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Proc. nº 300/93
1ª Secção Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - No Tribunal da Comarca de Vila Nova de Famalicão, a empresa seguradora A. deduziu embargos de executado contra B.. Por efeito de sentença condenatória, a primeira entregara à segunda a quantia de Esc. 4.612.937$00. A dívida, porém, fora fixada em Esc. 4.851.007$00, correspondente a uma indemnização de Esc. 3.623.277$00, acrescida de juros de mora no valor de Esc.
1.587.830$00. A diferença de Esc. 238.170$00, entre a quantia entregue e aquela que se determinara na sentença, reteve-a a executada, considerando que o valor dos juros era 'rendimento de capitais' e o imposto que lhe correspondia, aquela diferença, sujeita a retenção na fonte, em ordem ao artigo 6º, nº 1, alíneas g) e o), do Código do I.R.S.
Ao deduzir os embargos, disse a executada A.:
'1 - A obrigação exequenda não existe, pois a embargada nada deve à embargante. Efectivamente,
2 - A executada, ao entregar à exequente, em 19/3/92, a quantia de
4.612.937$00, satisfez integralmente o crédito desta, que era de 4.851.007$00
(indemnização de 3.263.277$00 e juros de mora de 1.587.830$, cfr. artigos 1º e
2º da petição).
3 - Só que, ao pagar à exequente, a executada teve de reter, por imperativo legal previsto no I.R.S., a quantia exequenda, no montante de
238.170$00.
4 - Tal retenção na fonte incidiu sobre o valor dos juros de mora atrás aludidos, tidos e havidos como 'rendimento de capitais'.
5 - Ora, sobre o rendimento de capitais há lugar à retenção na fonte
- alíneas g) e o) do artº 6º do Código do I.R.S.
6 - Assim sendo, verifica-se a inexigibilidade da obrigação exequenda, por inexistência desta'.
Contestando, a exequente defendeu que os juros de mora no pagamento de uma indemnização por acidente de viação não poderiam ser tributados. O caso reconduzir-se-ia à norma do artigo 13º, nº 1, do Código do I.R.S. ['O IRS não incide sobre as indemnizações recebidas ao abrigo de contratos de seguro ou devidas a outro título'] e não à norma do artigo 6º, nº1, alínea g), do mesmo Código ['Consideram-se rendimentos de capitais (...) Os juros ou quaisquer acréscimos de crédito pecuniário resultantes da dilação do respectivo vencimento ou de mora no seu pagamento, sejam legais, sejam contratuais'].
Em dado passo, a exequente lembrou que 'o IRS é um imposto sobre o
'rendimento' das pessoas singulares. O Dec. Lei 442-A/88, de 30 de Novembro, que instituiu o IRS resulta da autorização legislativa da Ass. da República - Lei
106/88, de 17 de Setembro, dizendo o artº 1º: - Fica o Governo autorizado a aprovar diplomas do imposto sobre o 'rendimento' das pessoas singulares... - Devendo obedecer a princípios de 'equidade'... e contribuir para a 'realização da justiça social' (artigo 2º). O artº 6º do Cód. do IRS abrange 'rendimentos de capitais'.
E, no sentido de afastar uma interpretação que incluísse no artigo
6º do Código do I.R.S. os juros de mora no pagamento de uma indemnização, disse ainda, no que releva para o presente recurso de constitucionalidade: 'Só por absurdo legal, inconstitucionalidade, por aberração de falta de equidade e de justiça social - Se poderia considerar 'rendimento de capital'... 'uma'
'indemnização' de graves 'danos corporais' e 'não-patrimoniais' causados por acto ilícito de terceiro'.
Em sentença de 14 de Fevereiro de 1993, o sr. juiz julgou procedentes os embargos e, em consequência, declarou extinta a obrigação que lhes deu origem. Considerou então:
'(...) o teor dos presentes embargos de executado reduz-se às seguintes questões:
1 - O juro devido com base na mora do pagamento de uma indemnização atribuída judicialmente numa acção de responsabilidade civil emergente de acidente de viação será um rendimento sujeito a incidência fiscal no âmbito da categoria E, relativa a rendimentos de capitais, do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (I.R.S.)?
2 - Se no campo de aplicação de tal imposto se considera abrangido o juro referido, será legítimo à entidade devedora, companhia de seguros, proceder
à retenção na fonte do montante devido a esse título?'.
A estas questões respondeu afirmativamente. Tomou a norma do artigo
6º, nº1, alínea g), do Código do I.R.S. ['Consideram-se rendimentos de capitais: g) Os juros ou quaisquer acréscimos de crédito pecuniário resultantes da dilação do respectivo vencimento ou de mora no seu pagamento, sejam legais, sejam contratuais, com excepção dos juros devidos ao Estado ou a outros entes públicos por atraso na liquidação ou mora no pagamento de quaisquer contribuições, impostos ou taxas'] e disse:
'Assim, abrangendo os juros de mora quer legais, quer contratuais, será necessariamente afirmativa a resposta à 1ª questão.
A tal não obsta sequer o disposto no artº 13º do C.I.R.S. - 'O IRS não incide sobre as indemnizações recebidas ao abrigo de contrato de seguro' - dado que esta norma diz respeito às próprias indemnizações atribuídas e não aos juros de mora resultantes da dilação do seu cumprimento, não constituindo excepção ao disposto na alínea g) citada nem esta excepção àquele.
Conclui-se, pois, pela sujeição a tributação dos juros de mora em apreço, por força do disposto na alínea g) do artº 6º do CIRS (...)'.
A exequente recorreu dessa sentença para o Tribunal Constitucional, com invocação do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Delimitou o objecto do recurso na norma do artigo 6º, nº 1, alínea g), do Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro (Código do I.R.S.), com a interpretação que aí inclui os juros de mora no pagamento de uma indemnização decorrente de contrato de seguro. Assim:
'(...) a douta sentença recorrida interpretou o artº 6 al. g) do Dec. L. 442/A/88, 30 de Novembro (Cód. do IRS) como Norma ou Princípio de que abrange a 'indemnização' paga ao abrigo de contrato de seguro e para ressarcir 'prejuízos' derivados da mora, a partir da citação para a acção.
E assim ofendendo a autorização legislativa concedida ao Governo pela Lei nº 106/88, de 17 de Setembro para legislar sobre o 'rendimento' das pessoas singulares, dentro da equidade e realização da justiça social (arts. 1 e 2).
Certo que uma 'indemnização' não é um 'rendimento'. Nem é equitativo ou realiza a justiça social tributar 'indemnizações'.
E o Governo só por autorização legislativa e no âmbito dela pode criar impostos (arts. 164 e) e 168º 1º i) da Const. da Rep.).
Pelo que as referidas normas, princípio ou interpretação da sentença recorrida são inconstitucionais por ofender a dita autorização legislativa (Lei
106/88) e concomitantemente os cit. arts. 164, e) e 168º, 1º, i) da Const. da República.
Como já na contestação dos embargos foi o tema levantado - nomeadamente nos seus arts. 10º, 11º, 12º e 13º'.
Depois, em alegações, concluiria a recorrente:
'1. A recorrente como vítima de acidente de viação, obteve a seu favor sentença de condenação da seguradora, ao pagamento de certa indemnização dos danos.
2. Parte dessa indemnização constituiu na quantia de 1.587.830$ - consagrada como indemnização pela mora da seguradora a partir da citação
(artºs. 804º, 805º, nº 3, e 806º do C. Civil).
3. A seguradora liquidou à taxa de 15%, e reteve, 238.170$00 sobre aquela importância a título de IRS, alegando o artº 6º, al. g) do Dec. L.
442-A/88.
4. Na sentença recorrida, de embargos de executado, o Mº Juiz acatou norma ou princípio - de que o cit. artº 6º al. g) do Dec. L. 442-A/88 abrange tal indemnização. II
5. Todavia, tal 'norma' ou 'princípio' exornante da dita decisão do Mº Juiz da 1ª instância ofende os artºs. 168º, nº 1, i); 201º, nº 1, b); 206º e
207º da Constituição da República. Com efeito
6. Constitui reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República a criação de impostos e sistema fiscal (cit. artº 168º da Const. da Rep.).
7. O Dec. L. 442-A/88, de 30 de Novembro, resulta da autorização legislativa da Ass. da República, Lei 106/88, de 17 de Setembro.
8. Tal lei de autorização diz:
- artº 1º: Fica o Governo autorizado a aprovar diplomas reguladores do imposto sobre o 'rendimento' das pessoas singulares;
- artº 2º: Devendo obedecer a princípios de 'equidade' e contribuir para a 'realização da justiça social'. III Ora
9. À face da Lei - tal montante constitui uma 'indemnização':
10. Visa ressarcir um 'prejuízo' (artº 798º do C. Civil), reparar um 'dano' (artº 804º).
11. Apenas em termos de seu cálculo, a forfait, se usa o método de aplicar 'uma certa' taxa (artº 806º do C. Civil; cf. Anot. Profs. Pires de Lima e A. Varela).
12. Método esse que nem sequer é taxativo: pois pode o credor provar que existiu dano superior e exigir indemnização suplementar.
13. Ora, nos termos da Lei, e que é constitucionalmente de aplicação obrigatória (arts. 206º e 207º da Const. da Rep.) - tal acréscimo dos juros de mora desde a citação tem o valor legal de indemnização, de ressarcimento dum prejuízo, de reparação dum dano: em que o recurso à taxa de 'certo' juro é mero cálculo (e presuntivo) do seu montante. IV
14. Consequentemente, o artº 6º, al. g) do Dec. L. 442-A/88, não abrange o 'montante' das indemnizações recebidas ao abrigo de contrato de seguro, mesmo que tal montante seja a parte da indemnização proveniente da mora, desde a citação, pago ao abrigo dos artºs. 798º, 804º, 805º, nº 3, e 806º do C. Civil;
15. Pois que a norma ou princípio, contrária, decidida pelo Mº Juiz a quo, ofende
- O artº 1º da Lei 106/88, de 17 de Setembro, que apenas autorizou o Governo para tributar o 'rendimento' de pessoas singulares. E tal referido
'montante' de 'indemnização', não é 'rendimento'. Nunca uma 'indemnização' é rendimento!
- O artº 2º da mesma Lei 106/88 - pois que não é 'equitativo', nem contribui para a 'realização da Justiça social' que o Governo tribute os prejuízos ou danos das vítimas: ficando-lhe com parte da indemnização que as visava 'ressarcir'!!
16. E, assim, a dita norma ou princípio, contrária, decidida pelo Mº Juiz a quo ofende os artºs. 206º e 207º da Const. da República e os artºs. 168º, 1, i) e
201º, b) da mesma Constituição - certo que consubstancia, no caso concreto, uma tributação em IRS dum montante que 'legalmente' é uma indemnização (não um
'rendimento') e com base num diploma do Governo que para tanto não está legalmente autorizado pela Assembleia da República e que até ofende os princípios de Justiça social e da equidade - pelo clamoroso resultado de se tributar os danos da vítima!! Arrecadando o Estado uma parte desse dano ou da sua indemnização!! E legalmente a dita quantia é uma indemnização.
Considerar tal quantia como 'rendimento' é violar expressamente os cits. artºs. 804º, 805º, nº 3 e 806º do C. Civil e é assim assumir uma inconstitucionalidade (artsº. 206º e 207º da Const. da Rep.). Se é uma indemnização, se visa tornar 'indemne' - reparar um dano (não interessa o método do seu cálculo): nunca pode considerar-se 'rendimento': se não por inconstitucionalidade de não acatar a 'Lei'. V
17º Consequentemente, o artº 6º, al. g) do Dec. L. 442-A/88, tem que interpretar-se no sentido de que nele em espécie não estão incluídas, pelo contrário estão excluídas, as quantias pecuniárias recebidas a título legal de indemnização, nomeadamente os pagamentos efectuados pelas Seguradoras em acidentes de viação e com base nos artigos 804º, 805º, nº 3 (segunda parte) e
806º do C. Civil - como é o caso dos autos.
18º Pois, norma ou princípio contrário, seria inconstitucional por violar os artºs. 168º, 1, i); 201º, 1, b), 206º e 207º da Constituição da República.
Como, na primeira instância, a recorrente já defendeu no articulado da contestação dos embargos; e nomeadamente nos seus artigos 10º e 11º; 12º e
13º; 20º e 25º'.
II - A fundamentação
1. A Lei nº 106/88, de 17 de Setembro, autorizou o Governo a produzir a legislação relativa ao Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (I.R.S.) e ao Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas
(I.R.C.) [artigo 1º], segundo um programa de equidade e justiça social [artigo
2º]. Para a incidência objectiva do primeiro imposto, o I.R.S., a mesma lei determinou:
'Artigo 4º IRS - Incidência objectiva
1 - O IRS incidirá sobre o valor global dos rendimentos das categorias seguintes, depois de feitas as correspondentes deduções a abatimentos:
...
Categoria E - rendimentos de capitais;
2 - Consideram-se:
a) - ...
b) - ...
c) - ...
d) - ...
e) - Rendimentos de capitais: os juros [...]'.
Segundo a recorrente, esta autorização para tributar os juros não pode ter o sentido de abranger os juros de mora no pagamento de uma indemnização. A norma do artigo 6º, nº 1, alínea g), do Código do I.R.S.
['Consideram-se rendimentos de capitais... g) Os juros ou quaisquer acréscimos de crédito pecuniário resultantes da dilação do respectivo vencimento ou de mora no seu pagamento, sejam legais, sejam contratuais(...)'], aprovado pelo Decreto-Lei nº 442-A/89, de 30 de Novembro - que é o Decreto-Lei autorizado - tem, na decisão recorrida, aquele sentido. Por isso, acrescenta, a norma do artigo 6º, nº 1, alínea g), é organicamente inconstitucional.
2. O problema de saber se a norma do artigo 6º, nº 1, alínea g), do Código do I.R.S. observa os limites da distribuição constitucional de competências ordena-se, assim, a um outro: o da densificação do conceito de
'rendimento de capitais', que é um conceito inciso na Lei de autorização legislativa, como 'conceito-chave' da tributação de juros.
3. A densificação do conceito de 'rendimentos de capitais' há-de ser, como é evidente, uma densificação situada no problema. Qual é, então, o sentido constitucionalmente adequado do conceito de 'rendimentos de capitais'? Os 'rendimentos de capitais', excluindo as indemnizações, devem ainda excluir os juros de mora no pagamento dessas indemnizações? É isso uma consequência necessária dos critérios de justiça material e de equidade que se ligam às directivas do Estado de direito social e da Constituição fiscal?
4. É verdade que a indemnização é, em si mesma, uma reparação, não é um acréscimo patrimonial. Mas os juros de mora no pagamento da indemnização têm uma objectividade autónoma. São 'frutos civis, constituídos por coisas fungíveis' (Antunes Varela), não 'constituem' a compensação que originariamente está determinada a reparar o prejuízo [prestação originária], constituem um acréscimo pecuniário a essa compensação, no sentido de reparar o seu retardamento [indemnização moratória].
5. O Direito Civil deixa entrever, em vários lugares, a independência entre o crédito de juros e o crédito principal. O artigo 561º do Código Civil determina que 'desde que se constitui, o crédito de juros não fica necessariamente dependente do crédito principal, podendo qualquer deles ser cedido ou extinguir-se sem o outro', o artigo 763º, que ' não é lícito ao credor, a coberto da regra do cumprimento integral da prestação, recusar-se a receber os juros desacompanhados da entrega do capital', e o artigo 785º, que, se a prestação não cobrir capital e juros, se presume feita por conta destes, salvo se o credor concordar em contrário. Finalmente, o artigo 661º, nº 2, sobre a imputação dos frutos na consignação de rendimentos, o artigo 672º, nº 1, sobre o encontro de frutos no penhor de coisas, e os artigos 307º e 310º, sobre a prescrição, mostram também a 'dualidade' crédito principal-crédito de juros.
5.2 - Na doutrina, Vaz Serra advertia já para que 'a relação de dependência entre os dois créditos não é perfeita, depois de nascido o crédito de juros' ['Obrigação de juros', Boletim do Ministério da Justiça, nº 55, Abril de 1956, pág. 164], Antunes Varela chama a atenção 'para a autonomia do crédito de juros, uma vez constituído' (Das obrigações em geral, volume I, 6ª edição, revista e actualizada, Coimbra, 1989, pág. 845), Mário Júlio de Almeida Costa afirma mesmo que 'a ideia básica é a da autonomia do crédito de juros' [Direito das Obrigações, 5ª edição, remodelada e actualizada, Coimbra, 1991, pág. 621].
A doutrina, ainda, define os juros em torno da ideia de rendimento:
'os juros são os frutos civis constituídos por coisas fungíveis, que o credor aufere como rendimento de uma obrigação de capital, e que variam em proporção do valor deste capital, do tempo durante o qual se mantém a privação deste e da taxa de remuneração' (Pires de Lima/Antunes Varela), são o 'o rendimento de um crédito pecuniário, que se determina em função do montante deste, do tempo durante o qual se fica privado do capital e da taxa de remuneração' (Almeida Costa).
É claro que os quadros do Direito Civil não relevam decisivamente para a questão de constitucionalidade. Mas mostram que prestação originária e juros são duas coisas distintas e a esta dualidade não pode ser indiferente o procedimento de valoração da norma do artigo 4º, nº 2, alínea e), da Lei nº
106/88 e, pois, da norma do artigo 6º, nº 1, alínea g), do Código do IRS.
6. A Constituição impõe a tributação global do rendimento, mas não definiu, de modo esgotante, o seu modelo. Ao invés, deixou a decisão, em boa medida, à liberdade do legislador democrático que, assim, apenas é limitada pelos princípios materiais constitucionalmente conformadores. Aqui, são os princípios da proporcionalidade e da justiça fiscal a ser convocados. O legislador está vinculado a realizar uma ideia de justa medida e a estabelecer uma regulação racional e coerente. Afinal, é de uma oneração que aqui se trata, a reclamar a concretização das directivas do Estado de direito, segundo as quais
'nenhum poder deve ir além daquilo que corresponde à natureza das coisas'
(Coing), nenhuma regulação restritiva deve ir além do que é requerido pelo fim específico dessa regulação.
Mas a norma do artigo 4º, nº 2, alínea e), da Lei nº 106/88 e, no seu seguimento, a regulação empreendida pela norma do artigo 6º, nº 1, alínea g), do Código do IRS, no sentido em que a teve a decisão recorrida, que é o de incluir na incidência do IRS os juros percebidos pela mora no pagamento de uma indemnização, em nada atenta contra tais directivas. Esses juros já não participam da mesma natureza da indemnização. Remetem-se para o domínio comum da estrutura e dos fins do sistema fiscal. O discurso que se lhes adequa é o discurso da generalidade que se impõe à instituição dos deveres públicos. Não é um discurso de excepção, que não há aí características de excepção que levem à necessidade constitucional de não tributar.
7. Um sentido constitucionalmente adequado do conceito de
'rendimentos de capitais', que está na Lei de autorização legislativa, não tem que excluir da incidência do I.R.S. os juros de mora no pagamento de indemnização por acidente de viação. A norma do artigo 6º, nº 1, alínea g), do Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro [Código do I.R.S.], com a interpretação da decisão recorrida, acolhe assim esse conceito. Não é por isso contrária ao artigo 168º, nº 1, alínea i), da Constituição da República.
III - A decisão
Nestes termos, decide-se não julgar inconstitucional a norma do artigo 6º, nº 1, alínea g), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro, com a interpretação que aí inclui os juros de mora no pagamento de uma indemnização por acidente de viação. Em consequência, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Lisboa, 25 de Junho de 1997 Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma (com declaração de voto)
Declaração de voto
Manifestei dúvidas quanto à decisão constante do Acórdão, por me parecer que pode haver colisão entre a integração dos juros de mora no pagamento de indemnização por acidentes de viação [artigo 6º, alínea g), do Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro] no conceito de 'rendimento de capitais' e um conceito constitucionalmente adequado de rendimento tributável. Na verdade, um tal conceito constitucionalmente adequado de rendimento tributável não pode deixar de ser limitado por critérios de justiça mais profundos do que uma pura caracterização económica de um valor como rendimento. Ora, tais critérios tendem a negar o reconhecimento de um verdadeiro acréscimo patrimonial onde a própria compensação pelo infortúnio, não foi atempadamente atribuída, deixando perdurar a própria situação infortunística. Assim, parece-me inaceitável que quem sofreu e não foi imediatamente compensado como devia, seja tributado pelos juros compensatórios do atraso lesivo.
Em consciência, não posso deixar de exprimir perplexidade pela incapacidade de certas formulações jurídicas integrarem convincentemente o que é contrário ao sentido de justiça mais espontâneo. Onde o direito se desvia tanto dos sentidos da realidade, a sua comunicabilidade atinge o grau ínfimo de validade (cf. Habermas, Faktizität und Geltung, Frankfurt am Main, 1992, na medida em que faz depender a validade das normas de possibilidade dos atingidos como participantes num discurso racional poderem concordar com elas). Mas, apesar das formulações jurídicas ultrapassarem 'olimpicamente' o sentido de realidade, não deixa de ser possível argumentar, no campo do direito, contra a constitucionalidade da solução legislativa. Na verdade, é aceitável defender-se que o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição imporia uma discriminação positiva nestas situações, mesmo que se entendesse que elas configurariam a obtenção de um rendimento tecnicamente susceptível de tributação. Com efeito, a função do rendimento obtido nestas circunstâncias não
é o produto de uma normal interacção social, disponível pelo agente, mas resulta do infortúnio, do acaso e do acidente, o que não torna estas situações comparáveis com um normal acréscimo patrimonial José Manuel Cardoso da Costa