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Processo nº 656/96
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No tribunal judicial da comarca de Guimarães, A. e mulher B. intentaram acção condenatória sob a forma de processo ordinário, contra C. peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de 9.603.645$00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pelo Réu com o homicídio por ele praticado na pessoa de D., filha dos autores.
O senhor Juiz da comarca julgou no despacho saneador o tribunal incompetente em razão da matéria e absolveu o Réu da instância.
Fundamentou assim a decisão:
'Nos termos do disposto no artigo 71º do C.P.C. [queria dizer-se Código de Processo Penal], o pedido de indemnização cível fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal cível, nos casos previstos na lei. É o chamado sistema da interdependência ou da adesão perfilhado pelo ordenamento jurídico português consubstanciado na obrigatoriedade de juntar a acção cível à acção penal, implicando, que o juiz penal conheça, além da acção penal, também a acção cível.
Entretanto dispõe o artigo 72º do mesmo código que o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, nos casos nele elencados.
No caso sub judice, o pedido cível tem como causa de pedir um facto qualificado pela lei como crime.
Assim, a dedução de tal pedido deverá obedecer ao princípio da adesão supra explicitado, a que alude o artigo 71º do C.P.C. [novamente se pretendia aludir ao Código de Processo Penal], só podendo o mesmo ser formulado, em separado, perante o tribunal cível caso se verificassem os condicionalismos taxativamente contidos no artigo 71º daquele mesmo código.
No caso vertente, não se vislumbra a subsunção dos autos a nenhum dos casos tipicamente definidos naquele último normativo legal, nem tão pouco às alíneas e) ou g) - liquidação em execução de sentença e recurso para os tribunais cíveis ou a possibilidade de intervenção cível do tribunal colectivo em função do valor do pedido, porquanto o processo penal correu perante tribunal colectivo conforme se infere da documentação junta aos autos.
Assim sendo, este tribunal é incompetente em razão da matéria.'
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2 - Do assim decidido levaram os Autores recurso ao Tribunal da Relação do Porto, alegando inter alia, que 'o prazo estabelecido no nº 2 do artigo 77º do C.P.P. e o artigo 71º 'princípio da adesão obrigatória para deduzir o pedido de indemnização crime' são inconstitucionais face aos artigos
13º, 20º e 207º da C.R.P.'.
Por acórdão de 4 de Março de 1996, foi negado provimento ao recurso e confirmada a decisão impugnada.
Ainda inconformados, recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça, reiterando o sentido das alegações apresentadas na 2ª instância e fazendo de novo apelo à questão da constitucionalidade das normas dos artigos
71º e 77º, nº 2 do Código de Processo Penal.
Aquele Alto Tribunal, por acórdão de 18 de Junho de 1996, negou provimento ao agravo e confirmou a decisão recorrida.
Para tanto, no que aqui importa reter, ateve-se à fundamentação seguinte:
'O artigo 71º C.P. Penal consagra o princípio da adesão: a acção cível de indemnização, fundada na prática de factos que constituam crime deve ser deduzida no processo penal.
O legislador ao determinar tal princípio procurou, numa primeira linha, proteger a vítima.
Protecção traduzida em fornecer-lhe meio processual mais económico e mais rápido para defender os seus interesses e não menos importante poder beneficiar de todos os elementos de prova constantes do processo crime.
Mas o interesse geral também ditou a sua lei.
Com efeito a verdade material é melhor e mais eficazmente atingida e o perigo de julgados contraditórios entre o civil e o penal é banido.
Na sua esteira tal pedido indemnizatório só poderá, pois, ser julgado em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.
E o art. 72º, logo a seguir, contempla os casos em que ele pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil.
É a consagração expressa e taxativa do princípio da opção.
Tais preceitos disciplinam exercícios do direito de indemnizar, fundamentando-se nas assinaladas vantagens.
Não se restringem, nem ferem os princípios da igualdade e de acesso à justiça, consagrados na C.R.P. - arts. 13º, 20º e 207º.
Representam a concepção civilista de indemnização arbitrada em processo penal que nada tem, pois, a ver com os efeitos da condenação - art. 77º C.P. Penal.
O seja, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil quantitativamente e nos seus pressupostos.
Só que o lesado terá de deduzir - art. 74º - o seu pedido indemnizatório atempadamente para não ferir a posição jurídica dos responsáveis meramente civis.
E está provado que tal não aconteceu - doc. fls. 55/v e 56 - porque não triunfou a tese do justo impedimento - art. 146º C.P.C. - do seu mandatário, relativo à tardia apresentação do pedido cível'.
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3 - Sob invocação do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, trouxeram então os autos em recurso ao Tribunal Constitucional, informando depois, na sequência da notificação ordenada pelo relator ao abrigo do artigo 75º-A, nºs 1, 2 e 5 do mesmo diploma, que pretendiam ver apreciadas pela jurisdição constitucional as normas constantes dos artigos
71º, 72º, alínea d) e 77º, nº 2 do Código de Processo Penal.
Nas alegações entretanto oferecidas concluíram assim:
'1 - Os A.A. ficam privados de um direito que a norma do artº 77º, nº 2 do C.P.P. estatuiu ao obrigar ao conhecimento do despacho que notifica o arguido do dia para o julgamento.
2 - Por isso, ao estatuir-se que o pedido cível tem de ser efectuado nos cinco dias após a notificação ao arguido do despacho que ordena o julgamento, está a criar-se uma gritante desigualdade entre o ofendido e o arguido.
3 - Este que foi o agente do crime e provoca graves lesões no ofendido, está numa situação passiva e tudo está a correr a seu favor.
4 - Porque basta que o ofendido não cumpra o prazo exigível para a dedução do pedido cível para que o direito à indemnização se perca.
5 - A aplicação do artº 77 nº 2 conjugado com o artº 103 nº 1 do C.P.P. é uma flagrante violação do artº 13 da C.R.P., pelo que o mesmo deve ser julgado inconstitucional.
6 - Retira ao ofendido a igualdade jurídica e processual, e beneficiando o arguido.
7 - A decisão é inconstitucional por violar os mais elementares princípios de igualdade e acesso à justiça como se prevê nos artºs 13, 18, 20 e
207 da C.R.P..
8 - O nº 2 do artº 77 como prazo final representa uma limitação desproporcionada ao direito de acesso aos tribunais, em termos de gerar inconstitucionalidade por violação do disposto no artº 20, nº 1 da Constituição.
9 - A decisão recorrida, não conhecendo do pedido no que concerne
'extensão integral de danos' al. d) do artº 72 do C.P.P., teria de reconhecer em alternativa esta alínea e o artº 71 como inconstitucional por violar o artº 13,
18, 20 e 207 da C.R.P..'
O recorrido, em contralegação, pronunciou-se no sentido de as normas questionadas não sofrerem de qualquer inconstitucionalidade, devendo por isso ser confirmado o acórdão impugnado.
Correram os vistos legais, cabendo agora apreciar e decidir.
Liminarmente importa porém, dados os termos pouco precisos com que o tema da inconstitucionalidade foi sendo suscitada pelos recorrentes, delimitar com o necessário rigor qual o objecto do pedido.
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4 - Em conformidade com o disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b) da Constituição e 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, cabe recurso para este Tribunal das decisões dos tribunais que apliquem normas cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
A admissibilidade deste tipo de recurso - aquele a que os recorrentes lançaram mão - acha-se condicionada, além do mais, pela confluência de dois pressupostos essenciais: a) a inconstitucionalidade da norma deverá ter sido suscitada durante o processo pelo próprio recorrente; b) tal norma haverá de ser utilizada na decisão impugnada como seu suporte normativo.
O legislador constituinte elegeu como conceito identificador do objecto típico da actividade do Tribunal Constitucional em matéria de fiscalização da constitucionalidade (cfr. os artigos 278º, 280º e 281º da Constituição) o conceito de norma jurídica pelo que apenas estas (e não já as decisões judiciais em si mesmas consideradas), podem nesta sede, na qual se incluem os processos de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser objecto de sindicância.
No sentido do preenchimento do primeiro daqueles pressupostos, importa que o recorrente suscite a questão de constitucionalidade de uma dada norma de modo directo e perceptível, indicando a disposição legal ou a parte dela que se
suspeita de violação constitucional, ou, no caso de se questionar apenas determinada interpretação que dela haja sido feita, enuncie qual o concreto sentido ou dimensão normativa que se tem por colidente com o texto constitucional.
Mas a apreciação das questões de constitucionalidade está condicionada ainda por um outro pressuposto, qual seja a efectiva aplicação da norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Se determinada norma jurídica não for aplicável ao caso submetido a julgamento, o tribunal da causa não deve pronunciar-se sobre a sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade, pois que a competência dos tribunais comuns (expressão aqui usada para designar todos os outros tribunais, com excepção do Tribunal Constitucional) no acesso directo à Constituição é uma competência vinculada, no sentido de apenas compreender aquelas questões de constitucionalidade que tenham por objecto as normas jurídicas susceptíveis de aplicação ao caso submetido a julgamento.
Quando o tribunal se pronunciar, fora deste contexto, sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma norma, acaba por proferir uma decisão sem interesse para o julgamento da causa, não podendo rigorosamente falar-se em aplicação ou desaplicação normativa susceptível de abrir a via do recurso de constitucionalidade.
Com efeito, só no caso de a norma desaplicada, com fundamento em inconstitucionalidade (ou aplicada, não obstante a suspeita de inconstitucionalidade que sobre ela se suscitou), ser relevante para a decisão da causa (isto é, só quando tal norma for aplicável ao julgamento do caso decidido pelo tribunal recorrido) é que se justifica a intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso. Só em tal caso é que a decisão que o Tribunal Constitucional vier a proferir sobre a questão de constitucionalidade apreciada pelo tribunal recorrido, é susceptível de se projectar utilmente sobre a decisão da questão de fundo ou seja, sobre a decisão da causa julgada por este último tribunal (cfr. neste sentido, por todos, o acórdão nº 169/92, Diário da República, II série, de 18 de Setembro de 1992).
Ora, à luz dos princípios assim sumariamente expostos - princípios pacifica e uniformemente consagrados na jurisprudência constitucional
- é manifesto que o objecto do recurso não pode ser integrado pelas normas dos artigos 72º, nº1, alínea d) e 77º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Na verdade, a inconstitucionalidade daquela primeira norma não chegou a ser suscitada durante o processo, de modo eficaz e operativo, não podendo as referências que lhe são feitas nas alegações dos recursos para o Tribunal da Relação e para o Supremo Tribunal de Justiça ser entendidas como uma verdadeira e própria suscitação de inconstitucionalidade.
No tocante à norma do artigo 77º, nº 2 que rege sobre o prazo de formulação do pedido deduzido no processo penal, de indemnização civil fundado na prática de um crime, quando o recurso não seja apresentado pelo Ministério Público ou pelo assistente, há-de dizer-se não ter sido ela convocada
- nem aliás poderia sê-lo - como suporte do acórdão recorrido, porquanto, como da sua própria estatuição se extrai, respeita em exclusivo ao tempo e ao modo de formulação do pedido na acção penal, aí se esgotando o âmbito e alcance da sua incidência normativa.
Embora perfunctoriamente, sempre se dirá que este Tribunal, no acórdão nº 611/94, Diário da República, II Série, de 5 de Janeiro de 1995, não julgou tal norma inconstitucional, nomeadamente por colisão com os artigos 13º e
20º da Constituição agora invocados pelos recorrentes.
O âmbito do recurso e o consequente juízo de sindicância constitucional fica assim circunscrito à norma do artigo 71º do Código de Processo Penal.
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II - A fundamentação
1 - O cometimento de uma infracção criminal é potenciador de uma dupla reacção dirigida contra o seu autor: uma acção penal, proposta ao julgamento do direito criminal e à imposição, em caso de condenação, das medidas punitivas adequadas; uma acção cível, para o reconhecimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais a que a infracção tenha dado causa.
Sendo irrecusável a existência de conexão entre as duas acções desde logo imposta pela unidade de causa - ambas se originam em uma e mesma infracção - o certo é que não se confundem, podendo mesmo considerar-se, jurídico-intencionalmente distintas.
Segundo o entendimento de Figueiredo Dias, 'Sobre a reparação de perdas e danos arbitrada em processo penal' estudo in memoriam do Prof. Beleza dos Santos, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, suplemento ao vol. XVI, 1996, pp. 88 e ss., as soluções legislativas típicas relativas à conexão processual entre as duas acções estão na base de três grandes sistemas:
'a) O sistema que podemos apelidar da confusão total das acções penal e civil, e que logicamente poderia justificar-se através da consideração da identidade de causa material das duas acções, descansa na ideia de que todo o processo, penal ou civil, nada mais traduz que uma oposição de interesses entre uma vítima e um possível culpado, esgotando-se numa queixa de um facto ilícito e no respectivo pedido de reparação ao autor dele. Corresponde, assim, a uma fase da evolução em que se confunde ainda o direito penal com o civil e a uma concepção do processo penal onde não está presente o interesse da sociedade na punição do culpado mas apenas o interesse da vítima em obter vingança e reparação - indiciando, em suma, um estádio primitivo das legislações há séculos já ultrapassado. Não merece, por isso, que nele nos detenhamos.
b) O sistema da absoluta independência ou separação das acções penal e civil, o inverso do anterior, pode logicamente deduzir-se das marcantes diferenças que entre elas intercedem. Assim - costuma acentuar-se -, enquanto a acção civil tem como causa jurídica um dano; pertence ao lesado quer no seu se quer no seu como; e pode ser exercida não só contra o autor do dano mas contra os seus herdeiros ou, de maneira geral, contra todas as pessoas que a lei declare civilmente responsáveis - inversamente a acção penal deriva, juridicamente, de um crime; tende à aplicação de uma pena; pertence à sociedade, que a exerce ela própria (acção popular) ou delega o seu exercício em funcionários especializados (Ministério Público); e, finalmente, só pode ser exercida contra pessoas singulares, tidas como autoras ou comparticipantes na infracção. Estas, pois, as considerações de princípio que conduzem alguns sistemas a 'purificar' o processo penal de todas as questões relativas à reparação pecuniária do dano produzido pelo facto criminoso e, por consequência, a não prestar atenção directa, naquele processo, à pessoa do lesado.
c) Finalmente o sistema da interdependência das duas acções, sendo susceptível de um sem número de 'nuances' e detalhes de regulamentação, tem como traço comum e essencial a possibilidade - ou mesmo a obrigatoriedade - de juntar a acção civil à acção penal, permitindo que a jurisdição penal se pronuncie, ao menos em certa medida, sobre o objecto da acção civil. A razão de ser de tal sistema estará na 'natureza tendencialmente absorvente do facto que dá causa às duas acções', em atenção aos 'efeitos úteis que, do ponto de vista penal, se ligam à indemnização civil'. Daí que se fale também, nestes casos, em um processo de adesão da acção civil à acção penal.
O sistema da absoluta interdependência pressupõe uma posição definida quanto à autonomia material e processual das duas acções, tendo sido adoptado nas legislações inglesa, americana e brasileira - está aí excluído do processo penal qualquer pedido ou intenção de indemnização particular, a qual só pode ser objecto de uma acção cível em tudo (jurisdicional e processualmente) autónoma da acção penal.
O sistema da interdependência é o seguido pela maioria dos ordenamentos jurídicos, podendo porém neles distinguir-se entre aqueles que prevêm um regime de alternatividade ou de opção - o lesado, livremente, escolhe ou a jurisdição civil ou a jurisdição penal, para apreciar o seu pedido de reparação, daí resultando, compreensivelmente, a regra 'una via electa non datur recursus ad alteram', como é o caso da Itália, França e Alemanha, ou um regime de dependência, pelo menos em princípio, da acção civil relativamente à acção penal (cfr. sobre esta matéria, para além de Figueiredo Dias, ob. loc. cit., e Direito Penal, I vol., Coimbra, 1974, pp. 540 e ss., Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, Coimbra 1968, pp. 75 e ss., Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. I, Lisboa, 1986, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 7ª ed., Coimbra, 1996, pp. 168 e ss. e Jorge Ribeiro de Faria, Indemnização por perdas e danos arbitrada em processo penal - o chamado processo de adesão, Coimbra, 1978, pp. 59 e ss.).
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2 - O Código de Processo Penal de 1929, consagrava um sistema de interdependência (ou da adesão), enunciando no artigo 29º que 'o pedido de indemnização por perdas e danos resultantes de um facto punível, por que sejam responsáveis os seus agentes, deve fazer-se no processo em que ocorreu a acção penal e só poderá ser feito separadamente em acção intentada nos tribunais civis nos casos previstos neste Código'.
Os casos de válida petição separada a que este diploma fazia referência achavam-se previstos no corpo do artigo 30º e § 2º e no artigo 33º.
Este sistema conhecia uma 'adesão mais funda' quando o pedido cível era formulado nos termos do artigo 67º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 39 673, de 20 de Maio de 1954, vindo também a ser acentuada na sequência da publicação do Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro, cujo artigo
12º prescrevia que 'nos casos de absolvição da acusação-crime, o juiz condenará o réu em indemnização civil, desde que fique provado o ilícito desta natureza ou a responsabilidade fundada no risco'.
Mas, e paralelamente, no artigo 34º do mesmo código previa-se que o juiz, 'no caso de condenação arbitrará aos ofendidos uma quantia como reparação por perdas e danos, ainda que lhe não tenha sido requerida', instituindo assim, uma indemnização atribuída a título oficioso como mera decorrência da condenação penal.
Não existia consenso doutrinal relativamente à natureza da indemnização assim arbitrada em processo penal, pois que, enquanto para alguns autores tal arbitramento deveria ser considerado como uma decisão em causa cível revestindo a natureza de indemnização civil de perdas e danos (cfr. Vaz Serra,
'Tribunal competente para apreciação da responsabilidade civil conexa com a criminal - Valor, no juízo civil, do caso julgado criminal. Garantias da indemnização', Boletim do Ministério da Justiça, nº 91, pp. 196 e ss., Gomes da Silva O Dever de prestar e o dever de indemnizar, 1949, pp. 109 e ss., e Pereira Coelho, 'Culpa do lesante e extensão da reparação', Ano VI, 1950-1951, Revista de Direito e Estudos Sociais, pp. 84 e ss.), para outros autores (cfr. Figueiredo Dias, Sobre a reparação de perdas e danos arbitrada em processo penal, cit., e Castanheira Neves, ob. cit., pp. 192 e ss.) a reparação civil arbitrada no processo penal assumia uma específica natureza penal.
Este último entendimento era perfilhado pela jurisprudência unânime do Supremo Tribunal de Justiça (cfr. por todos, o Acórdão de 17 Abril de
1974, Boletim do Ministério da Justiça, nº 236, pp. 88 e ss.).
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3 - O Código de Processo Penal em vigor, aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, na decorrência da respectiva autorização parlamentar [Lei nº 43/86, de 26 de Setembro, artigo 2º, nº 2, alíneas 14), 15) e 16)], por influxo da doutrina que vinha sendo defendido acerca desta matéria pelo Prof. Figueiredo Dias, consagrou, como regra, um regime de adesão obrigatória, suprimindo o arbitramento oficioso de indemnização aos ofendidos a que se reportava o artigo 34º do Código de 1929.
Com efeito, na Parte Primeira, Livro I (Dos sujeitos do processo), Título V (Das partes civis), estabelece-se a disciplina do processamento do pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime, pedido esse que, salvo situações excepcionais ali elencadas, há-de ser deduzido no processo penal respectivo.
Definindo a regra geral da adesão obrigatória o artigo 71º do Código de Processo Penal - norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelos recorrentes - dispõe assim:
Artigo 71º
(Princípio da adesão)
O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.
As excepções ao princípio da adesão obrigatória acham-se especificadas no artigo 72º, nº 1, podendo o pedido de indemnização civil ser deduzido em separado, perante o tribunal civil quando:
a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo,
b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou quando o procedimento se tiver extinguido antes de a sentença transitar em julgado;
c) O procedimento depender de queixa ou acusação particular;
d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão;
e) A sentença penal não se tiver pronunciado sobre o pedido de indemnização civil, nos termos do artigo 82º, nº 2; [o tribunal oficiosamente ou a requerimento, remete as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal].
f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas e o arguido for chamado à demanda;
g) O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal colectivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular;
h) O processo penal correr perante tribunal militar ou sob a forma sumária ou sumaríssima.
Apresentando-se a obrigatoriedade de junção da acção civil à acção penal como regra geral e comportando este princípio gravosas consequências para os lesados na eventualidade de aquela não vir a ser actuada, instituiu-se no artigo 75º, como sua salvaguarda, um dever de informação em termos de 'no primeiro acto em que intervier no processo penal pessoa que se saiba ter legitimidade para deduzir pedido de indemnização civil, deva ela ser informada pela autoridade judiciária da possibilidade de o fazer valer no processo penal e das formalidades a observar'.
Deste modo, a autoridade judiciária titular do dever de informação - juiz, juiz de instrução ou Ministério Público - que presidir ao primeiro acto do processo penal em que intervenham pessoas com legitimidade para deduzir o pedido de indemnização civil, há-de esclarece-las sobre a possibilidade de exercitarem esse direito bem como sobre as formalidades que para tanto deverão observar, cabendo-lhes a partir de então um ónus de diligência dirigido à efectiva concretização do pedido.
O pedido de indemnização é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente.
E, como decorre do artigo 76º, compete ao Ministério Público formular o pedido de indemnização relativamente a lesado que lho requeira.
Todavia, quando o lesado se faça representar por advogado cessa a intervenção do Ministério Público e implica de sua parte a aceitação dos actos processuais por aquele praticados.
E, a formulação de tal pedido - nos casos em que não é deduzido na acusação pelo Ministério Público ou pelo assistente - não se acha circunscrita ao prazo de 5 dias referido no artigo 77º, nº 2, pois que para tanto o lesado dispõe de um dilatado espaço temporal, cujo termo se encerra com o esgotamento do prazo previsto naquele preceito.
Com efeito, pode dizer-se, acompanhando o acórdão nº 611//96, cit., 'que o lesado dispõe de um prazo que se inicia logo com a apresentação da queixa e termina no 5º dia posterior aquele em que o arguido seja notificado do despacho de pronúncia, apresentando-se assim o prazo de cinco dias como o encerramento de um outro prazo já em decurso, mais vasto e muito antes iniciado'.
Com a instituição do regime de adesão obrigatória cujas linhas gerais foram sumariamente expostas (cfr. ainda os artigos 82º e 377º do Código que se vem citando) deixaram de vigorar o artigo 67º do Código da Estrada e o Decreto-Lei nº 605/75, revogados que foram pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº
78//87.
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4 - Será que a norma do artigo 71º do Código de Processo Penal, autonomamente considerada e na sua projecção no contexto do regime em que se desenvolve o princípio de adesão ali consagrado, atenta contra os artigos 13º,
18º, 20º e 207º da Constituição, invocados na alegação dos recorrentes?
Destes preceitos, o único cuja convocação se tem por pertinente
é o do artigo 20º, não constituindo os demais, manifestamente, parâmetro de aferimento da legitimidade constitucional da disposição sob sindicância.
E, no tocante àquele normativo, que consagra o acesso ao direito e aos tribunais, tem-se por seguro que a regra da adesão obrigatória contida no artigo 71º não sofre de qualquer vício de inconstitucionalidade.
Como é sabido, o direito de acesso aos tribunais inclui, desde logo, no seu âmbito normativo, o direito de acção, isto é, o direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional, solicitando a abertura de um processo com o consequente dever (direito ao processo) do mesmo órgão de sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada.
Mas, para além do direito de acção, que se materializa através do processo, compreendem-se, no direito de acesso aos tribunais, nomeadamente:
(a) o direito a prazos razoáveis de acção ou de recurso; (b) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas; (c) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas;
(d) o direito a um processo de execução, ou seja, o direito a que, através do
órgão jurisdicional se desenvolva e efective toda a actividade dirigida à execução da sentença proferida pelo tribunal.
Há-de ainda assinalar-se como parte daquele conteúdo conceitual
'a proibição da `indefesa' que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhes dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses' (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pp. 163 e 164 e Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, pp.
82 e 83).
Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, caracterizando o acórdão nº 86/88, Diário da República, II série, de 22 de Agosto de 1988, o direito de acesso aos tribunais como sendo 'entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 364)'.
À luz do sentido genérico assim atribuído ao direito fundamental de acesso aos tribunais, que leva implicada a proibição da indefesa, pode afirmar-se que a norma do artigo 71º ao consagrar o princípio da adesão obrigatória da acção civil à acção penal, não se traduz em privação ou limitação daquele direito e, nomeadamente, do direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar, no que à questão de constitucionalidade respeita, o acórdão recorrido.
Lisboa, 25 de Junho de 1997 Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa