aplicação da pena disciplinar, mas apenas se a lei de amnistia não dispuser outra coisa (Acórdão nº 301/97, inédito). Mas há uma diferença de regime que sempre subsistirá : só o perdão genérico pode ser parcial e então não é um pressuposto negativo da punição, mas uma causa de atenuação ou de redução de pena. Por outro lado, mesmo quanto ao perdão total, sempre subsiste a diferença estrutural (aceite por Figueiredo Dias, ob.cit., p.690) de a demarcação do campo de aplicação se fazer «não (como na amnistia em sentido próprio) por relação com grupos de factos ou de agentes, mas com espécies de penas», e esta diferença já permitiria dizer que a amnistia se dirige ao crime, elimina ou extingue a infracção.
Cumpre reconhecer que a actual redacção da alínea g) do artigo
164º, introduzida na revisão de 1982, que distingue entre amnistias e perdões genéricos, quando a versão originária só referia amnistias é o fruto ponderado de alguma discussão conceptual anterior sobre a delimitação relativa dos conceitos de amnistia, perdão genérico e indulto. Vale a pena fazer a história dessa discussão, porque a discussão dos conceitos é neste caso a expressão de divergências profundas quanto ao regime jurídico.
5. As ordenações - nomeadamente as Ordenações Filipinas (I.5, tit.122, §§ 5,6, tit. 130, §§ 1,3) - falam apenas de 'perdão', distinguindo-se
'perdões gerais'( Manuel Lopes Ferreira, Prática Criminal,Porto, 1767, t.2, trat. 2, c. 4, p.157 ss.; cf. a lista de perdões gerais de Manuel Fernandes Tomás, Repertório Geral, Coimbra, 1815, voc.'Perdão'), ou de classes de crimes, e 'cartas de perdão'(Ordenações cit., 1.5, t.130, § 3) a pessoas individuais.
'Indulto' é sinónimo de perdão (Ferreira, ilid) e, na segunda metade do século XVII, 'amnistia é usada nas leis e na doutrina como palavra sinónima de 'perdão geral ou particular' (Alvará de 6 de Setembro de 1765, cit. por Fernandes Tomás, ob. cit., voc.'Amnistia'), ou mais restritamente apenas de 'perdão geral'
(Joaquim J.C. Pereira e Sousa, Primeiras Linhas sobre o Processo Criminal, 3ª ed., Lisboa, 1806 [1ª ed. 1785] nº 574, p. 242). A Carta Constitucional de 1826
é o primeiro texto constitucional em que se fala de 'amnistia', concedida pelo poder moderador exercido pelo rei, 'em caso urgente, e quando o aconselhem a humanidade, e bem do Estado' (artº 74º,§ 8º), e logo se distingue do perdão e moderação das penas impostas aos réus condenados por sentença (artº 74º § 7º). Pinheiro-Ferreira, o eminente publicista português da época, propõe-se pouco depois fixar o sentido legal de amnistia, num Projecto de Leis Orgânicas que regulamentariam a Carta nesta parte: '994. E porque convém fixar o sentido legal de amnistia, em maneira que previna os abusos, que da concessão dessa graça, e da sua aplicação ou denegação nos casos particulares, por falta de explicação, se poderiam cometer, haver-se-á por entendido, que os efeitos daquela concessão consistem única, mas plenamente, em fazer cessar de presente, e a obstar a que no futuro venham a verificar-se nas pessoas amnistiadas, as consequências dos direitos e acções, a que o estado já tiver dado, ou para o futuro quisesse dar seguimento, por motivo dos acontecimentos sobre que versar a amnistia. 995. São pois improcedentes todas as acções públicas, que por tais motivos se acharem em juízo ou nele se vierem a propor contra os amnistiados. Outrossim ficarão
írritas quaisquer condenações, que contra todos ou algum deles se houverem fulminado: repondo-se os condenados por sentença judicial, que retracte a precedente, na situação civil e política em que se acharam antes dos acontecimentos, sobre que recair a amnistia; quer seja pela reabilitação nas mesmas, quer seja pela substituição de equivalentes vantagens: em maneira que a sua ulterior situação na república não faça aparecer, como culpados e perdoados dos factos amnistiados, os que pela natureza da decisão da amnistia devem ser havidos e tratados, como se tais factos nunca tivessem existido' (Projectos de Ordenação para o Reino de Portugal, t. 1, Paris, 1831). É claro que não se trata aqui de uma definição conceptual, mas sim da 'fixação' de um regime jurídico, que fazia depender os efeitos derivados da 'natureza da decisão de amnistia', em caso de condenação, de sentença judicial revogatória da anterior. Mas, na falta de disposição legal com o conteúdo da proposta por Pinheiro-Ferreira, parece que teria de entender-se, segundo a doutrina deste autor, que os mesmos efeitos se produziriam ope legis.
De qualquer modo, a distinção entre amnistia e perdão é mantida no Código Penal de 1852 que contém a primeira definição legal de amnistia no artº 120º: 'O acto real da amnistia é aquele que, por determinação genérica, manda que fiquem em esquecimento os factos que enuncia antes praticados, e acerca deles proíbe a aplicação das leis penais'. O § 1º dispunha sobre os efeitos : 'O acto da amnistia extingue todo o procedimento criminal, e faz cessar para o futuro a pena já imposta e os seus efeitos; mas não prejudica a acção civil pelo dano e perda, nem tem efeito retroactivo pelo que pertence aos direitos legitimamente adquiridos por terceiros.' Por sua vez, o artº 121º estatuía sobre o perdão: ' O perdão concedido pelo rei a qualquer criminoso condenado por sentença faz cessar para o futuro o procedimento e a pena mesmo pecuniária, ainda não paga, mas não restitui os direitos políticos de que a condenação privou o criminoso, se disso não se fizer expressa declaração, nem prejudica a acção civil pelo dano e perda, nem os direitos legitimamente adquiridos por terceiros.' Por comparação dos artigos e por argumento a contrario, parecia dever concluir-se que a amnistia, por diferença de perdão, restituía os direitos de que a condenação privou o criminoso, e não só os políticos, já que teria efeito retroactivo quanto a outros efeitos que não fossem legitimamente adquiridos por terceiros. Estas conclusões, conformes à doutrina de Pinheiro-Ferreira, seriam tiradas pelo primeiro comentador do Código, Levy Maria Jordão, para o qual da definição do Código 'se vê a diferença que separa a amnistia do perdão: este faz cessar para o futuro os efeitos da condenação, enquanto que aquela se retrotrai além disso até ao tempo do crime, fazendo-o desaparecer legalmente'(Commentario ao Código Penal Portuguez, I, Lisboa, 1853, p. 255). Silva Ferrão irá mesmo mais longe nas consequências lógicas que retira do conceito, defendendo de iure condendo a extinção retroactiva de direitos adquiridos por terceiros, se não forem efectivados antes da amnistia: em parte por considerar a reparação do dano 'uma parte essencial de toda a penalidade', em parte porque 'legalmente se não podem atribuir efeitos ao que legalmente se deve ter como não existente'(Theoria do Direito Penal,III, Lisboa, 1856, p. 245; cf. p. 247 n.). Desta doutrina resulta a necessária distinção entre amnistia e o perdão geral, uma vez que o carácter distintivo da primeira não está na sua generalidade, mas na sua retroactividade. A situação da lei e da doutrina portuguesas não se modificou pela substituição dos artºs 120º e 121º pelos artºs 88º, nº 3 e § 1º (amnistia), e 89º, nº 2 e §§ 2º a 4º, (perdão real) da reforma de 1884, tendo-se suprimido a definição legal de amnistia, criticada por supérflua, imprópria de um Código e em parte redundante. Como consequência reveladora, o artº 25º da lei de 1884
(depois artº 35º do Código de 1886) reforma a disposição do artº 85º do Código de 1852, segundo o qual se dá reincidência quando a pena do primeiro crime tenha sido perdoada, mas não quando amnistiada, e o mesmo se entendeu valer para a sucessão de crimes (artº 27º, depois 35º, do Código de 1886) e para a habitualidade criminosa (artº 109º do Dec.nº 24.643, de 28 de Maio de 1936).
É neste contexto que o Prof. Beleza dos Santos, fazendo-se eco das críticas da escola preventiva ao instituto da amnistia, defendeu o abandono do conceito tradicional de amnistia, para que o crime amnistiado fosse considerado como fundamento possível de perigosidade e das consequências penais desta, como a declaração de habitualidade ('Delinquentes habituais, vadios e equiparados no direito português', Rev. Leg. Jur., 70, p. 337 ss. [71, p. 339]. A proposta era de alteração legislativa, por o direito vigente não admitir tal solução, dado que 'entre nós sempre se tem entendido a amnistia como abolição para o passado do carácter criminoso de certos factos' [ibidem, n.]). Em sentido contrário se pronunciou o Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29.1.1969
(Diário do Governo de 27.2.1969), perfilhando o conceito tradicional de amnistia. Na mesma orientação de Beleza dos Santos, o Projecto Eduardo Correira de 1963 veio propor uma regulamentação da amnistia contrária à tradicional, distinguindo ' a amnistia própria (isto é, respeitante ao próprio crime) e a amnistia imprópria (ou seja, respeitante aos efeitos de crime)' e assimilando esta última ao perdão geral (são as palavras do autor do Projecto durante a discussão, Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, II, Lisboa 1966, p. 244, 246, 247). Da amnistia dizia o artº 117º do Projecto que 'extingue a infracção e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução da condenação e das penas acessórias'. O perdão não era regulado com o fundamento de que 'se está perante um instituto que nada tem de jurídico (como muito bem se traduz na expressão alemã 'Gnade vor Recht'), que transcende o plano do direito para se situar no da caridade e que por tudo isto não deve ser regulado em qualquer Código, seja no Penal, seja no de Processo Penal. Até porque isso ajudará a combater a perniciosa tendência que têm os nossos tribunais para sindicar aquilo que, como o perdão, é por sua natureza insindicável. Para além da amnistia, no seu duplo aspecto de própria e imprópria, dirigida ao crime e dirigida à pena, nada mais haverá que regular no Código Penal' (o autor do Projecto, ibidem, p.295). Ora esta doutrina foi criticada na Comissão Revisora precisamente por não distinguir a amnistia e o perdão geral, sendo apurada por maioria a solução segundo a qual a amnistia extingue a infracção, quer tenha havido ou não condenação. Em consequência, a revisão ministerial de 1966 (Bol.Min.Just., 157, 1966, p. 23 ss.) acrescentou no preceito citado um 'ainda' à parte da frase 'faz cessar a execução' que passou a rezar 'faz ainda cessar a execução' (isto é, além de extinguir a infracção) e inclui um novo artigo (artº 124º) sobre o perdão, que assim começava: 'O perdão geral, assim como o indulto ou perdão individual, não elimina a infracção, mas extingue a pena, no todo ou em parte, ou substitui-a por outra prevista na lei'. Apesar disso, a revisão manteve a exigência fundamental do Projecto, de que a amnistia, salvo disposição em contrário, não aproveitasse aos reincidentes nem aos condenados em pena indeterminada, certamente por entender, e bem, que esta consequência era compatível com o conceito adoptado de amnistia.
Só a persistência do conceito tradicional da amnistia permite compreender que alguma doutrina tenha defendido não serem admissíveis, à face da Constituição de 1976, actos de perdão genérico, uma vez que o indulto (previsto no artº 137º, al. e)) é um acto de clemência individual e a amnistia (prevista no artº 164º al.f)) incide 'não apenas sobre a pena (como o indulto ou a comutação), no caso de já ter havido condenação, mas sobre o próprio crime que será considerado como não cometido' (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1978,p.295. Sobre a amnistia, o perdão e o indulto, antes da revisão constitucional de 1982, cf. Eduardo Correia e Taipa de Carvalho, Direito Criminal- III, 2, Coimbra, 1980, Manuel Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, Parte Geral,II, Lisboa,
1982, p.504,ss.). A doutrina estava em manifesta contradição com a prática - embora não com os conceitos desta - uma vez que logo o Dec.-Lei nº 758/76, de 22 de Outubro, decretou, a par de amnistias, o perdão geral (mais precisamente, a comutação geral) no seu artº 5º, como é frequente encontrar em leis de amnistia anteriores e posteriores (Dec.-Lei nº 259/74, de 15 de Julho, artº 1º; Dec-Lei nº 428/75, de 12 de Agosto, artº 2º; Lei nº 17/82, de 2 de Julho, artºs 5º a 7º e 9º). Porventura para afastar as dúvidas, mas confirmando implicitamente os conceitos tradicionais, a revisão de 1982 acrescentou na alínea f) do artº 164º
às palavras 'conceder amnistias' estas outras: 'e perdões genéricos'.
6. O estudo dos antecedentes da distinção constitucional entre amnistia e perdão genérico revela que a controvérsia conceptual escondeu muitas vezes uma outra sobre o regime dos dois institutos. A decisão desta última é, porém, irrelevante no caso presente, ao contrário do que pretendeu a Comissão de Assuntos Constitucionais. Com efeito, mesmo que a amnistia se reduzisse a um pressuposto negativo da punição, isso implicaria sempre que fosse também um pressuposto negativo da punibilidade dos casos por ela abrangidos, que deixaram ipso facto de ter dignidade punitiva. Não assim, é claro, os casos da lei penal afectada pela amnistia, que não foram abrangidos por esta.
Esses, e são todos genericamente abrangidos pelos tipos de crime, e não exceptuados pela lei de amnistia, mantêm a sua punibilidade ou dignidade punitiva. O questionamento constitucional da não punibilidade dos factos amnistiados não pode, por isso, deixar de afectar a constitucionalidade da própria lei da amnistia.
Mas há também controvérsia na doutrina acerca de outras questões de regime, que, essas sim, têm influência decisiva na decisão do caso. Assim quanto a saber se a amnistia é um acto legislativo criador de normas integradas no sistema do Estado de direito e como tais sindicáveis pelo Tribunal Constitucional (assim os acórdãos do plenário do Tribunal Constitucional nº
152/93, Diário da República, II Série, p.2840 [21] [24] e nº 153/93, Diário da República, II Série, 23-3-1993, p. 3074 [3077]), ou se é um acto político plural
(assim Afonso Queiró 'Parecer', Actas da Câmara Corporativa, nº 67 de 16.3.1971, apud Revisão Constitucional, Lisboa, 1971, p.150, Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 1976, I, p. 94 ss., Comentário ao Acórdão nº 308 da Comissão Constitucional, Revista de Legislação e Jurisprudência, 114, pp.242-5; Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição cit., 3ª ed., Coimbra, 1993, p.651), de onde decorrerá, porventura, a insindicabilidade material das suas razões.
Igualmente se discute se a constitucionalidade das razões da amnistia se mede em vista da totalidade dos fins de Estado, legítimos num Estado de direito (assim a jurisprudência do Tribunal Constitucional: além dos cit. acórdãos nº 152/93, p.2840[25] e 153/93, p.3078, os acórdãos da 2ª secção nºs
152/95, 653/95, 160/96 e 301/97, o primeiro publicado no Diário da República, II Série, de 20-6-995, e os restantes não publicados), ou se deve restringir-se às finalidades específicas da política criminal (assim Figueiredo Dias, ob.cit., §§
1100- -1102).
Em face da persistente controvérsia sobre estas últimas questões, justifica-se um estudo desenvolvido do instituto da amnistia, da sua história e da sua justificação no Estado de direito da Constituição, como base de resposta do Tribunal às questões de constitucionalidade suscitadas.
B) Origens das leis de amnistia
7. A palavra grega amnestia, assim transcrita em latim, de onde o português 'amnistia', significava originariamente esquecimento. Platão faz dizer a Sócrates no Menéxeno (239 c) que os feitos dos gregos em Maratona estão em perigo de amnestia. Em sentido técnico-jurídico o termo só nos surge atestado no período helenístico, no séc. II a.C., nomeadamente numa inscrição de Mileto onde se fala de uma 'amnistia das acusações precedentes' (apud Liddel, Scott, Jones, Greek-English Lexicon, Oxford, 1986), e em papiros egípcios do período ptolomaico, como medidas de pacificação a seguir a mudanças políticas, como o afastamento de um usurpador do trono e reinstalação do rei (veja-se a carta de Philometeor de 163 a.C. em Grewe Gnade und Recht, Hamburg, 1936, p.
55-6.) ou o termo de uma guerra civil. Conhece-se o texto de um decreto de amnistia de 118 a.C., promulgado pelos chefes dos vários partidos em guerra há treze anos: 'O rei Ptolomeu e a rainha Cleópatra, a irmã, e a rainha Cleópatra, a esposa, decretam uma amnestia, para todos os súbditos do rei, de crimes negligentes e dolosos, esteja pendente o processo ou tenha já havido condenação, e isto relativamente a todos os corpos de delito que tenham tido lugar até ao dia 9 Parmuthi do ano 52. Excluídas estão as pessoas perseguidas por assassínio ou roubo de templo' (apud Grewe, ob.cit., p.55 ss). Embora com o mesmo nome, o instituto é conhecido do direito grego anterior. Amnestia foi o nome dado ulteriormente ao acto pelo qual o povo de Atenas em 403 a. C. depois do domínio e expulsão dos trinta tiranos, decretou o esquecimento do acontecido para pacificação da cidade e reconciliação dos partidos oligárquico e democrático (os escritos antigos usavam para tal apenas a expressão mê mnêsikakein. Vejam-se as referências em Thalheim, Pauly-Wissova, Realencyclopädie der classischen Altertumswissenchaft - I, 2 [1894], p.
1870-1.). Atribuía-se um direito de invocar excepção aos anteriormente acusados.
Estavam excluídos os trinta, os onze homens e os dez homens do Pireu, mas mesmo estes beneficiariam da lei se prestassem contas ( por vezes aduz-se como exemplo mais antigo, a famosa seisachtheia de Sólon no início do séc. VI a.C. ou anulação de todas as dívidas públicas e privadas dos atenienses, com consequente desaparecimento dos marcos de hipotecas dos campos e libertação dos escravos por dívidas. Mas a seisachtheia foi uma lei revolucionária insusceptível de se institucionalizar, que deixou feridas em vez de pacificar, ao contrário da amnistia. Cf.Aly, art. 'Solon' in Pauly-Wissova, Realencyclopãdie, III A l
[l927], p. 955-6.).
Embora o exemplo da lei de não-lembrança dos trinta seja invocado por Cicero (Philip 1, 1. 1.; cf. 2, 23, 56), que usou as mesmas palavras dos gregos na sua proposta de amnistia aos assassinos de César, que o Senado aprovou por maioria na conturbada reunião com António no templo de Tellus em 17 de Março de 44 a.C., já a sua multiplicação na agitada vida política das debilitadas cidades gregas é por ele criticada ( Verr. 5, 6, 12; De leg. agr. 2, 4, 10. ). Para os romanos, amnestia e o seu sinónimo adeia são palavras gregas de uso erudito (depois de Cícero, será o erudito Cláudio a invocar directamente o exemplo ateniense e os conceitos gregos, ao conceder uma adeia pelos ditos e factos anti-monárquicos da efémera renovação republicana a seguir à morte do imperador Gaio: cf. Th. Mommsen, Römisches Strafrecht, 1899
[reimp. Graz, 1955], p. 458 n. 1 ),.e não há denominação latina para os poucos casos de leis que decretaram a isenção de procedimento criminal na sequência de guerras civis ou de perturbações da ordem pública (vejam-se os casos indicados por Mommsen, ob. cit., p. 457-8 ). Mas os possíveis efeitos da amnistia são especificados em várias instituições conexas do direito romano, a abolitio publica, a indulgentia e a restitutio.
Tecnicamente abolitio é o acto de apagar o nome na lista das acusações, sem que o processo chegue ao fim. A partir do fim do século I a.C, surgem leis especiais - primeiro decisões do senado, depois decretos do imperador - de abolitio publica, que, por ocasião de eventos felizes da festividade imperial dos vota, e depois regularmente pela Páscoa, mandavam os juízes considerar como não pendentes processos instaurados, com certas excepções, como geralmente os crimes capitais, e sem prejuízo da faculdade dada ao acusador de requerer no prazo de trinta dias o andamento do processo. Em alguns casos foram abrangidos os processos já julgados. A indulgentia designa precisamente em conjunto a extinção do processo penal pendente e o perdão das penas decretadas (cf. Mommsen, ob. cit., p. 455-6). O perdão geral como revogação das sentenças condenatórias e restituição por inteiro - restitutio in integrum - dos condenados na posição jurídica anterior à sentença aparece pela primeira vez entre os efeitos da guerra mársica em 88 a.C., mas só se generaliza no Império por ocasião das quedas dos imperadores tiranos para obviar aos abusos judiciais cometidos, e também, como a abolição, a partir de certa altura, pela Páscoa. A restituição abrangia como efeitos: a) a reaquisição da cidadania, quando perdida em conexão com a condenação; b) a restituição dos estados e posições jurídicas de direito privado (de herdeiro, por exemplo); c) a reaquisição dos direitos honoríficos ligados à cidadania, como o direito de participação em assembleias públicas ou de admissão a cargos públicos; d) não se incluia originariamente a reinstalação em cargos públicos, mas tratando-se de funcionários subalternos em serviço permanente era oferecida a readmissão no lugar (pelo menos no caso da restituição, decretada por Constantino, dos condenados por causa da fé cristã: assim Mommsen, ob. cit., p. 486-7, que se seguiu no texto.); e) os direitos patrimoniais adquiridos pelo Estado em consequência da condenação não se presumiam afectados, salvo cláusula especial de devolução dos bens perdidos.
8. A principal contribuição romana para a história posterior do instituto foi, porém, a influente teorização da clemência feita por Séneca.
É certo que Séneca trata da virtude da clemência e não apenas da clementia Caesaris - a faculdade imperial de conceder graça, quer em casos particulares, quer por norma geral (em que se incluía o poder de amnistiar e outras formas gerais de graça descritas). Mas a ninguém esta virtude seria mais necessária, porque em ninguém poderia ter mais consequências, do que ao imperador. A definição conceptual da virtude torna-se assim justificação racional do poder jurídico e determinação dos seus limites. Depois de definir a virtude como
'inclinatio animi ad lenitatem in pena exigenda' ( De clementia, 2, 3, 1), Séneca expõe as objecções que a definição dada suscita, ou, mais precisamente, as objecções à sua definição como virtude, à justificação racional da clemência. Escreve: 'se dissermos que a clemência é uma certa moderação, o perdoar da pena merecida e devida, então reclamar-se-á que não há virtude em fazer menos do que o devido' (2, 3, 2). Depois de opor a clemência à virtude complementar, o rigor (severitas), e ambas aos vícios contrários: a crueldade, oposta à clemência, e a misericórdia, oposta ao rigor, Séneca revela o critério da virtude, que a permite distinguir da misericórdia - que é o vício que lhe está próximo: a clemência justifica-se pela razão ( clementia rationi accedit,
2, 5, 1). O fundamento ou razão da clemência deduz-se do fundamento da pena, que para Séneca é a prevenção . A falta de justificação da pena quando há razão para a clemência permite resolver a objecção inicial contra esta última. Séneca concede a premissa que baseava a objecção: 'o sábio nada faz que não deve, e por isso não perdoa a pena que deve exigir' (2, 7, 1). Mas, na forma de oposição entre a clemência racional e a mera graça irracional (venia), exemplifica os casos de clemência, em que se justifica a remissão da pena: 'admoestará um só com palavras, e não afligirá com a pena, em vista da sua idade susceptível de emenda; outro, manifestamente arrependido do crime, mandará deixar incólume, porque agiu por imprudência, ou por embriaguês; mandará em paz os inimigos, por vezes até com louvor, se foram chamados à guerra por causas honestas, pela palavra dada, por uma aliança, pela liberdade' (2, 7, 2). Generalizando, temos que afinal só a mera graça é remissão da pena devida, ao passo que 'o primeiro contributo da clemência é anunciar que aqueles que dispensa nada mais devem sofrer' (2, 7, 3). Como consequência, o sábio poupará muitos que são de personalidade (ingenium) pouco sã, mas susceptível de ser sanada... verá de que forma é de tratar cada personalidade, de que modo se flectirá o torto para ficar direito' (2, 7, 4). Numa palavra: a clemência tem fundamento racional quando está ao serviço da prevenção.
C) Desenvolvimento da teoria da amnistia: a doutrina da
dispensa da lei
9. A prática da amnistia e das instituições conexas do direito romano só é retomada no primeíro renascimento carolíngio. O poder imperial da clemência é invocado por Carlos Magno para amnistiar e para restituir, e fixa-se a situação jurídica do indultado de pena de morte. São exemplos de reafirmação de uma certa continuidade cultural, em concomitância com a prática generalizada de várias formas de graça (Gnade, Huld) do direito germânico (vejam-se as citações e indicações bibliográficas no estudo do relator, 'Sobre a Amnistia', Revista Jurídica, nova série, 6, 1986, pp. 1535, que se incorporou substancialmente nos nºs 5 e 7 a 13 deste acórdão).
Só com a recepção do direito romano as instituições antigas se expandem, depois de repensadas pelos glosadores e práticos do ius commune e pelos canonistas. Particularmente importante pela sua continuidade e influência posterior é o direito canónico e a sua teoria. As doutrinas da absolutio, da indulgentia e da dispensatio são pontos de confluência da prática legislativa da Igreja, da tradição patrística e do direito romano, da reflexão teológica e filosófica. É assim que a definição posterior dos crimes excluídos da amnistia ou do perdão é influenciada pela definição patrística e teológica dos peccata irremissibilia sive mortalia (Tertuliano), como crimes de direito divino, de que não há indulgência nem dispensa canónicas. Geralmente consideravam-se tais o homicídio, a idolatria e o adultério, mas há listas mais extensas, que incluem todas as principais violações do decálogo e mais algumas (como a sodomia)
(cf.Grewe, p.73 ss.). Entendia-se que estes crimes, salvo lei expressa, não estavam abrangidos nas amnistias e nos perdões gerais (assim Ferreira, Prática Criminal,cit.t.2,c.4,p.157.). Mas se distinguirmos a proibição do crime, que será de direito divino, da imposição da obrigação da pena ou lei penal, dir-se-á que esta última é sempre lei humana e, portanto, dispensável. O ponto é claramente feito por Grócio (De iure belli ac pacis, II, c. 20, § 24 [trad. J. Barbeyrac, Basileia, 1746, p.79]), mas já resultava da doutrina escolástica anterior. Esta última representa o grande avanço na teoria da graça ou da clemência depois de Séneca.
A doutrina da dispensa (dispensatio) permite integrar pela primeira vez correctamente os actos de graça, incluindo a amnistia, na teoria geral da lei. É precisamente neste contexto, dentro da matéria 'da mudança das leis' (S. Th. 1-2 q. 97), que S. Tomás coloca a questão de saber se os governantes podem dispensar das leis humanas (q. 97 a. 4). A resposta é a seguinte: 'Acontece por vezes que certo preceito que é na generalidade dos casos útil à comunidade, não é conveniente a certa pessoa ou em certo caso, ou porque por esse modo se impede algo melhor ou também porque se produz algum mal... E por isso quem tem o poder de governar a comunidade tem o poder de dispensar da lei humana que criou por sua autoridade, isto é, de conceder a licença de não cumprir o preceito da lei relativamente às pessoas ou aos casos em que a lei é deficiente. Se, porém, sem essa razão, por sua mera vontade, concede licença, ou não é fiel, ao dispensar, ou é imprudente: infiel, se não tem em vista o bem comum; imprudente, se ignora a razão de dispensar.'. Esta justificação permite-lhe a seguir afastar objecções. A primeira diz que a dispensa implica a prevalência da utilidade individual sobre a utilidade comum. A resposta é que a dispensa 'não deve ter lugar em prejuízo do bem comum'
(ad-1). A segunda objecção afirma que a dispensa acarreta acepção de pessoas. Responde-se que 'não há acepção de pessoas se não se cumprem coisas iguais relativamente a pessoas desiguais. Por conseguinte, quando a situação de uma pessoa requer que racionalmente se observe relativamente a ela alguma coisa em especial, não há acepção de pessoas se lhe é feita uma especial graça' (ad 2). Ainda quanto à lei pública humana S. Tomás diz, a propósito da possibilidade de dispensa das várias espécies de leis - natural, divina e humana -, que só pode dispensar dela a pessoa 'de quem a lei recebe autoridade' (ad 3), isto é, que tem o poder legislativo.
Os autores neoescolásticos vieram introduzir aqui uma importante distinção. Soto pretende separar os casos de interpretação por equidade
(interpretatio per epieikeiam, uma expressão que não se encontra em S. Tomás, nem em Aristóteíes) ou, mais simplesmente dito, de equidade, dos casos de dispensa: 'Uma coisa, é que a observância da lei humana seja contrária à razão da lei, onde tem lugar a epieikeia; outra coisa, na verdade, que falte a razão da lei relativamente a certa pessoa, onde, além disso, é necessária a dispensa'.
Um dos exemplos de Soto:um homem de baixa condição, a quem está proibido montar a cavalo, pode, por equidade, fazê-lo para escapar de cair nas mãos do inimigo;mas se é útil na guerra a cavalo, só poderá, contudo, fazê-lo mediante dispensa (De iustitia et iure, 1556 [reimp. Madrid, 1967], I.1, q. 7, p. 79). Suarez será ainda mais claro: 'A interpretação difere da dispensa em que não faz cessar a obrigação da lei, mas declara que a lei por vezes não obriga' (De legibus, 1612 [ed .Corpus Hispanorum de Pace, Madrid, 1971 ss], I.1, c. 20, l0.). Aqui S. Tomás teria sido certamente obscuro (De legibus, ed. cit., vol. II, p. 181 [ms. de 1601]). Em rigor não há na epieikeia uma correcção e assim modificação parcial da lei, mas só na aparência: 'a lei fala em geral e pelas palavras não pode exceptuar casos singulares e assim na formulação exterior parece compreender alguns que na realidade não compreende, e porque a epieikeia declara isto, chama-se por isso correcção da lei' (De legibus, I.1, c. 20, 10). Poderá incluir-se no conceito da dispensa a suspensão da lei, que não a faz usar, mas suspende a eficácia dela por um tempo determinado (De legibus, I.1, c.
20, 13.). A partir deste conceito de dispensa, não há dúvida que abrange os casos de amnistia e de indulto. Suarez não trata deles ex professo, mas a propósito dos efeitos da dispensa: 'Um dos efeitos da lei é a pena, e a dispensa também desvincula desta como efeito primário, salvo se nela se exprime outra limitação, porque retirada a culpa da transgressão, consequentemente retira a imputação da pena. Algumas vezes, porém, pode a dispensa ter o seu efeito só relativamente à pena (De legibus, I.6, c. 11. 4.). Assim a dispensa pode por si dar-se da pena já contraída por culpa precedente, como quando se faz remissão da pena imposta por lei: com efeito também ela é uma certa desvinculação da lei...algumas vezes quando ainda não foi proferida sentença... outras vezes, porém, é dado perdão (indulgentia) depois de imposta a pena' (De legibus, I. 6, c. ll, 5.).
Soto e Suarez distinguem entre as razões da dispensa ou da suspensão, que não são para tal suficientes sem um acto de modificação da lei, e a (a razão de) não verificação da razão da lei, que faz cessar a obrigação desta e limita o âmbito da sua incidência sem necessidade de acto legislativo, pelo que basta a interpretação, ou a equidade, para declarar a limitação. Os clássicos da escola do direito natural, Grócio (De iure belli ac pacis, 1.2, c.
20 §§ 25-27 [trad. Barbeyrac, t. 2,p. 80-81]) e Puffendorf retomam essa distinção chamando às razões da primeira espécie externas e à da segunda espécie internas. Segundo Puffendorf, neste último caso a correcção da pena é segundo o espírito da lei e resulta da equidade, pelo que 'propriamente só as razões exteriores compelem a perdoar', como são, por exemplo, os serviços passados do culposo, as qualidades extraordinárias deste, a grande esperança que dá de apagar o seu crime com boas acções, etc. (De iure naturae et gentium, 1672, p.
8, c. 3, § 17 [trad. J. Barbeyrac, Amsterdão, 1734, t.2, p. 478-480]).
D) Amnistia e Estado de direito
10. A história posterior da amnistia e do indulto está ligada à problemática da sua justificação e compatibilidade com os princípios constitucionais. A crítica epocal de Beccaria já contém ou sugere os argumentos principais: o exercício do poder de clemência contraria a prevenção geral, e, se bem que estes argumentos não estejam em Beccaria autonomizados do anterior, viola os princípios da igualdade e da divisão dos poderes. A clemência, reconhece Beccaria, 'nas desordens do sistema criminal... supre à absurdidade das leis, à atrocidade das condenações', mas 'devia ser reduzida em uma perfeita legislação onde as penas fossem doces e o método de julgar regular e expedito... Mas se se considera que a clemência é a virtude do legislador, deve resplandecer no código e já não nos julgamentos particulares; que fazer ver aos homens que se podem perdoar os delitos, que a pena não é a sua necessária consequência, é fomentar a esperança da impunidade, fazer ver que, podendo perdoar-se ou não perdoar-se, as penas são violências da força, não emanações da justiça... Sejam pois inexoráveis as leis, inexoráveis os executores dela nos casos particulares, mas seja doce, indulgente, humano o legislador' (nota manuscrita escrita entre 1764 e 1766 e incluída nas edições posteriores no cap. ou § 20 do Dei delitti e dele pene, 1764 [reimp. Turim 1964, p. 164]). A crítica ao poder de clemência é partilhada pelos principais autores do final do séc. XVIII: Filangieri (La scienza dela legislazione, 1780-5, 1.3, d. 57
[ed. Frosini, Roma, 1984, v. li, p. 105 ss.]), Rousseau (Du contrat social, 1.
2, c. 5 [Oeuvres completes, ed. Piéiade, lll, p.377]), Kant (Die Metaphysik der Sitten. I Teil. Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre, 2ª ed., 1798, §
49, p. 236), Bentham (Principes du Code Penal [l802], in Oeuvres, ed. Dumont,
3ª ed., 1840, p. 168-9. Constitucional Code, in The Works, ed. Bowing,
1838-43, IX, p. 24, 36 s.). Este último, aliás o mais severo dos críticos, sempre reconhece a sua necessidade nos casos clássicos de amnistias depois de sedições, conspirações, desordens públicas, em que defende a sua previsão genérica na lei (Oeuvres, ob. cit). A estes casos, Feuerbach acrescenta aqueles em que a graça é 'um mal menor, que prepara a transição para melhor legislação', os de prémio de denúncia de conspiração ou associação de malfeitores, e outros semelhantes porque ainda então 'a própria justiça pode ser pensada como fim e fundamento do seu exercício' (Lehrbuch des gemeinen in Deutschland gültigen peinlichen Rechts, 14.1ª ed. 1847 [reimp. Aachen 1973], § 63). Entre nós Melo Freire faz-se eco desta discussão e conclui, como Beccaria, pela utilidade e necessidade do direito de agraciar nos estados em que as leis criminais são mais severas do que é justo (Institutiones Juris Criminalis Lusitani, 1794, §
26. Veja-se o comentário desenvolvido deste § nas Lições de Direito Criminal de Basílio Sousa Pinto, Coimbra, 1845, p. 125 ss.). O ponto culminante desta evolução é a deliberação de 4 de Julho de 1791 da Assembleia Nacional francesa:
'L'usage de tous les actes tendant à empêcher ou à suspender l'exercice de la justice criminelle, l'usage de lettres de grâce, de rémission, d'abolition, de pardon, et commutation de peine sont abolis' (Arch. parl. 26, p. 730.). Uma disposição semelhante, restrita a 'tout crime poursuivi par vote de jurées', é incluída no Code Penal de 1791 (Parte 1, tit. 7, artº. 1, nº 13) (Code Criminel et Correctionnel ou Recueil Chronologique des Lois..., Paris, 105, I, p. 48). Só com Napoleão se restabelece em França o direito de agraciar (Senatusconsulto de 16 thérmidor do ano X).
11. A teoria tradicional da clemência, desde Séneca, é uma teoria do fundamento racional do seu exercício ou, na formulação usual a partir da Idade Média, da justa causa dos actos de clemência ou graça - a amnistia e o perdão. A sua integração na teoria da lei como dispensas ou suspensões da lei prepararia a crise teórica do instituto, ligada às vicissitudes da doutrina da lei no Estado constitucional. Em Beccaria já se perdeu de vista a problemática aristotélica da correcção da lei pela equidade, pensada por Aristóteles como correcção da justiça legal pela justiça, mas os argumentos contra a clemência relacionados com a generalidade da lei e a divisão dos poderes entre o legislador e o juiz dizem ainda directamente respeito à racionalidade, do ponto de vista preventivo, dos actos de um e de outro, que dependem da previsibilidade e certeza do direito, ligadas ao princípio de igualdade e à separação de poderes. Na doutrina do Estado constitucional a questão da racionalidade é substituída pelas da constitucionalidade da lei e da legalidade da administração e da justiça, e torna-se difícil explicar as respostas a estas últimas questões como simples desenvolvimento da teoria da racionalidade. Esta perspectiva perde-se em muitos autores. Assiste-se no nosso tema à ruptura com as doutrinas tradicionais da dispensa e da justa causa.
Para Locke, o poder legislativo não abrange toda a criação de direito, mas apenas a determinação duradoura, ou por regra promulgada, dos direitos subjectivos (Two Treatises of Government, II § 136 [ed. Laslett, Cambridge, 1963, p. 404]), pelo que 'o poder de, em muitos casos, mitigar a severidade da lei e perdoar alguns dos delinquentes', poderia, como parte do poder de prerrogativa, ou 'poder de agir discricionariamente (according to discretion) a favor do bem público, sem a prescrição da lei e por vezes até contra ela', ser atribuído ao titular do poder executivo (Ob. cit., II, § 159,
160 [ed. cit., p. 421-2]). Um conceito institucional da lei (assim, Böckenförde, E.-W., Gesetz und gesetzgebende Gewalt, Berlin, 1958, P. 25) permitia a Locke preservar a doutrina da justa causa.
Já não assim segundo o conceito de lei que se desenvolve na doutrina constitucionalista francesa. Para Esmein, por exemplo, o conceito medieval de lei distingue-se precisamente do contemporâneo por admitir dispensas da lei: 'a lei era decerto concebida em princípio como uma regra geral, uniforme para todos; mas admitia-se que o príncipe, que reunia nas suas mãos o poder legislativo, executivo e judiciário, podia, quando havia uma justa causa, dispensar da aplicação da lei quanto a uma pessoa ou a um facto determinado, deixando ao mesmo tempo à lei a força e o alcance geral; esta dispensa podia ser atribuída ou para o futuro ou mesmo para o passado (o que era mais frequente) e então com efeito retroactivo'. Em contrapartida 'a lei aparece-nos hoje como uma regra uniforme para todos e inevitável; neste sentido nenhum dos poderes públicos poderia, de direito, afastar a sua aplicação num caso particular. O poder legislativo pode, é certo, revogar uma lei, mas não deve, enquanto ela continua em vigor e não modificada, suspender ou afastar a sua aplicação numa hipótese especial, que cabe exactamente na regra que ela edita. Tal é, pelo menos, o princípio, (Esmein, Elements de droit constitutionel français et comparé, 8ª ed. Paris, 1927, II, p. 148 ss). Em rigor, nada há no conceito da lei que obste à dispensa. Pese a Esmein, a lei como norma distingue-se precisamente das leis da natureza porque pode ser aplicada ou não aplicada. Se a não aplicação a certo caso, ou a certo grupo de casos, é lícita ou até devida, por força de outra lei ou acto normativo que modifica nessa medida a lei, é questão de regime e não de conceitos. Tal regime existe segundo todas as constituições que prevêem amnistias ou perdões, o que é bastante para refutar o conceito de Esmein. Haverá, sim, que perguntar se há limites constitucionais ao poder de amnistia ou de perdoar; é o caso do princípio da igualdade.
12. É claro que continua a ser importante determinar os conceitos constitucionais de lei relevantes para a aplicação de certo regime jurídico. E é, decerto, legítimo, escrutinar teoricamente esses e outros conceitos da lei. Mas deve ter-se presente que o requisito da generalidade da lei não deriva logicamente do conceito de norma jurídica, uma vez que há normas individuais, mas é uma exigência do regime jurídico do Estado de direito. Por outras palavras: a lei deve ser geral. Porquê e em que sentido? Nestes termos, a questão afecta a teoria da amnistia e do perdão.
Tem-se dito que as leis da amnistia não são leis por carecerem de generalidade. Alguns (por exemplo, Marcelo Caetano, Direito Constitucional, I, Rio de Janeiro, 1977, p. 201-2.) distinguem a generalidade relativa aos destinatários da lei (generalidade em sentido restrito), da generalidade relativa aos factos a que a lei se refere ou objecto da lei (por vezes chamada abstracção), e exigem ambas. Se, então, a generalidade é a propriedade da descrição dos destinatários ou do objecto ser feita através de conceitos gerais, a amnistia é geral nos dois sentidos, pois refere-se a uma classe de factos de uma classe de pessoas, nisso se distinguindo do indulto.
Mas quando se nega que a amnistia seja geral ou abstracta entende-se por generalidade ou por abstracção a 'insusceptibilidade de previsão individualizada' (Queiró, 'Parecer...' cit., p. 150.) ou a 'susceptibilidade de aplicação indefinidamente repetida' (declaração de voto de Luis Nunes de Almeida, Pareceres da Comissão Constitucional, 4, 1979, p. 259,), que faltariam em todas as leis retroactivas, como são necessariamente as amnistias. Os factos a esquecer com a amnistia formam uma classe fechada e não aberta, são todos individualizáveis no momento da criação da lei, no sentido de que têm ou tiveram todos existência individual. Daqui não se segue que a amnistia não seja
'normativa', não oriente o comportamento, não seja 'preventiva' dos actos que a violam, não 'disponha' para o futuro mas apenas 'providencie' acerca do passado, como 'providência colectiva' (Zagrebelski, ob. cit. p. 78 ss. que propõe, como segunda caracterização, 'acto geral de conteúdo não normativo'). Em dois sentidos, a lei de amnistia é normativa. Em primeiro lugar, como lei geral no primeiro sentido, não identifica directamente os casos a que se aplica, mas indirectamente, através das propriedades comuns desses casos. Tem, portanto, a estrutura lógica de uma frase condicional de dever ser: se se verifica a propriedade no caso, deve ser a consequência. Necessita de aplicação, como já mostrou Bentham (Of Laws in General, ed. Hart, London, 1970, p. 82 s.) e contém uma orientação, que é normativa e para o futuro, do comportamento de quem preenche os conceitos gerais da previsão da lei. É isto que é decisivo para o seu carácter normativo e não a circunstância acidental de a 'determinação' ou a
'enumerabilidade' dos casos passados que cabem nesse conceito poder ser tão difícil como a dos casos futuros que cabem nesse conceito (é o argumento de Grottanelli de'Santi, Profili costituzionali della retroattivitá delle leggi, Milano, 1970, p. 101.). Neste primeiro sentido, a lei de amnistia é geral e não individual, por oposição ao indulto. Nesta orientação, o Tribunal Constitucional Federal alemão qualificou o preceito amnistiante como lei em sentido material:
'A concessão de isenção da pena, que é criada por este impedimento do procedimento criminal e da execução da pena, não é, como muitas vezes se admite na doutrina corrente, um acto administrativo em forma de lei, mas uma lei em sentido material. Não se regulam, como nos indultos, as consequências penais de casos particulares, mas sim de um número incalculável e indeterminado de casos, caracterizados por tipos' (BVerfGE 2, 213).
Em segundo lugar, a lei de amnistia estatui vários efeitos jurídicos,que variam consoante o facto amnistiado foi ou não objecto de processo penal, no segundo caso, consoante foi ou não julgado definitivamente, se houve condenação, consoante a espécie de pena e o estado da sua aplicação. Há, assim, ou pode haver, comandos dirigidos aos sujeitos do processo penal, modificação ou extinção de obrigações do amnistiado, extinção de posições jurídicas e reconstituição de outras. Como afirmou a Comissão Constitucional acerca das
'leis-medida' ou 'leis-providência': são normas, e podem, portanto, ser declaradas inconstitucionais com força obrigatória geral, 'o que se compreende por serem, por si só, obrigatórias, imperativas para todos (tribunais, autoridades administrativas) que as hajam de aplicar ou executar e não apenas para os sujeitos abrangidos nas suas previsões' (Parecer nº. 3/78, Pareceres da Comissão Constitucional, 4, 1979, p. 228. No mesmo sentido os pareceres da Comissão Constitucional nº. 6/78 (Pareceres, 4, 1978, p. 303 ss.), e nº. 13/82
(Pareceres, 19, p. 149 ss.) e o acórdão do Tribunal Constitucional nº. 26/85
(Diário da República, II Série, de 26.4.1985, p. 3871 ss. Neste sentido, a Comissão considera como norma, nomeadamente para o efeito da declaração de inconstitucionalidade, o próprio acto administrativo que conste de acto com a forma de lei, dotado, por isso, de 'força legal e, portanto, geral (com eficácia erga omnes e não apenas inter-partes)' (ibidem. No mesmo sentido, a partir do acórdão nº 26/85, - Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5, p. 18, é a jurisprudência do Tribunal Constitucional, de que o Relator fez uma análise na sua declaração de voto no acórdão nº 172/93, Acordãos, vol. 24, pp. 451 [458 ss.]).
13. Mas a exigência constitucional da generalidade da lei tem uma justificação profunda que implica uma outra delimitação do conceito. A doutrina e a justificação dela são formuladas pela primeira vez por Rousseau, e têm o sentido de assegurar a racionalidade da lei. A lei é geral porque é a expressão da vontade geral. A vontade geral é a vontade de todos que tem todos por objecto. O princípio tinha sido claramente formulado por Diderot como critério da racionalidade do direito e da moral, ou do 'direito natural', que é comum, como consequência da razão, a todos os homens. 'A vontade geral - segundo Diderot - é em cada indivíduo um acto puro do entendimento que raciocina no silêncio das paixões sobre o que o homem pode exigir do seu semelhante e sobre o que o seu semelhante pode exigir dele' (art. 'Droit Naturel' de Encyclopédie,
1751 [L'Encyclopédie... Textes choisis, ed. Soboul, Goujard, Paris, 1984, p.
147.]). Neste sentido, a vontade geral é de todos os homens para todos os homens. É este o ponto de partida de Rousseau, que o aplica à lei do Estado. A lei é geral, porque é racional e, como tal, 'restabelece no direito a igualdade natural de todos os homens. É esta voz celeste que dita a cada homem os preceitos da razão pública, e lhe ensina a agir segundo as máximas do seu próprio juízo, e a não estar em contradição consigo mesmo' (Discours sur l'économie politique, Oeuvres, ed. cit., III, p. 246). A contradição consigo mesmo é obviamente consigo como homem racional, ou com as conclusões que são tiradas por todos, da perspectiva que é comum a todos: é a mesma lei que determina o que o homem pode exigir do seu semelhante e o que o seu semelhante pode exigir dele. Por isso, a lei como expressão da vontade geral, é um acto da razão de todos, que é também a razão de cada um. 'A primeira lei, a única verdadeira lei fundamental', escreve Rousseau, 'é que cada um prefere em todas as coisas o maior bem de todos' (Du contract social [1e version], Oeuvres cit., III p. 328). O indivíduo ao sujeitar-se à vontade geral, segue por isso a sua vontade racional, e livre. Isso faz sentido quando a sujeição é voluntária. Na sujeição forçada, o infractor só é respeitado como pessoa racional - como diz Hegel (Grundlinien der Philosophie des Rechts, Berlim 1821, § 100, p.) no sentido de que se respeita a vontade (geral) que teria como pessoa racional - expressa no direito que lhe é aplicado - e não a vontade (particular) que efectivamente tem. Só assim se entende, em Rousseau, a diferença - e possível oposição entre a 'deliberação pública', como expressão da 'vontade de todos' e a
'vontade geral' (Discours sur l'économie politique cit., p. 246; Du contract social 1.4, c.1, Oeuvres cit., III, p. 438.) e a complexa relação que estabelece entre as duas. Por um lado, o direito positivo é definido como 'a especificação' das acções comandadas pela vontade geral 'através de outras tantas leis particulares' (Du contract social, 1.4, c.1, Oeuvres cit., III, p. 328). Daí a exigência de generalidade da lei positiva, como exigência de racionalidade, baseada na igualdade e na consequente concepção do bem comum como o maior bem de todos: 'como a coisa estatuida se refere necessariamente ao bem comum, segue-se que o objecto da lei deve ser geral bem como a vontade que a dita, e é esta dupla universalidade que faz o verdadeiro carácter da lei' (Du contract social
[1e version] cit. p. 327.). Mas a este princípio material, Rousseau acrescenta um princípio formal ('La matière et la forme des lois sont ce que constitue leur nature; la forme est dans l'autorité qui statue; la matière est dans la chose statuée' [ibidem, p. 327]), a exigência de que a lei seja formada em processo democrático: assim a 'vontade de todos' só obriga se conforme à 'vontade geral' e só através da 'vontade de todos' 'se pode assegurar que uma vontade particular
é conforme à vontade geral' (Du contract social, 1.2, c. 7, ed. cit., p. 383). Com este conteúdo essencial, a doutrina da generalidade da lei de Rousseau é um elemento constitutivo da teoria do Estado de direito. Também na nossa Constituição ela decorre, de entre outros preceitos, dos arts. 1º, l2º, l3º e l8º, nº 3.
Este desenvolvimento tornou-se indispensável para responder à questão de saber se a retroactividade da amnistia exclui a sua generalidade e, portanto, o seu carácter de lei, em sentido material. O próprio Rousseau parece ter hesitado sobre este ponto (cf. Du contract social [1e version] cit., p.
328: 'la loi ne sauroit avoir d'effet retroactif, car elle auroit statué sur un fait en particulier, au lieu de statuer generalement sur une espéce d'action qui n'étant encors celles de personne n'ont rien d'individuel qu'après la publication de la loi, et par la volonté de ceux qui la commettent'. Este passo do Manuscrito de Genève foi riscado no manuscrito e não foi reproduzido na versão publicada da obra). No entanto, das considerações feitas resulta que a exigência de generalidade não depende do carácter mais ou menos determinado dos casos a que se aplica, mas da sua racionalidade, isto é, da susceptibilidade da sua generalização como diz Kruger: 'a lei é geral (e portanto correcta) quando passa a prova sob o critério da capacidade de generalização' (Allgemeine Staatslehre, 2ª ed., 1966, p. 3067). A susceptibilidade de generalização implica satisfazer o maior interesse de todos ou a justificação tendo em conta os interesses de todos, e ainda a susceptibilidade de aprovação por qualquer um, incluindo aqueles cujo interesse é eventualmente sacrificado; estes últimos não podem ter directamente interesse no próprio sacrifício, mas sim numa regra de sacrifício do mesmo interesse em idênticas circunstâncias. Aplicando isto à amnistia, ela é susceptível de generalização quando houver justa causa, um requisito reconduz-se ao outro, como formulações equivalentes do mesmo princípio. A lei da amnistia é geral não apenas no sentido de que define os casos a que se aplica através de conceitos gerais, mas também, havendo justa causa, é geral e, portanto, lei em sentido material, no sentido de que é racional ou susceptível de generalização.
A negação da generalidade da lei de amnistia neste último sentido leva a considerar, como Queiró, que nela se trata 'de um acto plural político', isto é, de uma série de 'actos políticos', acidentalmente reunidos numa única declaração de vontade' (Lições, cit., p. 94 ss. No Parecer cit. usava-se a terminologia equivalente de 'acto do governo'). 'Tais actos - escreve o mesmo autor - são fundamentalmente actos contra legem, cuja prática só pode ter lugar na base de uma habilitação constitucional específica, uma vez que, não se justificando em termos de justiça, antes por outras considerações a ela estranhas (trazer a calma ao País, participar certas pessoas, culpadas de certos crimes, na alegria suscitada por eventos particularmente faustos da Nação), ofendem o princípio de igualdade jurídica' ('Parecer', cit., p. 151; cf. Lições, cit., p. 94 ss.). Mas então a amnnistia estaria em contradição com os princípios básicos do Estado de direito, seria um corpo estranho na Constituição, insusceptível de fiscalização pelo Tribunal Constitucional. Com este entendimento, a frase 'Gnade geht vor Recht' (a graça tem precedência sobre o direito) não exprimiria a oposição entre a graça e a justiça legal, em nome da justiça ou da equidade, a oposição entre a dispensa e a lei dispensada, mas sim a oposição radical entre a graça e o direito. Mas isso é abandonar todo o progresso na compreensão da problemática da justificação da clemência desde Séneca e consequente sindicação jurídica dos seus limites. O caminho é o inverso. As doutrinas da dispensa e da justa causa permitem articular correctamente a amnistia com as teorias da lei e do Estado de direito. Elas permitem compreender as várias formas de graça como 'auto-correcção da justiça'
(Selbstkorrektur der Gerechtigkeit), na célebre frase de Jehring ( Der Zweck im Recht, 3 a ed., 1893, 1. p. 428) e explicar como a dispensa da lei pode servir os fins do Estado de direito. Por isso, e apesar da dificuldade em conciliar as prerrogativas com o Estado de direito, a doutrina da dispensa continuou a ter defensores entre cultores do direito público do século passado (von Haller,
Weiss, G. Meyer, Bornhak, Steinitz (cit. por Grewe, ob. cit. p. 138)) e deste século (Grewe [Grewe, ob. cit. p. 140 ss]) e goza de certa expansão entre os penalistas contemporâneos (von Preuschen, NJW, 1970, p. 458 [459]), Schäfer (em Löwe-Rosenberg, Die Strafprozessordenung - und das Gerichtsverfassungsgesetz ,
23ª ed., Berlim, V, 1979, GVG Vor §12 Rz. 12) Schätzler (Handbuch des Gnadenrechts, München, 1976, p. 75),Rüping ('Die Gnade im Rechtsstaat', Festschrift für Friedrich Schaffstein, Gottingen, 1975, p. 40). Mesmo sem invocação explícita da doutrina da dispensa, não é outra no fundo, a posição dos que admitem um poder punitivo do Estado em sentido amplo, que abrange como partes o direito de punir e o direito de agraciar (Jescheck, Lehrbuch des Strafrechts, Allgemeiner Teil, 3ª ed., Berlim, 1978, p. 736), ou consideram o poder de amnistiar 'como a contraface do direito de punir estadual' (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, cit., §1100), com o consequente 'princípio do paralelismo das competências', ou seja, de que 'deve ser atribuído ao órgão de soberania com competência para definir os crimes, as infracções e as respectivas sanções a que a amnistia se reporta' (Figueiredo Dias, em Pareceres da Comissão Constitucional, 8, 1980. p. 110 em declaração de voto aos Acórdãos da Comissão Constitucional nº 308 de 20.11.1980 [Apêndice ao Diário República de 22.12.1981, p.23] e nº 362 de 20.2.1981 [Apêndice ao Diário da República] de 18.1.1983, p.26]).
Afinal é a própria teoria do Estado de direito que permite responder cabalmente à questão da legitimidade material da amnistia e do indulto e desenvolver a teoria da justa causa. É também nestes termos que Eduardo Correia e Taipa de Carvalho situam o problema: 'a potestas puniendi está irrecusavelmente orientada num Estado-de-Direito para a defesa dos valores sociais considerados imprescindíveis à realização da pessoa humana livre e corresponsável na comunidade em que está inserida. A defesa social, no sentido apontado, constitui a ultima ratio do direito de punir... Significaria isto que a legitimidade das medidas de clemência deve afirmar-se sempre e apenas quando ocorrem situações em que a defesa da comunidade sócio-política seja melhor realizada através da clemência que não da punição' (Direito Criminal, III (2), p.16-17. Note-se contudo, que o sistema dos fins das penas e da sua articulação com os fins do Estado mal se reconduz à ponderação da defesa social).
Cumpre, contudo, reconhecer que a tese de que a lei de amnistia implica logicamente uma dispensa da lei punitiva, que há que sindicar constitucionalmente quanto à sua racionalidade ou razoabilidade, tendo em vista o princípio da igualdade, é compatível com a 'autonomia' do poder de conceder amnistias (afirmada no acórdão nº 362 [p. 25] da Comissão Constitucional) relativamente ao poder de fazer leis, consagrados em separado nas alíneas d) e g) da Constituição como competências distintas da Assembleia da República, que em outras constituições são atribuídas a órgãos distintos (assim, por exemplo, a amnistia era segundo a redacção originária do artigo 79º da Constituição italiana, concedida pelo Presidente da República, através de uma lei de delegação das Câmaras legislativas - desde a lei constitucional de 6 de Março de
1992, nº 1 exige-se unicamente a maioria de dois terços dos componentes de cada uma das Câmaras -, e na Carta Constitucional competia ao Rei como poder moderador [artigo 74º, § 8]). Por outro lado, como se mostrará a seguir, embora o princípio da igualdade seja aplicável à lei de amnistia, é-o em termos compatíveis com a desigualdade de tratamento que ela implica relativamente aos casos que continuam a ser abrangidos pela lei punitiva geral amnistiada (ponto acentuado por outras palavras no Parecer nº 13/79, p.104 da Comissão Constitucional. Sobre amnistia na jurisprudência da Comissão Constitucional, cf. ainda o parecer nº 32/79 [Pareceres, 10, 1980), p. 107 ss.]; e os acórdãos nºs
186 de 26.3.1980 [Apêndice ao Diário da República de 3.7.1980], 259 [Apêndice ao Diário da República de 28.7.81], 309, 310, 311, 314, [Apêndice ao Diário da República de 22.12.1981]). Acresce que a norma de amnistia, mesmo geral, no sentido apontado, não deixa de ser uma medida política, que não põe em questão a continuada vigência da norma punitiva amnistiada, que continua a ser a regra geral incriminadora, nem dos princípios gerais do direito penal, medida relativamente à configuração da qual o legislador dispõe de uma liberdade de conformação legislativa, nomeadamente do ponto de vista do princípio da igualdade, superior à que caracteriza outras normas, que exprimam regras ou princípios jurídicos. Com este limitado conteúdo seria adequado falar de um
'acto político plural', expressão que pode, contudo, equivocadamente ligar-se à tese da insindicabilidade constitucional das normas de amnistia.
Justifica-se assim e precisa-se a próxima tarefa: saber se a norma de amnistia questionada viola os princípios do Estado de direito e especialmente o princípio da igualdade, que fundamenta a generalidade da lei. Ora o princípio da igualdade não significa proibição de normas especiais ou excepcionais relativas a categorias de interessados, mesmo se já individualizáveis em concreto, como nas leis retroactivas, mas sim proibição de normas diversas para situações objectivamente iguais, com o corolário de que normas diversas regulam situações objectivamente diversas do ponto de vista da razão da norma (assim, os acórdãos nºs 44/84, 34/86, 12/88, 39/88, 191/88,
186/90, 330/93, 381/93, 516/93, 335/94, 468/96, 563/96 e 786/96, publicados nos Acórdãos, 3º vol., p. 133, 7º vol., t. I, p. 37, 11º vol., p. 135 e p. 233, 12º vol., p. 239, 16º vol., p. 383, 25º vol., p. 421 e p. 547, Diário da República, II Série, 19/1/1994, 30/8/1994, e 13/5/1996, e I Série A, 16/5/1996 e II Série, de 20/8/1996, respectivamente). Antes porém, convém passar em revista a prática portuguesa em matéria de leis de amnistia desde o 25 de Abril de 1974, de modo a tipificar as várias causas das normas de amnistia, com vista à formulação dos princípios gerais relevantes para a aplicação do princípio da igualdade.
E) As causas da amnistia e o princípio da igualdade
14. As normas de amnistia suspendem retroactivamente a aplicação de uma norma penal relativamente a parte dos factos nesta descritos. A delimitação dessa parte deriva, desde logo, do carácter temporário da amnistia e tem a ver com as circunstâncias que dão causa à amnistia. Não quer isto dizer que essas circunstâncias sejam todas temporárias. Apenas algumas devem sê-lo, para que não se tratem desigualmente os casos anteriores e os posteriores à amnistia.
Quanto à causas da amnistia, há que ter presente as causas do acto amnistiante, que explicam a oportunidade do diploma legal no seu conjunto e as causas de cada norma de amnistia que o diploma contém. Estas últimas incluem as anteriores, que habitualmente se relacionam com as circunstâncias que limitam temporalmente a amnistia, mas também as excedem, excepto se o diploma contém uma
única disposição legal. A doutrina não faz habitualmente esta distinção, concluindo apressadamente da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da causa do acto para a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de cada uma das normas que contém. Mas é claro que, tratando-se de constitucionalidade material, só esta última está em questão, e ela depende de todas as circunstâncias que especificam os actos amnistiados e não apenas das que são comuns a todos os actos amnistiados que são abrangidos pela mesma lei formal amnistiante. Tipificam-se a seguir apenas algumas causas mais frequentes, quer da lei da amnistia como um todo, quer das várias normas de amnistia, sendo certo que os vários tipos concorrem muitas vezes em uma só norma de amnistia (cf. especialmente: Geerds, Gnade, Recht und Kriminalpolitik, 1960, p. 19 ss.: Rüping, lug. cit., p. 36 ss.; Schätzler, ob. cit., p. 126 s. e 'Gnade vor Recht', Neue Juristische Wochenschrift, 1975, p. 1250 ss.; Zagrebelski, ob. cit., p. 12 ss.; Jescheck, Lehrbuch 5ª ed., § 88.2).
a) Amnistia por magnanimidade (Geerds), por bondade e amor
(Rüping), festiva (Jubiläumsamnistie: Schätzler), por uma occasio publicae laetitiae excepcional, ou em celebração de festas mais regulares, como eram as amnistias pascais romanas, ou as de Sexta-Feira Santa na Espanha cristã ( De que falam as Partidas de Afonso X, o Sábio, VII, 32 (Las Siete Partidas...glosadas por Gregório Lopez , Salamanca, 1555, reimp. Madrid, 1974), e são hoje as amnistias austríacas por cada decénio do Staatsvertrag de 1955 (cf. Schätzler, ob. cit., p. 134.). Exemplos nossos são o Decreto-Lei nº 758/76, de júbilo com a eleição do Presidente da República, a tomada de posse do 1º Governo Constitucional e o aniversário da implantação da República, o Decreto-Lei nº
825/76, abstraindo agora da sua inconstitucionalidade orgânica, para assinalar a data de 5 de Outubro, a Lei nº 17/82, por ocasião da visita a Portugal do Papa, a Lei nº 16/86, assinalando o início do mandato do Presidente da República, a Lei nº 23/91, comemorativa do 17º aniversário do 25 de Abril, da reeleição do Presidente da República e da visita do Papa a Portugal a Lei nº 15/94, comemorativa do 20º aniversário de 25º de Abril.
b) Amnistia por razões de política geral. Por vezes a amnistia
é um instrumento político ou de luta política (Zagrebelski) quando dada aos partidários das forças políticas vencedoras, para as fortalecer, ou aos vencidos para os reconciliar com o Estado, ou aos insurrectos ou apenas adversários, por fraqueza, para os apaziguar, ou por razões de política externa (como a amnistia fixada em tratado de paz), falando-se, por vezes, neste contexto de razão de Estado (Rüping). No Estado de direito, a sua justificação racional será o reforço da ordem legítima da democracia ou a pacificação da sociedade e do Estado, criando condições para a aplicação normal da lei no futuro (amnistia pacificadora: Befriedigungsamnestie), para o que pode ser necessário virar a página do passado (Schlusstrichamnestie) ou a mobilização nacional para o trabalho colectivo ou para a guerra. Tais foram claramente o Decreto-Lei nº
173/74, que amnistiou os crimes políticos e infracções disciplinares dos opositores ao anterior regime, a Lei nº 74/79, que amnistiou as infracções criminais e disciplinares de natureza política cometidas depois de 25 de Abril de 1974, nomeadamente as conexionadas com os actos insurrecionais de 11 de Março e de 25 de Novembro de 1975, que tinham sido exceptuados de anteriores amnistias; em nome da necessidade de mobilização colectiva para a restauração nacional se decretam as amnistias dos Decretos-Leis nº 180/74, 259/74, 532/74,
89/75.
c) Amnistia correctiva do direito. Pode tratar-se de correcção das valorações básicas das normas de ilicitude em certo domínio, como na amnistia das infracções políticas contra o regime anti-democrático (Decreto-Lei nº 173/74). A correcção pode resultar de alterações de regimes jurídicos particulares, como a amnistia das infracções de caça nos 'aramados', depois da transformação destes em terreno livre (Decreto-Lei nº 560/74 de 31 de Outubro); assim, a alteração da concordata, permitindo a dissolução por divórcio dos casamentos católicos, foi invocada para amnistia das falsas declarações a entidades do registo civil (Decreto-Lei nº 388/75). A coerência com anteriores leis de amnistia fundamenta os Decretos-Leis nºs 89/75 de 28 de Fevereiro,
428/75 de 12 de Agosto, 230/76 de 2 de Abril, 78/77 de 2 de Março. Finalmente, a amnistia e o perdão geral por vezes visam antecipar futuras reformas legislativas enquanto estas não estão suficientemente preparadas. Assim, o perdão de metade das penas de prisão e de prisão maior pelo Decreto-Lei nº
259/74 foi considerado 'ao encontro das modernas tendências de direito penal', por essas penas serem, nos termos da nossa lei, 'de tão longa duração que perdem todo o efeito correctivo', embora se pretendesse também uma substancialíssima redução da população prisional', ao serviço da mobilização colectiva do momento, e quiçá de maior eficácia do sistema penal. Razões deste último tipo estão na base da amnistia pelo Decreto-Lei nº 720/74 de 18 de Dezembro, das infracções de trânsito que prevê, a qual embora devendo anteceder uma reforma do processo respectivo, visa possibilitar um maior rigor na fiscalização do trânsito. Este
último tipo de razões tem a ver não tanto com a correcção do direito como regra, mas com a correcção da sua falta de eficácia preventiva ou de efectividade.
d) Amnistia correctiva da jurisprudência ou da administração. Tal foi a amnistia, que sob o nome de anulação de penas, o Decreto-Lei nº 727/74 de 19 de Dezembro concedeu às infracções por que foram punidos militares em virtude da invasão do Estado Português da Índia pelas forças armadas da União Indiana em 1961 ou a amnistia dos desertores da guerra colonial (Decreto-Lei nº180/74). Assim também a amnistia do crime de especulação praticado por dirigentes ou gestores ou outros agentes de cooperativas agro-pecuárias em virtude de autorizações administrativas do Governo a praticarem preços do leite superiores aos legalmente fixados (Decreto-Lei nº 409/76 de 27 de Maio). Foi também esse decerto, um dos motivos do legislador da Lei nº 17/85, ao amnistiar as infracções praticadas nos meios de comunicação social previstos no artº 39º da Constituição.
Não é aqui possível, nem necessário para a decisão, discutir a constitucionalidade e, em particular, a conformidade com os princípios de igualdade de todos os tipos de amnistia atrás enunciados. Ela já foi afirmada, em princípio, pelo Acórdão nº 301/97, da 2ª Secção (não publicado). Apenas se acentuará que a sua legitimação ou justa causa se mede em vista da totalidade dos fins do Estado, legítimos num Estado de direito, e não se restringe aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado e ainda menos à prevenção dos factos do tipo de infracção visado pela norma amnistiante. Esses fins não se limitam à justiça, no sentido de realização do direito, valem também razões de conveniência pública e a razão de Estado (assim Schätzler, ob. cit., p. 127, art. cit., p. 1251 s., também a favor da constitucionalidade de amnistias celebrativas.). Isto releva nomeadamente para as amnistias magnânimas celebrativas, porque visam reforçar sentimentos de solidariedade social que contribuem para a eficácia preventiva do direito, ao mesmo título que as sanções. Não se justifica o repúdio radical por pretensa irracionalidade e contrariedade aos fins do direito penal, de parte da doutrina recente (von Preuschen, Geerds, Rüping, Zagrebelski). Mas o princípio de igualdade, tratando-se aqui da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são alargados - como são restringidos pela aplicação das sanções -, impede desigualdades de tratamento. O problema então não se põe relativamente à constitucionalidade do acto amnistiante total dada a sua causa, mas relativamente à configuração concreta de cada norma de amnistia. A delimitação dos factos amnistiados tem que ser feita segundo critérios susceptíveis de generalização - no sentido já exposto - em função de circunstâncias não arbitrárias, mas razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de direito.
15. No fundo, não é outra a prática constitucional em matéria de amnistia que se revela no direito comparado. São aqui paradigmáticas as jurisprudências constitucionais alemã e italiana, que põem em relevo a discricionariedade do legislador na escolha dos demarcadores do campo de aplicação da amnistia. Se o legislador pode demarcar esse campo em função de quaisquer fins admissíveis do Estado de direito, então também a sua discricionariedade é máxima: qualquer fim racional do Estado pode contribuir para a delimitação do âmbito da amnistia. Quantos mais forem os fins admissíveis, ou causas da amnistia, maior é a discricionariedade legislativa na escolha dos casos a que se aplica: são maneiras equivalentes de dizer o mesmo.
Assim, nas palavras do Tribunal Constitucional Federal alemão
(BVerfGE, 10, 234 [246]; cf. BVerfGE, 2, 213 [224-5]; 10, 340 [354]):
'Ao decretar uma lei de amnistia o legislador não está obrigado, do ponto de vista do artº 3º, secção 1ª, da Lei Fundamental, a conceder amnistia a todas as acções puníveis e em medida igual. Não só pode excluir inteiramente da lei de amnistia certos tipos de crime, como pode também sujeitar tipos determinados num regime especial. Só a ele cabe decidir em relação a que infracções se verifica em especial medida um interesse geral de pacificação. Também é uma questão da sua liberdade de conformação legislativa em que âmbito e a que crimes quer conceder amnistia. O Tribunal Constitucional Federal não pode controlar uma lei de amnistia quanto à questão de saber se as regras que nela se consagram são necessárias ou convenientes, e só pode, em vez disso, verificar se o legislador ultrapassou o extremo limite do largo campo de discricionariedade que se lhe abre.
E nessa lei de amnistia só há uma violação do princípio da igualdade quando a regulamentação que o legislador deu a certos factos típicos não está manifestamente orientada por princípios de justiça, ou seja, quando não se encontram para ela quaisquer considerações racionais, que derivem da natureza das coisas ou sejam de qualquer outro modo evidentes'.
De modo semelhante o Tribunal Constitucional italiano tem repetidamente dito (assim, por exemplo, sentenças nº 214 de 1975 - Giurisprudenza Costituzionale, 1975, p. 1635; nº 59 de 1980 - ibidem, 1980, p.
410 [413] -; nº 215 de 1991- ibidem, 1991, p. 1915 [1919] - ) que ' compete exclusivamente ao legislador a escolha do critério de discriminação entre crimes amnistiáveis e não amnistiáveis, e que as valorações correspondentes não podem ser sindicadas, excepto se se verificarem casos em que a falta da uniformidade normativa entre figuras homogéneas de crimes assuma dimensões tais que não possa considerar-se sustentada por nenhuma justificação razoável.'.
A jurisprudência deste Tribunal tem igualmente mantido que o princípio de igualdade em leis de amnistia e de perdão genérico 'só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis' (acórdão nº
42/95, já citado), devendo entender-se que tratamentos legais diferentes só traduzem uma diferenciação arbitrária quando não é possível encontrar um motivo razoável, decorrente da natureza das coisas, ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível para essa diferenciação (acórdão nº 152/95, já citado).
16. Não há, portanto, que limitar a admissibilidade da amnistia aos fins específicos da política criminal, reduzidos à clássica tríade dos fins das penas - prevenção geral, prevenção especial, retribuição - ou, a algumas das doutrinas ecléticas que combinam todas ou algumas delas, como a da defesa social. Tais fins são servidos de uma forma que se considerou em geral preferível na legislação penal não revogada pela lei de amnistia, pelo que esta só se poderia justificar em função dos mesmos fins pelos defeitos da lei penal ou da sua aplicação, nomeadamente perante modificações supervenientes, de carácter excepcional, das relações comunitárias ou da situação pessoal dos criminosos, para obviar a incorrecções legislativas ou a erros judiciários, como para propiciar condições favoráveis a modificações profundas da legislação de carácter penal (assim, Figueiredo Dias, ob. cit., § 1100). Só se admitiriam, assim, as amnistias correctivas da lei ou da jurisprudência, em sentido amplo, reprovando-se os casos nucleares da tradição histórica do instituto, as amnistias pacificadoras e comemorativas. Mesmo quando se tratasse de fins instrumentais de política criminal, da adequação dos meios disponíveis aos fins através da redução da população prisional ou da diminuição do trabalho que pesa sobre o sistema judicial, a sua legitimidade seria 'pelo menos duvidosa' (assim Figueiredo Dias, ob. cit., §1102). É claro que a instrumentalização da amnistia para obviar à carência de meios não se deduz dos fins das penas, mas é consequência de outros fins concorrentes do Estado, que disputam os mesmos meios. Mas numa concepção mais ampla de política criminal, que não se limita à consecução dos fins das penas a partir de uma prévia definição dos factos puníveis e da necessidade das penas, já a definição dos factos puníveis e a ponderação dos meios concorrentes de realizar os vários fins do Estado pertence ao cerne da própria política criminal, como parte integrante da política geral do Estado. Nesta ampla perspectiva, já a amnistia não se opõe ao sistema do direito penal que vem eventualmente corrigir, mas é um meio incluível na política criminal que modifica temporariamente a definição dos factos puníveis e das penas em função dos fins concorrentes do Estado, os quais já determinaram a própria definição temporalmente ilimitada das leis que prevêm os crimes amnistiados. Só que neste sentido todos os fins possíveis de um Estado de direito podem relevar, e não apenas os que supõem uma prévia definição dos factos puníveis, que são os fins das penas.
Nada disto impede que se critiquem os abusos da amnistia, quando usada como meio de sacrificar a política criminal a outros interesses do Estado, também legítimos mas menos dignos, ou de menos relevância constitucional. Só que tais opções não se assumem abertamente como fim, na verdade irracional, da amnistia, mas como fim subsidiário de uma amnistia justificada pelos seus fins tradicionais, como o comemorativo. E, na verdade, o sacrifício já se operou antes, através da recusa de meios orçamentais para a política criminal. Mas ainda então a amnistia e o perdão genérico se poderão justificar racionalmente como a política criminal possível, ou do mal menor, desistindo de punir os casos de mais duvidosa necessidade da pena, para assegurar o adequado tratamento penal quando a falta deste traria com certeza dano social no futuro ou alarme generalizado no presente.
F) O artigo 1º da Lei nº 9/96 perante o princípio da igualdade.
17. São duas as razões invocadas no processo legislativo da Lei nº 9/96 para justificar a amnistia. Segundo a primeira razão, trata-se de uma amnistia correctiva do direito. É-nos dito que a complexidade jurídica do caso das FP/25 tem tornado extremamente difícil a sua solução judicial, subsistindo o problema com desenvolvimentos que não prenunciam a possibilidade de uma solução de justiça em tempo razoável.
A amnistia da Lei nº 9/96 tem ainda, em segundo lugar, uma intenção pacificadora. Pretende-se com ela 'um voltar de página nas querelas políticas de edificação do nosso sistema político', voltar de página que 'a consolidação do regime democrático e o clima de estabilidade política e paz social dele decorrente de há muito aconselhariam'. O carácter pacificador é acentuado pelo apelo à 'generosidade que marcou o espírito do 25 de Abril em face do regime anterior' e bem assim 'à tolerância cívica que deve ser apanágio dos democratas'.
A legitimidade constitucional destas duas causas da amnistia não foi contestada explicitamente na decisão recorrida e foi demonstrada em abstracto na parte antecedente do acórdão. Tanto a pacificação da sociedade depois de um período de violência politicamente motivada como a correcção do direito são fins racionais do Estado de direito.
As contestações baseiam-se, assim, nas peculiaridades da aplicação destas causas de amnistia aos casos concretos abrangidos. Convém começar pela análise da causa pacificadora, por ser ela que pode explicar os vários aspectos da configuração da norma de amnistia sub judice, pelo que o fundamento correctivo se revelará como tendo apenas carácter de reforço justificativo, uma vez que não influencia decisivamente o conteúdo normativo.
As querelas políticas que a amnistia pretende pacificar e a que a nota justificativa se refere ocorreram sabidamente entre aqueles que a seguir
à revolução do 25 de Abril quiseram edificar a democracia pluralista e os que quiseram edificar um certo modelo de democracia socialista. Os membros da FP/25 terão entendido prosseguir este último objectivo através do terrorismo, que consideraram como continuação da luta armada revolucionária.
Poderá dizer-se que a doutrina em geral defendida foi implicitamente contestada na medida em que se negou, por ofensa ao princípio da igualdade, a possibilidade de amnistiar crimes de motivação política sem amnistiar os crimes simples correspondentes, menos gravemente punidos em geral. Ora não há amnistia pacificadora sem privilegiamento da motivação política, que
é, em geral, uma circunstância agravante. A contestação teria em abstracto fundamento se as circunstâncias temporárias que estão na base da amnistia pacificadora, ligadas ao rescaldo de um período de excepcional conflitualidade política, não pudessem razoavelmente justificar um tratamento diferenciado da circunstância da motivação política relativamente aos casos de inteira normalidade da vida política. Há que responder de novo que a diferenciação não é irrazoável, estando no espaço de liberdade de conformação do legislador dar mais peso às razões da diferenciação do que às que militam a favor do tratamento igual.
É certo que aqui há um tratamento diferenciado entre crimes que estão especialmente próximos por ofenderem o mesmo bem jurídico. Trata-se, por exemplo, na hipótese dos autos, de amnistiar um furto e dois crimes de roubo, relativamente a análogos crimes de furto e de roubo, praticados com essa motivação em outro período, e mesmo relativamente a crimes análogos do furto e do roubo sem essa motivação no mesmo período ou em outro qualquer. Este argumento foi invocado na decisão recorrida. A amnistia implica sempre uma excepção aos critérios gerais de merecimento penal dos factos que abrange, durante o período a que respeita. E não há razão para distinguir excepções ao merecimento penal relativo de crimes respeitantes a bens jurídicos diversos da excepção ao merecimento penal relativo de crimes que ofendem o mesmo bem jurídico. Este mesmo ponto foi também estabelecido em tese geral pelo Tribunal Constitucional italiano na sua sentença nº 215 de 1991, atrás citada (nº 15).
Deve, porém, notar-se que não há identidade de bens jurídicos entre os crimes de terrorismo que envolvam a prática de outros crimes e estes
últimos. É que o terrorismo não acrescenta apenas motivação política aos crimes praticados no quadro de uma organização terrorista, acrescenta o desvalor de outro crime, porque a simples participação numa organização terrorista é crime, que ofende bens jurídicos colectivos, como a paz pública, a vigência do Estado de direito, a soberania nacional. Os furtos, roubos, etc., praticados com terrorismo não são furtos, roubos, etc., qualificados pela motivação, são espécies do crime de terrorismo.
Ainda assim a razoabilidade da diferenciação sempre teria que ser negada se os crimes de terrorismo não fossem amnistiáveis. Os deputados recorrentes da admissibilidade do projecto da lei afirmaram-no, implicando que a gravidade do crime de terrorismo é tal que nunca é razoável amnistiá-lo, sejam quais forem as circunstâncias. Os exemplos históricos de amnistia, especialmente das amnistias pacificadoras depois de guerras, fazem duvidar que haja crimes absolutamente inamnistiáveis. Talvez o sejam os crimes de direito internacional público, como os de guerra de agressão e contra a humanidade, uma vez que o direito penal internacional desconhece o instituto da amnistia. Mas mesmo este ponto é questionável: não poderá estabelecer-se uma amnistia por tratado internacional? Certamente que pode para crimes de direito interno. Quanto aos crimes de direito internacional público não há precedente; é todavia, conhecido, que todos os Estados que participaram no Tribunal de Nuremberga estavam de acordo em indultar Hess, excepto a União Soviética. Tanto o indulto como a amnistia são formas de graça ou clemência. A Lei nº 9/96 fez uma opção na matéria. Nas circunstâncias a que se aplica considerou excluídos da amnistia devido à sua gravidade os crimes mais graves de homicídio (artigos 131º, 132º e
133º do Código Penal) e contra a integridade física (artigo 144º do Código Penal), quando ligados à actividade terrorista. É uma opção que é ditada pela qualidade dos bens jurídicos, acentuando os valores morais básicos da comunidade violados nos 'crimes de sangue', e não pela gravidade das penas, dado que a pena de homicídio privilegiado do artigo 133º é bastante inferior à do próprio crime de terrorismo. São opções que têm uma justificação razoável dentro da margem de liberdade que deve reconhecer-se ao legislador. Para usar as palavras da jurisprudência constitucional alemã sobre amnistia: 'se o legislador achou a solução mais adequada ao fim, mais racional ou mais justa, não é de apreciar pelo Tribunal Constitucional'(BverfGE 36, 174 [189], com mais referências).
18. Cumpre responder ao argumento de que a amnistia não é geral por visar pessoas determinadas, os membros das FP-25. Uma vez que a delimitação desta organização terrorista de outras organizações terrorristas do mesmo período se faria em função das convicções políticas e ideológicas dessas pessoas, haveria uma violação da proibição de discriminação por essa razão, constante do nº 2º do artigo 13º da Constituição.
Já atrás se mostrou que toda a amnistia se refere a uma classe fechada de casos passados, descritos através de conceitos gerais, não sendo aplicável a um número indeterminado de casos futuros.
Quanto à afirmada limitação aos membros das FP-25, ela foi expressamente negada pela maioria da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, em vista do conteúdo objectivo da Lei, tendo essa negação sido retomada pelos defensores dela na discussão parlamentar
(Diário da Assembleia da República, I Série, 203, 1996, pp. 1197 ss). A limitação não corresponde portanto à intenção da lei, que é determinante para julgamento da questão da conformidade com o princípio da igualdade, nem à intenção do legislador. É, aliás, normal que na votação das leis da amnistia se tenham em vista casos determinados de pessoas determinadas, sem prejuízo da definição através de conceitos gerais desses casos e dessas pessoas. Esta doutrina foi claramente afirmada pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão num caso em que se teve em vista historicamente um conjunto determinado de cerca de
40 pessoas, nomeadamente um certo jornalista Dr.Platow, seus colaboradores e editores e vários funcionários («grupo Platow») todos envolvidos na divulgação de informações económicas confidenciais, e os crimes de corrupção activa e passiva e violação de segredo pelos mesmos praticados (BverfGE, 10, 234
[243-245]).
Segundo esta jurisprudência alemã :
'Ocasião de normas especiais de amnistia são muitas vezes concretos casos individuais [...]. No exame da questão de saber se uma norma é uma lei individual ou uma regra jurídica geral há que averiguar, em primeiro lugar, o seu conteúdo através da interpretação. [...] para a interpretação de um preceito
é decisiva a vontade objectivada do legislador, como se depreende do teor das palavras da disposição legal e do contexto significativo em que se insere. A representação subjectiva dos órgãos que participaram no processo legislativo ou dos seus membros individuais não é decisiva. [...] o âmbito de aplicação do § 8º da Lei de Amnistia não se aplica de modo nenhum a amnistiar apenas casos do
'grupo Platow'; antes pelo contrário, a norma de amnistia em exame é pelo seu conteúdo capaz de abranger muitas outras indeterminadas situações de facto.
Se, por conseguinte, não existe objectivamente uma lei individual, é irrelevante se o 'grupo Platow' teve para o legislador uma importância tão grande que outros casos, em especial casos ainda desconhecidos mas que se admitem existirem, no essencial não pesarem na decisão. [...] Se uma norma deve ser tratada, segundo o seu conteúdo objectivo e os seus possíveis efeitos, como proposição jurídica geral, não se torna numa lei individual disfarçada lá porque os órgãos que participaram no processo legislativo tiveram a intenção de abranger predominantemente certos casos particulares, ou se para a sua decisão foi decisiva a representação de que um determinado número de casos é de qualquer modo abrangido pelo regime legal' (ibidem).
A melhor prova de que o sentido objectivo da lei pode abranger casos que nunca passaram pela cabeça ao legislador histórico é a circunstância de ter havido pelo menos um crime de terrorismo sem motivação política praticado a 11 de Março 1990, portanto dentro do período abrangido pela Lei nº 9/96 e que, não obstante tivesse sido objecto do acórdão de 16 de Janeiro de 1992 do Supremo Tribunal de Justiça (Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, tomo I, p. 15 e B.M.J. nº 413, p. 206), nunca foi referido e provavelmente não foi representado por nenhum dos intervenientes na preparação da lei.
Não havendo restrição aos membros das FP-25 também não há discriminação pelas convicções políticas ou ideológicas dos mesmos.
19. Este ponto é reforçado pelo recorte temporal e espacial dos casos abrangidos. A amnistia abrange infracções penais e disciplinares desde 27 de Julho de 1976 até 21 de Junho de 1991, com exclusão daquelas cuja punição resulta da aplicação do artigo 5º, nº 1, alínea a) do Código Penal. A data de 27 de Julho é a do primeiro dia em que a Assembleia da República 'exerceu a plenitude das suas atribuições e competências' (para usar palavras do deputado Carlos de Brito na sessão do mesmo dia: Diário da Assembleia da República de
28.7.1976, p. 298) e aprovou a primeira lei. A escolha do terminus a quo foi ainda determinada pela intenção de abranger todos os casos não abrangidos por amnistias anteriores ou não prescritos. Houve a preocupação de ouvir para o efeito a Procuradoria-Geral da República e a discussão revela que não se conhecia nenhum caso passado do género que não ficasse abrangido por amnistia ou prescrição.
A data de 21 de Junho de 1991 é a do dia seguinte aquele em que foi rejeitada uma proposta de alteração ao projecto de lei nº 779/V, de amnistia por ocasião da visita do Papa, que visava o mesmo conjunto de crimes abrangidos agora pela Lei nº 9/96 (Diário da Assembleia da República de 20.6.1991, p.
3335).
A exclusão dos crimes praticados fora do território nacional, a que, por força do artigo 5º, nº 1, alínea a) do Código Penal, seja aplicável a lei portuguesa, foi justificada pelos proponentes do Projecto de Lei pela
'consideração de que, na amnistia não deviam caber quaisquer actividades deste tipo cuja acção se realizasse fora do território nacional, por razões que têm a ver com a própria filosofia com que nesses territórios onde eventualmente haja casos desses, as autoridades os estejam a tratar. Consideramos politicamente a questão que tem a ver com a nossa vida política, o nosso território. Não queremos desta forma interferir no que toca ou tocou aos portugueses, mas que não tem a ver com a nossa vida política nem com o nosso território' (intervenção do deputado João Amaral, Diário da Assembleia da República, I Série, de
2.3.1996, p. 1216).
Nestes termos, a delimitação temporal tem a ver com razões comemorativas ligadas ao 25 de Abril, à renovação da vida parlamentar, à competência amnistiante da Assembleia da República e ainda à preocupação de abranger casos passados não cobertos por anterior amnistia ou não prescritos. E a delimitação espacial está ligada ao princípio da não intervenção nos assuntos internos de países estrangeiros. São justificações razoáveis, que não têm ligação lógica necessária com as FP-25 nem com a respectiva ideologia.
20. Passando ao fundamento da correcção do direito, a nota justificativa do projecto de lei não explicita qual a complexidade jurídica nem quais os desenvolvimentos a que se refere porque os supõe conhecidos dos deputados, mas não é difícil reconstituí-los, por serem de conhecimento público e deste Tribunal, em particular. Com efeito, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 com a sobreposição do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934 (Acórdão nº 401/91, Acórdãos cit, 20º vol., p. 153 e seguintes) e julgou igualmente inconstitucional esse artigo sem a sobreposição do referido Assento em várias ocasiões ( vejam-se, por todos, os Acórdãos nºs 190/94 e 430/94, publicados no Diário da República, II Série, de 12 de Dezembro de 1995 e de 10 de Janeiro de 1995, respectivamente). Ora este artigo foi aplicado em vários processos pendentes por crimes imputados a membros da organização das FP-25, pelo que a declaração de inconstitucionalidade ou o julgamento de inconstitucionalidade obrigou à reforma de algumas das sentenças nos processos pendentes onde foi aplicado. As sentenças reformadas recusaram-se, porém, a tirar a consequência, geralmente pretendida pelos arguidos, da repetição do julgamento da 1ª instância, em face da impossibilidade prática em alguns casos, e dos graves inconvenientes para justiça material em todos, dessa repetição, tanto mais que o Tribunal Constitucional expressamente disse que tal consequência não era necessária. As soluções alternativamente encontradas têm sido contestadas através de sucessivos recursos com grave e inevitável demora do termo dos processos (vejam-se nomeadamente os acórdãos nºs
219//89, in Acórdãos, 13º vol., t. II, p. 717ss e nº 184/96, in Diário da República, II Série, de 21 de Maio de 1996). Ainda que esse termo deva inevitavelmente chegar, se não chegou já em alguns casos, tal não garante uma plena satisfação com a justiça material das sentenças. A incorrecção do direito implica então, se não a incorrecção da jurisprudência, pelo menos a insatisfação com os resultados do seu exercício. Acresce que, devido a ter-se atingido o tempo máximo de prisão preventiva, os arguidos foram sendo libertados, em liberdade se mantendo durante anos sem praticar novos crimes, o que merece maior ponderação na medida da pena, mas não poderia ter sido ponderado nas sentenças que primitivamente os condenaram.
Decidida positivamente a questão da constitucionalidade da amnistia por uma causa, a de pacificação, nada impede que outros fundamentos da amnistia, nomeadamente o de correcção do direito, venham reforçar o primeiro. Têm carácter subsidiário se não contribuem para delimitar os casos abrangidos. Não afecta então o princípio da igualdade se a lógica da causa subsidiária levaria a uma diferente definição dos casos
abrangidos. Não é portanto relevante que a lógica da correcção do direito, que a amnistia também opera, considerada isoladamente, devesse levar a incluir todos os casos de aplicação do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929. Esta dedução, mesmo irrelevante na hipótese, dado o carácter reforçativo e não configurativo do fundamento correctivo do direito, não é contudo logicamente necessária. Com efeito, dada a multiplicidade de causas susceptíveis de justificar uma amnistia, nem todos os casos de aplicação do artigo 665º do Código de 1929 têm a mesma relevância desse ponto de vista. Não há assim qualquer violação do princípio da igualdade.
III DECISÃO
Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada em conformidade com o juízo sobre a questão de constitucionalidade ora proferido. Lisboa, 25 de Junho de 1997 José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Maria da Assunção Esteves Fernando Alves Correia Bravo Serra Antero Alves Monteiro Dinis Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa
(tem voto de conformidade dos Conselheiros Armindo Ribeiro Mendes, Vítor Nunes de Almeida e Luís Nunes de Almeida, que não assinam por não
se encontrarem presentes) José de Sousa e Brito