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Proc. nº 286/97
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Notificados do acórdão nº 504/97, a fls. 201 a 205 dos autos, através do qual o Tribunal Constitucional decidiu não tomar conhecimento dos recursos interpostos por A. e B., veio o primeiro dos recorrentes arguir nulidades ao abrigo das alíneas b), c), e d) do nº 1 do art. 668º do Código de Processo Civil, apresentando longo requerimento contendo 40 artigos.
No requerimento de arguição de nulidades, depois de tecer várias considerações sobre 'definições prodrómicas' dos conceitos de norma e de silogismo jurídico, aquele recorrente invoca, em síntese, o seguinte:
- O relator elaborou exposição em que preconizava que o Tribunal Constitucional não conhecesse dos recursos interpostos por os recorrentes não terem colocado ao Tribunal da Relação do Porto uma questão de inconstitucionalidade normativa que devesse ser resolvida por esse Tribunal, não existindo um recurso do tipo do amparo para se conhecer da inconstitucionalidade de actos não normativos;
- O acórdão agora impugnado colocou e decidiu idênticas questões, mas não fundamentou devidamente a sua decisão, não tendo exteriorizado 'quais sejam os tais «actos normativos» e quais as razões por que no caso não se está a tratar da fiscalização concreta de «actos normativos»' (a fls. 210);
- Por isso, se argui o 'vício de falta de fundamentação de facto e de direito do decidido (não haver no caso fiscalização concreta de actos normativos), e ao abrigo do art. 668º, 1, b) da C. Pr. Civil' (a fls. 210), sendo certo que, ao recorrer-se do acórdão da Relação, se está a recorrer do seu conteúdo que é
'normativo triplamente: normativo porque normativamente seleccionou e interpretou o Dec. L. 387/B/87, normativo porque o integrou como norma, para por ela decidir o caso; normativo porque regulou com essa norma interpretada o caso: concluindo por negar à parte a faculdade que solicitou de ser isenta de custas
«finais»' (a fls. 210 vº);
- Teria igualmente ocorrido contradição do acórdão impugnado com a exposição do relator, sendo certo que esta última foi incorporada per relationem naquele, uma vez que, em certo passo do requerimento de interposição do recurso que se transcreve nessa exposição, os recorrentes explicitaram que a violação da Constituição pelo acórdão recorrido se traduzia na interpretação normativa restritiva de certas normas do Decreto-Lei nº 387-B/87 perfilhada inconstitucionalmente pelo acórdão da Relação do Porto;
- Igualmente ocorreria falta de fundamentação de facto e de direito no acórdão impugnado quando se alude à proposição dele constante de que 'idêntica afirmação se faz quanto ao referido nas alegações dos agravos interpostos em primeira instância' (a fls. 211 vº);
- Também careceria de fundamentação o passo do acórdão impugnado em que se afirma que o Tribunal da Relação não afrontou quaisquer questões de inconstitucionalidade normativa porque tais questões não foram colocadas pelos agravantes nas respectivas alegações, tendo-se limitado os mesmos a sustentar que a decisão da primeira instância fora ilegal e inconstitucional, por ter violado normas do Decreto-Lei nº 387-B/87 e da Constituição. Pelo contrário, a imputação da inconstitucionalidade à norma do caso (norma decisória da decisão da primeira instância), implicaria necessariamente a colocação de uma questão de inconstitucionalidade normativa à Relação. De facto, tendo sido afirmado pelos recorrentes que a decisão de primeira instância que não reconhecia a isenção de custas finais violava o art. 20º da Constituição, norma de aplicação directa, se o Tribunal da Relação interpretasse e aplicasse o Decreto-Lei nº 387-B/87 - ou qualquer outra normação chamada à colação '-em termos de que ela só contempla as isenções de adiantamentos ou de pagamentos de custas intercalares ... mas não as definitivas; ou que quanto a estas não há razão causal inibitória; que quanto a essa vertente não há que a considerar na relatividade de caso concreto' (a fls.
213 e vº), então o acórdão seria inconstitucional, em si ('continente'), inconstitucional no seu conteúdo, bem como seria 'inconstitucional a norma concretamente aplicada e como aí interpretada e aplicada', ou seja, seria inconstitucional 'a norma (ou normas) que se referia e na interpretação normativa concreta do mesmo acórdão' (a fls. 213 vº);
- O acórdão impugnado teria utilizado uma distinção ultrapassada entre inconstitucionalidade de decisão judicial e inconstitucionalidade de norma jurídica. Pelo contrário, outra solução dogmática se imporia: 'é uma questão de anverso e reverso: do aspecto prima facie e acidental (sem mudar a essência) das proposições e dos raciocínios'. Segundo 'as regras da morfologia, da sintaxe e da lógica' impor-se-ia 'solução contrária à adoptada no acórdão impugnado'. Só não 'seria assim - se retrocedermos séculos, ao velho Egipto (p. ex.) onde os meios de comunicação (jurídica) estavam submetidos a «fórmulas sagradas»: só a forma; e não o pensamento ou as regras da linguagem e do raciocínio lógico, imperavam' (a fls. 214).
Conclui pedindo que seja revogado o acórdão nº 504/97, por procederem as nulidades arguidas, explicitadas e fundamentadas ao abrigo do art. 668º, nº
1, alíneas b), c), e d), do Código de Processo Civil.
2. Notificados deste requerimento, a ele vieram responder o Ministério Público e o Município de Vila Nova de Famalicão.
Para o primeiro, seria manifesta 'a inexistência das nulidades ficcionadas no prolixo requerimento do recorrente', sendo evidente 'que o decidido se mostra claramente fundamentado - correspondendo, aliás, o acórdão ora questionado a jurisprudência uniforme, pacífica e reiterada deste Tribunal'
(a fls. 218), afigurando-se que 'o ora reclamante não terá assimilado devidamente o tema dos requisitos e pressupostos de admissibilidade dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade e a função por estes desempenhada no nosso ordenamento jurídico' (a fls. 219). Conclui no sentido de dever ser julgado 'manifestamente improcedente o pedido deduzido' (ibidem).
O segundo propugna também pelo desatendimento das nulidades suscitadas, afirmando o seguinte:
' Apesar do imenso conjunto de palavras eruditas (conteúdo) insertas nas nove folhas (continente) da extensa e, admitem os recorridos, porventura sábia arguição de nulidade, o certo é que apesar de cuidadosamente lhes ter lido o anverso (frontispício) e o reverso (traseiras), não conseguiu alcançar o fundamento de arguição.
Julgam que será o seguinte: ao alegar-se e defender-se a inconstitucionalidade de uma decisão judicial («continente, referente, casca» - vide art. 2º da arguição) está a pôr-se em causa a constitucionalidade das normas jurídicas ou a interpretação delas («conteúdo») em que tal decisão se fundamenta.
O disposto nos arts. 70º a 75º-A da LTC e os termos em que a interposição do recurso para este Colendíssimo Tribunal se mostra feita, não deixam margem para qualquer dúvida de que aquilo de que se recorreu foi do douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto e não de qualquer preceito legal.' (a fls. 220)
3. Cumpre apreciar a arguição da nulidades.
Como se referiu, imputa o recorrente ao acórdão nº 504/97 vários vícios de nulidade, a saber:
- falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
- oposição dos fundamentos com a decisão;
- omissão de pronúncia sobre questões que o Tribunal devia conhecer ou conhecimento de questões de que o Tribunal não podia conhecer.
Todavia, improcede, de forma manifesta, a arguição de nulidades, como sustentam os dois recorridos nas respectivas respostas, sendo certo que não se alcança, à face do que foi invocado pelo recorrente ora requerente, onde terá havido omissão ou excesso de pronúncia.
Na verdade, o recorrente utiliza a arguição das nulidades para denunciar sucessivos errores in iudicando que, em sua opinião, afectam o acórdão impugnado. Simplesmente, a discordância do recorrente quanto à interpretação e aplicação das normas que disciplinam a fiscalização concreta por parte do Tribunal Constitucional só poderia fundar um recurso ordinário se a lei in casu o admitisse. Como não admite tal recurso, o ora reclamante deita mão a um instrumento processual que é completamente inidóneo para o efeito, razão por que há-de soçobrar a sua pretensão.
Parece evidente, que não ocorre qualquer falta de fundamentação - seja no plano fáctico (se é que tal tem sentido), seja sobretudo no plano jurídico - no acórdão impugnado.
Na sequência da exposição do relator de fls. 179 a 186, o Tribunal considerou que, até à prolação do acórdão de Relação, os agravantes jamais haviam suscitado uma questão de inconstitucionalidade normativa, de forma clara e perceptível, em termos de obrigar o Tribunal da Relação a julgar essa questão de constitucionalidade, nos termos do art. 204º da Constituição (redacção da quarta revisão constitucional). Só no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade se identificava minimamente a questão de constitucionalidade normativa, aliás em termos manifestamente deficientes ['(interpretação) normativa restritiva perfilhada inconstitucionalmente no douto Acórdão recorrido
... de que o apoio judiciário na modalidade de mera dispensa de preparos (e não também de isenção de custas), já permite às partes praticarem todos os actos necessários à defesa dos seus legítimos interesses']. Não houve, pois, identificação da norma contida em preceito de lei ou outro acto normativo que seria desconforme à Constituição.
Daí que se tivesse nessa peça fundamentado a causa de não conhecimento do recurso interposto (a circunstância de os recorrentes terem imputado 'a uma decisão jurisdicional, o acórdão da Relação recorrida, os vícios de inconstitucionalidade, de violação de tratados internacionais e da ilegalidade').
A questão foi de novo abordada e abundantemente fundamentada no acórdão nº 504/97, onde teve ocasião o Tribunal Constitucional de reanalisar a argumentação dos recorrentes, constante da resposta à exposição do relator, sendo certo que só nessa peça apontaram os recorrentes as normas de direito ordinário alegadamente inconstitucionais (arts. 1º, 7º, 15º, 16º, 17º, 20º, nº
1, alínea c), e 31º, nºs. 2 e 3, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, e do Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro, na interpretação perfilhada no acórdão recorrido).
A jurisprudência sedimentada do Tribunal Constitucional, a lição da doutrina constitucionalista e os dados de direito comparado mostram - por muito que tal pareça formalista e errado ao ora requerente - que há uma diferença entre o controlo ou fiscalização concreta de constitucionalidade de normas jurídicas e o controlo da conformidade constitucional de actos de aplicação do direito, como são os actos judiciais e os actos administrativos. Ainda que num puro plano dogmático se possa pôr em causa a distinção entre o momento interpretativo e o momento aplicativo das decisões judiciais, a verdade é que tal distinção é correntemente utilizada no processo constitucional, não obstante se reconhecer a dificuldade de destrinça em casos de fronteira (veja-se J. M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 2ª ed., Coimbra,
1992, págs. 24 e segs., maxime 29-30, 50, nota 49-b).
Simplesmente, no caso concreto, é manifesto que não ocorria qualquer situação limite.
Tão-pouco existe qualquer contradição entre a exposição do relator e o acórdão impugnado, sendo certo que neste último se analisam e rebatem as razões dos recorrentes no sentido do conhecimento dos recursos por eles interpostos. O ora requerente discorda da posição do Tribunal Constitucional segundo a qual é tardia a identificação da questão de inconstitucionalidade normativa no requerimento de interposição do recurso e, por maioria de razão, na resposta à exposição do relator. Existe jurisprudência firme e reiterada sobre o entendimento funcional do requisito de suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, pelo que uma elementar cautela deveria ter levado os recorrentes - ainda que discordassem do imputado formalismo excessivo da jurisdição constitucional - a identificarem, de forma clara e perceptível, no recurso de agravo, as normas que consideravam ser inconstitucionais, numa certa interpretação, de modo a confrontarem o Tribunal da Relação do Porto com concretas questões de constitucionalidade normativa, susceptíveis de abrirem, com êxito, a via do recurso de constitucionalidade. Não há, pois, contradição entre o que se refere nessa exposição e no acórdão que a confirma.
Por último, não se vê qual a omissão de pronúncia ou a falta de fundamentação em que tenha incorrido o acórdão impugnado quanto aos passos indicados no requerimento em análise, sendo certo que todo o discurso do requerimento se destina a criticar e contradizer uma linha jurisprudencial firme. É que a discordância com o teor da decisão, ainda que fundada, não acarreta a nulidade desta última (haverá vício quanto ao fundo ou mérito da própria decisão sobre os pressupostos processuais do recurso, mas não vícios de procedimento geradores de nulidade). Nunca se negou que os recorrentes tivessem
'levantado' uma questão de constitucionalidade; negou-se, sim, que o tivessem feito quanto a normas jurídicas.
4. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional indeferir a presente arguição de nulidades.
Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em seis unidades de conta.
Lisboa, 28 de Outubro de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa