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Processo n.º 640/05
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
A fls. 39 dos presentes autos de reclamação foi proferida a seguinte decisão
sumária:
A. reclamou para o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo do despacho do
relator que, no Tribunal Central Administrativo do Sul, não admitiu recurso de
agravo interposto para o Supremo Tribunal Administrativo.
A reclamação foi, porém, indeferida. Inconformado, o recorrente interpõe o
presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n. 28/82,
de 15 de Novembro (LTC), dizendo, em suma:
A norma cuja apreciação de inconstitucionalidade se requer é art. 24º, n.ºs 1,
alínea g), e n.º2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, vulgo
ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.02, por violação dos art. 204º e 13º
(Princípio da Igualdade), ambos da Constituição da República Portuguesa,
Uma vez que, permitindo a Lei Geral o duplo grau de jurisdição, e
classificando-se como ordinário o recurso de agravo (art. 676º, n.º2, do Código
de Processo Civil), o que não é posto em crise pelo art. 140º do Código de
Processo dos Tribunais Administrativos, vulgo CPTA,
Não pode aceitar-se que, em sede de contencioso administrativo, seja coarctado
aos cidadãos o direito de beneficiar daquele patamar de recurso, principalmente,
quando estão em causa direitos fundamentais, designadamente, o direito de
propriedade, como no caso em apreço.
A questão não é nova neste Tribunal que, repetidamente, tem afirmado que não
resulta da Constituição nenhuma garantia genérica de direito ao recurso de
decisões judiciais.
Assim, no Acórdão n.º 415/01 (publicado no DR, II série, de 30 de Novembro de
2001) reiterando jurisprudência do Plenário no Acórdão n.º 202/99 (publicado no
DR, II série, de 6 de Fevereiro de 2001), ponderou-se:
[...]
Como, por exemplo, se entendeu expressamente no acórdão n.º 638/98 (Diário da
República, II Série, de 15 de Maio de 1999), e ainda recentemente se reafirmou
no acórdão n.º 202/99 (Diário da República, II Série, de 6 de Fevereiro de
2001), aprovado em plenário, “7. O artigo 20º, n.º 1, da Constituição assegura
a todos ‘o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e
interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por
insuficiência de meios económicos’.
Tal direito consiste no direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei
aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência,
e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz
respeito à defesa dos respectivos pontos de vista (designadamente sem que a
insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal possibilidade). Ao fim e
ao cabo, este direito é ele próprio uma garantia geral de todos os restantes
direitos e interesses legalmente protegidos.
Mas terá de ser assegurado em mais de um grau de jurisdição, incluindo-se nele
também a garantia de recurso? Ou bastará um grau de jurisdição?
A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso
para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil;
e, em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante da Lei
Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro), passou a incluir, no artigo 32º, a
menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim consagrando,
aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e segundo a qual
a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na medida
(mas só na medida) em que o direito ao recurso integra esse núcleo essencial das
garantias de defesa previstas naquele artigo 32º. Para além disso, algumas vozes
têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de
direito democrático o direito ao recurso de decisões que afectem direitos,
liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito
penal (ver, a este respeito, as declarações de voto dos Conselheiros Vital
Moreira e António Vitorino, respectivamente no Acórdão n.º 65/88, Acórdãos do
Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 653, e no Acórdão n.º 202/90, id., vol.
16, pág. 505).
Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir
ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer.
Na verdade, este Tribunal tem entendido, e continua a entender, com A. Ribeiro
Mendes (Direito Processual Civil, III - Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982, p. 126),
que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o
Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria do
Tribunal Constitucional - artigo 210º), terá de admitir-se que ‘o legislador
ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios
recursos’ (cfr., a este propósito, Acórdãos n.º 31/87, Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 9, pág. 463, e n.º 340/90, id., vol. 17, pág. 349)
Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode
concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a
faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática.
Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a
existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (cfr. os citados
Acórdãos n.º 31/87, 65/88, e ainda 178/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
vol. 12, pág. 569); sobre o direito à tutela jurisdicional, ainda Acórdãos n.º
359/86, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8, pág. 605), n.º 24/88,
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 525), e n.º 450/89,
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 13, pág. 1307). [...]
9. Não existe, desta forma, um ilimitado direito de recorrer de todas as
decisões jurisdicionais, nem se pode, consequentemente, afirmar que a garantia
da via judiciária, ou seja, o direito de acesso aos tribunais, envolva sempre,
necessariamente, o direito a um duplo grau de jurisdição (com excepção do
processo penal).
[...]'
Seguindo esta jurisprudência, pode reafirmar-se que inexiste imposição
constitucional de reapreciação de uma decisão tomada por um tribunal (salvo os
casos já referidos, nos quais se não inclui o presente).
Por outro lado, uma vez que o ora recorrente já viu apreciada a sua questão por
duas instâncias da jurisdição administrativa, constata-se que, afinal, o que
pretende é ter acesso a um duplo recurso ou a um triplo grau de jurisdição.
Ora, não impondo a Constituição que o legislador ordinário garanta sempre aos
interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus
direitos, situa-se na margem de liberdade de conformação daquele o
estabelecimento de limitação dos graus de recurso. E foi o que fez o legislador
do contencioso administrativo, limitando a casos excepcionais o acesso em
recurso, ao Supremo Tribunal Administrativo, de questões já apreciadas por duas
instâncias, sem que com esta solução se mostrem violados os preceitos
constitucionais apontados.
Pelo exposto, conclui-se que o presente recurso é manifestamente infundado.
Nestes termos, decide-se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da LTC,
negar provimento ao recurso.
Contra esta decisão reclama o recorrente, dizendo:
O Reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional depois de ter sido
indeferida uma Reclamação, dirigida ao Senhor Presidente do Supremo
Administrativo, de um Despacho que não admitiu um recurso de agravo, para o
referido Tribunal Supremo, e que foi proferido pelo Senhor Desembargador -
Relator nos autos do Proc. n.º 667/05, da 1ª Secção, 2ª Subsecção, do Tribunal
Central Administrativo Sul.
A norma cuja questão de inconstitucionalidade suscita é a do art. 24º, nºs 1,
alínea g), e nº 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, vulgo
ETAF , aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19.02, por violação dos art. 204.º e
13.º (Princípio da Igualdade), ambos da Constituição da República Portuguesa,
uma vez que, permitindo a Lei Geral o duplo grau de jurisdição, e classificando
como ordinário o recurso de agravo (art. 676°, n.º 2, do Código de Processo
Civil), o que não é posto em crise pelo art. 140.º do Código de Processo dos
Tribunais Administrativos, vulgo CPTA, não pode aceitar-se que, em sede de
contencioso administrativo, seja coarctado aos cidadãos o direito de beneficiar
daquele patamar de recurso, principalmente quando estão em causa direitos
fundamentais, designadamente, o direito de propriedade, como no caso em apreço.
A Decisão Sumária quanto ao referido Recurso para este Alto Tribunal foi o de
considerar, o mesmo, manifestamente infundado.
Com todo o respeito que nos merece a Decisão Sumária proferido pelo Colendo
Conselheiro-Relator, a verdade é que o art. 140.º do CPTA manda aplicar aos
recursos ordinários das decisões jurisdicionais proferidas pelos tribunais
administrativos o disposto na lei processual civil, com as necessárias
adaptações.
Se o art. 676.º, n.º 2, do Código de Processo Civil classifica como recursos
ordinários a apelação, a revista e o agravo, e se esta classificação não foi
afastada, expressamente, pelo CPTA, antes admitida, implicitamente, por norma
remissiva (art. 140.º do CPTA), então, dos Acórdãos lavrados pelos Tribunais
Centrais Administrativos é admissível, sempre, a interposição de recurso de
agravo na 2.ª instância. Outra interpretação, permitiria que nos litígios de
interesses, exclusivamente, privados, dirimidos pelos Tribunais Cíveis, os
interessados tenham mais meios processuais de defesa dos seus direitos à sua
disposição de que nas demandas que opõem a Administração aos administrados,
sendo que, nestes, na maioria dos casos, o que se encontra em causa são direitos
e interesses legalmente protegidos.
Acresce que, muitas vezes, a violação destes direitos e interesses, coincidem
com a postergação, pela Administração, de direitos fundamentais da nossa
Constituição.
Menciona a Decisão Sumária em crise as declarações de voto dos Conselheiros
Vital Moreira e António Vitorino, nos Acórdãos 65/88 e 202/90, publicados in
'Acórdãos do Tribunal Constitucional', respectivamente, no XI Vol. 'pág. 653, e
XVI Vol' pág. 505, como 'algumas das vozes' que 'consideram incluído no
princípio de Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que
afectem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos mesmo,
fora do âmbito penal'.
Assim, nestes casos, como no processo penal, para 'estas vozes', existe um
direito a duplo grau de jurisdição.
Ora, nos autos do Proc. n.º 667/05, que corre termos na 1ª Secção, da 2ª
Subsecção, do Tribunal Central Administrativo Sul, o que se encontra em causa é
o direito de propriedade do Reclamante, direito esse que faz parte do acervo dos
direitos fundamentais da nossa Constituição.
Assim, pelo menos, quando estejam em causa direitos fundamentais existe, no
contencioso administrativo, um duplo grau de jurisdição, pois, admitir-se o
contrário, é privilegiar, por intermédio do processo penal, determinados
direitos fundamentais em detrimento de outros igualmente consagrados na nossa
Lei Fundamental, ou seja uma violação do Princípio da Igualdade.
Porém se privilegiarmos uma maximização interpretativa da remissão que o art.
140º do CPTA faz para a lei processual civil, então, o Princípio da Igualdade
encontra-se, inegavelmente, violado, porquanto esta permite o duplo grau de
jurisdição nos litígios ente privados, grau esse que é, anacronicamente
afastado, pela norma cuja inconstitucionalidade se suscitou em questões mais
importantes que opõem a Administração aos cidadãos.
Cumpre decidir.
As razões expressas na reclamação não abalam a doutrina que este Tribunal tem
consagrado e de que é exemplo o Acórdão n.º 415/01 (publicado no DR, II série,
de 30 de Novembro de 2001) já citado na decisão reclamada.
Para além disso, importará referir que a circunstância de, nos tribunais
administrativos, vigorar um regime de recursos diverso daquele que vigora nos
tribunais comuns não determina violação de algum princípio constitucional,
designadamente o previsto no artigo 13º n.º 1 CR, pois em lado nenhum a
Constituição obriga a que se verifique um regime unificado de processo e de
recursos.
Nesta óptica, a circunstância de alegadamente estar em causa o direito de
propriedade do recorrente não justifica – só por si – que se deva autorizar um
grau adicional de recurso.
É, assim, de indeferir a reclamação. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa
de justiça em 20 UC.
Lisboa, 13 de Dezembro de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos