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Processo nº 382/97
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça
(Secção Criminal), em que figuram como recorrente A., e como recorrido o Ministério Público, pelo essencial dos fundamentos constantes da EXPOSIÇÃO do Relator, a fls. 444 e seguintes, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos, a que o recorrente não respondeu, tendo merecido a 'inteira concordância' do Ministério Público recorrido, decide-se não tomar conhecimento do recurso e condena-se o recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em oito unidades de conta. Lisboa, 30 de Novembro de 1997 Guilherme da Fonseca Fernando Alves Correia Bravo Serra Messias Bento José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa
Processo nº 382/97
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
EXPOSIÇÃO
1. A., com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Maio de 1997, que negou provimento ao recurso por ele interposto e confirmou 'o acórdão recorrido', ou seja, o acórdão do Tribunal Colectivo de Braga, de 30 de Outubro de 1996, que o havia condenado juntamente com outro arguido, 'na pena única de 4 anos e 9 meses de prisão':
'1- pela prática de um crime p. e p. pelo artº 21 nº 1 do Dec-Lei nº 15/93, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;
2- pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artº
40º nº 1 do Dec--Lei nº 15/94 de 22/1, na pena de 1 mês de prisão;
3- pela prática de um crime p. e p. pelo artº 260º do C.P. de 1982, na pena de 9 meses de prisão'.
2. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade invoca o recorrente que ele 'é interposto ao abrigo da alínea b) do Nº 1 do Artº 70º da mesma Lei' (a Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), acrescentando ainda:
'2- O recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade do Nº 1 do Artº
26º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, cuja redacção não foi alterada pela Lei
45/96, de 3 de Setembro;
3- O dispositivo citado, pela sua redacção, violada o disposto nos Nºs 1 e 2 do Artº 32º da Constituição da República Portuguesa;
4-A questão da inconstitucionalidade foi suscitada na motivação do recurso e nas suas conclusões (4ª) e nas Alegações escritas'.
3. Aquele tipo de recurso de constitucionalidade exige a verificação cumulativa de determinados requisitos específicos, interessando aqui, em especial, o da suscitação da questão da inconstitucionalidade durante o processo, com o significado, de conforme é jurisprudência deste Tribunal Constitucional, tal suscitação ser idónea e adequada, de modo a provocar a decisão sobre ela pelo tribunal perante o qual a questão é posta.
Ora é esse requisito que no caso não se pode dar como verificado, conquanto o recorrente tenha dito que a questão de inconstitucionalidade 'foi suscitada na motivação do recurso e nas suas conclusões (4ª) e nas Alegações escritas'.
É que da leitura dessas peças processuais não se colhe uma arguição normativa de inconstitucionalidade, reportada à norma identificada do artigo 26º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, estatuindo sobre a possibilidade do traficante-consumidor (quando 'o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal'), mas antes uma censura da decisão judicial, também na óptica do artigo 32º, nºs 1 e
2, da Constituição.
Vejamos então.
O citado acórdão do Tribunal Colectivo de Braga deu como assente que os 'factos provados integram a prática pelos arguidos, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto no artº 21º nº
1 do Dec-Lei nº 15/93, de 22/1 e aí punido com pena de prisão variável entre 4 e
12 anos de prisão' e que, embora se tenha provado 'que ambos os arguidos eram consumidores de heroína, dado não se ter provado que destinassem o produto da venda exclusivamente para a obtenção de droga para seu consumo, está afastada a previsão do artº 25º do citado Dec-Lei' ('Por outro lado, não se verifica nenhuma circunstância que diminua de forma acentuada a sua conduta, de modo a ser-lhe aplicado o preceituado no artº 26º, atenta até a variedade das substâncias que detinham e vendiam' - acrescentou-se ainda no acórdão).
Interposto pelo recorrente recurso desse acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, na respectiva motivação e sob o titulo de:
'Inadequada Qualificação Jurídica dos Factos', veio ele sustentar, no que aqui importa, o seguinte:
'Embora pareça irrelevante esta dissertação, o certo é que a lei pune diferentemente a venda e a detenção daqueles produtos quando com o respectivo provento só se adquira estupefacientes ou quando se aplique, ainda que cumulativamente, tais proventos a outros fins.
Uma vez que se o arguido tiver aplicado aqueles proventos em fins diferentes do consumo próprio de estupefacientes é punido mais severamente, considerando o disposto no nº 2 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa de que se presume inocente, para poder ser punido pelo crime mais grave, teria de se ter provado quais os fins específicos em que aplicaram tais proventos, nomeadamente quais as compras que fizeram ou quais os serviços que lhes foram prestados.
Como nada disso foi provado, forçoso é considerar que os tão falados proventos das vendas foram aplicados exclusivamente para suportar o consumo próprio de estupefacientes, sob pena de se inverter o ónus da prova e de ter de ser o arguido a provar factos (ainda por cima negativos) para ser punido menos severamente.
Por outro lado, provar a exclusividade do fim dos proventos, é provar que os mesmos não são aplicados em mais nada a não ser naquilo, o que, por ser prova de um facto negativo é impossível: ninguém pode provar que com o dinheiro do seu salário nunca comprou batatas, ou chapéus altos, uma vez que só se tivesse alguém consigo 24 horas por dia poderia fazer tal afirmação, sendo tal exigência uma aberração.
(...).
Atento o facto de se impor a consideração do fim exclusivo do produto das vendas para promover ao consumo, o arguido devia ter sido condenado como traficante-consumidor (artº 26º DL 15/93)'.
Nas conclusões da motivação do recurso adiantou a seguinte conclusão relacionada com aquela matéria:
'4- Uma vez que é igual dizer que as receitas da venda dos estupefacientes eram destinadas exclusivamente a custear o consumo próprio de tal produto ou que com os proventos de tais vendas nunca foram aplicados para pagar fosse o que fosse, e que tal implica, se for interpretado à letra, que existe inversão do ónus da prova, sendo ao arguido que compete provar algo para que seja condenado em crimes menos graves, sobretudo quando para tal tem de fazer prova de um facto negativo - nunca comprou nada diferente de droga - o que é inequivocamente impossível, e ainda por cima porque se provou que a arguida se prostituía, e que provinham às necessidades vitais com o dinheiro resultado de tal actividade, foi violado o disposto no artº 26º do DL 15/93, bem, como nos nºs 1 e 2 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa'.
Usando a oportunidade de alegar por escrito perante o Supremo Tribunal de Justiça, veio o recorrente reeditar a ideia de que 'não considerar o recorrente como traficante-consumidor constitui violação do disposto no artº 26 do DL 15/93 e do disposto nos nºs 1 e 2 do artº 32º da CRP, uma vez que não se provou com rigor que parte os arguidos destinassem do produto da venda dos estupefacientes a outros fins que não o próprio consumo'
E acrescentou depois:
'Tal indevida e inconstitucional interpretação têm a ver com o facto de, não se tendo provado especificada e determinadamente qual o destino dos proveitos que adviessem da venda de estupefacientes, não se ter condenado o recorrente como traficante consumidor ou pela prática de tráfico de menor gravidade, assente na seguinte razão: '(...) dado não se ter provado que destinassem o produto da venda exclusivamente para obtenção de droga para seu consumo (...)'.
É esta afirmação que origina a, salvo melhor opinião, errada aplicação da lei e provoca a inconstitucionalidade.
A não prova da exclusividade não pode reverter em prejuízo do arguido; se é mais grave o crime quando o produto é aplicado em outros fins, cabe à acusação fazer prova de tal destino e não ao arguido fazer prova dessa exclusividade, verificando-se a inversão do ónus da prova'.
As transcrições propositadamente feitas das peças processuais indicadas pelo recorrente, e tendo como ponto de partida o acórdão condenatório do Tribunal Colectivo de Braga, revelam à saciedade que a censura por ele feita dirige-se à condenação que lhe foi imposta e daí o pedido que consta das citadas alegações escritas de, revogando-se o acórdão, ser condenado
'pela prática de tráfico por consumidor (artº 26º)'.
Não se descobre, pois, uma arguição de inconstitucionalidade à volta daquele artigo 26º, mas só uma argumentação ao redor da pretensa 'inversão do ónus da prova', por, na tese do recorrente, não caber à defesa fazer a prova da finalidade exclusiva para uso pessoal dos estupefacientes, antes cabendo 'à acusação fazer prova de tal destino' (e é nesta base que é trazido à colação o artigo 32º, nºs 1 e 2, da Constituição, porque a tal 'inversão do ónus da prova' redundaria em violação das garantias de defesa e da presunção de inocência do arguido).
Nem mesmo se detecta que tenha sido aplicado e interpretado o citado artigo 26º no acórdão condenatório em desconformidade com a Lei Fundamental, sendo que o recorrente não identifica o sentido interpretativo com que tal norma deveria ser aplicada com respeito pela Constituição (aliás, só nas alegações perante o Supremo Tribunal de Justiça é que o recorrente aditou a afirmação de 'indevida e inconstitucional interpretação', sem qualquer precisão).
E o acórdão recorrido também não detecta nenhuma questão de inconstitucionalidade para ser apreciada e decidida, antes se identificando como uma das questões a resolver a de pretender 'o recorrente infirmar a sua condenação como autor de crime p. e p. pelo artigo 21º, nº 1 do Decreto-lei nº
15/93, de 22 de Janeiro', pretendendo com isso 'entrelaçar o contido nestas normas (as dos citados artigos 26º e 32º, nºs 1 e 2, esta da Constituição) com a interpretação dos dados probatórios'.
Acrescenta ainda o acórdão:
'Todavia não se vislumbra em que momento não foram asseguradas todas as garantias de defesa do recorrente e nada se alcança dos autos, e mais propriamente da decisão recorrida, que tenha afrontado o disposto no aludido nº
2.
Se propósito do recorrente é invalidar os factos provados, tal assunto está fora do normado nos artigos 433º e 410º do C.P. Penal. Deve ser afirmado que o Tribunal teve como ponto de referência o estatuído no artigo 127º do C.P. Penal.
Para se configurar o crime p. e p. pelo artigo 26º, nº 1 do Decreto-Lei nº
15/93, é necessário ficar provado que o tráfico tenha como fim exclusivo o consumo, ou seja, somente quando o agente actua com a finalidade exclusiva de obter droga para seu uso pessoal, o que não acontece no caso vertente, em face da factualidade dada como provada'.
Tanto basta para concluir que, por falta do apontado requisito específico do presente recurso de constitucionalidade, não se pode tomar conhecimento dele.
4. Ouçam-se as partes, por cinco dias, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da Lei nº 28/ /82, aditado pelo artigo 2º da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro.