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Proc. nº 60/96
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A A., então empresa pública, recorreu para o Tribunal Cível de Lisboa, em 14 de Abril de 1986, impugnando uma decisão proferida pelo Conselho de Concorrência, em processo contra-ordenacional contra ela instaurado. Tendo o recurso sido apresentado em duplicado, directamente no Tribunal Cível de Lisboa e também no próprio Conselho de Concorrência, acabou por ficar adstrito ao 4º Juizo Cível de Lisboa, na sequência do envio dos autos por esse Conselho.
A decisão impugnada por recurso, tomada pelo Conselho de Concorrência, determinou à recorrente que adoptasse as providências necessárias à alteração dos contratos de distribuição de cervejas e refrigerantes, de forma a eliminar certas cláusulas e procedimentos relacionados com a 'proibição imposta aos distribuidores, de venderem produtos concorrentes daqueles que são objecto dos referidos contratos', admitindo, porém, uma protecção territorial e uma restrição da liberdade da venda e de acção do distribuidor, limitada à proibição de manutenção de sucursais, agências, armazéns ou outras instalações fixas fora da área geográfica visada pelo contrato'. A deliberação do Conselho de Concorrência admitiu a 'preservação da rede de agentes da A., mas sem imposição de exclusividade de compra dos produtos por ela fabricados (cervejas, refrigerantes e similares), exactamente para que, através desses agentes, existam possibilidades de concorrência entre marcas' (cfr. transcrição a fls. 61 vº).
Nas alegações apresentadas foram suscitadas várias questões de natureza processual e, quanto ao mérito, impugnou-se a solução adoptada de proibir à recorrente a possibilidade de impor aos seus distribuidores a obrigação de exclusividade, correlativa da obrigação de A. de não vender os seus produtos a terceiros, invocando-se a favor de solução contrária os dados do direito comunitário da concorrência, onde se reconhece a licitude da celebração de contratos de distribuição em regime de exclusividade recíproca [forma de
'estimular a concorrência entre produtos de diferentes fabricantes' - Regulamento (CEE) 1983/83, sexto considerando]. Nessas alegações, depois de se afirmar que, por força das regras de direito comunitário, uma empresa estrangeira podia celebrar com um seu distribuidor em Portugal um contrato de distribuição em regime de exclusividade recíproca, sustentou-se que, ao vedar-se idêntica prática comercial a uma empresa portuguesa, se estava a cometer uma discriminação em função da nacionalidade proibida pelo art. 13º, nº 2, da Constituição, norma aplicável às pessoas colectivas por força do art. 12º, nº 2, da mesma Constituição.
Através de sentença proferida em 11 de Dezembro de 1989, foi julgado parcialmente procedente o recurso (apenas quanto à licitude da concessão de
'abonos de frete'), confirmando-se a decisão recorrida na parte restante.
Inconformada, interpôs a A. novo recurso para a Relação de Lisboa, que veio a ser limitado nas alegações à parte da decisão que 'julgou ilícitas as cláusulas contratuais que vedam aos distribuidores da recorrente a comercialização de produtos concorrentes com aqueles que são objecto do contrato de distribuição' (a fls. 122). Nessas alegações, a recorrente criticou vivamente a sentença do 4º Juizo Cível, mostrando que o distribuidor, obtida a exclusividade para si das vendas dos produtos da A. no seu espaço territorial, poderia - por decorrência da doutrina acolhida nessa decisão - 'divertir recursos humanos e financeiros para a promoção de produtos concorrentes, ainda que em detrimento da venda de produtos abrangidos pelo contrato' (a fls. 99). Nessas alegações, continuou a recorrente a brandir com a arguição de inconstitucionalidade, invocando que o ordenamento jurídico era 'um todo coerente, não admitindo contradições no seu seio' (fls. 114), pelo que, se se quisesse 'entrar abertamente no campo da fiscalização da constitucionalidade', deveria 'ser julgado inconstitucional o Decreto-Lei nº 422/83 («maxime» o seu artigo 13), na interpretação que dele fez o tribunal recorrido - decisão positiva de inconstitucionalidade, por a norma, tal como foi interpretada, ser inconstitucional' (a fls. 115).
Através do acórdão proferido em 26 de Janeiro de 1995, a Relação de Lisboa negou provimento à apelação, confirmando a parte da sentença recorrida impugnada pela A.. Considerou que não tinha havido omissão de pronúncia nessa sentença, ao não tratar ex professo da questão de inconstitucionalidade suscitada pela apelante, afirmando o seguinte:
' De seguida, e na economia dos autos, cabe a apreciação da invocada omissão do conhecimento da inconstitucionalidade da solução adoptada pelo Conselho da Concorrência.
Deriva ela, segundo a apelante, de o Regulamento (CEE) 1983 da Comissão, de
22/06/83, que se ocupa dos contratos de distribuição, ser de aplicação imediata em Portugal, com primado sobre a lei nacional, artº 189 do Tratado da C.E.E.; podendo, ao abrigo de tais normas, uma empresa estrangeira celebrar com um seu distribuidor em Portugal um contrato de distribuição em regime de exclusividade recíproca, ao vedar-se idêntica prática comercial a uma empresa portuguesa, está a cometer-se uma discriminação em função da nacionalidade, vedada pelo artº 13-2 da Constituição da R. Portuguesa, aplicável às pessoas colectivas pelo seu artº
12-2.
Pois bem, não se põe em causa a prevalência das normas de direito comunitário invocadas, sobre a ordem jurídica portuguesa.
Tais normas são «fonte imediata de direitos e obrigações para todos aqueles a que dizem respeito, quer se trate de Estados membros, ou de particulares em relações jurídicas submetidas ao direito comunitário», Tribunal das Comunidades Europeias, Ac. Simmenthal, de 03/78.
Sucede que o direito comunitário aprecia e julga relações jurídicas que lhe são submetidas, quando questionantes do comércio entre Estados membros.
O que não é o caso, pois que, na sua análise, confina-se ele, apenas, à apelante e seus distribuidores, com naturais reflexos no outro produtor dominante e, óbvio, nos consumidores. Ou seja, tudo se queda na ordem interna portuguesa. - É posição assumida na douta sentença, com a qual se concorda, não se descortinando a invocada omissão de pronúncia.'
E, analisando o fundo, passou o referido acórdão a apreciar a legalidade dos contratos de distribuição com obrigação de exclusivo celebrados pela apelante:
' Na prossecução de tais objectivos, logo no seu artº 1º [do Decreto-Lei nº
422/83, de 3 de Dezembro] estatui que os fins últimos da concorrência no mercado nacional são:
1º Salvaguardar os interesses dos consumidores.
2º Garantir a liberdade de acesso ao mercado.
3º Favorecer a realização dos objectivos gerais de desenvolvimento económico e social.
4º Reforçar a competitividade dos agentes económicos, face à economia internacional.
A relação entre a apelante e seus distribuidores a que, impropriamente, se chama agentes, colide, em eco significativo, com estes mencionados fins da concorrência.
Colide desde logo com tais princípios no que respeita à exclusividade geográfica da distribuição dos produtos da apelante: a nomeação exclusiva de um distribuidor desses produtos para determinada área, não podendo este vender, nessa área, outros produtos concorrentes.
Complementando essa nomeação exclusiva com a recusa de vender a outro que não ao concessionário os seus produtos, temos um quadro claro de violação do disposto no artº 13 b) e c) do D.L. 422/83 que interdita as práticas concorrenciais que, sob qualquer forma, limitem ou controlem a produção ou distribuição dos bens e a repartição dos mercados ou fontes de abastecimento.
É certo que a dinâmica do mercado e a singularidade dos agentes económicos se casam mal com soluções rígidas e permanentes. Daí que a própria lei acolha práticas justificativas de concorrência, se ordenadas para melhor produção e distribuição, desde que reservem aos utilizadores de tais bens uma parte equitativa dos benefícios daí resultantes e não excedam em absoluto a concorrência, artº 15 nº 1 do D.L. 422/83. Foi na consideração deste princípio que na decisão do Conselho de Concorrência se aceitou a propugnada protecção territorial e a restrição à liberdade de venda e acção do distribuidor, limitada
à proibição de manutenção de sucursais, agências, armazéns ou outras instalações fixas, fora da área geográfica visada pelo contrato.' (a fls. 146-147)
A recorrente arguiu uma nulidade deste acórdão, considerando que ele omitira o conhecimento da questão de constitucionalidade renovada nas alegações para a Relação, mas esta arguição foi desatendida por acórdão de 8 de Junho de
1995. Nele se ponderou que, de facto, a apelante não conseguia conformar-se com o decidido, discordando da decisão, sendo certo que não houvera qualquer omissão de pronúncia.
A A. veio então interpor recurso de constitucionalidade do acórdão da Relação de Lisboa 'na parte em que, implicitamente, interpretou o artigo 13º do Decreto-Lei nº 422/83, de 3 de Dezembro, em termos que ofendem o disposto no artigo 13º-2 da Constituição da República Portuguesa, aplicável à recorrente por força do disposto no artigo 12º-2', indicando que o recurso era interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional e que a questão de inconstitucionalidade fora suscitada nas sucessivas alegações de recurso (conclusão 30ª da primeira alegação; conclusão 24ª da alegação apresentada na Relação de Lisboa).
Este recurso foi admitido por despacho de fls. 169.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Fixado prazo para alegações, apresentaram essa peça a recorrente e o recorrido Ministério Público.
A recorrente formulou as seguintes conclusões:
'1ª Por virtude do artigo 3º do Tratado de Adesão às Comunidades Europeias foi admitido na ordem jurídica interna, em 1 de Janeiro de 1986, o Regulamento (CEE) da Comissão nº 1983/83, de 22 de Junho de 1983.
2ª Tal Regulamento consente a estipulação de contratos de distribuição em regime de exclusividade recíproca, por virtude do qual o distribuidor se obriga a não fabricar ou distribuir produtos concorrentes daqueles que constituem objecto do contrato de distribuição.
3ª Este diploma sobrepõe-se a qualquer norma interna que disponha em sentido diverso.
4ª Entenderam as instâncias que tal obrigação de exclusividade é ilegal, por violar o disposto no artigo 13º-1 do Decreto-Lei nº 422/83, de 3 de Dezembro de
1983.
5ª Sendo esta a correcta interpretação desta última disposição legal, então vigoraria na ordem jurídica portuguesa, simultaneamente, uma norma que consente que empresas não estabelecidas em Portugal contratem com empresas aqui instaladas, em regime de exclusividade, a distribuição dos seus produtos no mercado nacional, enquanto outra norma proíbe tal exclusividade quando ambas as empresas estão estabelecidas no nosso país.
6ª Há assim uma diferença de tratamento com base num dos factores subjectivos referidos no artigo 13º-2 da Constituição da República Portuguesa, pelo que desde logo é de presumir a existência de uma discriminação inadmissível.
7ª Permitindo às empresas «estrangeiras» métodos mais eficazes de intervenção que são recusados às empresas «nacionais».
8ª A análise do regime comunitário e da sua motivação, tal como consta dos considerandos do Regulamento, não permite identificar qualquer especialidade que possa constituir fundamento material ou justificação racional bastante para legitimar esta diferença de tratamento de situações onde não se verifica qualquer desigualdade relevante, pois que o não pode ser, em si mesma, a diferente «origem» das empresas em causa.
9ª Daí que a interpretação dada pelas instâncias ao artigo 13º-1 do Decreto-Lei nº 422/83, ao proibir a obrigação contratual de exclusividade assumida pelo distribuidor em termos que o Regulamento nº 1983/83 consente, acarreta a sua inconstitucionalidade, por violar o princípio da igualdade consignado no artigo
13º da CRP.' (a fls. 194 a 196 dos autos)
O Ministério Público, por seu turno, formulou as seguintes conclusões:
' 1º- Nos termos das disposições de Direito Comunitário, imperativa e directamente aplicáveis em todos os Estados-membros da CE, é de presumir como positivo o balanço económico que avalia a prática restritiva da concorrência, traduzida na celebração de acordos de distribuição exclusiva bilaterais, genericamente autorizados pelo Regulamento nº 1983/83/CEE.
2º- Por força de tais disposições imperativas - e como se reconhece explicitamente na decisão recorrida - é lícita a celebração de tal categoria de acordos, nos termos previstos no citado Regulamento, quando esteja em causa a revenda em Portugal de produtos em que participem empresas de diversos Estados-membros das Comunidades.
3º- Viola o princípio da igualdade, traduzindo injustificada discriminação das empresas nacionais que operam exclusivamente no âmbito do território português, a interpretação do preceito nos artigos 13º, nº 1, e 15º, nº 1, do Decreto-Lei nº 422/83, em termos de lhes inviabilizar a celebração dos referidos acordos de distribuição exclusiva bilaterais, sem que se apontem ou sejam perceptíveis quaisquer razões, materialmente fundadas, susceptíveis de conduzir à ilisão da presunção de balanço económico positivo daquela prática limitativa da concorrência.
4º- Deverá, assim, proceder o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, de modo a aferir da licitude dos acordos de distribuição exclusiva bilaterais em causa segundo critérios idênticos, quer quanto às empresas nacionais que operem exclusivamente em Portugal, quer quanto a quaisquer empresas pertencentes a outros Estados-membros da CE.' (a fls. 230-231 dos autos)
3. Foram corridos os vistos legais.
Impõe-se começar por delimitar o objecto do recurso e ver se estão verificados os pressupostos processuais respeitantes ao mesmo recurso.
II
4. De harmonia com o indicado no requerimento de interposição do recurso, a questão de constitucionalidade que é posta ao Tribunal refere-se a normas constantes do art. 13º do Decreto-Lei nº 422/83, 3 de Dezembro.
Dispõe esse preceito:
'1- São consideradas práticas restritivas da concorrência os acordos entre empresas, as decisões de associações de empresas e as práticas concertadas, qualquer que seja a forma que revistam, que tenham por objecto ou como efeito impedir, falsear ou restringir a concorrência, no todo ou em parte, do mercado nacional de bens e serviços, nomeadamente as que se traduzam em:
a) Fixar ou recomendar, directa ou indirectamente, os preços de compra ou de venda e, bem assim, outras condições das transacções efectuadas no mesmo ou em diferentes estádios do processo económico;
b) Limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos;
c) Repartir os mercados ou as fontes de abastecimento;
d) Aplicar, sistemática ou ocasionalmente, condições discriminatórias de preço ou outras em prestações equivalentes;
e) Recusar, directa ou indirectamente, sem justificação, a compra ou a venda de bens e a prestação de serviços, nomeadamente em virtude de discriminação em razão da pessoa do comprador ou do vendedor;
f) Subordinar a celebração de contratos à aceitação de obrigações suplementares que, pela sua natureza ou segundo os usos comerciais, não tenham ligação com o objecto desses contratos.
2- Consideram-se igualmente práticas restritivas da concorrência as que como tal forem qualificadas nas convenções ou acordos internacionais de que Portugal seja parte.
3- São nulos os acordos e decisões que sejam considerados práticas restritivas da concorrência nos termos dos números anteriores'.
Da leitura deste preceito retira-se que o mesmo contém normas que nada têm a ver com a questão de constitucionalidade posta ao Tribunal Constitucional.
De facto, segundo resulta da tese sustentada repetidamente pela recorrente, face aos dados do direito comunitário, as normas, tais como foram interpretadas e aplicadas ao caso concreto, violaram o princípio constitucional da igualdade. Ora tal interpretação só teve a ver com a questão da consideração, ou não, como prática restritiva da concorrência de um acordo de distribuição com exclusivo bilateral, ou seja, na prática, com a imposição de exclusivo ao distribuidor. Logo, a interpretação recaiu sobre a seguinte norma:
' São consideradas práticas restritivas da concorrência os acordos entre empresas, [...] qualquer que seja a forma que revistam, que tenham por objecto ou como efeito impedir, falsear ou restringir a concorrência, no todo ou em parte, do mercado nacional de bens e serviços, nomeadamente as que se traduzam em [...] limitar ou controlar [...] a distribuição [...], [ou] repartir os mercados [...].' (corpo do nº 1 do artigo e alíneas b) e c))
5. Nas contra-alegações, o Ministério Público afirma que o objecto do recurso se deve estender ao disposto no nº 1 do art. 15º do mesmo Decreto-Lei nº 422/83, norma essa aplicada indubitavelmente pela decisão recorrida, e que, constitui um 'instrumento' de justificação de certas práticas restritivas da concorrência, tornando-as lícitas. Pode ler-se nessas alegações:
' Ainda no que respeita à delimitação do objecto do recurso, pensamos que este terá necessariamente de se reportar, quer à norma constante do artigo 13º do Decreto-Lei nº 422/83, quer à que consta do artigo 15º do mesmo diploma legal - cumprindo salientar que ambas as normas foram, aliás, aplicadas na decisão recorrida.
Na verdade, a questão da licitude ou ilicitude das cláusulas de exclusividade recíproca, no âmbito dos contratos de distribuição celebrados pela recorrente, não pode cindir-se do estatuído neste segundo preceito: não pode questionar-se - nem foi questionado ao longo do processo - que o estabelecimento e vigência de tais cláusulas constitui «prática restritiva da concorrência», subsumível às alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 13º do citado Decreto-Lei (bem como ao preceituado no artigo 85º, nºs. 1 e 2, do Tratado de Roma).
O que verdadeiramente está em causa é saber se tais práticas, inquestionavelmente restritivas da concorrência, podem ser «consideradas justificadas» nos termos preceituados no artigo 15º, nº 1, daquele diploma legal
- e sendo certo que os citados Regulamentos CEE se mostram identicamente editados com vista a «declararem inaplicável», nos termos do nº 3 do artigo 85º do Tratado, a certos acordos o preceituado no nº 1 do mesmo artigo' (a fls.
206-207).
Importa considerar agora o teor do nº 1 do referido art. 15º:
' Poderão ser consideradas justificadas as práticas restritivas da concorrência que contribuam para melhorar a produção ou a distribuição de bens ou serviços ou para promover o desenvolvimento técnico ou económico desde que reservem aos utilizadores de tais bens ou serviços uma parte equitativa do benefício daí resultante e sem:
a) Impor às empresas interessadas restrições que não sejam indispensáveis para atingir esses objectivos;
b) Dar a essas mesmas empresas possibilidade de eliminar a concorrência numa parte substancial do mercado dos bens ou serviços em causa'.
À luz do disposto no nº 1 do art. 15º do Decreto-Lei nº 422/83, conclui o Ministério Público o seguinte:
' Em suma: o que verdadeiramente se configura como litigioso nestes autos não é propriamente a qualificação como «restritivas da concorrência» das cláusulas de exclusividade, constantes dos acordos celebrados pela recorrente com os seus distribuidores, mas antes a valoração em termos de «balanço económico» e de
«proporcionalidade» de tais cláusulas, a operar em função do estatuído no artigo
15º do citado Decreto-Lei nº 422/83 - e tendo em conta a «declaração de inaplicabilidade» daquele regime geral de proscrição de práticas restritivas da concorrência, operada pelos referidos Regulamentos CEE.' (a fls. 207)
6. As considerações transcritas em último lugar apontam para a necessidade de se averiguar se, verdadeiramente, o recorrente impugna a constitucionalidade de normas jurídicas ou, antes, de actos de natureza administrativa (ou seja, da decisão do Conselho de Concorrência) ou se, simultaneamente, impugna normas e actos administrativos.
7. Antes de mais, deve reafirmar-se - como, aliás, o fazem a recorrente e o Ministério Público - que tem de se assentar como ponto de partida que a questão deve ser resolvida à luz do direito interno da concorrência, tal como decidiram as instâncias, e não à luz do direito comunitário. A recorrente, embora aceitando esse ponto de partida, alude frequentemente nas suas alegações
à superioridade hierárquica das normas comunitárias, sem tirar a conclusão da competência dos tribunais comunitários para conhecerem a questão ou considerar que o direito comunitário afasta a aplicação do direito interno português.
8. Para poder resolver a questão deixada em suspenso, importa ainda dizer algo sobre o modo como o legislador nacional prevê a possibilidade de virem a ser consideradas justificadas certas práticas restritivas da concorrência (art. 15º, nº 1, do Decreto-Lei nº 422/83).
Inspirando-se no disposto no art. 85º do Tratado de Roma (em que o seu nº 1 estabelece a regra geral da incompatibilidade com o mercado comum e, nessa medida, o corolário da proibição, das práticas restritivas de concorrência e, no nº 3, se prevê a possibilidade de ser declarada a inaplicabilidade das normas proibitivas quando tais práticas restritivas contribuam ou para melhorar a distribuição dos produtos ou para promover o progresso técnico ou económico, reservando aos utilizadores uma parte equitativa do lucro resultante, desde que verificadas certas condições quanto às empresas), o legislador português fez intervir um órgão administrativo independente, o Conselho da Concorrência
(previsto nos arts. 20º a 26º do referido Decreto-Lei nº 422/83) para 'decidir os processos relativos a práticas restritivas da concorrência'. Verifica-se que, nos termos dos nºs. 2 a 4 do art. 15º do mesmo diploma, a justificação de certas práticas de concorrência pode ser determinada por decisão casuística do Conselho de Concorrência (ainda que proferida de harmonia com critérios de aplicação fixados por portaria ministerial) ou por aplicação de disposições regulamentares do Governo para todo um ramo de actividade (cfr. nº 4 do citado art. 15º). Acolhe-se, assim, integralmente o regime comunitário, embora este confira ao mesmo órgão, a Comissão, a competência para proferir decisões individuais ou estabelecer regulamentos de isenção por categorias ou ramos (cfr. Ivo van Bael e Jean-Francois Bellis, Droit de la Concurrence de la Communauté Économique Européenne, Bruxelas, 1991, p. 76).
9. No caso sub judicio, o Conselho de Concorrência não considerou justificada a prática restritiva de celebração de contratos de distribuição pela recorrente A. com estipulação de exclusivo bilateral, através de uma decisão 'individual', ou seja, de um acto administrativo de apreciação de um modelo contratual concreto, operando um 'balanço económico' sobre o impacte dessas estipulações sobre o sector cervejeiro e de refrigerantes, aludindo-se à existência de duas empresas dominantes de produção de cerveja.
Nessa medida, poder-se-ia dizer que a recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie, desde logo e como questão prejudicial, a constitucionalidade da concreta 'valoração em termos de balanço económico' das cláusulas de exclusividade, constantes dos acordos de distribuição celebrados entre a A. e os seus distribuidores, ou seja, a constitucionalidade de uma concreta decisão administrativa, caso em que - não estando consagrado entre nós um 'recurso de amparo' para apreciar a constitucionalidade de actos concretos de aplicação do direito, como sejam actos administrativos e decisões judiciais - faltará um pressuposto processual e não será possível conhecer do objecto do recurso, ao menos em parte.
De facto, é seguro que não cabe ao Tribunal Constitucional, face ao disposto no art. 280º da Constituição e no art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, apreciar a constitucionalidade de actos administrativos concretos, onde se opere um 'balanço económico' entre as vantagens e as desvantagens de certas práticas restritivas, traduzidas na imposição de obrigações de exclusivo nas minutas de contratos de distribuição celebrados pela recorrente A..
10. Atingido este ponto, será necessário dar ainda outro passo e afirmar que não é possível ao Tribunal Constitucional conhecer do objecto do presente recurso de constitucionalidade porque a recorrente se limita a impugnar a constitucionalidade de uma decisão administrativa?
Responde-se negativamente a esta questão.
Na realidade, a recorrente não impugna a constitucionalidade do referido acto administrativo. Ela impugna a constitucionalidade de normas jurídicas que autorizam a prática de tal acto administrativo, como resulta do passo inicial das suas alegações apresentadas no Tribunal Constitucional:
' Vem o presente recurso da interpretação dada pelo Tribunal da Relação de Lisboa ao artigo 13º do Decreto-Lei nº 422/83, de 3 de Dezembro, em termos que ofendem o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, segundo essa interpretação, tal disposição legal proíbe a uma empresa estabelecida em Portugal uma prática comercial que o direito comunitário - no caso o Regulamento (CEE) da Comissão nº 1983/83, de 22 de Junho [...], em obediência ao disposto no artigo 397º do Tratado de Adesão - permite a uma empresa estabelecida em outro país comunitário e até, em certos casos especiais, a empresas estabelecidas em Portugal' (a fls. 180; cfr. ainda conclusão 5º dessas alegações).
11. Pode, assim, concluir-se que constitui objecto do presente recurso a questão da inconstitucionalidade do disposto nas normas das alíneas b) e c) do nº 1 do art. 13º do Decreto-Lei nº 422/83, de 3 de Dezembro, necessariamente conjugadas com o disposto no nº 1 do art. 15º do mesmo diploma, quando interpretados no sentido de que pode ser considerada injustificada em Portugal uma prática restritiva da concorrência, que seja justificada no plano comunitário, por violação do art. 13º, nº 2, da Constituição.
III
12. Importa brevemente enquadrar a problemática da defesa da concorrência na evolução das economias de mercado dos Estados industrializados.
Nas economias de mercado, após as fases de crescimento económico acelerado que se seguiram às diferentes revoluções industriais a partir do início do século XIX, assistiu-se a importantes concentrações de empresas produtoras dos mesmos bens, traduzindo práticas monopolistas ou de oligopólio que permitiam uma fixação de preços decidida por poucos actores económicos. Ora, nessas economias, continuou a sustentar-se que a concorrência entre unidades económicas não dominantes constituía seguramente um dos mecanismos básicos para assegurar a eficiência de cada um dos mercados parcelares. Tal entendimento levou o poder político a intervir, criando regulamentações destinadas a desencorajar ou a pôr termo a situações ou práticas monopolistas, nomeadamente a criação de cartéis, as concertações entre empresas destinadas a fixar os preços com eliminação da concorrência, procurando defender-se as empresas mais pequenas e, em última análise, os consumidores. Ainda no século XIX, os Estados Unidos da América tiveram a sua primeira lei anti-trust (Sherman Act de 1890), a que se seguiu, em 1914, uma nova lei contra as discriminações na fixação de preços
(Clayton Act) e a publicação de uma lei do mesmo ano sobre a criação de uma Comissão de Comércio Federal, órgão encarregado de sancionar as práticas contrárias a uma sã concorrência.
Esta evolução da legislação de defesa da concorrência influenciou os legisladores europeus no século XX, nos países em que se manteve uma economia do mercado com pontuais intervenções dos poderes públicos. A França regulou esta matéria no fim da II Guerra Mundial (Ordonnance, de 30 de Junho de 1945). Quando o Tratado de Roma lançou, em 1958, os alicerces do Mercado Comum europeu, erigiu como implicação do princípio estrutural da liberdade económica o princípio da concorrência: segundo o art. 3º deste Tratado, para alcançar os fins enunciados no artigo anterior, a acção da Comunidade implica 'o estabelecimento de um regime que garanta que a concorrência não seja falseada no mercado comum'
(alínea f)). O estabelecimento de um regime concorrencial implica não só a adaptação progressiva dos monopólios estaduais nacionais de natureza comercial, de forma a evitar discriminações entre nacionais de Estados-membros (art. 37º do Tratado CEE), como também o sancionamento de práticas restritivas da concorrência entre empresas que se acha previsto no art. 85º do mesmo Tratado, nomeadamente - e no que toca aos acordos de distribuição - 'todos os acordos entre empresas... que sejam susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados-membros e que tenham por objectivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado comum, designadamente as que consistam em... b) limitar ou controlar... a distribuição...; c) repartir os mercados ou as fontes de abastecimento...'.
13. Em Portugal, durante o regime corporativo, a regulamentação minuciosa das condições de acesso das empresas às diferentes actividades económicas - nomeadamente as regras do condicionamento industrial - impediu que se fizesse sentir a necessidade de elaboração de uma lei de defesa da concorrência.
Só em 1972, com a liberalização económica que se pretendeu assegurar, veio a ser publicada a primeira lei de defesa da concorrência, a Lei nº 1/72, de
24 de Março, a qual não chegou a ser regulamentada. Segundo a Base V, nº 1, dessa lei, eram consideradas práticas restritivas da concorrência 'as condutas isoladas ou concertadas, qualquer que seja a forma que revistam, de uma ou mais empresas, individuais ou colectivas, que impeçam, falseiem ou restrinjam, directa ou indirectamente, a concorrência efectiva no território do continente e ilhas adjacentes e consistam em: ...e) repartir os mercados, produtos, clientes ou fontes de abastecimento'. Deve notar-se que a Base VI da mesma lei admitia como práticas justificadas e, por isso, não restritivas, 'os contratos ou acordos de exclusivo, de duração conforme aos usos comerciais, em que o concedente se obriga a não aceitar outro distribuidor na zona atribuída ao seu concessionário e este assume, em contrapartida, a obrigação de venda exclusiva dos produtos do seu fornecedor ou, pelo menos, se vincula a não vender produtos concorrentes' (alínea b)).
14. Após a Revolução de 25 de Abril de 1974, acentuou-se a preocupação de adopção de uma estratégia anti-monopolista (cfr. Programa do Movimento das Forças Armadas, B.6.a)), mas a nacionalização de importantes sectores da vida económica tornou menos premente a regulamentação da liberdade de concorrência. Importa acentuar que a versão originária da Constituição atribuiu ao Estado, como incumbências prioritárias, a eliminação e o impedimento de formação de monopólios privados, bem como a repressão dos abusos do poder económico e de todas as práticas lesivas do interesse geral (art. 81º, alínea g)) e também a imposição da garantia de concorrência equilibrada entre as empresas, estabelecendo a lei a protecção das pequenas e médias empresas económica e socialmente viáveis (alínea j) do mesmo artigo). A mesma versão da Constituição previa a intervenção do Estado na formação e controlo dos preços, cabendo-lhe a obrigação de racionalizar os circuitos de distribuição, eliminando os desnecessários (art. 109º, nº 1).
Com as revisões constitucionais de 1982 e de 1989 acentuou-se o movimento de 'desideologização' da versão originária da Constituição e a aproximação do modelo económico português relativamente ao modelo vigente nos Estados-membros da Comunidade Económica Europeia. Na primeira daquelas revisões e a propósito do comércio, passou a indicar-se que o Estado devia intervir na racionalização dos circuitos de distribuição e na formação e no controlo dos preços, a fim de combater actividades especulativas, 'evitar práticas comerciais restritivas e os seus reflexos sobre os preços' (art. 109º, nº 1). A segunda revisão, levada a cabo após a adesão de Portugal às Comunidades Europeias, passou a consagrar como objectivo da política comercial 'a concorrência salutar dos agentes mercantis', bem como o 'combate às actividades especulativas e às práticas comerciais restritivas' (art. 102º, alíneas a) e c); cfr. art. 81º, alínea f)).
15. Face à situação constitucional decorrente da primeira revisão realizada em 1982, compreende-se que estivessem criadas as condições para aprovar uma nova lei de defesa de concorrência. Tendo em vista a projectada adesão de Portugal às Comunidades Europeias, foi publicado o Decreto-Lei nº
422/83, de 3 de Dezembro, Lei de Defesa da Concorrência, diploma que se ocupou, por um lado, com a 'prevenção dos efeitos económicos danosos decorrentes de acordos e práticas concertadas entre empresas ou de abusos de posição dominante' e, por outro, com a 'proibição de certas práticas individuais restritivas da concorrência - imposição de preços mínimos, aplicação de preços ou de condições de venda discriminatórios e recusa da venda' (do respectivo preâmbulo). No dizer de um comentador, este diploma inspirou-se 'essencialmente, quanto aos seus fundamentos, nas disposições sobre concorrência em vigor nas Comunidades Europeias. Tal facto é perfeitamente natural dada a previsível adesão de Portugal às Comunidades Europeias em 1 de Janeiro de 1986, não fazendo assim qualquer sentido implementar em Portugal disposições contrárias à legislação comunitária vigente. Esse propósito é, aliás, claramente afirmado no Preâmbulo do Decreto onde se refere expressamente a necessidade de elaborar uma «lei de defesa da concorrência em moldes semelhantes aos existentes nos países europeus». A inspiração nas fontes comunitárias de concorrência, particularmente nos artigos 85 e 86 do Tratado de Roma, é perfeitamente evidente ao longo de todo o articulado, com particular relevância para os artigos 13 e 14 - práticas restritivas da concorrência e abuso da posição dominante' (Arménio Cardo, A Lei de Defesa da Concorrência Anotada - Introdução, págs. 7-8).
Deve notar-se que a chamada Lei de Defesa da Concorrência de 1983 já não se acha em vigor, tendo sido substituída pelo Decreto-Lei nº 371/93, de 29 de Outubro (por força do art. 40º, nº 1, deste último diploma foram revogados o Decreto-Lei nº 422/83, de 3 de Dezembro, e legislação complementar). Tal cessação de vigência não tem qualquer influência sobre o presente recurso, uma vez que o acto administrativo impugnado foi praticado ao abrigo desse diploma, mantendo-se, por isso, o interesse no conhecimento da questão de constitucionalidade posta ao Tribunal. Seja como for, e de um ponto de vista substancial, mantém-se neste ponto a regulamentação anterior (cfr. arts. 2º, nº
1, alíneas c) e d), e 5º), estando definitivamente afastada a solução da lei de
1972 de considerar sempre justificados os contratos de distribuição exclusiva.
16. É necessário ter em conta ainda que a decisão do Conselho de Concorrência que foi impugnada pela recorrente A. foi tomada em 18 de Dezembro de 1985, escassos dias antes da data em que Portugal se tornou Estado-membro das Comunidades Europeias (1 de Janeiro de 1986), embora a notificação à recorrente só tenha ocorrido em Abril de 1986.
17. Por força do Tratado de Adesão de Lisboa, outorgado em 12 de Junho de 1985, Portugal - tal como a Espanha - tornou-se membro de pleno direito das Comunidades Europeias, passando, 'a partir da adesão, as disposições dos tratados originários e os actos adoptados pelas instituições das Comunidades antes da adesão' a vincularem os dois novos membros, sendo 'aplicáveis nestes Estados nos termos desses tratados e do presente Acto' (art. 2º do Tratado de Adesão citado).
Não restam, assim, dúvidas de que, no momento de notificação da decisão do Conselho de Concorrência à A. e, claro, no momento do proferimento das decisões das instâncias que apreciaram a legalidade de tal acto, o art. 85º do Tratado de Roma e o Regulamento (CEE) nº 1983/83 de Comissão, de 22 de Junho de
1983, relativo à aplicação do nº 3 do artigo 85º do Tratado a certas categorias de acordos de distribuição exclusiva, vigoravam em Portugal, não havendo qualquer derrogação no Tratado de Adesão a tal vigência.
Prevendo o art. 85º, nº 3, do Tratado de Roma a possibilidade de virem a ser declaradas inaplicáveis a proibição de certas práticas restritivas da concorrência e a consequente nulidade dos acordos que as corporizam, por força de um balanço económico que valoriza a circunstância de essas práticas contribuírem para 'melhorar a produção ou a distribuição dos produtos ou para promover o progresso técnico ou económico', desde que se reserve aos utilizadores uma parte equitativa do lucro daí resultante e não imponham às empresas em causa quaisquer restrições que não sejam indispensáveis à consecução desses objectivos e não dêem a essas empresas a possibilidade de eliminar a concorrência relativamente a uma parte substancial dos produtos em causa, a Comissão veio a regulamentar em 1967 os acordos de distribuição e compras exclusivas (Regulamento nº 67/67/CEE), substituindo essa primeira regulamentação, em 1983, através do citado Regulamento nº 1983/83 e do Regulamento (CEE) nº 1983/84, sobre compra exclusiva.
De harmonia com os considerandos do Regulamento nº 1983/83, 'os acordos de distribuição exclusiva conduzem, em geral, a uma melhoria de distribuição;
[...] efectivamente o empresário pode, assim, concentrar as actividades relativas à venda da sua produção; [...] não é obrigado a manter múltiplas relações comerciais com um grande número de revendedores e [...] o facto de manter relações apenas com um único revendedor permite solucionar, mais facilmente, as dificuldades resultantes, no comércio internacional, das diferenças de ordem linguística, jurídica e outras' (considerando nº 5). Por outro lado, esses acordos 'facilitam a promoção da venda dum produto e permitem actuar, de forma intensiva, no mercado e assegurar a continuidade do abastecimento, racionalizando a distribuição', estimulando, igualmente, a concorrência entre os produtos dos diferentes fabricantes, sendo certo que, além disso, 'a designação dum concessionário exclusivo que se encarregue da promoção da venda, do serviço de assistência à clientela e da armazenagem, constitui para o fabricante o meio muitas vezes mais eficaz, e por vezes mesmo o único meio, de penetrar num mercado e aí enfrentar a concorrência de outros fabricantes; [...]
é este o caso, especialmente, em relação às pequenas e médias empresas; [...] se deve deixar ao critério das partes decidirem se consideram desejável incluir nos acordos obrigações destinadas à promoção das vendas, e, em caso afirmativo, em que medida desejam incluir tais cláusulas' (considerando nº 6). Acresce que, 'em geral, tais acordos de distribuição exclusiva contribuem igualmente para reservar aos utilizadores uma parte equitativa do lucro daí resultante, uma vez que estes beneficiam directamente com a melhoria da distribuição e que a sua situação, no plano económico ou em matéria de abastecimento, se encontra melhorada na medida em que podem encontrar mais rápida e facilmente os produtos fabricados, em especial, noutros Estados' (considerando nº 7).
De harmonia com este balanço económico - e admitindo mesmo que os acordos de distribuição exclusiva bilaterais 'nos quais participem apenas empresas do mesmo Estado-membro e relativos à revenda de produtos nesse Estado, constituirão, normalmente, excepção neste aspecto; que, não obstante, na medida em que são susceptíveis de afectar o comércio entre Estados-membros, e ainda satisfazem todas as categorias do presente regulamento, não há razão para os excluir do benefício da isenção por categoria' (considerando nº 3) - o art. 1º do citado Regulamento nº 1983/83 declarou a inaplicabilidade do nº 1 do art. 85º do Tratado de Roma 'aos acordos em que participem apenas duas empresas e nos quais uma das partes se obriga perante a outra a só fornecer certos produtos a esta, para fins de revenda, no todo ou numa parte definida do território do mercado comum', admitindo o art. 2º, nº 2, alínea a), do mesmo Regulamento que pode ser imposta ao concessionário ou distribuidor exclusivo a obrigação de não distribuir produtos concorrentes dos referidos, no mercado.
18. É altura de conhecer da questão de constitucionalidade posta ao Tribunal.
Importa reafirmar que não só a decisão administrativa foi tomada antes de Portugal se ter tornado membro das Comunidades Europeias, como também só está em causa a aplicabilidade do direito nacional, e não do direito comunitário. Igualmente se deve realçar que as decisões judiciais proferidas em 1989 e em
1995 apreciaram a legalidade de um acto administrativo praticado em 1985, à luz do direito interno português, único que estava em causa em 1985.
Importa igualmente acentuar, preliminarmente e uma vez mais, que não constitui objecto do recurso a questão de constitucionalidade da própria decisão administrativa tomada pelo Conselho de Concorrência.
Violarão então o princípio da igualdade as normas das alíneas b) e c) do nº 1 do art. 13º do Decreto-Lei nº 422/83, necessariamente conjugadas com o disposto no nº 1 do art. 15º do mesmo diploma, quando interpretados no sentido de que pode ser considerada injustificada em Portugal uma prática restritiva da concorrência, que seja justificada no plano comunitário?
19. A resposta à pergunta é negativa.
Por um lado, há-de convir-se que o sistema previsto nos arts. 13º e 15º do Decreto-Lei nº 422/83 é idêntico ao que está consagrado no art. 85º do Tratado de Roma, sendo claramente decalcado sobre este último.
A recorrente não disputa que os contratos de distribuição exclusiva configuram práticas restritivas da concorrência. Bastará ler o Regulamento (CEE) da Comissão nº 1983/83, de 22 de Junho, em especial os considerandos nºs. 5, 6 e
7 atrás referidos e parcialmente transcritos, e a Comunicação da Comissão (84/C
101/02) sobre os Regulamentos (CEE) nºs. 1983/83 e nº 1983/84 para concluir que estamos perante práticas restritivas de concorrência. Ponto é saber se as mesmas podem ser justificadas, ficando derrogada a proibição-regra a elas atinente.
A interpretação acolhida pela Relação de Lisboa das normas dos nºs. 1 dos arts. 13º e 15º não destoa igualmente da interpretação feita dos nºs. 1 e 3 do art. 85º do Tratado de Roma pelo Tribunal de Justiça (cfr. Maria Belmira Martins, Maria José Bicho e Azeem Remtule Bangy, O Direito da Concorrência em Portugal, Lisboa, 1986, págs. 223 e segs. - escreve-se nesta obra na pág. 238:
'o balanço económico não consiste em admitir ou rejeitar globalmente um comportamento restritivo. Tão-pouco este poderá ser justificado pelo simples facto de conter alguns elementos pró-concorrenciais. É cada uma das cláusulas que aquele integra que tem que ser julgada, é a sua apreciação analítica, na situação económica em que se insere, que tem que ser efectuada. Vantagens e inconvenientes têm que ser analisados, nos termos do nº 1 do artigo 15º do Decreto-Lei nº 422/83, de 3 de Dezembro'; Robert Kovar, in V. Constantinesco, J. P. Jacqué, R. Kovar e D. Simon, Traité Instituant la CEE-Commentaire Article par Article, Paris, 1992, págs. 426 e seguintes).
No caso sub judicio, a Comissão de Concorrência procedeu ao balanço casuístico dos acordos de distribuição exclusiva celebrados por uma empresa pública produtora de cerveja e refrigerantes, a partir de uma situação do mercado que era seguramente diferente das que se observavam no comum dos Estados-membros das Comunidades no mesmo ano (1985) e que se reflectiam necessariamente no comércio entre os Estados-membros: existência de duas empresas públicas, resultantes de nacionalização, no sector cervejeiro, as quais praticamente repartiam o mercado entre si, produzindo igualmente parte significativa dos refrigerantes vendidos no mercado e que, nos termos constitucionais e legais em vigor, não podiam ser objecto de apropriação por entidades privadas, por força do princípio da irreversibilidade das nacionalizações.
Admitindo o direito interno português, tal como o direito comunitário, a possibilidade de o balanço económico para a eventual justificação de uma prática restritiva da concorrência poder ser feito casuísticamente quanto a uma certa empresa - sendo certo que ambos os direitos admitem paralelamente a possibilidade de a justificação ou declaração de inaplicabilidade da proibição de práticas restritivas serem feitas por regulamento geral e abstracto para certas categorias de casos - não se vê como a interpretação dos arts. 13º, nº 1, e 15º, nº 1, do Decreto-Lei nº 422/83 possa violar o princípio constitucional da igualdade.
De facto, uma coisa é o balanço económico que foi feito pelo Conselho da Concorrência em 1985 relativamente aos contratos celebrados por uma das duas empresas públicas que partilhavam o mercado português e outra é o balanço económico 'presumido' ou abstracto feito pela Comissão em relação ao comum dos contratos de distribuição exclusiva que produzem efeitos nas relações económicas transnacionais, no plano comunitário, a partir da data em que foi publicado o primeiro regulamento na matéria (Regulamento nº 67/67, entretanto revogado).
Contrariamente ao que sustenta a recorrente, não implica só por si violação do princípio da igualdade a possibilidade de ser considerado lícito, por regulamento comunitário, um 'contrato de distribuição entre uma empresa estabelecido num outro país comunitário e uma empresa estabelecida em Portugal pela qual esta última se obrigasse para com aquela a não produzir ou distribuir produtos concorrentes dos referidos no contrato, na totalidade ou em parte do mercado nacional, em contrapartida da obrigação, assumida contratualmente pela primeira, de só à segunda fornecer os ditos produtos para revenda nessa área'
(alegação a fls. 184), do mesmo passo que a Comissão de Concorrência considera injustificada, em termos de balanço económico casuístico, a celebração desses contratos por uma das duas empresas públicas que dominam o mercado nacional das cervejas e refrigerantes, à luz da realidade nacional e por aplicação do direito interno da concorrência.
De facto, o balanço económico, quanto a certa empresa ou sector económico, não tem de ser o mesmo no plano do direito nacional e do direito comunitário - importa acentuar que estamos perante ordenamentos diversos - para mais quando a economia de Portugal, em vésperas da adesão, se afastava seguramente - no plano da realidade e no plano mormativo, em especial constitucional - do comum das economias dos Estados-membros das Comunidades. Tão-pouco está excluída a possibilidade de um balanço económico casuístico, quando haja um balanço económico presumidamente favorável, segundo fonte regulamentar, no plano comunitário, não podendo falar-se em discriminação em função da nacionalidade quando as empresas portuguesas, que eventualmente exportem cerveja ou refrigerantes por elas produzidos para outros Estados-membros, possam indubitavelmente, por força do citado Regulamento (CEE) nº 1983/83, celebrar com empresas desses Estados-membros contratos de distribuição com exclusivo.
O que é determinante é que, no plano normativo, não se vislumbra, na interpretação feita dos arts. 13º, nº 1, e 15º, nº 1, do Decreto-Lei nº 422/83, qualquer violação do princípio da igualdade: é sabido que este princípio não proíbe que a lei estabeleça distinções: 'proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja, proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também se tratem por igual situações essencialmente desiguais' (formulação do acórdão nº 39/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º volume, pág. 272).
Ora, no plano normativo, a consagração de um sistema de proibição-regra de acordos e práticas concertadas restritivas de concorrência com a correspondente nulidade dos respectivos acordos, e a admissão de derrogações à proibição, através da justificação de certas práticas por força de um balanço económico positivo, quer no direito nacional, quer no direito comunitário, pode acarretar juízos diferentes sobre o balanço económico de certas práticas restritivas, atenta a diversidade das realidades económicas sobre as quais são feitos esses balanços (num caso, uma economia nacional com duas empresas dominantes em certo sector produtivo; no outro caso, a economia do conjunto dos países comunitários, nas suas relações transnacionais). Mas isso afasta, em si mesmo, a possibilidade de se falar na violação do princípio da igualdade, dada a desigualdade de cada uma das situações apreciadas no âmbito de ordens jurídicas diversas, não havendo qualquer discriminação em função da nacionalidade.
IV
20. Nestes termos e pelas razões expostas decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso.
Lisboa, 2 de Julho de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa