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Proc. nº 195/97
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. O Magistrado do Ministério Público deduziu acusação em processo comum contra os arguidos A., B. e C., imputando-lhes a prática, em co-autoria material e na forma continuada, de um crime de burla previsto e punível nos termos dos arts. 313º e 314º, alínea c), do Código Penal de 1982.
Submetidos a julgamento no Tribunal de Círculo das Caldas da Rainha o primeiro e o terceiro arguidos - visto o segundo arguido ter faltado ao julgamento diversas vezes, o que acarretou a separação do respectivo processo - vieram a ser condenados, o primeiro na pena de 5 anos de prisão, e o terceiro na pena de 3 anos de prisão, como co-autores de um crime qualificado de burla, o primeiro na forma continuada, e o terceiro na forma não continuada (acórdão de
31 de Janeiro de 1996, a fls. 512 a 518 vº).
Interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pelos arguidos A. e C., representados pela mesma mandatária judicial, na respectiva motivação suscitaram eles, a título subsidiário, a questão da anulação do julgamento em primeira instância em virtude de ter integrado o tribunal colectivo o magistrado judicial que presidira ao primeiro interrogatório judicial do arguido A. e lhe aplicara a 'medida gravosa de prisão preventiva', situação que constituía, na opinião dos recorrentes, 'uma manifesta violação do Princípio da Acusação entre nós assegurado', visto que a 'imparcialidade e objectividade que, conjuntamente com a independência, são condições indispensáveis de uma autêntica DECISÃO JUDICIAL,... só estarão asseguradas quando a entidade julgadora não tenha também funções de investigação preliminar e acusação de infracções' (a fls. 576 dos autos). No entender ainda dos recorrentes, a violação do princípio da acusação constituíria nulidade da audiência de julgamento, visto o princípio acusatório, consagrado no art. 32º da Constituição, impor e exigir 'que o Juiz de instrução que tenha intervindo na fase de inquérito e consequentemente de investigação do processo não possa intervir e participar no julgamento fazendo parte do Colectivo' (ibidem). Nas conclusões, afirmou-se que o Tribunal a quo havia violado 'o princípio da Acusação e consequentemente o art. 32º da C.R.P. e o art. 32º nº 1 do C.P.P., aplicável ex vi do mencionado artigo da Constituição da República' (a fls. 584), imputando-se ao acórdão recorrido 'ilegal interpretação e aplicação', entre outros, 'do Princípio da Acusação e consequentemente os arts. 32º da C.R.P. e 32º nº 1 do CPP' (a fls. 585-586 dos autos).
Através de acórdão proferido em 29 de Outubro de 1996, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento aos recursos interpostos pelos dois identificados arguidos. Relativamente à questão da violação pela decisão recorrida do princípio do acusatório, pode ler-se nesse aresto:
' Os recorrentes vêm pedir a anulação do julgamento com base em que um dos Mmos. Juízes que participou no julgamento havia presidido ao primeiro interrogatório judicial do arguido A., o que conduziria à violação do supra mencionado princípio.
Todavia, também aqui não têm razão.
Com efeito, o grande princípio neste campo está contido no artigo 40º do Código de Processo Penal, que apenas estabelece o impedimento para o Juiz que haja presidido ao debate instrutório, o que não é aqui o caso.
Com efeito, não pode confundir-se uma intervenção deste tipo com a direcção da instrução por via da presidência do debate instrutório.
E ademais, os acórdãos da Relação de Lisboa de 28-6-89 e de 23-1-91 apontam no sentido de que a intervenção do juiz no processo não como instrutor, mas para garantir o direito de defesa do arguido, não constitui impedimento para o julgamento.
Daí que se possa formular afoitamente a doutrina de que a intervenção de um juiz no primeiro interrogatório judicial do arguido, mesmo que em consequência desse interrogatório tenha de decidir sobre a sua prisão, não constitui impedimento à sua intervenção posterior no julgamento.
Não há, assim, qualquer infracção ao princípio do acusatório, com a consequente nulidade.' (a fls. 804)
Inconformados com este acórdão, dele vieram interpor os arguidos recurso para o Tribunal Constitucional, após terem formulado um pedido de aclaração que foi indeferido. Deve notar-se que nesse pedido de aclaração os arguidos consideraram ambígua a fundamentação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça na parte respeitante à arguição de nulidade da decisão de primeira instância por violação do princípio do acusatório, afirmando o seguinte:
14º
'
O Acórdão entendeu fazer Doutrina interpretando e aplicando o art. 40º do C.P.P. com a seguinte formulação sic «a intervenção de um juiz no primeiro interrogatório judicial do arguido, mesmo que em consequência desse interrogatório tenha de decidir sobre a sua prisão, não constitui impedimento à sua intervenção posterior em julgamento».
15º
O caso vertente em que se suscitou a nulidade da audiência de julgamento por nele ter intervindo um Exmº. Senhor Magistrado que no Inquérito exerceu as funções de juiz de Instrução decidindo a prisão de um dos arguidos, não está directa e taxativamente previsto no mencionado preceito. Mas,
16º
poder, ainda que «afoitamente», interpretar-se aquela norma com aquele sentido face ao Princípio Geral de Direito Penal do Acusatório aplicável em Processo Penal (cfr. art. 4º do C.P.P.) e consagrado
CONSTITUCIONALMENTE!...
Assim,
17º
A questão que se pretende ver aclarada é se se levou em conta na interpretação alcançada o disposto no art. 4º da C.P.P. e designadamente o disposto no art.
32º da C.R.P.
18º
Suscitando-se desde já a Inconstitucionalidade de tal interpretação com o sentido Doutrinário que lhe foi dado pelo Supremo.' (fls. 818-819).
No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, os arguidos indicaram que interpunham esse recurso com fundamento nas alíneas b) e g) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, tendo por objecto a
'norma do art. 40º do Código de Processo Penal na parte em que permite a intervenção no julgamento do Juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva de um dos arguidos, por violação do art. 32º, concretamente no seu nº 5, da C.R.P.'. Consideraram que a questão de constitucionalidade havia sido suscitada quer na motivação do recurso de decisão de primeira instância, quer no pedido de aclaração apresentado ao Supremo Tribunal de Justiça.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 851.
Os recorrentes apresentaram ainda nesse Alto Tribunal a motivação do recurso de constitucionalidade.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Respondendo a um convite do relator, esclareceram os recorrentes que, relativamente ao invocado fundamento da alínea g) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o acórdão deste último em oposição ao acórdão recorrido era o nº 935/96, proferido no processo 674/92, da 2ª Secção do Tribunal Constitucional (a fls. 882).
3. Notificados para alegações, apresentaram os arguidos nova peça processual. O Ministério Público, por seu turno, contra-alegou.
Os recorrentes formularam as seguintes conclusões em que reafirmaram a tese de que o julgamento realizado pelo Tribunal de Círculo das Caldas da Rainha devia ser anulado por violação do princípio da acusação, que postula que a mesma entidade que procede ao julgamento não pode coexistir no desenrolar do processo, sob pena de se comprometer a imparcialidade e objectividade que, conjuntamente com a independência, são condições indispensáveis de uma autêntica decisão judicial. Segundo eles, a circunstância de o juiz que presidiu ao primeiro interrogatório do arguido A. ter aplicado a medida de prisão preventiva - que manteve depois, sendo o despacho objecto do recurso para a Relação de Lisboa - inibia-o de participar no julgamento da causa por ter desempenhado funções jurisdicionais na fase de investigação do processo. Tais despachos proferidos
'durante o inquérito e quando a investigação estava praticamente concluída, ultrapassam a mera função de controlo jurisdicional e configuram já uma verdadeira dimensão acusatória, uma implícita tomada de decisão sobre a matéria fundamental da acusação e da defesa':
'B) O Princípio da Acusação está consagrado no art. 32º da C.R. Portuguesa, mais concretamente no seu nº 5,
além de ser
reconhecidamente considerado por toda a Doutrina e Jurisprudência um pilar fundamental das garantias do processo criminal.
C) O art. 40º do C.P.P. deverá ser declarado inconstitucional na parte em que permite a intervenção ao julgamento do juiz que, na
fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido, por violação do art. 32º nº 5, da Constituição.
Assim
O Tribunal «A quo» violou o princípio da Acusação'. (a fls. 896)
O Ministério Público concluiu a sua peça de resposta da seguinte forma:
' 1º
Não há qualquer colisão, atenta a especificidade do caso «sub juditio», entre o decidido nestes autos acerca do impedimento do juiz que participa simultaneamente em actos do inquérito e no julgamento da causa e o teor do acórdão nº 935/96, pelo que inexiste um essencial pressuposto do recurso de constitucionalidade fundado pelos arguidos na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
2º
Os arguidos não suscitaram, de forma adequada, durante o processo, a questão de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 40º do Código de Processo Penal, interpretada em termos de ser aplicada à específica situação dos autos, numa hipótese em que o juiz que integrou o colectivo perante o qual decorreu a audiência final se limitou a presidir ao interrogatório de um dos arguidos, determinando a respectiva prisão preventiva, mas sem que tivesse posteriormente decidido da manutenção de tal medida de coacção.
3º
Na verdade, na motivação do recurso que interpuseram para o Supremo Tribunal de Justiça, os arguidos limitaram-se a afirmar que a decisão proferida em 1ª instância teria violado o princípio constitucional do acusatório, o que deveria determinar a anulação do julgamento, sem questionar, de forma clara, a constitucionalidade da norma constante daquele artigo 40º do Código de Processo Penal.
4º
Não padece de inconstitucionalidade a norma constante do artigo 40º do Código de Processo Penal, enquanto interpretada em termos de não implicar impedimento de participação no julgamento a mera circunstância de o juiz ter procedido ao interrogatório de apenas um dos arguidos, decretando imediatamente a respectiva prisão preventiva, sem que posteriormente a haja mantido.
5º
Termos em que não deverá conhecer-se do presente recurso.' (a fls. 915-916)
4. Em virtude das questões prévias atinentes ao não conhecimento do recurso quanto a ambos os fundamentos, deduzidas pelo Exmº. Procurador-Geral Adjunto, foram notificados os recorrentes para a elas responder.
Na respectiva resposta os arguidos pronunciaram-se pela improcedência dessas questões prévias.
Relativamente à questão de não suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo (recurso com fundamento na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional), os recorrentes afirmaram o seguinte:
' Com efeito a questão foi claramente suscitada no Supremo Tribunal de Justiça quando se pediu a anulação do julgamento com fundamento na violação do Princípio Constitucional do Contraditório.
Se é violado um princípio constitucional essa inconstitucionalidade terá que ser declarada e consequentemente o julgamento anulado.
Na realidade, reafirma-se, a questão foi claramente suscitada perante o S.T.J., apenas não se referiu, nem poderia fazê-lo de resto, que se o Supremo Tribunal de Justiça negasse provimento ao recurso se iria recorrer ao Tribunal Constitucional!!!' (a fls. 923)
E, depois de os recorrentes manifestarem estranheza quanto à afirmação da entidade recorrida de que era 'perfeitamente evidente que a norma constante do art. 40º do C.P.P. não poderia deixar de ser convocada pelo S.T.J. para apreciar a pretendida anulação do julgamento', afirmaram que o Supremo Tribunal de Justiça tem aplicado já a norma do art. 40º do Código de Processo Penal com o sentido definido pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão nº 935/96, concluindo do seguinte modo:
' Assim, é óbvio que, ao contrário do entendimento perfilhado nas contra-alegações, o S.T.J. pode e deve declarar uma norma já julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
Aliás, quando se pediu a aclaração do acórdão do Supremo nos presentes autos, visava-se justamente saber se o S.T.J. tinha considerado na sua decisão o acórdão 935/96 do T.C.' (ibidem)
No que toca à segunda questão prévia (falta de verificação dos pressupostos do recurso fundado na alínea g) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional), os recorrentes procuraram demonstrar que a situação processual no presente caso era inteiramente idêntica - ou até mesmo mais nítida
- do que a que ocorria nos autos que deram origem ao acórdão nº 935/96 do Tribunal Constitucional.
Assim, seria irrelevante a circunstância de o arguido C. não ter sido ouvido no primeiro interrogatório pelo juiz que veio a integrar o colectivo, visto que, no caso que deu origem ao acórdão nº 935/96, havia outros réus no processo: sempre será 'óbvio que ao serem acusados em co-autoria material a decisão em relação a um arguido está directamente relacionada com os outros arguidos no processo, uma vez que se trata da prática de actos, ilícitos, concertada entre dois ou mais agentes', acrescendo no caso dos presentes autos
'a questão da unidade da decisão' (a fls. 919 dos autos). De qualquer forma, a decisão do recurso sempre seria extensível ao arguido C. por força do disposto nos nºs. 2 e 3 do art. 74º da Lei do Tribunal Constitucional.
Quanto à circunstância de o Ministério Público afirmar que, no presente caso, não houve posterior manutenção da prisão preventiva do recorrente A., determinada pelo juiz que veio integrar o colectivo, afirmam os recorrentes que houve subsequente intervenção desse juiz:
' Com efeito, não se percebe como se afirma que o Mmº. Juiz em causa não teve ulterior intervenção no processo, quando foi o mesmo magistrado que indeferiu a substituição da medida de coacção de prisão preventiva por outra menos gravosa, o que lhe foi requerido no final da diligência.
O arguido não tratou logo de impugnar esta decisão perante a Relação, como se diz nas contra-alegações, na realidade não teve alternativa a não ser recorrer ao expediente da interposição de recurso para a Relação.
É evidente que se preferia uma solução menos morosa que a interposição do recurso, só que o Mmº. Juiz já tinha indeferido a substituição da prisão preventiva.
Acresce que o Sr. Juiz manteve ainda o despacho quando foi interposto recurso para a Relação de Lisboa, como se pode verificar da transcrição do acórdão da Relação de Lisboa, sic:
«2.4.
Sustentação
O Mmº. JIC manteve o despacho recorrido».'
(a fls. 921)
Na tese dos recorrentes, esta situação seria até mais impressiva do que a contemplada no acórdão nº 935/96, uma vez que a Relação viria a confirmar o despacho do Magistrado em causa, fortelecendo a convicção deste sobre a culpabilidade daquele arguido.
5. Foram dispensados os vistos legais.
Cumpre apreciar os recursos interpostos pelos dois arguidos, começando por decidir se procedem as questões prévias.
II
6. Preliminarmente e porque tal se afigura relevante para a plena compreensão das questões prévias suscitadas, atendendo a que constitui matéria de facto constante dos autos, cabe referir o seguinte:
a) Instaurado o processo de inquérito contra dois denunciados inicialmente (A. e um tal D., identificado a fls. 113 como D.), veio o mesmo inquérito a dirigir-se contra um terceiro, o actual recorrente C. (cfr. fls. 129 dos autos);
b) Quer o arguido B., quer o arguido C. foram ouvidos, em primeiro interrogatório, por um outro Juiz, o Dr. E. (em 20 de Março de 1995, a fls.
113-116 vº; e em 22 de Março do mesmo ano, a fls. 129 a 136 vº, respectivamente);
c) O arguido A. achava-se detido à ordem do 2º Juízo Criminal de Coimbra no Estabelecimento Prisional Regional dessa cidade e, tendo sido desligado do processo pendente nesse juízo, passou a ficar detido por decisão desse Tribunal
à ordem do presente inquérito, a solicitação da Delegada do Procurador da República das Caldas da Rainha (informação a fls. 182);
d) O arguido começou a ser interrogado pelo Juiz Dr. F., em 24 de Maio de 1995, tendo ficado suspensa a continuação desse primeiro interrogatório até ao dia seguinte, visto o mesmo arguido ter requerido esse adiamento para poder comparecer na diligência a sua advogada, com escritório em Coimbra (auto a fls.
185-186);
e) Em 25 de Maio de 1995, prosseguiu a diligência suspensa, sob a presidência do mesmo Magistrado, tendo o arguido pretendido prestar declarações, embora não sendo obrigado a fazê-lo;
f) Na sequência de requerimento da Magistrada do Ministério Público nesse sentido - que teve oposição por parte da Advogada do arguido, a qual requereu 'a substituição da medida de coacção aplicada por outra medida não privativa da liberdade', alegando fundamentos nesse sentido - o mesmo Juiz considerou existirem 'fortes indícios de prática pelo arguido A., em co-autoria com os arguidos B. e C., de pelo menos um crime de burla agravada', indicando como fundamento desse juízo a documentação junta aos autos e a prova testemunhal já produzida, bem como a circunstância de o mesmo arguido ter subscrito cheques que entregou à queixosa, 'actuação sem a qual, acompanhada das restantes circunstâncias, não teriam sido entregues os veículos em causa pelo G. aos arguidos'. Em virtude do limite máximo da pena que, em abstracto, correspondia ao crime cuja prática pelo arguido se achava indiciada, e atendendo à gravidade dos factos imputados, à notícia de o mesmo arguido ter tentado proceder do mesmo modo, ao facto de ter sido desconhecido o seu paradeiro durante largo tempo e ao risco de fuga, o mesmo Magistrado entendeu 'ser a prisão preventiva a única medida de coacção adequada e suficiente no caso sub judice, revelando-se, pois, as restantes medidas de coacção insuficientes no caso presente'. E concluiu do seguinte modo:
'De harmonia com o exposto, indeferindo ao requerido pela Ilustre mandatária do arguido, determino que o arguido A., prestando termos de identidade a que alude o art. 196º do CPP, aguarde os ulteriores termos do processo em prisão preventiva' (a fls. 190 e vº);
g) Desta decisão interpôs o arguido recurso para a Relação de Lisboa, em 8 de Junho de 1995, tendo junto com o requerimento a motivação (a fls. 204 e seguintes);
h) Este recurso foi admitido por outro Juiz (despacho de fls. 211 dos autos principais), o qual mandou abrir conclusão no processo apenso ao 'meu Exmº. Colega do 2º Juízo a fim de sustentar ou reparar o despacho recorrido';
i) O despacho de sustentação foi proferido pelo Dr. Falcão de Magalhães, aí se afirmando: 'Para além dos motivos já expendidos para alicerçar a decisão recorrida, fotocópia a fls. 107 vs e ss e que ora sustento, nada mais se me oferece acrescentar' (a fls. 150 do 1º volume apenso). No mesmo despacho afirma-se que se afigurava ao Magistrado signatário 'manterem-se os pressupostos que determinaram a prisão preventiva do arguido/recorrente, A. e que impõem tal medida de coacção. V. Exas., porém, julgarão como for de justiça' (despacho proferido em 7 de Julho de 1995);
j) Em 24 de Julho de 1995, foi elaborada acusação pela Delegada do Procurador da República, a qual foi notificada ao arguido A. no dia seguinte (a fls. 260 a 263 vº, e 264);
l) Nenhum dos arguidos requereu a abertura de instrução;
m) O despacho de recebimento de acusação foi proferido em 11 de Agosto de 1995 pela Juíza de turno. Nesse despacho foram mantidas as medidas de coacção aplicadas aos ora recorrentes;
n) A fls. 290 vº e 291 foi mantida a prisão preventiva por outro Magistrado, com a indicação de que se achava já marcada a data para julgamento.
7. Afirma-se que o Tribunal Constitucional não pode tomar conhecimento do recurso interposto com fundamento na alínea b) do nº 1 do art.
70º da Lei do Tribunal Constitucional.
De facto e como põe em relevo o Exmº. Procurador-Geral Adjunto, a questão da inconstitucionalidade do art. 40º do Código de Processo Penal só foi suscitada pelos arguidos após a prolação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sob recurso, no requerimento do pedido de aclaração.
Durante o processo - isto é, antes de proferida a decisão recorrida e em momento processual adequado, entendida pois a expressão 'durante o processo' num sentido funcional, como o vem sendo pela jurisprudência constante do Tribunal Constitucional - os ora recorrentes impugnaram o acórdão do tribunal de primeira instância, considerando que a própria decisão judicial violara o princípio constitucional do acusatório. De facto, na motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, afirmaram que a participação do magistrado que ouvira em primeiro interrogatório o arguido A. e decretara a prisão preventiva constituía 'uma manifesta violação do Princípio da Acusação entre nós assegurado', o que acarretaria nulidade do julgamento. Claramente, imputou-se ao acórdão de primeira instância a violação da Constituição e da lei processual penal (art. 32º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Não tendo os recorrentes suscitado a inconstitucionalidade do art. 40º do Código de Processo Penal a tempo de o Supremo Tribunal de Justiça encarar e resolver essa questão de constitucionalidade, limitando-se a imputar uma inconstitucionalidade à própria decisão judicial - sendo certo que a jurisprudência do Tribunal Constitucional exige que a questão de inconstitucionalidade normativa seja suscitada durante o processo e de forma clara e perceptível (cfr., por todos, o acórdão nº 155/95, in Diário da República, II Série, nº 140, de 20 de Junho de 1995) - não pode o Tribunal Constitucional conhecer do recurso com este fundamento.
8. Resta apreciar a questão prévia respeitante à interposição do recurso de constitucionalidade com fundamento na alínea g) do nº 1 do art.
70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Este fundamento de recurso reconduz-se ao 'princípio do primado da competência do TC em questões de constitucionalidade' (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra,
1993, pág. 1021). Ainda segundo os mesmos autores, 'o facto de a norma ter sido julgada inconstitucional pelo TC funciona automaticamente como pressuposto bastante de recurso em todos os processos em que a norma venha a ser aplicada em divergência com o juízo do TC' (ob. cit., pág. 1022).
Constituem pressupostos do recurso com fundamento na alínea g) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional (e, claro, no nº 5 do art. 280º da Constituição):
- que a norma arguida de inconstitucional tenha sido aplicada pelo tribunal recorrido;
- que a mesma norma tenha sido anteriormente julgada inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional.
9. No caso sub judicio está indubitavelmente em causa o art.
40º do Código de Processo Penal, que tem o seguinte teor:
' Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado, ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido.'
A segunda parte deste preceito foi aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 29 de Outubro de 1996, com o sentido de que só constitui impedimento à intervenção do juiz no julgamento a circunstância de este ter presidido ao debate instrutório, não a circunstância de ter presidido ao primeiro interrogatório judicial do arguido. Como se pode ler no passo já transcrito deste acórdão:
' Daí que se possa formular afoitamente a doutrina de que a intervenção de um juiz no primeiro interrogatório judicial do arguido, mesmo que em consequência desse interrogatório tenha de decidir sobre a sua prisão, não constitui impedimento à sua intervenção posterior no julgamento.'
Por seu turno, o Tribunal Constitucional, através do seu acórdão nº
935/96 (proferido com anterioridade, visto ter sido assinado em 10 de Julho de
1996, embora só publicado em 11 de Dezembro do mesmo ano, no nº 286 da II Série do Diário da República - parecendo indubitável que a anterioridade para efeitos de admissibilidade se afere pela data do trânsito em julgado do acórdão e não pela da publicação, sem prejuízo da publicação ser relevante para efeitos de obrigatoriedade do recurso do Ministério Público; deve notar-se que Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, Breviário do Direito Processual Constitucional, Coimbra, 1997, pág. 60, entendem que apenas é relevante a data do conhecimento da decisão do Tribunal Constitucional pelo Tribunal a quo, mas não a da publicação daquela decisão, na linha do decidido no acórdão nº 29/86, publicado no Diário da República, II Série, nº 101, de 3 de Maio de 1986), julgou inconstitucional:
'... a norma constante do artigo 40º do Código de Processo Penal na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido, por violação do artigo
32º, nº 5, da Constituição.'
Para precisar a dimensão ou segmento da norma que o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional importa atentar na fundamentação desse acórdão:
' Seja como for e independentemente da solução a dar à questão da constitucionalidade da norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, no segmento em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, apenas decretou a prisão preventiva do arguido, convém salientar que, no caso dos autos, o juiz que participou no julgamento não só decretou como ainda manteve posteriormente a prisão preventiva do arguido, quando apreciou um requerimento do arguido em que solicitava a sua revogação.
Quer isto dizer que a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, se pronunciou sobre a prisão preventiva do arguido, foi aplicada, in casu, numa dupla dimensão: naquela em que o juiz decretou, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, a prisão preventiva e naquela em que, em data posterior, já bem próxima da data da acusação, confirmou a prisão preventiva. Ora, aplicada nesta dupla dimensão, a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal infringe claramente o princípio da imparcialidade objectiva do juiz, ínsito no princípio do acusatório, constante do nº 5 do artigo 32º da Constituição. Na verdade, quando o juiz reaprecia a subsistência da prisão preventiva que antes decretou, num momento em que o inquérito está a chegar ao seu termo e em que já existem no processo quase todos os elementos que é possível carrear sobre a autoria do crime imputado ao arguido e sobre a sua gravidade, pode dizer-se que fica com uma convicção de tal modo arreigada quanto a estes aspectos do processo que, objectivamente - e sem prejuízo da independência interior que ele for capaz de preservar -, fica inexoravelmente comprometida a sua independência e imparcialidade na fase do julgamento'. (nº
14)
10. Confrontando ambas as situações de facto - a que respeita ao desenrolar do presente processo e a que ocorreu nos autos em que foi proferido o acórdão nº 935/96 do Tribunal Constitucional - ressalta uma diferença evidente: no presente processo, o Magistrado que proferiu a decisão a decretar a prisão preventiva, na sequência do primeiro interrogatório do arguido, diligência a que presidiu, não reapreciou autonomamente a situação de prisão preventiva do mesmo arguido a seu pedido, nomeadamente face a novos dados carreados por ele na fase de inquérito.
É certo que, como põe em destaque a Exmª. Advogada dos recorrentes, o mesmo Juiz que decretou a prisão preventiva veio a sustentar o despacho no recurso interposto da decisão de decretamento dessa medida de coacção. Simplesmente, tal sustentação não implicou - como é óbvio - uma nova apreciação dos indícios, em fase subsequente do inquérito, visto o referido Magistrado se ter limitado a reafirmar o juízo anteriormente feito ('Para além dos motivos já expendidos para alicerçar a decisão recorrida... e que ora sustento, nada mais se me oferece acrescentar'), sendo certo que o processo lhe foi concluso pelo Juiz do processo, dado ter sido aquele a proferir a decisão de decretamento da prisão preventiva. Como resulta do art. 414º do Código de Processo Penal, a sustentação ou reparação da decisão proferida ocorre após a apresentação da motivação do recurso e da resposta, reportando-se manifestamente ao momento temporal em que foi proferida a decisão impugnada.
Importa ainda esclarecer que só houve uma decisão a decretar a prisão preventiva nos presentes autos, no final do primeiro interrogatório do arguido. Não têm razão os recorrentes quando afirmam que houve nesse momento a manutenção de uma situação de prisão preventiva, visto que o recorrente A. estivera preso preventivamente à ordem do Tribunal Judicial de Coimbra, sendo desligado posteriormente e mantido em detenção até à apresentação ao Tribunal das Caldas da Rainha, para primeiro interrogatório.
11. Acrescente-se, por último, que nem sequer em causa avaliar, no momento de apreciação desta questão prévia, se a sustentação do despacho que decretou a prisão preventiva implica um fortalecimento da convicção de culpabilidade pelo Juiz que vem a intervir no julgamento.
O que importa acentuar é que o Supremo Tribunal de Justiça aplicou a norma do art. 40º do Código de Processo Penal numa dimensão - a de que não há impedimento para intervir no julgamento do juiz que decretou a prisão preventiva após o primeiro interrogatório do arguido - que não foi julgada inconstitucional pelo acórdão nº 935/96, não tendo sequer havido pronúncia daquele Supremo sobre a relevância da sustentação do despacho no recurso interposto da decisão de aplicação da medida de coacção.
Tanto basta para que se tenha de concluir que é procedente a questão prévia deduzida pelo Ministério Público e sob apreciação, não podendo conhecer-se do recurso com este segundo fundamento.
III
12. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional julgar procedentes as questões prévias suscitadas pelo representante do Ministério Público e, em consequência, não tomar conhecimento dos recursos interpostos pelos dois recorrentes.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta.
Lisboa,2 de Julho de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa