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Processo n.º 550/2005
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos foi proferida a seguinte Decisão Sumária:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Supremo Tribunal de Justiça, em que figura como recorrente A. e como
recorrida B., foi interposto recurso de constitucionalidade do acórdão de 31 de
Maio de 2005, nos seguintes termos:
A., com os sinais dos autos, continua a não se conformar com o aliás douto
acórdão que antecede restando-lhe assim, lançar mão do recurso para o Tribunal
Constitucional, uma vez que se mostram, praticamente, exauridas todas as
esperanças, do ponto de vista processual, de almejar solução diversa da que tem
sido perfilhada pelas instâncias.
Recurso este que assenta na inconstitucionalidade:
I - Do art. 672° do CPC, com referência ao disposto no art. 77°-1 e 3 do CPT,
ambos como ratio decidendi do acórdão que julgou a revista improcedente e no que
conheceu do seu pedido de reforma, na parte em que se recusou a apreciar as
questões relacionadas com a nulidade arguida no recurso de apelação, com o
fundamento de que a mesma era extemporânea.
II - Dos arts 69° do CPT e 7° e 8° da LCT, na interpretação que vem de lhes ser
dada em todas as instâncias e, agora, também, neste STJ. Efectivamente,
I - QUANTO À PRIMEIRA
A douta argumentação, só agora usada - e daí a tempestividade da sua arguição, à
luz da exigência consignada no art. 72°-2 da LTC - para rebater uma das traves
mestras das revista, não deixou de nos surpreender, não apenas por ser
inusitada, como por vir ao arrepio da própria lei.
Efectivamente, no que tange à não apreciação da questão relacionada com a
nulidade da sentença proferida na 1ª instância, decidiu a RP não conhecer da
respectiva matéria, com o fundamento de que a sua arguição, nos termos do art.
77°-1 do CPT, deveria ter lugar, expressa e separadamente, no requerimento de
interposição de recurso.
Ora, esse Venerando Tribunal, no acórdão proferido sobre o mérito da revista,
não se pronunciou devidamente sobre tal desiderato, limitando-se a exarar, em
termos vagos e genéricos, que não ocorreria a nulidade em que tal omissão de
conhecimento se traduzira, cometendo, a nosso ver, uma nulidade em cima de uma
outra, que já vinha de trás e continua por sanar, pese embora o empolgamento que
vem de lhe ser dado.
Com o devido respeito, mas o signatário estudou, pelo menos, nos mesmos livros
que V. Excelências e, quiçá, com os mesmos Mestres, aprendeu nos bancos de
Coimbra, e há mais de três décadas, em que é que consiste o caso julgado formal,
por nós esgrimido em reforço do pedido de reforma do acórdão - o que por lei nos
é permitido - e cuja invocação vem agora posta em causa a nosso ver com notória
descortesia, pois poderia apenas dizer-se que, por qualquer outra razão, não se
concordava com tal entendimento.
Seria uma espécie de perifrase eufimística, mas que melhor se coadunaria com o
disposto no art. 266°-B) do CPC e nos cairia muito melhor, porque V.Exas ficavam
com a vossa e o signatário com a sua e não, como se fez, aduzindo-se ali que o
revidente faz apelo a “um imaginário e completamente descabido caso julgado
formal”.
Imaginário e completamente descabido? Como assim?
O caso julgado formal está lá, na parte em que o Sr. Juiz do Tribunal de
Trabalho de Lamego, no uso da faculdade prevista nos arts 77°-3 do CPT e 668°-4
do CPC e com os efeitos previstos no 744°, se pronunciou sobre a arguida
nulidade, no despacho que recebeu o recurso de apelação - e que, nessa parte,
transitou, uma vez que dele nenhuma das partes reclamou ou recorreu - muito
embora para decidir que de tal nulidade não enfermaria a sentença.
Portanto, se a pretensa omissão pretensamente cometida (infelizmente, tudo nos
leva a crer que o nosso requerimento de recurso de apelação ainda não chegou a
ser lido como deveria ser) se consubstanciasse numa verdadeira nulidade, logo a
mesma ficara sanada pelo despacho proferido na 1ª instância, pelo que tal
despacho transitou, fez caso julgado formal e já não pode mais ser discutido
pelas instâncias superiores.
Efectivamente, como se prescreve no art. 672° do CPC, os despachos que recaíam
unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo,
pelo que, inquestionavelmente, a referida decisão proferida na 1ª instância -
ainda que se entendesse que o recorrente não alegara e deveria ter alegado tal
nulidade de forma expressa no requerimento - como que precludiu e sanou a mera
irregularidade processual em que tal pretensa omissão se materializaria, como
resulta do disposto nos arts 201º-1 e 205°-2, 3 e 206°-3, todos do C PC,
estando, consequentemente, vedado à Relação voltar a repristinar tal desiderato,
para se eximir ao dever de se pronunciar sobre a matéria que integrava tal
nulidade.
Não podemos, assim, confundir duas realidades distintas, como V .Exas vêm de
fazer, pois, uma coisa é a nulidade prevista no art. 668°-1.d) do CPC e assacada
à sentença proferida na 1a instância, por ter deixado de conhecer de questão que
importava conhecer, e outra, bem diferente, é a nulidade prevista no art. 77°-1
do CPT assacada pelo MP junto da RP ao requerimento de interposição do recurso
de apelação.
O MP junto da RP, no respectivo parecer prévio, pugnara - erradamente,
continuamos a pensar pela extemporaneiciade da primeira, com o posterior
aquiescimento do acórdão que conheceu da apelação, acabando a Relação do Porto
e, AGORA, TAMBÉM ESSE STJ, por não conhecer, com esse fundamento. das questões
mais candentes que se suscitavam no recurso de apelação.
Isto não é fazer justiça. É sonegá-la, Senhor Conselheiro, para mais,
socorrendo-se V. Exas de uma argumentação que não procede, para se demonstrar
que o despacho proferido pelo Sr. Juiz do T. Trabalho, na 1ª instância, não
fizera caso julgado formal.
Assim, não é o nosso requerimento, seguramente, que padece das maleitas que V.
Exas lhe apontam, sendo a norma prevista no art. 672º do CPC, como ratio
decidendi do acórdão que antecede, manifestamente inconstitucional, no que tange
à interpretação que vem de lhe ser dada por esse colendo Tribunal.
I- OUANTO A SEGUNDA
No parecer do MP que antecedeu a apreciação deste recurso, e que Vossas
Excelências acabaram por sufragar, opinou o MP que “o A. se considerara
ressarcido da indemnização recebida pela cessação do contrato e que tal
indemnização respeitava a legislação em vigor sobre créditos salariais”.
É aqui que reside o nó górdio da questão fundamental e cujo desacerto é mais do
que notório, pois a quantia de 1.000.000$00 que o recorrente declarou ter
recebido, a título de pretenso pagamento de todos os créditos salariais a que
tinha direito) conforme legislação em vigor, fica pelo menos dez vezes aquém do
seu valor real, que é o de lei, pelo que, tal renúncia - repetimos, para que
conste aqui, agora e para sempre - apenas poderá reportar-se a créditos
salariais em divida à data da renúncia abdicativa, não afectando essa renúncia
os demais créditos a que tinha direito.
É precisamente aí, nesse limiar, digamos assim, que assenta o cerne do
entendimento jurisprudencial maioritário que recusa validade a declarações deste
tipo, maxime quando o princípio da liberdade contratual, inquestionavelmente,
não permite que as partes contornem a legislação em vigor, celebrando acordos
contra legem.
Porque a Ré não provou que o A. tivesse renunciado a receber menos do que as
prestações a que tinha direito, é inconstitucional a norma prescrita no art.
405°-1 do CC, sempre na interpretação que as instâncias têm vindo a dar-lhe,
aliás contrária ao entendimento jurisprudencial mais comum, e de que se fez eco
o já citado Ac RC de 02.05,02, in CJ, Ano XXVII - 2002, Tomo III. (“Não tem
valor a declaração duma trabalhadora feita em documento por si subscrito datado
do mesmo dia em que a Ré a despediu, onde concorda com a rescisão do seu
contrato de trabalho … e fez também esta afirmação: “recebi todos os meus
direitos nada mais tendo a exigir da entidade patronal”)
E se é certo que não tem esse STJ que seguir a doutrina daquele douto aresto,
não é menos verdade que, ao afastar-se ostensivamente dela, está também a
afastar-se da lei substantiva, maxime contra o princípio de que os direitos dos
trabalhadores são absolutamente irrenunciáveis e inarredáveis e, sobretudo,
contra os consignados nos arts 20°-5, 53°, 58°-1, 202°-2, 203°, 204°, e 205° da
nossa Lei Fundamental.
Estas as razões, muito por alto, que levam os impetrantes a interpor recurso
para o Tribunal Constitucional, a subir imediatamente, nos próprios autos e com
efeito devolutivo, tudo nos termos dos arts 72°-2 e 75°-1 da LTC.
Recurso que cumpre rigorosamente:
- A prescrição do art. 75º-A.2, na medida em que tal inconstitucionalidade já
vem suscitada desde as alegações de apelação até à presente data.
- O disposto no art. 70º-1.b), da LTC, com referência ao 75°-A.1,2 da LTC.
O recorrente considera particularmente inconstitucionais, na interpretação que
vem de lhes ser dada:
- Os art 7º e 8º da LCT e 69° do CPT
- O art. 405º-1 do CC
- O art. 672º do CPC, com referência ao disposto no art. 77°-1 e 3 do CPT.
A Relatora proferiu o seguinte Despacho:
Notifique o recorrente, ao abrigo do artigo 75º‑A, nº 5, da Lei do Tribunal
Constitucional, para explicitar a dimensão ou dimensões normativas que pretende
ver apreciadas.
O recorrente respondeu o seguinte:
I - Os doutos arestos proferidos na RP e no STJ julgaram extemporânea a arguição
da nulidade parcial da sentença proferida no T. Trabalho de Lamego, lançando
mão:
A) Nos proferidos sobre o mérito da apelação e da revista, dos arts 77°-1 e 3 do
CPT.
B) No que se pronunciou sobre o pedido de reforma do último, do art. 672° do CPC
II - Todas as instâncias se fundamentaram nos arts 405° do CC e 69° do CPT, com
referência aos e 7° e 8° da LCT, para considerarem válida e eficaz a declaração
subscrita pelo A. como renúncia abdicativa do direito de exigir da Ré o
pagamento dos salários legais e de todas as prestações vencidas.
Em nosso entendimento, a aplicação dos referidos normatívos, na interpretação
que lhes foi dada, é inconstitucional, pelas seguintes razões:
I- QUANTO À PRIMEIRA
A) Do art. 77°-1 e 3 do CPT
1. A RP não conheceu da nulidade da sentença proferida no T. Trabalho de Lamego,
com o fundamento de que a sua arguição, nos termos do art. 77°-1 do CPT, deveria
ter lugar no requerimento de interposição de recurso, separadamente da
respectiva motivação. (O quer aliás, até se fez).
O STJ por seu turno não tomou posição sobre se ocorria ou não tal
extemporaneidade, contornando a questão da suscitada nulidade, referindo-se-lhe
em termos vagos e genéricos, apenas para referir, en passant, que a mesma não
teria ocorrido.
2. Destarte, contrariando o princípio consignado no art. 729°-1 e 2 do CPC, de
que o Supremo só pode aplicar o direito aos factos materiais fixados pelo
Tribunal recorrido, acabou por fazer-se aqui precisamente o contrário, não
conhecendo da questão de direito que ali importava ter conhecido, que era a de
saber se a arguição de nulidade fora ou não extemporânea, para decidir apenas
que a RP não a praticara.
Ora, ou tem razão a RP, quando decide que a nulidade fora extemporaneamente
alegada, dela não conhecendo, com esse fundamento; ou tem razão o STJ, quando
decide que a RP não cometeu nulidade alguma pelo facto de não ter apreciado de
direito a questão de facto que se levantava e que continua de pé.
B) Do art. 672° do CPC
3. Por outro lado, com vista a exaurir o thema decidendum, ainda pugnou o
impetrante pela reforma do acórdão proferido no STJ, esgrimindo com a violação
do caso julgado formal, por parte da RP, que veio repristinar uma questão
definitivamente decidida no Tribunal de Trabalho de Lamego, onde o Sr. Juiz,
apreciando adrede o requerimento de interposição de recurso, proferiu, então,
douto despacho a receber a apelação, decidindo, ainda, no uso e com o efeito das
disposições combinadas nos arts 77º‑3 do CPT e 668°-4 e 744° do CPC que a
sentença não padecia da arguida nulidade.
4.Conheceu-se, pois, da sua arguição na 1ª instância, não a julgando, portanto,
extemporânea, pelo que tal desiderato, ex vi do art. 672° do CPC, ficou
definitivamente sedimentado, não no que respeita a saber se a nulidade fora ou
não cometida mas se a mesma fora ou não arguida nos termos e pela forma legais,
pois ainda que assim não fosse e aquela decisão se mostrasse errada, yeio a
transitar, por falta de reclamação ou de recurso na parte em que recaiu sobre a
relação processual tendo, assim, força obritória dentro do processo.
5. É, pois, apodíctico que nem a RP nem o STJ julgaram a questão controvertida
como se prescreve no art. 205°-1 da CRP, é dizer, não a fundamentaram pela forma
prevista na lei, violando, assim, aquele normativo constitucional, com
referência ao disposto nos arts 201°-1, 205°-2 e 3, 206°-3, 668°-4, 672° e 744°,
todos do CPC e art. 77°-3 do CPT.
6. Ao pronunciar-se sobre a referida violação do caso julgado formal, o STJ veio
pronunciar-se, no acórdão sobre o mérito do referido pedido da reforma, deixando
exarado o entendimento de que o despacho proferido pelo Sr. Juiz de Lamego não
transitou em julgado, fazendo uma interpretação da norma prevista no art. 672°
do CPC, quanto a nós, também inconstitucional.
7. Efectivamente, por um qualquer lapso de raciocínio, no STJ confundiram-se
duas realidades distintas, pois, uma coisa é a nulidade assacada à sentença da
1ª instância, e que vem prevista no art. 668°1.d) do CPC, por ter deixado aí de
conhecer de factos que importava conhecer, e outra, bem diferente, é a nulidade
prevista no art. 77°-1 do CPT por se recusar a conhecer daqueles mesmos factos
por razões estritamente processuais.
II - QUANTO À SEGUNDA
1. O acórdão que se pronunciou sobre o mérito da revista sufragou, ainda que
tacitamente, o parecer emitido pelo MP, no sentido de que, citamos, “o A. se
considerara ressarcido da indemnização recebida pela cessação do contrato e que
tal indemnização respeitava a legislação em vigor sobre créditos salariais”
2. Ora, por um lado, se é certo que, na declaração subscrita pelo Autor fez a Ré
constar - vem assente que foi elaborada por esta nos seus escritórios - que o
mesmo recebera, a título de pagamento dos créditos salariais a que tinha
direito, a quantia de 1.000.000$00, conforme legislação em vigor, não é menos
verdade que aquela importância não corresponde minimamente ao valor que o
recorrente nos termos da lei teria direito a receber.
3. Assim, é notório, na acepção do 514° do CPC, que tal declaração, ainda que de
um ponto de vista puramente literal, apenas serviria como renúncia a créditos
salariais em dívida à data da renúncia abdicativa não afectando essa renúncia os
demais créditos a que o recorrente tinha direito sendo precisamente nesse limiar
que assenta o cerne e a ratio do entendimento jurisprudencial maioritário que
tem vindo a recusar validade a declarações deste género que, além do mais,
contrariariam o princípio de que a liberdade contratual não vai a pontos de
permitir a violação das leis em vigor, quando as mesmas são de natureza e ordem
públicas, estando-se, por isso, prima facie, perante um acordo contra legem.
(Cf. p. f. i.o., o Ac RC de 02.05.02, in CJ, Ano XXVII - 2002, Tomo III. “Não
tem valor a declaração duma trabalhadora feita em documento por si subscrito
datado do mesmo dia em que a Ré a despediu onde concorda com a rescisão do seu
contrato de trabalho ... e fez também esta afirmação: “recebi todos os meus
direitos, nada tendo a exigir da entidade patronal”)
4. Por outro lado, ao decidirem as instâncias que as artes eram livres para
poderem negociar e que a referida declaração tem pleno valor e eficácia como
abdicação voluntária dos créditos legais a que o A. tinha direito, socorreram-se
de norma inconstitucional, na interpretação que aí lhe foi dada, in casu, da
prescrita no art. 405°‑1 do Código Civil, pois os direitos dos trabalhadores são
irrenunciáveis e inarredáveis, não podendo ser afastados pelas partes, sobretudo
quando, notoriamente, se vê sempre na acepção do 514° do CPC - que estamos
perante um acto leonino também proibido por lei, pois os créditos que o
recorrente declarou ter recebido de acordo com a lei em vigor, ficam, pelo
menos, dez vezes aquém dessa mesma lei.
5. E porque não vem apenas posta em causa a inconstitucionalidade do art. 405°
do CC, mas também, por corolário arrastamento, a dos arts 7° e 8° da LCT, bem
como os princípios consignados nos arts 20°‑5, 53°, 58°-1, 202°-2, 203°, 204°,
e 205° da nossa Lei Fundamental, que se mostram violados, entendeu o impetrante
interpor o presente recurso para este Tribunal Constitucional, nos termos e com
os efeitos já requeridos.
SINTETIZANDO, considera o recorrente particularmente inconstitucionais, na
interpretação que vem de lhes ser dada, e pela ordem acabada de referir:
- Os arts 77°-1 e 3 do CPT e 672°, do CPC,
E ainda,
- Os arts 405° do CC e 69° do CPT
Vossa Excelência, porém, verá, naturalmente, sempre melhor.
Cumpre apreciar.
2. O recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional é interposto através de requerimento do qual consta, entre o
mais, a norma ou dimensão normativa que o recorrente pretende ver apreciada.
O recorrente tem, pois, o ónus de identificar no requerimento de interposição do
recurso de constitucionalidade o critério de decisão de casos (critério que, por
ser normativo, há‑de apresentar as características de generalidade e de
abstracção) que considera violador da Constituição.
No presente recurso, o recorrente, tanto no requerimento de interposição do
recurso para o Tribunal Constitucional, como na resposta ao Despacho proferido
ao abrigo do artigo 75º‑A da Lei do Tribunal Constitucional, procede ao relato
das várias vicissitudes que alegadamente ocorreram nos autos. Com efeito, refere
decisões judiciais, actuações das instâncias e pretensões por si deduzidas.
Interpreta, por outro lado, tais vicissitudes, concluindo pela violação de
princípios e preceitos constitucionais. Invoca ainda a aplicação de determinados
preceitos, “na interpretação que lhes foi dada” pelo tribunal recorrido.
Não identifica, porém, em momento algum, o conteúdo da interpretação que
pretende impugnar.
Na verdade, não se pode confundir com a identificação de uma dimensão normativa
o relato de vários acontecimentos (descritos com pormenor) que alegadamente
tiveram lugar no decurso do processo; também não se confunde com essa
identificação a afirmação de que a interpretação dada pelas instâncias de certos
preceitos é inconstitucional. O recorrente tinha o ónus de referir expressamente
essa interpretação, o que nunca fez.
Não o tendo feito (não obstante ter sido notificado expressamente para o fazer),
verifica‑se que o recorrente apenas impugna no presente recurso as próprias
decisões proferidas nos autos. Ora, tal não constitui objecto idóneo do recurso
da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, que só
pode ser constituído por normas ou dimensões normativas.
Não satisfazendo o requerimento do recurso os requisitos do artigo 75º‑A da Lei
do Tribunal Constitucional, o mesmo será indeferido, de acordo com o nº 2 do
artigo 76º da mesma Lei.
3. Em face do exposto, decide‑se indeferir o requerimento de interposição do
recurso de constitucionalidade.
O recorrente vem agora reclamar para a Conferência, ao abrigo do artigo 78º‑A,
nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, afirmando o seguinte:
Os acórdãos proferidos na RP e no STJ julgaram extemporânea a arguição da
nulidade da sentença proferida no T. Trabalho de Lamego, com fundamento nos arts
77°-1 e 3 do CPT.
E, com base nos arts 405° do CC e 69° do CPT, com referência aos e 7° e 8° da
LCT, vieram a considerar válida e eficaz a declaração subscrita pelo A., como
renúncia abdicativa do direito de exigir da Ré o pagamento de todas as
prestações legais a que tinha direito.
Continuamos a entender que, se por um lado, a aplicação dos referidos
normativos, na interpretação que lhes foi dada, é inconstitucional, por outro, a
sua arguição foi feita tempestivamente e de acordo com a lei substantiva e
adjectiva, contrariamente ao aliás douto entendimento perfilhado na decisão
sumária que antecede.
Efectivamente, no que respeita ao art. 77°-1 e 3 do CPT, se o STJ nem chegou a
tomar posição sobre tal desiderato, referindo-se-lhe em termos vagos, importa de
sobremaneira relevar que a RP não conheceu da nulidade da sentença proferida na
1ª instância com o fundamento de que a sua arguição deveria ter lugar no
requerimento de interposição de recurso.
Assim, forçoso se toma concluir que, ou tem razão a RP, quando decide que a
nulidade fora extemporaneamente alegada, dela não conhecendo, com esse
fundamento; ou tem razão o STJ, quando decide que a RP não cometeu nulidade
alguma pelo facto de não ter apreciado de direito a questão de facto que se
levantava e que continua de pé.
Ocorreu, pois, manifesta violação do caso julgado formal a que se refere o art.
672° do C PC, por parte da RP, porque aí se ter repristinado uma questão
definitivamente decidida no Tribunal de Trabalho de Lamego, onde o Sr. Juiz,
recebera a apelação e apreciou a arguida nulidade, embora para concluir que a
sentença dela não padecia, não a julgando, portanto, extemporânea, pelo que tal
desiderato ficou definitivamente sedimentado, não no que respeita a saber se a
nulidade fora ou não cometida, mas se a mesma fora ou não arguida nos termos e
pela forma legais, pois ainda que assim não fosse e aquela decisão se mostrasse
errada, transitou na 1ª instância, por falta de reclamação ou de recurso, na
parte em que recaiu sobre a relação processual, tendo, assim, força obrigatória
dentro do processo.
Assim, nem a RP nem o STJ julgaram a questão controvertida como se prescreve no
art. 205°-1 da CRP, é dizer, não a fundamentaram pela forma prevista na lei,
violando, assim, aquele normativo constitucional, com referência ao disposto nos
arts 201°-1, 205°-2 e 3, 206°3, 668°-4, 672° e 744°, todos do C PC e art. 77°-3
do CPT.
Contudo pronunciando-se sobre essa violação do caso julgado formal o STJ veio
pronunciar-se no acórdão sobre o mérito do referido pedido da reforma. deixando
exarado o entendimento de que o despacho proferido pelo Sr. Juiz de Lamego não
transitara fazendo uma interpretação da norma prevista no art. 672° do C PC,
quanto a nós, também inconstitucional.
Na verdade, no STJ confundiram-se duas realidades distintas: - uma coisa é a
nulidade assacada à sentença da 1ª instância, e que vem prevista no art.
668°-1.d) do CPC, por ter deixado aí de conhecer de factos que importava
conhecer, e outra, bem diferente, é a nulidade prevista no art. 77°‑1 do CPT,
por se recusar a conhecer daqueles mesmos factos por razões estritamente
processuais.
PORTANTO sobre a vertente deste recurso onde se afirma ser inconstitucional a
norma do art. 672° do CPC na interpretação que lhe foi dada pelo STJ é mais do
que tempestiva pois esta última instância só no acórdão que conheceu do pedido
de reforma do que o antecedeu é que veio a indeferir aquele pedido com
fundamento que passa pela manifesta visão inconstitucional daquele normativo.
Por outro lado, o acórdão que se pronunciou sobre o mérito da revista sufragou,
ainda que tacitamente, o parecer emitido pelo MP, no sentido de que, citamos, 'o
A. se considerara ressarcido da indemnização recebida pela cessação do contrato
e que tal indemnização respeitava a legislação em vigor sobre créditos
salariais'.
Ora, se é certo que, na declaração subscrita pelo Autor fez a Ré constar - vem
assente que foi elaborada por esta nos seus escritórios - que o mesmo recebera,
a título de pagamento dos créditos salariais a que tinha direito, a quantia de
1.000.000$00, conforme legislação em vigor, não é menos verdade que aquela
importância não corresponde minimamente ao valor que o recorrente no termos da
lei teria direito a receber.
Assim, é notório, na acepção do 514° do CPC, que tal declaração, ainda que de um
ponto de vista puramente literal, apenas serviria como renúncia a créditos
salariais em dívida à data da renúncia abdicativa, não afectando essa renúncia
os demais créditos a que o recorrente tinha direito, sendo precisamente nesse
limiar que assenta o cerne e a ratio do entendimento jurisprudencial majoritário
que tem vindo a recusar validade a declarações deste género que, além do mais,
contrariariam o princípio de que a liberdade contratual não vai a pontos de
permitir a violação das leis em vigor, quando as mesmas são de natureza e ordem
públicas, estando-se, por isso, prima facie, perante um acordo contra legem.
(Cf. p.f.i.o., o Ac RC de 02.05.02, in CJ, Ano XXVIl- 2002, Tomo III. 'Não tem
valor a declaração duma trabalhadora feita em documento por si subscrito, datado
do mesmo dia em que a Ré a despediu, onde concorda com a rescisão do seu
contrato de trabalho...e fez também esta afirmação: 'recebi todos os meus
direitos, nada mais tendo a exigir da entidade patronal').
Além disso, ao decidir-se que as partes eram livres para poderem negociar, e que
a referida declaração tem pleno valor e eficácia, como abdicação voluntária dos
créditos legais a que o A. tinha direito, socorreram-se as instâncias de norma
inconstitucional, na interpretação que aí lhe foi dada, in casu, da prescrita no
art. 405°-1 do Código Civil, pois os direitos dos trabalhadores são
irrenunciáveis e inarredáveis, não podendo ser afastados pelas partes, sobretudo
quando, notoriamente, se vê - sempre na acepção do 514° do C PC - que estamos
perante um pacto leonino, também proibido por lei, pois os créditos que o
recorrente declarou ter recebido de acordo com a lei em vigor, ficam, pelo
menos, dez vezes aquém dessa mesma lei.
E porque não vem apenas posta em causa a inconstitucionalidade do art. 405° do
CC, mas também, por corolário arrastamento, a dos arts 7° e 8° da LCT, bem como
os princípios consignados nos arts 20°-5, 53°, 58°-1, 202°-2, 203°, 204° e 205°
da nossa Lei Fundamental, que se mostram violados, entendeu o impetrante
interpor o presente recurso, não se vislumbrando que outra melhor forma possa
haver do que a escolhida pelo signatário, para justificar melhor o recurso a
este Tribunal Constitucional.
Talvez, Excelências, que uma das questões que ora se suscitam - saber se a
declaração dos autos pode servir de renúncia abdicativa - seja demasiado
melindrosa, a pontos de no STJ ainda se manterem vivas duas correntes distintas
sobre tal vexata quaestio.
A nosso ver, seria este, seguramente, o momento mais azado para se meter ordem
de uma vez por todas em tal conflito.
Poderá assacar-se algum desrigor formal à forma como vem exposta tal questão ou
que a mesma peque por excesso de palavras, mas se assim é, não vemos que seja
lícito deitar fora a criança com a água suja da banheira, como fez a Exma
Conselheira Relatora, a quem, pelos vistos, não tivemos o condão de explicitar o
nosso raciocínio de modo a fazer compreender a razão que assiste ao recorrente,
sendo por isso que vem dirigir-se agora à douta Conferência, tendo em conta que
em matéria da interpretação e da aplicação do direito, não estão os tribunais
sujeitos à alegação das partes.
O que importa é saber se são inconstitucionais ou não - e isso vem claramente
explicitado no nosso requerimento, bastando que se dê às questões tratadas o
mérito que elas merecem, apesar de não serem de natureza mediática - os arts
77°-1 e 3 do CPT e 672°, do CPC, bem como os arts 405° do CC e 69° do CPT.
E ainda que tal arguição tenha sido feita em termos genéricos, nada deverá
obstar, repetimos, à admissão deste recurso pois, como se decidiu no douto Ac.
TC 31/88, '... afirmar que determinada interpretação, dada pelo tribunal
recorrido, não poderia ter sido querida pelo legislador, sob pena de
inconstitucionalidade, vale por arguição de inconstitucionalidade da norma em
causa.
Afirmar que uma norma, na interpretação que lhe foi dada por qualquer tribunal,
afronta a lei fundamental, vale como arguição de inconstitucionalidade e é,
assim, fundamento de recurso'.
Aliás, como também se decidiu no douto Ac. TC 122/00, '...para efeitos de
fiscalização concreta de constitucionalidade, uma interpretação restritiva de
norma da qual resulte a sua inaplicabilidade ao caso concreto, deve ainda
considerar-se aplicação dessa norma, sob pena de a mesma, nessa interpretação,
nunca poder ser sindicada à luz da Constituição.'
Daí que o presente recurso, interposto nos termos da al. b) do art. 70º-1 da
LTC, haja cumprido, minimamente, a prescrição do art. 72°-2 da mesma Lei, tendo
em linha de conta que NÃO ERA DE TODO PREVISÍVEL que o STJ, para indeferir o
pedido de reforma do acórdão que o antecedeu, viesse a fazê-lo com base na norma
prevista no art. 672° do CPC, desvirtuando-a e fazendo da mesma uma
interpretação manifestamente inconstitucional (Cf. a fls 54, o ponto 8.3, in
Breviário de Direito Processual Constitucional, 2ª ed. do Exmo Conselheiro
Guilherme da Fonseca e I. Domingos e Acs 124/00, 155/00, 192/00,79/02 e 120/02).
Nestes termos e melhores de direito que a douta Conferência não deixará de
suprir, deverá revogar-se a, aliás, douta decisão sumária que antecede e
substituir-se por outra que admita o presente recurso, por se verificarem os
pressupostos consignados nos arts 70º-1.b), 72°-2 e 75°-A, todos da LTC.
A reclamada não se pronunciou.
Cumpre apreciar.
2. O reclamante procede, na presente reclamação, mais uma vez, ao relato de
várias vicissitudes alegadamente ocorridas nos presentes autos, fazendo
referência a interpretações dos preceitos legais que identifica através da
remissão formal para as decisões judiciais, sem nunca explicitar qual é a
concreta dimensão normativa ou interpretação que considera inconstitucional.
Vislumbra‑se, por outro lado, que o reclamante pretende que o Tribunal
Constitucional aprecie a questão de saber se “a declaração dos autos pode servir
de renúncia abdicativa”. Porém, esta é uma questão de qualificação de uma
concreta declaração emitida no processo. Não consubstancia uma questão de
constitucionalidade normativa pois não tem por objecto a conformidade à
Constituição de uma norma jurídica. O que as instâncias consideraram quanto à
questão de a referida declaração consubstanciar a alegada renúncia abdicativa
não pode agora ser sindicado pelo Tribunal Constitucional uma vez que estaria
então o Tribunal a apreciar a própria decisão e não uma norma, como de resto se
realçou na Decisão Sumária reclamada.
O reclamante invoca ainda jurisprudência do Tribunal Constitucional que
explicita quando é que se pode considerar que a questão de constitucionalidade
normativa é suscitada durante o processo. No entanto, o reclamante não pondera
que o entendimento expresso nesses arestos tem por pressuposto a identificação
pelo recorrente da concreta dimensão normativa que se considera
inconstitucional.
Ora, nos presentes autos, o reclamante apenas impugna as próprias decisões dos
autos. Nunca uma norma.
Improcede, pois, a presente reclamação.
3. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente
reclamação, confirmando consequentemente a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 9 de Novembro de 2005
Maria Fernanda Palma
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos