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Proc. nº 254/93 ACÓRDÃO Nº 602/97
1ª Secção Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - O Supremo Tribunal Administrativo, Secção do Contencioso Tributário, em acórdão de 3 de Fevereiro de 1993, concedeu provimento ao recurso de anulação dos 'actos de liquidação das imposições aduaneiras', envolvendo direitos niveladores, que a recorrente A. imputava ao Chefe da Delegação Aduaneira B.
O acórdão recusou a aplicação das normas do artigo 9º, nº 1, e do artigo 12º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº 483-F/88, de 28 de Dezembro, com fundamento de inconstitucionalidade orgânica. Assentando numa identidade de natureza dos direitos niveladores e dos impostos, sublinhou que era também da competência do parlamento a criação e definição do regime essencial daqueles direitos. Disse o Supremo Tribunal Administrativo:
'Dispõe o artigo 168º da Constituição: '1 - é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
a) ... i) Criação de impostos e sistema fiscal'. (...)
Assente-se, portanto, que cabe à Assembleia da República a definição e articulação do sistema fiscal em geral, como conjunto de impostos, bem como a criação de cada um dos impostos, incluindo o seu regime no que concerne a incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes - ver o nº 2 do art. 106º da Constituição. (...)
Define-se o imposto como sendo a prestação pecuniária, coactiva e unilateral, sem o carácter de sanção, exigida pelo Estado com vista à realização de fins públicos.
Na verdade, o imposto é uma prestação em dinheiro, coactiva dado que o seu montante é estabelecido na lei ou por força de lei, unilateral já que ao seu pagamento não corresponde qualquer contraprestação por banda do Estado e sem o carácter de sanção, pois que não tem natureza de penalidade (como a multa, por exemplo).
No regime tributário português as imposições aduaneiras são verdadeiros impostos e visam, além dos fins fiscais, onerar os bens importados e destinados ao consumo interno, assim dificultando a concorrência com os bens produzidos no país.
(...) o Decreto-Lei nº 483-F/88 entrou na ordem jurídica sem que tivesse sido precedido de qualquer lei habilitante emanada da Assembleia da República.
(...) os direitos niveladores (...) são prestações pecuniárias, coactivas, unilaterais, nada pretendendo sancionar e propondo-se a defesa 'da produção nacional'.
Deste modo, e ponderando a inexistência, já referida, de autorização legislativa proveniente da Assembleia da República, desenha-se como nítida a inconstitucionalidade das normas do nº 1 do artigo 9º e dos nºs 1 e 2 do artigo
12º do Decreto-Lei nº 483-F/88, que se tem como estabelecida para todos os efeitos'.
O Ministério Público e também o Chefe da Delegação Aduaneira B., interpõem recurso de constitucionalidade desse acórdão, nos termos do artigo
280º, nº 1, alínea a), da Constituição, e do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
No Tribunal Constitucional, o Ministério Público concluiu assim, em alegações:
'1º - Os direitos niveladores, exigíveis aquando da realização de operações de importação de cereal em grão, nos termos do disposto nos artigos 9º e 12º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 483-F/88, de 28 de Dezembro, não revestem, numa perspectiva jurídico-constitucional, a natureza de impostos.
2º - Na verdade, de um ponto de vista teleológico ou funcional, a sua arrecadação visa directa e prioritariamente a realização de finalidades de direcção económica, no âmbito da política agrária.
3º - A sua criação não está, consequentemente abarcada pela reserva relativa de competência da Assembleia da República, decorrente do preceituado no artigo 168º, nº 1, alínea i) da Constituição'.
E, contra-alegando, a A., reitera a tese, que já sustentara durante o processo, de inconstitucionalidade das normas dos artigos 9º, nº 1, e 12º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº 483-F/88, de 28 de Dezembro, com o fundamento de assimilação dos direitos niveladores aos impostos.
II - 1. Com o Decreto-Lei nº 483-F/88, de 28 de Dezembro, constituindo um regime geral de importações de cereal em grão e de todos os produtos da OCM cereais, o legislador adaptava o mercado interno, em fase de transição para o mercado único europeu, aos Regulamentos CEE nºs. 3252/88, de 21 de Outubro, e 3608/88, de 18 de Novembro, da Comissão Europeia.
No artigo 9º [Regime de importação de cereal em grão] determinava:
'1 - A importação de cereais em grão será efectuada livremente, mediante o pagamento dos direitos niveladores em vigor, nos termos do artigo 12º do presente diploma.
2 - ...
3 - ...'.
E no artigo 12º [Direitos niveladores para cereal em grão]:
'1 - Os direitos niveladores aplicáveis na importação de cereal em grão a que se refere o nº 1 do artigo 9º são fixados, mediante aviso, pela Comissão do Mercado de Cereais.
2 - Os direitos niveladores são fixados para o continente e para as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira tendo em conta os preços CIF de importação mais favoráveis para cereal com procedência de países terceiros, da CEE (10) ou de Espanha, de modo a elevar os preços desses produtos até ao nível dos preços limiares fixados ao abrigo do nº 3 do artigo 7º do presente diploma'.
[o artigo 7º define os preços limiares e seu modo de fixação].
Reputando de idênticos aos impostos os direitos niveladores que nestas normas se prevêem, o Supremo Tribunal Administrativo teve-as por organicamente inconstitucionais, pois que o Decreto-Lei nº 483-F/88, de 28 de Dezembro, foi produzido nos termos do artigo 201º, nº 1, alínea a), da Constituição, ou seja, sem autorização legislativa.
2. Mas, em sentido diferente, o Tribunal Constitucional vem decidindo que os direitos niveladores (acórdão nº 70/92, D.R., II Série, de
18-8-1992 e acórdão nº 194/92, D.R., II Série, de 25-8-1992) e os diferenciais de preços, que têm estrutura idêntica (acórdão nº 7/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 2º, pág. 85 e segs.), não partilham da mesma natureza dos impostos.
Reitera-se, agora, essa jurisprudência.
Constituindo embora prestações unilaterais e coactivas, devidas a uma entidade pública e sem carácter de sanção, aqueles direitos têm a nota distintiva de adstrição a regras de funcionamento do mercado ditadas, não pelas razões que a Constituição releva para o sistema fiscal, mas pelo móbil de regulação de uma certa situação económica-histórica, que é a adesão ao mercado
único europeu.
Os direitos niveladores não têm a mesma dimensão funcional-teleológica dos impostos, que é a dimensão assinalada no artigo 106º da Constituição da República, 'a satisfação das necessidades financeiras do Estado' e 'uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza'. A sua 'finalidade primária' não é 'obter receitas' (Casalta Nabais), é concorrer para a protecção do mercado interno de certo sector, ajustando preços, no impacto da integração na Comunidade Europeia. O legislador, pois, 'não se move [aí] na órbita tributária (a dos artigos 106º e seguintes da Constituição da República), mas ainda na órbita da direcção económica - ou da regulamentação 'directa' da economia pelo Estado [artigo 81º, alíneas a) e j), 96º, nº 1, alínea c), e, em particular, 103º e 109º da Constituição] (...)' (Conselheiro Cardoso da Costa, declaração de voto no acórdão nº 7/84, cit., votado por unanimidade).
E, como é evidente, não existe também identidade entre direitos niveladores e receitas para-fiscais, cuja criação e regime essencial reclamam ainda a reserva de competência relativa do Parlamento. As receitas para-fiscais
- que a doutrina distingue pelas características da 'desorçamentação' e de um destino que 'não é o Estado enquanto pessoa colectiva que tem por órgão o Governo' (Alberto Xavier) - inscrevem-se na mesma ordem de fins que a Constituição assinala aos impostos.
Mas, assim, fora do âmbito da fiscalidade ou da parafiscalidade, os direitos niveladores estão também fora do âmbito da reserva relativa de competência do Parlamento que é determinada pelo artigo 168º, nº 1, alínea i), da Constituição da República. Pelo que as normas dos artigos 9º, nº 1 e 12º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº 483-F/88, de 28 de Dezembro, não são organicamente inconstitucionais.
III - Nestes termos, decide-se não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 9º, nº 1 e 12º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº 483-F/88, de 28 de Dezembro. Em consequência, concede-se provimento aos recursos, ordenando a reforma da decisão recorrida em harmonia com o julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 14 de Outubro de 1997 Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes José Manuel Cardoso da Costa