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Procº nº 665/93 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam em Plenário do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. Um grupo de deputados do Partido Socialista à Assembleia Legislativa Regional dos Açores requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea g) do nº 2 do artigo 281º da Constituição, a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, por violação do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (EPARAA):
- do Decreto-Lei nº 336/90, de 30 de Outubro;
- do artigo 14º da Proposta de Lei nº 78/VI (Orçamento de Estado Suplementar para 1993), aprovada pela Assembleia da República;
- e do artigo 54º da Proposta de Lei nº 80/VI do Governo (Orçamento de Estado para 1994).
2. Nos termos do artigo 52º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional
(Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), foram os autos levados à conferência, para efeito de este Tribunal decidir sobre a admissibilidade do pedido. Foi, então, tirado o Acórdão nº 809/93 (inédito), no qual o Tribunal Constitucional decidiu
'não admitir o pedido de declaração de ilegalidade do artigo 14º da Proposta de Lei nº 78/VI, aprovada pela Assembleia da República, e do artigo 54º da Proposta de Lei nº 80/VI do Governo, formulado pelos deputados à Assembleia Regional dos Açores que subscrevem o requerimento inicial', uma vez que, estando em causa a
'fiscalização 'sucessiva' da legalidade, há-de a mesma incidir necessariamente sobre normas juridicamente acabadas - isto é, relativamente às quais se cumpriram já todos os requisitos formais necessários à sua conversão em proposições jurídico-vinculativas - e não sobre simples 'projectos' ou
'propostas' ou mesmo textos normativos já aprovados pelo órgão para tanto competente, mas, de qualquer modo, pendentes ainda de trâmites ulteriores do processo de formação que devem percorrer'.
Admitido o presente pedido de declaração de ilegalidade, nos termos daquele aresto, foram os requerentes convidados, de harmonia com o disposto no artigo 51º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, a 'esclarecerem se o seu pedido, na parte em que pode ser admitido, se reporta efectivamente a todas as normas do Decreto-Lei nº 336/90, ou apenas a algumas, e quais', tendo os mesmos indicado que o pedido se circunscreve 'à norma do artigo 3º do Decreto-Lei nº
336/90, de 30 de Outubro, bem como às normas com ele directamente conexionadas, designadamente às dos artigos 2º e 4º do mesmo diploma'.
São estas, pois, as normas que constituem o objecto do presente processo de fiscalização abstracta sucessiva de legalidade.
3. O pedido dirigido a este Tribunal alicerça-se, na parte respeitante às normas que constituem o seu objecto, essencialmente nos seguintes fundamentos:
a) O nº 1 do artigo 234º da Constituição estipula que a Assembleia Legislativa Regional dos Açores tem 'exclusiva competência' para a 'aprovação do orçamento regional', sendo este princípio constitucional desenvolvido no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (aprovado pela Lei nº 39/80, de 5 de Agosto, alterada pela Lei nº 9/87, de 26 de Março), nomeadamente nas alíneas m) e n) do nº 1 do artigo 32º, nos termos das quais compete à Assembleia Legislativa Regional dos Açores 'aprovar o orçamento regional, discriminado por tipos de receitas e por dotações globais correspondentes às despesas de financiamento e ao conjunto dos programas de investimento de cada secretaria regional', e, bem assim, 'autorizar o Governo Regional a realizar empréstimos e outras operações de crédito que não sejam de dívida flutuante, estabelecendo as respectivas condições gerais';
b) Ao abrigo de uma autorização legislativa constante do artigo 7º da Lei do Orçamento de Estado de 1990, o Governo da República produziu o Decreto-Lei 336/90, que estipula, no seu artigo 3º (processo de fixação dos limites de endividamento regional), que:
'1. A fixação anual dos limites máximos de endividamento regional faz-se mediante norma a incluir na Lei do Orçamento do Estado, de acordo com a proposta apresentada até 30 de Setembro de cada ano pelo Governo de cada região autónoma ao Governo da República e que será considerada nos termos em que a aplicação dos critérios estabelecidos no nº 2 do artigo anterior o permitir.
2. No relatório sobre transferências orçamentais para as regiões autónomas que acompanha a proposta de Orçamento do Estado a apresentar à Assembleia da República incluir-se-á uma exposição de motivos sobre a norma de fixação dos limites máximos de endividamento regional proposta pelo Governo da República';
c) As disposições citadas estão feridas de ilegalidade, já que contrariam o citado artigo do Estatuto, e mesmo de inconstitucionalidade, uma vez que infringem o mencionado preceito da Constituição;
d) Neste sentido vão as seguintes palavras do deputado do PSD à Assembleia da República Jorge Pereira, proferidas aquando do debate sobre o pedido de ratificação parlamentar do Decreto-Lei nº 336/90:
'considerando que os orçamentos e os planos regionais e neles os empréstimos necessários para a execução dos mesmos são aprovados, conforme determinam a Constituição e os estatutos (Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas), pelas Assembleias Legislativas Regionais, afigura-se-nos que a fixação no Orçamento do Estado dos limites máximos de endividamento regional através de um processo que prevê uma proposta dos governos regionais ao Governo da República, até 30 de Setembro de cada ano, constitui, na prática, uma
'prévia' aprovação de uma parte do orçamento regional pelo Governo e pela Assembleia da República, o que contradiz [...] a Constituição';
e) O próprio Decreto-Lei nº 336/90 parece querer defender-se do carácter anti-estatutário do transcrito artigo 3º, ao estabelecer no nº 3 do seu artigo 4º que, 'sem prejuízo do nº 1 - que cita os supracitados limites máximos de endividamento -, a contracção de empréstimos internos depende da autorização das respectivas assembleias legislativas regionais, nos termos dos estatutos político-administrativos das regiões autónomas';
f) Poder-se-ia considerar, numa interpretação não subscrita pelos requerentes, que o decreto-lei se limitaria a estabelecer um máximo de endividamento líquido, que colocaria em causa a capacidade de endividamento da Região Autónoma, e por via disso a viabilidade da própria autonomia financeira e que, portanto, o articulado do decreto-lei se limitaria a estabelecer o tecto máximo ditado pela razoabilidade financeira, abaixo do qual permanecia integralmente em vigor a capacidade de decisão da Assembleia Legislativa Regional;
g) Nessas circunstâncias, colocam-se, contudo, problemas delicados. Este decreto, para além da sua eventual ilegalidade, propicia situações potenciais de conflito institucional grave, dado que, em aplicação do Estatuto Político-Administrativo, nos seus artigos 32º e 101º, a Assembleia Legislativa Regional dos Açores pode decidir, em termos definitivos, em sentido diverso e antagónico ao da decisão da Assembleia da República, nos termos do Decreto-Lei nº 336/90.
Notificado nos termos e para os efeitos do artigo 54º da Lei do Tribunal Constitucional, apresentou o Primeiro Ministro extensa resposta, na qual conclui assim:
a) Uma das duas normas do Estatuto da Região Autónoma dos Açores
[alínea m) do nº 1 do art. 32º], que, segundo os requerentes, teria sido objecto de violação pelos arts. 2º, 3º e 4º do Decreto-Lei nº 330/90, de 30 de Outubro, foi já declarada parcialmente inconstitucional pelo Tribunal Constitucional (Ac.
206/87, de 10.07);
b) O carácter unitário do Estado português (art. 6º CRP) tem como principal consequência no campo financeiro a vinculação do Estado e das Regiões ao Princípio da Solidariedade Nacional (art. 227º, nº 2, e 231º, nº 1, da CRP) e das mesmas regiões às exigências de unidade monetária e financeira expressas na chamada 'Constituição Orçamental' (arts. 108º e 109º CRP);
c) Cabe no âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República [art. 168º, p)] competência explícita para aprovar leis de enquadramento dos orçamentos regionais e implícita para fixar as medidas de acesso ao crédito público pelas regiões, constituindo estes actos legislativos parâmetros de validade dos orçamentos regionais, nos termos dos arts. 108º, nº
4, e 109º, nº 1, da CRP;
d) Revestindo o Decreto-Lei nº 336/90 uma natureza mista, que se integra nos dois domínios materiais expostos, resulta que o mesmo, longe de se contradizer com a alínea n) do nº 1 do art. 32º do Estatuto de Autonomia da R.A. dos Açores, acaba por completar esta mesma norma, ao ditar critérios que a Assembleia Legislativa Regional deve observar quando autoriza o Governo Regional a realizar determinadas operações de crédito;
e) É também plenamente legítima a remissão feita pelo nº 1 do art.
3º do diploma sindicado para o Orçamento do Estado, quanto à fixação anual dos valores máximos de endividamento regional, pois é o O.E. a sede normativa onde se prevêem, através de relatório anexo, as transferências orçamentais para as regiões, as quais se revelam como acto-condição instrumental para que se realize o equilíbrio dos orçamentos regionais e a correcção de desigualdades derivadas da insularidade (art. 231º, nº 1, CRP);
f) Finalmente, a celebração de protocolos entre Governo da República e Governos Regionais relativamente ao enquadramento de medidas de fixação anual dos limites máximos de endividamento (nº 3 do art. 2 do Decreto-Lei nº 336/90) assume-se como uma competência instrutória do executivo autónomo que não só não afecta os poderes da Assembleia Legislativa Regional, previstos na alínea n) do nº 1 do art. 32º do ERAA, como também encontra cobertura explícita no art. 99º do mesmo Estatuto.
4. Tudo visto e ponderado, cumpre, então, apreciar e decidir.
Importa salientar que, na análise subsequente, vai o Tribunal referir-se à versão da Constituição anterior à Lei Constitucional nº1/97, de 20 de Setembro, seja porque o Decreto-
-Lei nº 336/90, de 30 de Outubro, foi aprovado no domínio da vigência da versão da Constituição decorrente das Revisões de 1989 e 1992, seja porque a decisão do presente processo foi adoptada e registada em data anterior à entrada em vigor da Lei Constitucinal nº 1/97.
II - Fundamentos.
5. Na sua resposta, o Primeiro Ministro suscitou uma questão prévia, consistente em a norma da alínea m) do nº 1 do artigo 32º do EPARAA, na versão resultante da Lei nº 9/87, de 26 de Março, não poder servir de parâmetro de validade das normas objecto do presente pedido de declaração de ilegalidade, dado que uma norma com conteúdo idêntico - a norma do artigo 26º, nº 1, alínea g), daquele Estatuto, na versão da Lei nº 39/80, de 5 de Agosto - foi declarada parcialmente inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão nº
206/87 publicado no Diário da República, I Série, de 10 de Julho de 1987.
Vai, por isso, o Tribunal iniciar a análise do presente processo pela abordagem da referida questão prévia.
5.1. São os seguintes os termos utilizados pelo Primeiro Ministro na invocação da questão prévia:
'Uma questão prévia merece ser desde já aclarada no que tange a uma das duas disposições estatutárias supostamente violadas, e que é a alínea m) do nº 1 do art. 32º do Estatuto de Autonomia da R.A. dos Açores. Assim:
- Procurando desenvolver o nº 1 do art. 234º da CRP, o qual reconhece à Assembleia Legislativa Regional (ALR) competência exclusiva para aprovação do Orçamento Regional (O.R.), o preceito estatutário em causa determina ser uma das competências da ALR dos Açores:
'Aprovar o Orçamento Regional, discriminado por tipos de receitas e por dotações globais correspondentes às despesas de funcionamento e ao conjunto dos programas de investimento de cada secretaria regional'.
- Sucede contudo que um preceito normativo de redacção idêntica foi declarado inconstitucional com força obrigatória geral pelo Tribunal Constitucional em processo de fiscalização abstracta sucessiva (Ac. nº 206/87 - D.R. I Série de 10.07.87).
Tratava-se da alínea g) do nº 1 do art. 26º do Estatuto Definitivo da R.A. Açores, tendo esse Venerando Tribunal sustentado no referido aresto que essa disposição teria violado o art. 234º da CRP, integrado pelo princípio da especificação orçamental, previsto no art. 108º, nº 1, al. a) e nºs. 3 e 5.
- Tendo reconhecido a identidade de redacção entre a disposição estatutária acabada de mencionar (Lei nº 39/80 de 5 de Agosto) e a da alínea m) do nº 1 do art. 32º da Lei 9/87, de 26 de Fevereiro (1ª Revisão do Estatuto definitivo dos Açores) o T.C. fez na sua decisão de inconstitucionalidade menção expressa a esta última lei de revisão, declarando assim implícita e consequentemente, por conexão material derivada, a invalidade da alínea m) do nº 1 do art. 32º que dela faz parte.
- Deste modo, e em conclusão, a alínea m) do nº 1 do art.32º tem-se por parcialmente inconstitucional e não pode, na sua qualidade de acto normativo nulo, ser objecto de referência, como norma paramétrica objecto de violação. Dir-se-á que no preceito terá subsistido a parte que consagra a competência da ALR quanto à sua faculdade de proceder à aprovação da lei orçamental regional. A ser assim, carece todavia de sentido invocar este preceito estatutário como regra hipoteticamente ofendida, já que ela, nesse passo, se limita a reproduzir uma disposição constitucional (que é o art. 234º, nº 1, da CRP). A questão deveria ser nestes termos apreciada em termos de inconstitucionalidade e não de ilegalidade já que, nos termos da Jurisprudência Constitucional, o vício mais grave consome necessariamente o menos grave (Ac. 170/90 de 27.06 do T.C.).
- Em qualquer caso, julga dever afastar-se desde já a hipótese de os requerentes terem pretendido implicitamente assinalar a violação do art. 234º, nº 1, pelo diploma considerado, dado que semelhante construção não revestiria a mínima lógica. Em nenhuma disposição de Decreto-Lei nº 336/90, de 30 de Outubro, se exclui a competência aprovatória da A.L.R. relativamente ao O.R., fixando-se tão somente regras relativas aos limites de endividamento regional que deverão ser observados pelas mesmas Assembleias Regionais, quando exercem
as competências que lhe são atribuídas no domínio da legislação aprovatória do orçamento regional.
Nestes termos, e em razão desta dualidade de razões, o Governo estima como improcedente qualquer violação da al. m) do nº 1 do art. 32º do Estatuto da R.A. dos Açores, pelo que reduzirá essencialmente o objecto da sua resposta à questão da hipotética violação da alínea n) do mesmo preceito, pelo decreto--lei sindicado (sem prejuízo de menções colaterais ao art. 234º C.R.P., atinente à competência da ALR relativa à aprovação do O.R.)'.
5.2. Efectivamente, o citado Acórdão deste Tribunal nº 206/87 declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 26º, nº 1, alínea g), do EPARAA, na versão da Lei nº 39/80, de 5 de Agosto - cujo conteúdo é idêntico ao da norma do artigo 32º, nº 1, alínea m), do mesmo Estatuto, resultante da Lei nº 9/87, de 26 de Março.
Aquele aresto não declarou, nem poderia ter declarado, a inconstitucionalidade da norma da alínea m) do nº1 do artigo 32º do EPARAA, na redacção da Lei nº 9/87, precisamente porque o pedido constante do Processo nº
39/86, e que esteve na génese do Acórdão nº 206/87, tinha como objecto a norma da alínea g) do nº 1 do artigo 26º do EPARAA, na versão da Lei nº 39/80, de 5 de Agosto. Na verdade, como se escreveu no Acórdão deste Tribunal nº 57/95
(publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Abril de 1995), o não conhecimento da questão de inconstitucionalidade de uma norma que foi objecto de uma alteração legislativa em data posterior à apresentação do pedido, ainda que tal alteração não seja substancial, mas em que a norma passa a ter o seu suporte ou a ser corporizada noutro preceito legal, é justificado pela necessidade de observância do princípio do pedido (cfr. o artigo 51º, nºs. 1 e 5, da Lei do Tribunal Constitucional), uma vez que o pedido de declaração de inconstitucionalidade de uma norma nova seria conhecer ultra petitum.
Segundo o Acórdão nº 206/87, a mencionada norma é inconstitucional, enquanto estipula que as receitas sejam discriminadas por tipos e enquanto determina ainda que as despesas sejam discriminadas apenas por dotações globais, correspondentes às funções das secretarias regionais, por violação do artigo
234º da Constituição (na versão de 1982, a que corresponde o artigo 234º, nº 1, na versão decorrente da Revisão Constitucional de 1989), integrado pelo princípio da especificação, tal como é afirmado, para as receitas e para as despesas, no artigo 108º, nºs 1, alínea a), e 5 (também na versão de 1982, mantendo-se o primeiro inalterado na revisão de 1989 e correspondendo o nº 5 ao texto do nº3 do mesmo artigo, na versão resultante da Lei de Revisão Constitucional de 1989).
Tem, assim, o Tribunal Constitucional perante si uma norma invocada pelos requerentes como parâmetro de validade das normas dos artigos 2º, 3º e 4º do Decreto-Lei nº 336/90 que reproduz o conteúdo de uma norma anteriormente declarada parcialmente inconstitucional, com força obrigatória geral - devendo, no entanto, esclarecer-se que não houve por parte do legislador uma intenção de desrespeito da decisão do Tribunal Constitucional, uma vez que a norma da alínea m) do nº 1 do artigo 32º do Estatuto, decorrente da Lei nº 9/87, de 26 de Março, foi publicada antes da data da prolação (17 de Junho de 1987) e da data da publicação (10 de Julho de 1987) do Acórdão nº 206/87.
Ora, em situações em que é invocada como parâmetro de legalidade uma norma que repete o conteúdo de outra já declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, não pode o Tribunal Constitucional, desde que não tenham sido substancialmente alteradas as normas constitucionais que serviram de padrão à declaração de inconstitucionalidade, deixar de conhecer da questão de inconstitucionalidade que imediatamente se lhe depara, como sucede, in casu, com a norma da alínea m) do nº 1 do artigo 32º do EPARAA, cuja violação se invoca para fundamentar a alegada ilegalidade das normas dos artigos 2º, 3º e 4º do Decreto-Lei nº 336/90 (cfr., neste sentido, J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, Coimbra Editora,
1993, p. 1023).
Perguntar-se-á, porém, em que termos é que deve ter lugar o conhecimento da questão de inconstitucionalidade da referida norma do EPARAA. É seguro que não pode o Tribunal Constitucional declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da aludida norma, ainda que a título de questão prejudicial, não só porque o pedido dirigido a este Tribunal é de declaração de ilegalidade e não de declaração de inconstitucionalidade, como ainda porque tal norma não faz parte do objecto do pedido. Mas tendo o Tribunal Constitucional
(como qualquer outro tribunal), nos termos do artigo 207º da Constituição, o poder-dever de não aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados ou o poder-dever de não considerar, nos processos de fiscalização abstracta de legalidade de normas, previstos nas alíneas b), c) e d) do nº 1 do artigo 281º da Constituição, como parâmetros de aferição dessa mesma legalidade, leis com valor reforçado, leis gerais da República ou disposições dos estatutos das regiões autónomas que colidam com a Constituição, deve o Tribunal Constitucional, no âmbito dos referidos processos, recusar, como questão prejudicial, a essas mesmas normas o valor de padrão ou de parâmetro aferidor do juízo de legalidade, sempre que elas sejam inconstitucionais, como acontece nos casos em que normas de conteúdo prescritivo idêntico tiverem sido anteriormente julgadas ou declaradas inconstitucionais [como exemplo de recusa de aplicação de normas, concretamente das normas conjugadas dos artigos 37º e
42º, alínea a), do Código de Processo Tributário, com fundamento em inconstitucionalidade, pelo próprio Tribunal Constitucional, cfr. o Acórdão nº
553/94, publicado no Diário da República, II Série, de 26 de Julho de 1995].
5.3. Sucede, porém, que o Acórdão nº 206/87 declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma norma de teor idêntico à da alínea m) do nº 1 do artigo 32º do EPARAA actualmente em vigor - e que foi, repete-se, a norma da alínea g) do nº 1 do artigo 26º do EPARAA, na redacção da Lei nº 39/80, de 5 de Agosto -, mas tão-só na parte em que a mesma estabelece o modo, considerado constitucionalmente insuficiente, como são discriminadas as receitas e despesas que compõem o orçamento regional. Significa isto que aquele aresto deixou intocada a norma nele analisada sub specie constitutionis, no segmento em que atribui à Assembleia Legislativa Regional a competência para aprovar o orçamento regional. Ora, é esta mesma competência da Assembleia Legislativa Regional dos Açores para aprovar o documento onde são previstas e computadas as receitas e as despesas da Região, competentemente autorizadas, que os deputados requerentes consideram ofendida pelas normas dos artigos 2º, 3º e 4º do Decreto-Lei nº 336/90.
Não pode, por isso, este Tribunal afastar, nos termos referidos no ponto anterior, a totalidade da norma da alínea m) do nº 1 do artigo 32º do actual EPARAA como parâmetro de aferição da legalidade das normas aqui sub judicio, antes deve tomá-la em consideração na parte em que estabelece a competência da Assembleia Legislativa Regional dos Açores para aprovar o orçamento regional.
Improcede, assim, a questão prévia suscitada pelo Primeiro Ministro na sua resposta.
6. Depurada a norma do artigo 32º, nº 1, alínea m), do EPARAA actualmente em vigor da sua segunda parte, isto é, daquela em que determina os requisitos de elaboração do orçamento regional, constata-se que ela é uma mera derivada do disposto no artigo 229º, nº 1, alínea o), da Constituição, que reconhece às regiões autónomas o poder, entre outros, de aprovar o orçamento regional, e apresenta-se mesmo, como sublinha o Primeiro Ministro na sua resposta, como uma mera reprodução do artigo 234º, nº 1, da Constituição, onde se estabelece que é da exclusiva competência da assembleia legislativa regional, entre o mais, a aprovação do orçamento regional.
Tendo em conta esta coincidência de conteúdo, um eventual vício de legalidade das normas dos artigos 2º, 3º e 4º do Decreto-Lei nº 336/90, com fundamento na violação da alínea m) do nº 1 do artigo 32º do vigente EPARAA, confunde-se com um vício de inconstitucionalidade, por infracção ao disposto nos artigos 229º, nº 1, alínea o), e 234º, nº 1, da Constituição.
Ora, considerando que nas situações em que um vício de ilegalidade
(qualificada) de uma norma coincide com um vício de inconstitucionalidade, deve o Tribunal Constitucional conhecer deste último, em detrimento do primeiro, dada a sua maior gravidade e a consumpção, em caso de concurso, do vício menos grave pelo mais grave (cfr., por todos, o Acórdão deste Tribunal nº 170/90, publicado no Diário da República, II Série, de 27 de Junho de 1990), poderia entender-se que, em casos como o dos presentes autos, em que se verifica uma total coincidência entre os fundamentos dos vícios de inconstitucionalidade e de ilegalidade, não estaria vedado ao Tribunal 'convolar' o pedido de declaração de ilegalidade num pedido de declaração de inconstitucionalidade. Dir-se-ia, ainda, que, no caso vertente, uma tal 'convolação' seria perfeitamente admissível, dado que os deputados requerentes também têm legitimidade para apresentar a este Tribunal um pedido de declaração de inconstitucionalidade das normas aqui questionadas, desde que esse pedido se funde em 'violação dos direitos das regiões autónomas' [cfr. o artigo 281º, nº 2, alínea g), da Lei Fundamental] - situação que também ocorre no caso presente, dado que um dos principais direitos (ou poderes) das regiões autónomas, previstos no artigo
229º, nº 1, da Constituição, é o de aprovar o orçamento regional, direito esse que não é mais do que uma expressão do princípio da autonomia financeira das regiões autónomas, o qual seria posto em causa pelas normas dos artigos 2º, 3º e 4º do Decreto-Lei nº 336/90.
Um tal modus agendi do Tribunal Constitucional defrontar-se-ia, no entanto, com um obstáculo inultrapassável, que seria a violação do princípio do pedido. Não tendo a inconstitucionalidade das normas sido suscitada pelos requerentes e sendo o pedido dirigido a este Tribunal um pedido de declaração de ilegalidade e não um pedido de declaração de inconstitucionalidade de normas, a
'convolação' do pedido de declaração de ilegalidade num pedido de declaração de inconstitucionalidade traduzir-se-ia numa substituição da vontade dos requerentes pela vontade do Tribunal Constitucional, com claro desrespeito do princípio do pedido quanto ao tipo ou modalidade de fiscalização normativa solicitada ao Tribunal Constitucional.
Acresce que a preferência do conhecimento por parte do Tribunal Constitucional do vício de inconstitucionalidade em relação ao vício de ilegalidade apenas deve ocorrer nos casos em que é requerida a este Tribunal a apreciação simultânea da inconstitucionalidade e da ilegalidade de uma norma e se conclui por um juízo de inconstitucionalidade. Numa situação destas, o vício
de inconstitucionalidade, dada a sua maior gravidade, consome o vício, menos grave, da ilegalidade. Ora, nos presentes autos, não estamos perante uma situação deste tipo.
Tendo em conta o que vem de ser exposto, vai, pois, o Tribunal apreciar a questão da legalidade das normas dos artigos 2º, 3º e 4º do Decreto-Lei nº 336/90, de 30 de Outubro, confrontando-as, num primeiro momento, com o artigo 32º, nº 1, alínea m), do EPARRA, na versão da Lei nº 9/87, de 26 de Março, na parte em que determina que compete à Assembleia Legislativa Regional dos Açores aprovar o orçamento regional, e, num segundo momento, com o artigo
32º, nº 1, alínea n), do mesmo diploma.
Vejamos então.
7. As normas impugnadas do Decreto-Lei nº 336/90, de 30 de Outubro, dispõem o seguinte:
'Artigo 2º Limites ao endividamento regional
1- Serão fixados anualmente limites máximos de endividamento regional directo e indirecto, estabelecendo-se para cada região autónoma e para o período financeiro respectivo os níveis permitidos de concessão de garantias e de recurso ao crédito, considerando este em todas as suas formas, incluindo a modalidade de celebração de contratos de locação financeira.
2- Na fixação dos limites de endividamento de cada região autónoma atender-se-á a que, em resultado de endividamento adicional ou de aumento do crédito à região, não deve o serviço da dívida total exceder 25% das receitas correntes da região e não podem ser prejudicados os objectivos macro-económicos e as orientações da política monetária traçados pelos órgãos de soberania.
3- Para efeito de enquadramento das medidas de fixação anual dos limites máximos de endividamento regional podem ser celebrados entre o Governo da República e o governo de cada região autónoma protocolos de colaboração permanente em matéria financeira.
Artigo 3º Processo de fixação dos limites de endividamento regional
1- A fixação anual dos limites máximos de endividamento regional faz-se mediante norma a incluir na Lei do Orçamento do Estado, de acordo com proposta apresentada até 30 de Setembro de cada ano pelo governo de cada região autónoma ao Governo da República e que será considerada nos termos em que a aplicação dos critérios estabelecidos no nº 2 do artigo anterior o permitir.
2- No relatório sobre transferências orçamentais para as regiões autónomas que acompanha a proposta de Orçamento do Estado a apresentar à Assembleia da República incluir-se-á uma exposição de motivos sobre a norma de fixação dos limites máximos de endividamento regional proposta pelo Governo da República.
Artigo 4º Regime de contracção de empréstimos pelas regiões autónomas
1- As regiões autónomas, nos termos do disposto nos respectivos estatutos político-administrativos e no presente diploma, podem contrair empréstimos internos e externos de prazo superior a dois anos exclusivamente destinados a financiar investimentos, respeitando os limites máximos de endividamento regional anualmente fixados.
2- A contracção de empréstimos externos depende de prévia autorização da Assembleia da República, após audição do Governo da República.
3- Sem prejuízo do disposto no nº 1, a contracção de empréstimos internos depende da autorização das respectivas assembleias legislativas regionais, nos termos dos estatutos político-administrativos das regiões autónomas'.
8.1. As normas do Decreto-Lei nº 336/90 - diploma aprovado pelo Governo no uso da autorização legislativa concedida pelo artigo 7º da Lei nº
101/89, de 29 de Dezembro - acabadas de transcrever, em particular a norma do artigo 3º, estabelecem limites à competência da Assembleia Legislativa Regional dos Açores (e da Madeira) para aprovar o orçamento regional.
A ocorrência de limites a tal competência tem paralelo com o que se verifica com a Assembleia da República na aprovação do Orçamento do Estado, podendo afirmar-se a existência de uma semelhança entre o ciclo de aprovação orçamental estadual e o ciclo de aprovação orçamental regional. Uma tal semelhança é sublinhada por António Lobo Xavier (cfr. O Orçamento como Lei - Contributo para a Compreensão de Algumas Especificidades do Direito Orçamental Português, in Boletim de Ciências Económicas, Vol. XXXVI, 1993, p. 185,186), nos seguintes termos:
'... parece que a Constituição reparte as funções de um modo muito semelhante entre as Assembleias e Governos Regionais e entre os órgãos congéneres da República. Porventura, apenas se poderá dizer que a estrutura organizatória das autonomias se aproxima mais definitivamente de um sistema parlamentar - o que, de resto, não interfere assinalavelmente na nossa tentativa de analogia, já que, em matéria orçamental, a Assembleia da República tem poderes financeiros típicos do Parlamento de um sistema parlamentar'.
E em nota acrescenta:
'Repare-se que, ainda na vigência da Constituição de 1976, na sua versão original, podia dizer-se que o ciclo orçamental das Regiões Autónomas tinha de apresentar características mais próprias do regime parlamentar que caracterizava estas mesmas Regiões, devendo afastar-se, portanto, nessa medida, das regras constitucionais sobre o Orçamento Geral do Estado. A L.C. 1/82,no entanto, veio parlamentarizar o Orçamento do Estado, destruindo as diferenças de regime que poderiam ou deveriam existir relativamente aos orçamentos regionais
(cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira [Constituição da República Portuguesa
(Anotada), 1984], vol. II, pp. 365 e 275.)'
8.2. O Tribunal Constitucional já se pronunciou, em vários arestos, sobre o sentido da aprovação pela Assembleia da República do Orçamento do Estado, bem como da aprovação pelas Assembleias Legislativas Regionais dos orçamentos regionais (cfr., sobre o primeiro, os Acórdãos nºs. 144/85, 205/87,
461/87 e 267/88, publicados no Diário da República, I Série, de 4 de Setembro de
1985, 3 de Julho de 1987, 15 de Janeiro de 1988 e 21 de Dezembro de 1988, respectivamente, e, quanto aos segundos, o já citado Acórdão nº 206/87), tendo acentuado que a aprovação do Orçamento do Estado e a aprovação dos orçamentos regionais não são actos totalmente livres, já que os mesmos têm de ser elaborados de harmonia com as grandes opções do plano anual e tendo em conta as obrigações decorrentes de lei ou de contrato, como resulta do artigo 108º, nº
2,da Constituição. De facto, os limites à liberdade orçamental consagrados neste preceito da Constituição valem não apenas para a elaboração do Orçamento do Estado, mas também para os orçamentos das regiões autónomas, já que, como referiu este Tribunal no Acórdão nº 206/87, embora a norma do artigo 108º da Constituição diga respeito estritamente ao Orçamento do Estado, as regras que contém valem, mutatis mutandis, para os orçamentos regionais, devido à natureza unitária do Estado português, definida no artigo 6º da Constituição (é esta, de resto, a opinião de J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, cfr. ob. cit., p. 465, e de Rui Medeiros/Jorge Pereira da Silva, Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, Anotado, Lisboa, Principia, 1997, p. 100), e vinculam quer a elaboração da proposta do orçamento, quer a aprovação do orçamento como tal.
As normas aqui questionadas situam-se, assim, perfeitamente entre as que estabelecem limites à liberdade de aprovação orçamental, constitucionalmente consagrados. Tais limites assumem aqui, no entanto, um cariz diferente: enquanto as leis ou contratos referidos no artigo 108º, nº 2, da Constituição estabelecem limites positivos ao orçamento (que terá de ter em conta as obrigações deles decorrentes), a fixação de 'limites máximos de endividamento regional' consagra limites negativos (que não poderão ser ultrapassados). Apesar de não parecer muito sólida a distinção entre limites positivos e negativos, o certo é que estes últimos contêm condicionamentos diferentes dos primeiros à dimensão do orçamento: enquanto nos termos do nº 4 do artigo 108º da Constituição, o Orçamento tem de prever as receitas necessárias à cobertura das despesas (os limites positivos determinam o seu valor mínimo), a impossibilidade de recurso ao crédito além de um certo quantitativo não obsta à progressão de outro tipo de receitas (os limites negativos não determinam o seu valor, nem mínimo, nem máximo).
8.3. Para além dos limites anteriormente assinalados, os Orçamentos do Estado e das Regiões Autónomas estão condicionados, em matéria de previsão de empréstimos, pela legislação a eles respeitantes. Tal decorre da devolução à lei pelo nº 4 do artigo 108º da Constituição da definição das condições a que deverá obedecer o recurso ao crédito público - condições essas, aliás, não necessariamente formais. Segundo J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira (cfr. ob. cit., p. 651,652), aquela lei - que é uma espécie de lei-quadro do recurso ao crédito público - pode estabelecer limites materiais ao endividamento público e deve ser respeitada pelas leis de autorização de empréstimos e pela lei do orçamento.
Por outro lado, cabendo à Assembleia da República (desde a primeira revisão constitucional), nos termos da alínea p) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, legislar sobre o regime geral de elaboração e organização dos orçamentos das regiões autónomas e cabendo-lhe também a aprovação do regime geral do crédito público, sempre o Decreto-Lei nº 336/90, aprovado no uso da autorização legislativa conferida pelo artigo 7º da Lei nº 101/89, de 29 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado de 1990), poderá qualificar-se como uma parte de uma lei de elaboração e organização dos orçamentos regionais, como um capítulo de uma lei do recurso ao crédito público ou como uma parte de ambas.
Ou seja: do mesmo modo que ao conceder autorizações ao Governo para contrair empréstimos a Assembleia da República deve obediência ao disposto na Lei nº 12/90, de 7 de Abril - tal como, antes desta, devia obediência aos artigos 19º da Lei nº 1933, de 16 de Fevereiro de 1936, e 39º do Decreto-Lei nº
42.900, de 5 de Abril de 1960, expressamente revogados por aquela -, e deveria respeitar uma lei que lhe fixasse outras condições, incluindo limites materiais, no recurso ao crédito, a Assembleia Legislativa Regional dos Açores deve obediência ao disposto no Decreto-Lei nº 336/90, sem que isso, num caso como noutro, implique uma depreciação das competências atribuídas, respectivamente, pela primeira parte da alínea i) do artigo 164º da Constituição e pela alínea n) do nº 1 do artigo 32º do EPARAA, na redacção da Lei nº 9/87, de 26 de Março.
8.4.Por último, importa acentuar que as normas impugnadas pelos deputados requerentes limitam-se, de facto, como eles próprios referem, embora sem subscreverem tal afirmação, a estabelecer um tecto máximo de endividamento ditado pela razoabilidade financeira, abaixo do qual permanece integralmente em vigor a capacidade de decisão da Assembleia Legislativa Regional.
Reflectindo sobre 'a questão de saber se existe uma vinculação jurídica do Governo a executar uma autorização que lhe foi concedida pela Assembleia, em particular nos casos em que tal autorização não foi solicitada, mas antes resultou de iniciativa de parlamentares', E. Paz Ferreira (cfr. Da Dívida Pública e das Garantias dos Credores do Estado, Coimbra, Almedina, 1995, pp. 192-194) conclui que, 'em qualquer caso, a autorização fixa apenas um limite máximo até ao qual o Governo poderá emitir empréstimos, não sendo tal limite obrigatório e sendo, consequentemente, possível que o Governo não esgote a totalidade da autorização'. Ora, se isso é assim em relação à entidade que executa o Orçamento, deve sê-lo também em relação a uma entidade que tem competências alargadas de aprovação do orçamento em que tal receita se insere.
De acordo com esta perspectiva, não faz sentido falar de 'situações potenciais de conflito institucional grave', ao menos quando a Assembleia Legislativa Regional incluir no Orçamento Regional um montante de empréstimos inferior ao autorizado pela Assembleia da República. Na medida em que tal autorização se não traduz numa injunção ao parlamento regional, não há conflito institucional algum.
Eis, pois, as razões pelas quais as normas dos artigos 2º, 3º e 4º do Decreto-Lei nº 336/90 não colidem com o artigo 32º, nº 1, alínea m), do EPARAA, na versão actualmente em vigor [preceito que, como se referiu, tem um conteúdo idêntico ao dos artigos 229º, nº 1, alínea o), e 234º, nº 1, da Constituição], não sendo, por isso, ilegais.
9. Vejamos, agora, se as normas postas em causa pelos requerentes violam, ou não, a alínea n) do nº 1 do artigo 32º do EPARAA, na redacção da Lei nº 9/87, de 26 de Março, que dispõe o seguinte:
'Compete à Assembleia Regional dos Açores autorizar o Governo Regional a realizar empréstimos e outras operações de crédito que não sejam de dívida flutuante, estabelecendo as respectivas condições gerais'.
9.1. Destacou-se, nas linhas antecedentes, que a elaboração e aprovação do Orçamento do Estado estão sujeitas a limites previstos expressamente na Constituição e que tais limites se aplicam ou directamente à elaboração e aprovação dos orçamentos regionais (entendimento expresso pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 206/87, que mereceu a concordância de A. Sousa Franco, Finanças das Regiões Autónomas: Uma Tentativa de Síntese, in
«Estudos de Direito Regional», org. Jorge Miranda e Jorge Pereira da Silva, Lisboa, Lex, 1997, p. 530) ou, pelo menos, enquanto contêm 'princípios fundamentais sobre a organização orçamental', princípios esses sedimentados historicamente em torno da disciplina orçamental (como escreveu o Conselheiro J.M. Cardoso da Costa, em declaração de voto ao mencionado Acórdão nº 206/87, ao que parece com a adesão de E. Paz Ferreira, cfr. O Redimensionamento dos Poderes Económicos e Financeiros das Regiões Autónomas pela Jurisprudência Constitucional, in «Estudos de Direito Regional», cit., p. 578).
Ora, do mesmo modo que a alínea i) do artigo 164º da Constituição - que, disciplinando as relações entre a Assembleia da República e o Governo, tem uma redacção semelhante à da alínea n) do nº 1 do artigo 32º do EPARAA - não é violada pela subordinação da proposta do Orçamento do Estado às normas da lei de enquadramento orçamental e às condições de recurso ao crédito público fixadas na lei condensadora do regime dos empréstimos a realizar pelo Estado (Lei nº
12/90, de 7 de Abril), também aquela norma estatutária não vê o seu conteúdo destruído em resultado da obediência aos preceitos do Decreto-Lei nº 336/90.
Nem se objecte que este paralelismo não é total, afirmando-se que mesmo que o estatuto do recurso ao crédito público preveja limites ao endividamento do Estado, tais limites são fixados pelo mesmo órgão que posteriormente autoriza o Governo a contrair empréstimos, ao passo que, no quadro do Decreto-Lei nº 336/90, o limite é fixado por outro órgão (a Assembleia da República), ao aprovar o Orçamento do Estado, sob proposta do Governo de cada região autónoma ao Governo da República. É que, sendo Portugal um Estado unitário, em que as regiões autónomas dispõem de órgãos de governo próprio (cfr. o artigo 6º da Constituição), é natural que o padrão de relações entre o Governo e o Parlamento nacionais não tenha total paralelismo com o padrão de relações entre os Governos e as Assembleias Legislativas Regionais, designadamente por força da interferência de competências dos dois primeiros, dentro das balizas demarcadas pela Constituição, no que respeita às regiões autónomas.
9.2. O estabelecimento nas normas impugnadas pelo grupo de deputados
à Assembleia Legislativa Regional dos Açores de um sistema de limites ao endividamento das regiões autónomas é uma consequência do carácter unitário do Estado (ainda que dispondo de duas regiões autónomas, dotadas de estatutos político-administrativos e de órgãos de governo próprio, e de autarquias locais, que usufruem de órgãos representativos, de autonomia administrativa e de património e finanças próprios), proclamado no artigo 6º da Lei Fundamental, e, bem assim, do 'princípio da unidade económica monetária e financeira do Estado', constitucionalmente consagrado, designadamente nos artigos 227º, nºs. 2 e 3,
229º, nº 1, alíneas o) e q), 231º, nº 1, e 168º, nº 1, alínea p), da Lei Fundamental [cfr., neste sentido, E. Paz Ferreira, Estudos de Direito Financeiro Regional (Pareceres),vol. II, Ponta Delgada, Jornal de Cultura, 1995, p. 82,83].
Assim sendo, a competência atribuída pela alínea n) do nº 1 do artigo 32º do actual EPARAA à Assembleia Legislativa Regional dos Açores para autorizar o Governo Regional a realizar empréstimos e outras operações de crédito que não sejam de dívida flutuante, estabelecendo as respectivas condições gerais, há-de ser exercida no quadro das normas do Decreto-Lei nº
336/90, as quais, como se acentuou, são uma expressão dos mencionados princípios constitucionais. Daí que, como sublinha o Primeiro Ministro na sua resposta, as normas daquele Decreto-Lei, longe de contradizerem a norma de competência prevista na alínea n) do nº 1 do artigo 32º do EPARAA, integram--na, fixando parâmetros materiais que deverão ser observados pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores quando exerce a competência aí indicada.
À tese que vem de referir-se poderia contrapor-se uma interpretação, a contrario sensu, do disposto no artigo 101º, nº 3, do EPARAA - preceito nos termos do qual 'a contracção de empréstimos externos depende de prévia autorização da Assembleia da República, após audição do Governo da República'. Uma tal interpretação consistiria no seguinte: uma vez que no artigo 101º, nº
3, do EPARAA se prevê que a contracção de empréstimos externos pela Região Autónoma dos Açores está sujeita a prévia autorização da Assembleia da República, após audição do Governo da República, então a contracção de outro tipo de empréstimos não está sujeita a qualquer controlo daqueles órgãos, nem sequer sob a forma da fixação de um limite máximo global na lei do Orçamento do Estado, pois isso seria introduzir limites ao endividamento que não resultam nem da Constituição, nem do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
Trata-se, porém, de um argumento que não tem qualquer relevo. Na verdade, por um lado, a natureza da autorização de cada empréstimo é diversa - jurídica e economicamente - da fixação de limites máximos ao endividamento, relevando estes das políticas monetária e financeira que constituem reserva do Estado (cfr. a parte final no nº 2 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 336/90). Por outro lado, enquanto que, no recurso ao crédito (externo ou interno), está em causa uma mera autorização de obtenção de receitas, na fixação de um limite ao endividamento está também em causa o eventual impacto sobre as transferências do Estado para a Região (cf. A. Sousa Franco, Finanças do Sector Público - Introdução aos Subsectores Institucionais, AAFDL, 1991, pp. 738-744).
9.3. A competência reconhecida, no artigo 32º, nº 1, alínea n), do EPARAA à Assembleia Legislativa Regional dos Açores para autorizar o Governo Regional a realizar empréstimos e outras operações de crédito que não sejam de dívida flutuante, estabelecendo as respectivas condições gerais, não é posta em causa pela celebração de protocolos de colaboração permanente em matéria financeira entre o Governo da República e o da Região, para efeito de enquadramento das medidas de fixação anual dos limites máximos de endividamento regional, prevista no artigo 2º, nº 3, do Decreto-Lei nº 336/90 (de notar que a utilização da via do acordo ou do consenso entre o Governo da República e o Governo Regional dos Açores em matéria financeira é expressamente referida no artigo 99º do EPARAA, onde se preceitua que, 'de harmonia com o princípio da solidariedade nacional, o Estado dotará a Região dos meios financeiros necessários à realização dos investimentos constantes do plano regional que excederem a capacidade de financiamento dela, de acordo com um programa de transferência de fundos a acordar entre o Governo da República e o Governo Regional').
Tendo a norma do artigo 32º, nº1, alínea n), do EPARAA valor paramétrico da legislação nacional e regional que incida sobre a matéria nela regulada, a verificação da contradição entre aquela norma estatutária e uma disposição legal que verse sobre a mesma realidade implica necessariamente a ilegalidade desta última. Ponto é que ocorra uma verdadeira contradição entre a norma estatutária e a norma a que serve de parâmetro de validade. Ora, no caso sub judicio, este requisito está, desde logo, ausente, pois não há uma realidade subsumível a duas normas, há duas realidades diferentes, a que correspondem duas normas. Uma delas - a do nº 3 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 336/90 -, emitida pelo Governo ao abrigo de uma autorização legislativa da Assembleia da República que, por essa via, exerceu uma competência que lhe era própria (a aprovação de uma parte de uma lei de enquadramento dos orçamentos regionais e/ou de uma parte de uma lei-quadro de recurso ao crédito público), atribui ao Governo Regional a faculdade de participar num acordo com o Governo da República sobre os critérios que irão pautar a colaboração permanente em matéria financeira, designadamente em matéria de endividamento regional. No momento da celebração do acordo, não tem que existir já endividamento, nem têm de ser conhecidas as condições dos empréstimos, nem, sequer, as entidades junto de quem serão contraídos ou as suas finalidades concretas. A outra norma - a da alínea n) do nº 1 do artigo 32º do EPARAA - tem o seu momento de aplicação quando se conhecem os potenciais tomadores dos empréstimos (ao menos nas suas grandes categorias - cfr. a alínea f) do nº 1 do artigo 1º da Lei nº 12/90, de 7 de Abril), as suas finalidades e as suas condições e inscreve-se no processo de endividamento que resulta da efectiva contracção do empréstimo.
A primeira norma tem objectivos macro-económicos evidentes. A segunda tem um escopo de fiscalização, de publicidade e de corresponsabilização do órgão não executivo. Aquela releva da conjuntura económica nacional e esgota-se com a aprovação de um protocolo e, eventualmente, com a sua renegociação ou renovação, em intervalos plurianuais. Esta inscreve-se na estrutura do equilíbrio de poderes entre os órgãos regionais, mas é de aplicação repetida em cada ano. A primeira é, em suma, uma norma de política económica. Como nota o Primeiro Ministro, na sua resposta, 'o excesso no recurso ao crédito público em uma Região com autonomia político-administrativa não pode deixar de comportar efeitos macro-económicos a nível nacional. Entre outras consequências, o mesmo acaba por determinar, não apenas um aumento da quantidade de moeda em circulação no território nacional, mas também se acaba por repercutir nos valores das taxas de juro no mercado. Acresce também que o Estado Português, com a assinatura do Tratado da União Europeia, assumiu novos compromissos internacionais, no que respeita aos défices orçamentais e ao peso da dívida pública no Produto Interno Bruto, sendo os valores de referência avaliados em termos consolidados para o conjunto do território nacional.
Ora, semelhantes efeitos, por se repercutirem na generalidade dos cidadãos do território português e não apenas nos habitantes das regiões, excluem a existência de interesse específico no que tange à disciplina jurídica material respeitante aos critérios paramétricos que devem pautar o processo de decisão da Assembleia Legislativa Regional, quando esta concede as autorizações previstas na alínea n) do nº 1 do artigo 32º do ERAA.
Em suma, a fixação anual de limites máximos de endividamento regional; dos critérios estabelecidos para a admissibilidade desse endividamento; dos procedimentos subjacentes à determinação, na especialidade, dos valores referentes aos referidos patamares (artigos 2º e 4º do Decreto-Lei nº 336/90, de 30 de Outubro) constituem fins unitários de ordenação financeira que são, não apenas, compatíveis, mas também igualmente complementares com as disposições referentes à disciplina financeira do Estatuto da Região Autónoma dos Açores'. (Foram suprimidas as notas).
A norma referida em segundo lugar surge, em síntese, como uma norma de repartição de poderes a nível regional, concretamente entre a Assembleia Legislativa Regional dos Açores e o Governo Regional.
Actuando em momentos diferentes, perante realidades distintas e para a realização de fins diversos, não se verifica, assim, uma efectiva sobreposição de previsões entre a norma do artigo 32º, nº 1, alínea n), do EPARAA e a norma do artigo 2º, nº 3, do Decreto-Lei nº 336/90, pelo que não há que fazer prevalecer a primeira à custa da segunda.
Discutindo-se aqui uma alegada oposição entre normas de carácter estatutário e normas de enquadramento (do Orçamento da Região Autónoma dos Açores, do recurso ao crédito público ou de ambas), mais uma vez, o simile da lei de enquadramento orçamental nacional apresenta virtualidades: perspectivada desde cedo como integrada na constituição orçamental material (cfr. Sousa Franco, Sobre a Constituição Financeira de 1976-1982, Centro de Estudos Fiscais
- Comemoração do XX Aniversário - Estudos, 1983, p. 119), a desconformidade do Orçamento do Estado com aquela foi primeiro considerada 'um caso exemplar de inconstitucionalidade indirecta' (cfr. Marcelo Rebelo de Sousa, 10 Questões sobre a Constituição, o Orçamento e o Plano, in Nos Dez Anos da Constituição, Lisboa, INCM, 1987, p 127-129) e, a partir da revisão constitucional de 1989, configuradora de ilegalidade por violação de lei de valor reforçado (cfr., neste sentido, os Acórdãos deste Tribunal nºs. 361/91 e 358/92, publicados no Diário da República, II Série, de 10 de Janeiro de 1992, e I Série-A, de 26 de Janeiro de 1993, respectivamente).
A invocação do lugar paralelo da lei de enquadramentto orçamental é particularmente adequada, tendo em conta a alínea p) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, que insere no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República a aprovação da lei de enquadramento do orçamento do Estado e, também, dos orçamentos das regiões autónomas. Naturalmente, a natureza paramétrica destas leis de enquadramento dos orçamentos regionais não será menor do que a da lei de enquadramento do Orçamento do Estado. O mesmo se diga, por razões sistemáticas, das leis de enquadramento do recurso ao crédito público (cfr. J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição, cit. p. 651,652).
9.4. A norma do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 336/90, ao determinar a fixação anual dos limites máximos de endividamento regional em disposição constante da lei do Orçamento do Estado, não impõe ao orçamento regional uma dependência em relação ao Orçamento do Estado passível de se revelar como nuclearmente redutora quer da autonomia financeira da Região Autónoma dos Açores, quer da competência atribuída à Assembleia Legislativa Regional dos Açores pela alínea n) do nº 1 do artigo 32º do EPARAA.
Com efeito, em primeiro lugar, a nível dos princípios, a autonomia financeira regional nunca poderia, no quadro de um Estado unitário, como o português, ser sinónimo de independência financeira. Em segundo lugar, sob o ponto de vista de realidade dos factos, a autonomia financeira das regiões autónomas encontra 'uma limitação significativa na circunstância de não ser previsível que, a curto prazo, as regiões venham a dispor de receitas suficientes para assegurar a cobertura das despesas, o que as leva a terem de elaborar os seus orçamentos com uma certa ligação com o Orçamento Geral do Estado em função das transferências que este lhes irá proporcionar' (cfr. E. Paz Ferreira, As Finanças Regionais, Lisboa, INCM, 1985, p. 267).
Assim sendo, a discriminação obrigatória, nos relatórios anexos ao Orçamento do Estado, das transferências orçamentais para as regiões autónomas não deixa de implicar, em face da impossibilidade de as regiões cobrirem as suas despesas com receitas próprias, um quadro lógico de dependência operativa dos orçamentos das regiões autónomas em relação à prévia aprovação do Orçamento do Estado, que prevê afinal as mesmas transferências. Surge, assim, inevitavelmente uma dependência, de natureza lógico-funcional, entre o Orçamento do Estado e os orçamentos das regiões autónomas, a qual se articula com o
'princípio da solidariedade', inerente à correcção das desigualdades derivadas da insularidade, previsto nos artigos 227º, nº 2, e 231º, nº 1, da Constituição.
É neste contexto que surge, como sublinha o Primeiro Ministro na sua resposta, a necessidade de o Decreto-Lei nº 336/90 proceder à concretização de mecanismos que assegurem a comunicabilidade funcional entre o Orçamento do Estado e os orçamentos regionais. E acrescenta-se nessa mesma resposta:
'O facto de o nº 1 do artº 3 do mesmo Decreto-Lei remeter a fixação anual dos limites máximos de endividamento regional para o O.E. tem, nestes termos, plena lógica, não só porque as orientações macro-económicas do Estado são fixadas no O.E., mas também porque é esta mesma lei que assegura o fluxo de uma parte das receitas correntes das regiões, através das transferências anuais para aqueles territórios'.
9.5. A competência atribuída no artigo 32º, nº 1, alínea n), do EPARAA à Assembleia Legislativa Regional dos Açores não é, por fim, substancialmente diminuída pela apresentação, por parte do Governo Regional dos Açores, ao Governo da República de uma proposta de fixação anual dos limites máximos de endividamento regional, nos termos do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 336/90.
A norma constante do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 336/90 é uma norma procedimental prévia à aplicação da norma da alínea n) do nº 1 do artigo 32º do EPARAA - sucedendo o mesmo, aliás, com a norma do nº 3 do artigo
2º daquele decreto-lei. Ela situa-se, porém, num momento já bem próximo do da intervenção daquela norma estatutária,se bem que sejam diferentes a frequência da aplicação de uma e outra, os respectivos objectivos e as situações a que respeitam. Tal como a apresentação da proposta do Orçamento do Estado, por parte do Governo, à Assembleia da República não prejudica a competência deste
órgão de soberania prevista na alínea i) do artigo 164º da Constituição - de facto, como salientam J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., p. 651, 'a AR só pode autorizar empréstimos até ao montante previsto no Orçamento para o recurso ao crédito (art. 108º-4), o qual não pode ser excedido (salvo prévia alteração do Orçamento) ' -, também a apresentação ao Governo da República, por parte do Governo Regional, de uma proposta de limitação do endividamento regional não prejudica a competência da Assembleia Legislativa Regional, prevista, em termos semelhantes aos da alínea i) do artigo 164º da Constituição, no artigo 32º, nº 1, alínea n), do EPARAA.
Para além do argumento analógico acabado de expor, outras razões existem que levam a concluir que a norma do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº
336/90, na parte acima assinalada, não põe em causa a competência atribuída pelo artigo 32º, nº 1, alínea n), do EPARAA à Assembleia Legislativa Regional dos Açores. De facto, por um lado, o artigo 99º do EPARAA prevê acordos sobre a transferência de fundos entre o Governo da República e o Governo Regional, acordos esses que podem ter incidência, designadamente, na fixação dos limites do recurso ao crédito por parte do Governo Regional dos Açores; por outro lado, autorizar o Governo Regional dos Açores a realizar empréstimos e outras operações de crédito que não sejam de dívida flutuante pressupõe que haja recurso a empréstimos, ou operações de crédito a médio ou longo prazo, a autorizar. Ora, esta competência estatutariamente cometida à Assembleia Legislativa Regional dos Açores não é a de decidir o quantum global dos empréstimos e outras operações de crédito - dado que esse montante global é fixado por aquele órgão ao aprovar o orçamento regional, com as condicionantes e limites que se deixaram assinalados -, mas sim a de os autorizar, quando venham a ter lugar.
Esgrimir a norma da alínea n) do nº 1 do artigo 32º do EPARAA contra as normas dos artigos 2º a 4º do Decreto-Lei nº 336/90 traduz-se, ao cabo e a resto, em retirar daquela disposição estatutária um resultado que ela manifestamente não comporta.
Há, assim, que concluir que as normas dos artigos 2º a 4º do Decreto-Lei nº 336/90, de 30 de Outubro, não colidem com o artigo 32º, nº 1, alínea n), do EPARAA, na redacção da Lei nº 9/87, de 26 de Março, pelo que não enfermam de ilegalidade.
10. Aqui chegados, poder-se-á epitomar o discurso anterior nas seguintes proposições:
a) Os limites que o Decreto-Lei nº 336/90, de 30 de Outubro, introduz nas competências de aprovação do Orçamento Regional por parte da Assembleia Regional dos Açores encontram paralelo nos limites que, constitucionalmente, existem, ou podem existir, para a Assembleia da República, na aprovação do Orçamento do Estado;
b) É da competência reservada da Assembleia da República, por previsão constitucional expressa, aprovar a lei de enquadramento dos orçamentos das regiões autónomas e, por coerência material e sistemática, aprovar a lei de enquadramento de recurso ao crédito;
c) O âmbito de competências da Assembleia Legislativa Regional dos Açores em matéria de aprovação do respectivo orçamento regional e em matéria de recurso ao crédito é integrado por aquelas leis;
d) Tais leis não têm de ser exaustivas, podendo a regulamentação resultar de um conjunto de normas avulsas; e não têm de assumir a forma de lei da Assembleia da República, podendo resultar de decretos-leis autorizados;
e) O Decreto-Lei nº 336/90, devidamente credenciado em lei de autorização legislativa, estabelece normas numa e noutra matéria, pelo que, materialmente, constitui expressão dessas leis de enquadramento;
f) A tramitação que estabelece não diminui substancialmente as competências estatutariamente reconhecidas aos órgãos de governo próprio da Região Autónoma dos Açores.
III - Decisão.
11. Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não declarar a ilegalidade das normas dos artigos 2º, 3º e
4º do Decreto-Lei nº 336/90, de 30 de Outubro.
Lisboa, 21 de Outubro de 1997 Fernando Alves Correia Luís Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Bravo Serra Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Armindo Ribeiro Mendes Messias Bento Guilherme da Fonseca Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa