Imprimir acórdão
Processo n.º 1101/04
1.ª Secção Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e em que são recorridos o Ministério Público e a União Indiana, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Dezembro de 2004, que negou provimento aos recursos da extraditanda. Proferida decisão sumária, vem agora a recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, nº 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
2. Mediante decisão, de 14 de Julho de 2004, o Tribunal da Relação de Lisboa não admitiu a junção de documentos requerida pela extraditanda, tendo sido então interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Por acórdão, de 2 de Dezembro de 2004, este Tribunal decidiu pela improcedência das conclusões deste recurso interlocutório, confirmando a decisão recorrida.
3. Mediante decisão, de 14 de Julho de 2004, o Tribunal da Relação de Lisboa acordou em deferir o pedido de extradição formulado pela União Indiana, suprindo as nulidades declaradas no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Março de 2004, e reproduzindo o conteúdo do acórdão desta Relação, anteriormente proferido nestes autos. Desta decisão, a extraditanda A. interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo esta instância decidido negar provimento ao recurso, por acórdão, de 2 de Dezembro de 2004.
4. A extraditanda A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Dezembro de 2004. Convidada a aperfeiçoar o requerimento correspondente, ao abrigo do disposto no nº 6 do artigo 75º-A da LTC a então recorrente respondeu ao convite formulado.
5. Em 18 de Janeiro de 2005, foi proferida decisão sumária, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da LTC, na qual se entendeu que não podia conhecer-se do objecto do recurso em causa. Atendendo ao objecto da presente reclamação, desta decisão importa reproduzir o seguinte:
5.1. O 'Supremo Tribunal nega provimento ao recurso interlocutório interposto da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, que não admitiu a junção de documentos requerida pela extraditanda, pelo que pretende a recorrente que seja declarada
'a inconstitucionalidade da interpretação acolhida na decisão recorrida quanto aos normativos previstos nos arts. 165º e 340º do CPP (aplicáveis ao presente caso por força dos arts. 3º, nº 2, e 25º, nº 2 da Lei nº 144/99)'. A interpretação dos 'artigos 165º e 340º do CPP no sentido em que não é admissível a junção de documentos apresentados no decurso de um processo de extradição, quando é manifesta e está demonstrada pela extraditanda a sua relevância para a boa decisão da causa, é inconstitucional, porque violadora das garantias de defesa que assistem a qualquer arguido em processo criminal e que estão consagradas no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa'.
(...) Um dos requisitos do recurso de constitucionalidade é a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é questionada pela recorrente. E bem se compreende que assim seja: a 'exigência, de que a norma aplicada constitua o fundamento da decisão recorrida, resulta do facto de só nesse caso a decisão da questão de constitucionalidade poder reflectir-se utilmente no processo. Sendo a referência à norma questionada mero obter dictum, ou existindo na decisão recorrida outro fundamento, por si só, bastante para essa decisão, a intervenção do Tribunal Constitucional na apreciação da conformidade constitucional da norma impugnada não se reflectirá utilmente no processo, uma vez que sempre a decisão recorrida seria a mesma, ainda que a norma questionada seja declarada inconstitucional' (...). Ora, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça resulta de forma inequívoca que os artigos 165º e 340º do Código de Processo Penal não foram aplicados na decisão recorrida. Resulta de forma clara que a resposta à questão de saber se era ou não tempestiva a junção dos documentos requerida pela extraditanda foi encontrada à margem do disposto naqueles artigos, em virtude de as especificidades do processo de extradição não justificarem a aplicação subsidiária daquele Código, prevista nos artigos 3º, nº 2, e 25º, nº 2, da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto. Decorre até do acórdão recorrido que este afastou expressamente a aplicabilidade das normas cuja constitucionalidade a recorrente pretende agora ver apreciada. Por um lado, afastou expressamente a aplicabilidade dos artigos 165º e 340º do Código de Processo Penal, ao remeter para acórdão anteriormente proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do mesmo processo (Acórdão, de 25 de Março de 2004), transcrevendo o seguinte:
'Do disposto no artigo 165.º do Código de Processo Penal resulta que o documento que importe à solução do caso deve ser junto «no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência». A estipulação daquele termo final constitui um corolário do chamado princípio da imediação da prova: se todas as provas em que assenta a convicção do Tribunal devem ser «produzidas e examinadas em audiência» necessário se toma concluir que só relevam as apresentadas até então. (art 355.º, n.º1, do C P P) Ora, a audiência que marca o termo final de apresentação de documentos há-de ser aquela em que seja produzida prova relevante à fixação da matéria de facto. Tal não sucede de todo em todo no âmbito do processo de extradição e na fase de recurso. Por um lado, porque no julgamento que então tem lugar não há produção de prova. Por outro lado, porque o recurso é dirimido pelo Supremo Tribunal, o qual, como tribunal de revista, apenas conhece de direito (...)' (Itálico nosso).
Por outro lado, o acórdão recorrido afastou expressamente a aplicabilidade dos artigos 165º e 340º do Código de Processo Penal, ao remeter para Decisão Sumária anteriormente proferida pelo Tribunal Constitucional (Decisão Sumária nº
166/2004), no âmbito do mesmo processo, transcrevendo a parte em que este Tribunal decide não conhecer do recurso por falta de
'aplicação (dos referidos preceitos (...) do Código de Processo Penal) como ratio decidendi da decisão recorrida'.
(...) Na verdade, é indiscutível que a ratio decidendi do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Dezembro de 2004, foi a aplicação de normas específicas do regime jurídico da cooperação judiciária internacional em matéria penal e não as normas cuja constitucionalidade a recorrente pretende ver apreciada – os artigos 165º e 340º do Código de Processo Penal. E 'é óbvio que não pode o Tribunal alargar a sua apreciação a normas diversas da aplicada (...) pelo tribunal a quo, ainda que eventualmente também aplicáveis à hipótese sub judice'(...)'.
5.2. 'O mesmo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça – a decisão recorrida – confirmou a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que defere o pedido de extradição formulado pela União Indiana, pretendendo agora a recorrente a declaração de inconstitucionalidade do artigo 19º da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto, pois
'proibindo o artigo 19º da Lei 144/99 que se instaure no Estado requerido um processo criminal para julgamento de factos relativamente aos quais é formulado um pedido de extradição, ao autorizar que a mesma se processe para julgamento dos crimes supra mencionados [crimes de corrupção e associação criminosa], o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, revelou uma interpretação desse normativo inconstitucional, porque violadora do princípio non bis in idem
- ao mesmo subjacente - e com consagração no artigo 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa'.
Ora, também quanto a esta parte do recurso se impõe concluir que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça não aplicou o artigo 19º da Lei 144/99, de 31 de Agosto, na interpretação apontada pela recorrente. E por isso, não se pode dar como verificado o requisito 'da aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, de norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, considerada esta norma na sua totalidade, em determinado segmento ou segundo certa interpretação, mediatizada pela decisão recorrida' (...).
De resto, deve mesmo afirmar-se que o pedido de extradição foi deferido, restringindo-se o seu âmbito aos crimes de burla e de associação criminosa, não porque a decisão recorrida interpretou aquele artigo, no sentido de ser de deferir tal pedido quando se instaure no Estado requerido um processo criminal para julgamento de factos relativamente aos quais é formulado um pedido de extradição, tal como é sustentado pela recorrente; mas sim, pelo contrário, porque interpretou aquela norma no sentido de dever ser recusado o pedido quanto a factos que já tenham sido objecto de julgamento em Portugal. Dizendo de outra forma, o mencionado artigo 19º foi interpretado no sentido do pedido de extradição dever ser deferido apenas quanto a factos que não tenham sido julgados em Portugal. Resultando isso mesmo do texto da decisão recorrida, quando faz sua a fundamentação do Acórdão do Tribunal da Relação:
'O princípio «ne bis in idem» exprime a ideia de que «uma pessoa que foi objecto de uma sentença definitiva num processo penal não pode ser perseguida de novo com base no mesmo facto'. Ora, da matéria fáctica dada como assente nos presentes Autos resulta que em Portugal foi imputada à extraditanda a prática de crime p.p. no art. 256° nº 1 e
3 do C.Penal, circunstância pela qual foi limitado o âmbito da extradição requerida aos crimes de burla e associação criminosa, imputações estas pelas quais a União Indiana pretende julgar a requerida. Inexiste, assim, qualquer base factual para poder fundar um juízo de violação do princípio «ne bis in idem»'. Esta posição do Tribunal da Relação está associada à decisão, previamente tomada, de afastar do âmbito da extradição o crime de 'falsificação e uso de documento falso', por a extraditanda haver sido, entretanto, julgada e condenada em Portugal, por factos que, inicialmente, haviam sido objecto do pedido de extradição. Na verdade, por acórdão de 28.11.03, da 6ª Vara Criminal de Lisboa (proc. n.º
13/02), a arguida, ora extraditanda, foi condenada na pena de dois anos de prisão, por autoria de um crime de uso de documento falso, na forma continuada, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1., c), e n.º 3, com referência ao art.º 30.º, n.º
2., ambos do Código Penal. E, daí, a apontada restrição ao pedido de extradição, com exclusão daquela matéria. Daquela posição resulta que, na economia da decisão, os demais factos enunciados no pedido de extradição, tipificados como crime pela lei portuguesa e pela lei do estado requerente, assumiam autonomia face ao julgado na 6.ª Vara (...). Por outro lado, não é certo que o Tribunal da Relação não tenha considerado 'os factos que resultaram do julgamento ocorrido em Portugal, na 6.ª Vara'. Fê-lo, nos termos já antes referidos - afastando-os do âmbito da extradição - o que, naquele contexto, não merece censura (...)'.
Questão diferente é a de saber se os factos que foram objecto do processo que culminou na condenação pela prática do crime de uso de documento falso foram ou não considerados pelo tribunal recorrido ou a de saber se os factos que constituem o objecto do pedido de extradição inicial foram ou não já todos julgados no processo que condenou a extraditanda pela prática daquele crime. Questões atinentes à fiscalização da decisão judicial recorrida, que escapam aos poderes deste Tribunal. Conforme jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional, a este cabe admitir 'os recursos de decisões dos outros tribunais que apliquem normas cuja constitucionalidade foi suscitada durante o processo (...), identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objecto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objecto de tal recurso' (...). Na medida em que o 'Tribunal Constitucional português é concebido essencialmente como um órgão jurisdicional de controlo normativo – de controlo da constitucionalidade e da legalidade' (...) – pelos artigos 280º e 281º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 70º da LTC, não pode este Tribunal conhecer do objecto do recurso, na parte relativa ao artigo 19º da Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal. Não pode, porque em causa está, verdadeiramente, a apreciação e a valoração que o Supremo Tribunal de Justiça fez no sentido de, atendendo às regras do concurso aparente de infracções, a condenação da extraditanda pela prática daquele crime justificar apenas a redução do âmbito do pedido de extradição e não, como pretendia a recorrente, a recusa deste pedido. De resto, abonam no sentido de estar em causa a decisão recorrida (a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, depois confirmada pelo Supremo) a circunstância de o mencionado artigo 19º nem sequer consentir a interpretação invocada e o requerimento de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, na parte em que a recorrente afirma que:
'A não apreciação e declaração de tais questões [questões atinentes ao objecto do processo crime tramitado em Portugal] viola por isso a Lei Fundamental, porquanto traduz uma violação do princípio 'ne bis in idem', segundo o qual:
'Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime', nos termos do art. 29.º da Constituição da República Portuguesa, o que conforma uma inconstitucionalidade que desde já se argui para todos os efeitos legais'.
Bem como, ainda, o requerimento de interposição de recurso para este Tribunal e o subsequente aperfeiçoamento, quando se destaca, por referência ao acórdão recorrido, que:
'não considerou os factos que resultaram provados (Proc. n.º 13/02.8TELSB), designadamente que os passaportes foram forjados no Dubai, Emiratos Árabes Unidos, por B., e não na Índia, por A.. Estes factos, significam que a ora Requerente não incorreu na prática dos crimes de corrupção activa, nem associação criminosa, o que teria de ser apreciado pelo Tribunal a quo, por razões de coerência do sistema e impostas pelo princípio da coesão e unidade da ordem jurídica portuguesa. Impondo uma agravação da situação processual da Extraditanda caso extraditada para a Índia, absoluta desnecessidade da sua extradição, bem como violação do princípio 'ne bis in idem', nos termos do art. 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa'.
'Com efeito, apesar de estarem em causa qualificações jurídicas diferentes, a decisão final portuguesa concluiu que a recorrente se limitou a utilizar documentação falsa, dando como assente (cfr. Artigos 5, 6 e 7 da fundamentação do acórdão proferido no acórdão proferido pela 6ª vara criminal de Lisboa, no processo nº 13/02) que a mesma não teve intervenção nos ilícitos que permitiram a sua emissão e que fundamentam o pedido de extradição em apreço, pela prática dos crimes de corrupção e associação criminosa'.
Em suma, ao não ser aplicado, como ratio decidendi, o artigo 19º da Lei nº
144/99, de 31 de Agosto, na interpretação invocada pela recorrente – interpretação que o artigo nem sequer consente –, o que se pretendeu foi a apreciação da decisão judicial recorrida, 'o que não abre caminho ao recurso de constitucionalidade, como este Tribunal vem afirmando em jurisprudência unânime, uniforme e constante' (...)'.
5.3. 'Também relativamente à parte do objecto do recurso interposto relativa à pretensão da recorrente em ser declarada a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 31º, nº 2, da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto, se impõe concluir pelo não conhecimento, por razões já expostas. Segundo a recorrente, a
'interpretação do artigo 31º nº 2 da Lei de Cooperação, no sentido em que seja admissível a extradição de alguém para julgamento por crimes que não são objecto de punição no Estado requerente, é inconstitucional por violação do artigo 29.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa'. E 'é igualmente inconstitucional
– por violação do artigo 205º da Constituição – a interpretação do artigo 31º nº
2 da Lei de Cooperação, no sentido em que o Julgador não está obrigado a fundamentar, explicando, na decisão de extradição de alguém reclamado pela prática de ilícitos que não fazem parte do leque de ilícitos criminais previstos no nosso ordenamento jurídico, as razões de equiparação do mesmo, a crimes conhecidos e consagrados no Estado requerido'.
Na verdade, também quanto a esta parte resulta que, no caso sub judice, a decisão recorrida não aplicou o artigo 31º, nº 2, da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto, nas interpretações apontadas pela recorrente, as quais não são sequer consentidas pelo preceito em causa. Com efeito, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça não aplica este artigo, interpretando-o no sentido de que é admissível a extradição por crimes [crime de associação criminosa] que não são objecto de punição no Estado requerente, nem tão-pouco no sentido de que o Julgador não está obrigado a fundamentar, explicando, na decisão de extradição de alguém reclamado pela prática de ilícitos que não fazem parte do leque de ilícitos criminais previstos no nosso ordenamento jurídico, as razões de equiparação do mesmo, a crimes conhecidos e consagrados no Estado requerido. Pelo contrário, resulta do texto daquele acórdão, já transcrito, mas que importa agora recordar, que o pedido de extradição foi deferido, porque
'o estado requerente, em documentação junta aos autos (...) vem defender que
'criminal conspiracy' (art.º 120.º-B, do Código Penal Indiano), tipifica uma incriminação autónoma, à semelhança do art.º 299.º, do Código Penal Português
(e, em boa verdade, aquela autónoma previsão - art.º 120.º-B - inculca isso mesmo). E sempre bastaria a leitura da tradução do art.º l20-B, do Código Penal Indiano
(fls. 84) - que, aqui, se dá como reproduzida - para se verificar da sem razão da recorrente'.
Daquele acórdão resultando, ainda, que não acolheu a outra interpretação do artigo 31º, nº 2, da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto invocada pelo recorrente – a que violaria o artigo 205º da CRP –, nomeadamente porque do texto da decisão recorrida constam as palavras acabadas de transcrever e que
'fundamento da extradição são os factos imputados ao extraditando, posto que tipificados como ilícito criminal, independentemente do nomen da respectiva qualificação (ou tradução da qualificação), perante a lei criminal do estado requerente [ v ., p.e., art.ºs 6.º, e); 16.º, n.º 2.; 31.º, n.º 3. ] . E os factos que fundamentam o pedido são os que ficaram a constar da matéria assente, acima transcrita'.
Questão diferente é a de saber se o artigo 31º, nº 2, da Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal deve ser interpretado no sentido de a entrega da pessoa reclamada ser admissível no caso de crime punível pela lei portuguesa, independentemente da qualificação jurídica que o Estado requerente e o requerido façam dos factos imputados. Porém, a recorrente não suscitou a inconstitucionalidade daquele artigo, quando interpretado no sentido de ser indiferente tal qualificação, e nem dela pode conhecer o Tribunal Constitucional, já que os seus poderes de cognição estão limitados pelo pedido que consta do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, o qual fixa o objecto deste (...). Em suma, também quanto a esta parte há que não tomar conhecimento do objecto do recurso, independentemente da questão de saber se, no caso em apreço, foi suscitada a inconstitucionalidade normativa durante o processo (...)'.
5.4. 'Numa outra parte do objecto do recurso interposto, pretende a recorrente que seja declarada a inconstitucionalidade da
'interpretação dos artigos 3º nº 2 e 25º nº 2 da Lei de Cooperação e respectiva remissão para as normas e princípios que regem o nosso processo penal, no sentido em que, em face da ausência de elementos nos autos que comprovem os riscos alegados, se deve decidir não estar provada a sua existência (...), porquanto violadora do artigo 32º nº 2 da Lei Fundamental, concretamente o princípio in dubio pro reo. Mais revela, simultaneamente, a violação do artigo
205º da Lei Fundamental, porquanto uma decisão judicial não se pode bastar com a mera indicação de ausência de prova, para dar factos como não assentes (...), exigindo-se um dever de análise crítica e de fundamentação dos elementos analisados, para se dar a materialidade em apreço como não provada'.
Independentemente de se poder concluir pelo não conhecimento desta parte do objecto do recurso por algumas das razões já invocadas relativamente às outras partes, diga-se quanto a esta que a recorrente não suscitou a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o Supremo Tribunal de Justiça, em termos de este estar obrigado a dela conhecer. Por outras palavras, a recorrente não respeitou o requisito do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC da suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo, nos termos exigidos pelo artigo 72º, nº 2, da LTC. Com efeito, no recurso interposto para aquele Tribunal a recorrente não invoca a inconstitucionalidade de qualquer norma, de um qualquer segmento de uma norma ou de uma qualquer interpretação de uma norma, tendo invocado, isso sim,
que 'o tribunal a quo não obedeceu aos princípios que derivam da expressa remissão dos arts. 3.º, n.º 2 e 25.º, n.º 2 da Lei de Cooperação Judiciária Internacional para as normas do processo penal'.
que 'transpondo os referidos princípios [princípios da investigação e do in dubio pro reo] para o caso em apreço, logo se pode constatar que o Tribunal a quo não poderia ter concluído pela inexistência de elementos de facto para proferir a decisão, o que acontece manifestamente com a pronúncia em matéria de violação dos direitos tutelados na Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Pelo que, desconhecendo o Tribunal a situação fáctica existente na Índia, ou ficando numa situação de dúvida, não pode a mesma ser valorada contra os mais elementares direitos da Extraditanda, sendo uma situação de non liquet invocada para deferir o pedido. Tal configura, além do mais, uma violação do disposto na Lei Fundamental, nos termos dos arts. 20.º, n.º 4; 202.º, n.º 2; 204.º, 205.º, n.º 1 e 32.º, n.º 2 todos da Constituição da República Portuguesa'.
Bem se compreendendo, assim, que a decisão recorrida – não tendo sido confrontada com a inconstitucionalidade da interpretação dada aos artigos 3º, nº
2, e 25º, nº 2, da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto, pelo Tribunal da Relação de Lisboa – aborde este ponto do recurso, enquadrando-o do seguinte modo:
'a recorrente entende que o tribunal a quo não obedeceu aos princípios que derivam da expressa remissão dos arts. 3.º, n.º 2 e 25.º, n.º 2 da Lei de Cooperação Judiciária Internacional para as normas do processo penal. E, estando
(o tribunal) vinculado ao princípio da investigação ou da 'verdade material', não poderia ter concluído pela inexistência de elementos de facto para proferir a decisão, «o que acontece manifestamente com a pronúncia em matéria de violação dos direitos tutelados na Convenção Europeia dos Direitos do Homem»'.
E que a própria recorrente, no ponto 1. do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, não tenha sequer mencionado tais artigos da Lei nº
144/99, de 31 de Agosto, tendo afirmado, no ponto 6., que pretendia
'ver apreciada a interpretação acolhida no Acórdão recorrido quanto à aplicação ao caso em apreço dos princípios e normas do processo penal, por força dos arts.
3.º, n.º 2 e 25.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99, designadamente dos princípios da investigação ou da verdade material'.
Ou seja, é só quando aperfeiçoa o requerimento, respondendo ao convite que lhe foi feito, nos termos do artigo 75º-A, nº 5 [6], da LTC, que a recorrente invoca a inconstitucionalidade dos artigos 3º, nº 2, e 25º, nº 2, daquela Lei. Não o fez, porém, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu o acórdão recorrido – não o fez de todo em todo –, pelo que não pode conhecer-se, quanto a esta parte, o objecto do recurso. Não cumpriu de forma cabal o ónus da suscitação atempada da questão de constitucionalidade. 'É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade e para que o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão' (...)'.
6. Da decisão sumária vem agora a então recorrente reclamar para a conferência, nos termos do disposto no artigo 78º-A, nº 3, da LTC, invocando o seguinte:
6.1. 'Na decisão ora reclamada, a Ex.ma Senhora Conselheira Relatora, invocando como fundamento a não aplicação, por parte do tribunal recorrido, dos normativos invocados pela recorrente para a requerida junção documental, decidiu não apreciar o recurso pela mesma apresentado. Contudo, entende-se que uma vez invocadas determinadas disposições legais, que permitem e justificam em qualquer fase do processo de extradição a junção aos autos de documentação de conhecimento superveniente e relevante à boa decisão da causa, a obrigatoriedade da sua admissão decorre do próprio texto dessas normas
– do artigo 165° do CPP e sobretudo do artigo 340º do mesmo diploma. Porém, importa ter presente que o processo de extradição não corresponde nem coincide com o processo penal, sendo tão só aplicáveis ao primeiro as disposições processuais penais, por força do artigo 3° n° 2 e 25° n° 2 da Lei de Cooperação. Donde, apesar de ser impossível fazer corresponder as fases do processo penal às fases do processo de extradição, não deixa de se impor a aplicação dos preceitos processuais penais, ao processo especial de extradição, desde que estes assumam importância e relevância para a sua discussão e se adaptem às suas especificidades. Por outro lado, não se pode pretender que a omissão de referência aos dispositivos expressamente invocados pela recorrente, por parte do tribunal recorrido, o desobrigue do dever de proceder à sua análise e aplicação. Isto é, apesar do Supremo Tribunal de Justiça não ter aplicado os invocados artigos 165° e 340º do Código de Processo Penal, estava obrigado a fazê-lo, pelo que a sua omissão é reveladora da invocada interpretação inconstitucional dos mesmos. Ou seja, apesar de não ter apreciado e de não ter decidido admitir a junção aos autos da documentação em apreço, com base nos artigos 165° e 340º do CPP - expressamente invocados pela recorrente -, o tribunal recorrido estava obrigado a considerá-los, pelo que não deixou de revelar uma interpretação de tais preceitos inconstitucional, porquanto atentatória das garantias de defesa que assistem ao arguido, neste caso, ao extraditando. E, tal como explanou no requerimento da junção de documentos e no recurso que deu lugar à decisão em apreço, tal documentação, por se reportar às constantes violações de Direitos Humanos na Índia era, efectivamente, muito relevante para a decisão deste caso (...). Ao interpretar, por omissão da sua aplicação, os artigos 165° e 340º do CPP no sentido em que não é admissível a junção de documentos apresentados no decurso de um processo de extradição, quando é manifesta e está demonstrada pela extraditanda a sua relevância para a boa decisão da causa, o tribunal recorrido revelou uma interpretação inconstitucional desses preceitos, porque violadora das garantias de defesa que assistem a qualquer arguido em processo criminal (e, por aplicação subsidiária, ao extraditando) e que estão consagradas no artigo
32° da Constituição da República Portuguesa. Tais garantias - cujo leque indicado na Lei Fundamental, não é taxativo - visam proteger o arguido das agressões à sua defesa, verificadas na pendência de um processo Criminal, as quais, no presente caso, são flagrantes, na medida em que a decisão recorrida impossibilitou a recorrente de proceder à junção de elementos que comprovam os sérios riscos de violação de Direitos Humanos que a sua extradição comporta (...)'.
6.2. 'A recorrente foi julgada e condenada, no nosso País, na pena de dois anos de prisão, pela prática de um crime de uso de documento falso; Esse processo - n° 13/2002 - correu os seus trâmites na 6ª Vara do Tribunal Criminal de Lisboa, tendo a decisão final condenatória transitado em julgado em
14 de Julho de 2004; Sucede que os factos discutidos e dados como assentes nesse processo e na respectiva decisão condenatória, estão correlacionados com os factos que fundamentam o pedido de extradição formulado pela União Indiana, para julgamento da recorrente pela prática dos crimes de corrupção e de associação criminosa
(segundo a qualificação jurídica do nosso ordenamento jurídico); Proibindo o artigo 19º da Lei 144/99 que se instaure no Estado requerido um processo criminal para julgamento de factos relativamente aos quais é formulado um pedido de extradição, ao autorizar que a mesma se processe para julgamento dos crimes supra mencionados, entende-se que o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, revelou uma interpretação desse normativo inconstitucional, porquanto violadora do princípio ne bis in idem - ao mesmo subjacente - e com consagração no artigo 29º n° 5 da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, se ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime, o tribunal recorrido não podia ter autorizado a extradição da recorrente para a União Indiana, para aí ser julgada por factos cuja apreciação e ponderação já foi feita em Portugal; Na verdade, apesar de estarem em causa qualificações jurídicas diferentes, a decisão final portuguesa concluiu que a recorrente se limitou a utilizar documentação falsa, dando como assente (cfr. Artigos 5, 6 e 7 da fundamentação do acórdão proferido no acórdão proferido pela 6ª vara criminal de Lisboa, no processo n° 13/02) que a mesma não teve intervenção nos ilícitos que permitiram a sua emissão e que fundamentam o pedido de extradição em apreço, pela prática dos crimes de corrupção e associação criminosa; Contudo, com fundamento numa interpretação restritiva do principio “ne bis in idem” e que se entende não ser compatível com as graves repercussões que o deferimento de um pedido de extradição pode assumir e com a impossibilidade de análise dos elementos probatórios que caracteriza o processo de extradição português, a decisão reclamada recusa a apreciação desta questão suscitada pela recorrente. Ora, tal como expôs no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a extradição da Recorrente para a Índia para julgamento por factos que já foram objecto de análise e até de apreciação em sede de julgamento, em Portugal, por acarretar o risco de uma nova apreciação e condenação da mesma pela prática da mesma factualidade, constitui uma clara ameaça ao princípio “ne bis in idem”.
É certo que a recorrente, em Portugal, foi acusada e julgada pela prática do ilícito previsto e punível pelo art. 256.º do Código Penal. Porém, se nesse processo e nesse julgamento foram apurados factos que a ilibam dos crimes pelos quais é reclamada pelo estado Requerente, não é aceitável que, por intermédio de uma interpretação restritiva e formalista de um princípio, que se crê assumir contornos mais amplos, se autorize a sua extradição, a fim de ser julgada por factos intimamente relacionados e que até podem coincidir com essa mesma factualidade. Isto é, não é aceitável e não pode admitir-se que a recorrente tenha sido julgada e condenada em Portugal pela prática de um crime de utilização de documentos falso, numa decisão condenatória que revelou a apreciação da materialidade relativa à obtenção desses documentos (alegadamente subsumida, pela índia, nos crimes de corrupção e de associação), no sentido da não envolvência da recorrente nesses factos e que a sua extradição seja a seguir autorizada, para julgamento pela prática desses actos. Em sede de processo de extradição, o qual põe em contacto uma diversidade de ordenamentos jurídicos e diferentes formas de qualificação jurídica e de punição de comportamentos mas que, ao mesmo tempo, não permite o aprofundamento dessas legislações e muito menos dos elementos probatórios que fundamentam os pedidos de extradição, impõe-se uma interpretação mais lata do princípio ne bis idem. A qual, no caso em apreço, exige que a directa relação que existe entre a factualidade que serviu para a condenação da recorrente, em Portugal, pela prática de um crime de falsificação de documentos e aquela referente à forma de obtenção desses documentos, seja valorada de forma a impedir a extradição da recorrente, a fim de ser julgada pela prática desta última. Por essa razão, a aplicação, por parte do tribunal recorrido, do artigo 19º da Lei de Cooperação, em sede de autorização da extradição da recorrente, para julgamento pela prática dessa factualidade, é atentatória do princípio ne bis in idem consagrado igualmente na Lei Fundamental. E apesar da interpretação desse normativo ter permitido a exclusão de extradição da recorrente por factos que já tinham sido objecto de julgamento em Portugal
(factos esses subsumíveis no ilícito criminal de falsificação de documentos), na parte decisória que não alargou o alcance do principio ne bis in idem que lhe subjaz, a toda a factualidade apreciada em sede de julgamento e integrável nos ilícitos pelos quais é reclamada a recorrente, não deixa de revelar uma interpretação inconstitucional do artigo 19º da Lei de Cooperação. E não há dúvidas que o tribunal recorrido, ao renovar a sua decisão de confirmação do Tribunal da Relação que, no acórdão de 26 de Novembro de 2003, decidiu não ordenar a extradição da recorrente para ju1gamento pelos crimes de falsificação de documentos, por forma a evitar a violação do princípio ne bis in idem (consagrado no artigo 19º da lei de Cooperação) mas a tolerar, no mesmo passo, a extradição pelos crimes de burla (por lapso assim referida a corrupção) e associação criminosa, fez uso do mesmo preceito e princípio subjacente. Em conclusão, deverá ser declarada inconstitucional a interpretação do artigo
19º da Lei de Cooperação revelada no acórdão recorrido, no sentido que permita que um extraditando já julgado e condenado em Portugal por factos que foram objecto de apreciação nesse processo, seja extraditado para julgamento pela prática de factos com os mesmos relacionados e já apreciados nesse julgamento no Estado requerente (...)'.
6.3. 'Este normativo [artigo 31º, nº 2, da Lei nº 144/99] determina que 'só é admissível a entrega da pessoa reclamada no caso de crime punível pela lei portuguesa e pela lei do Estado requerente( )'; A União Indiana reclama a extradição da recorrente para julgamento pela prática de um crime de Criminal Conspiracy, o qual se entende não ter correspondência no nosso ordenamento jurídico-penal, não sendo objecto de uma incriminação autónoma e antes constituindo uma forma classificável como de co-autoria; Por essa razão, ao conceder a extradição da recorrente nesses termos, o tribunal recorrido, revelou uma interpretação do artigo 31º nº 2 da Lei de Cooperação inconstitucional porque violadora do princípio da legalidade consagrado no artigo 29º nº 1 da Lei Fundamental e que impõe que “ninguém pode ser sentenciado criminalmente, senão em virtude de lei anterior”; Assim, a revelada interpretação do artigo 31° nº 2 da Lei de Cooperação, no sentido em que seja admissível a extradição de alguém para julgamento por crimes que não são objecto de punição no Estado requerente, é inconstitucional por violação do artigo 29º n° 1 da Constituição da República Portuguesa. A decisão ora reclamada, afirma, mais uma vez, que o tribunal recorrido não aplicou o preceito invocado, de acordo com a interpretação defendida pela recorrente, a qual não é sequer tolerada pelo normativo em apreço. E, para tal, recorda que o pedido de extradição foi deferido porque “o estado requerente (...) vem defender que criminal conspiracy (artº 120º - B, do Código Penal Indiano), tipifica uma incriminação autónoma, à semelhança do artigo 299º, do Código penal Português (cfr. fls 38 a 39) da decisão ora reclamada”. Ora, entende-se que tal argumentação não pode proceder, sendo manifesto que o Estado requerente, por, pretender, a todo o custo, a extradição da recorrente, justifica o seu pedido neste passo, afirmando que a criminal conspiracy, ao contrário do que refere a extraditanda, constitui uma incriminação autónoma. Contudo, uma análise atenta da versão original do artigo 120º - B do Código Penal Indiano (constante dos autos, mas que se junta em anexo, como documento n°
1 e que está incorrectamente traduzida para português), permite concluir, com segurança, que o tipo de conspiração aí descrito como sendo conduta de alguém que, aliado a outrem, com o mesmo pratica um crime (cumplicidade), não coincide com a constituição de uma organização estável, definida hierarquicamente e tendo como finalidade a prática de crimes. Aliás, é manifesto estar em causa a acusação, por parte da União Indiana, da recorrente, como co-autora ou cúmplice do seu marido (comportamento punível criminalmente com autonomia, no Estado requerente), na obtenção dos documentos falsos e não a criação de uma organização para a prática desse tipo de ilícitos
(incriminação da associação criminosa pelo nosso ordenamento). Donde, ao analisar o pedido em apreço à luz do artigo 31º n° 2 da Lei de Cooperação, decidindo ordenar a extradição da recorrente para julgamento pela prática de um crime de criminal conspiracy, o tribunal recorrido revelou clara e objectivamente uma interpretação inconstitucional desse preceito - cfr . fls 39 da decisão de 2 de Dezembro de 2004, do Supremo Tribunal de Justiça. E neste passo mostra-se igualmente agredido o artigo 205° da Lei Fundamental, porquanto o tribunal recorrido não fundamenta, na sua decisão, porque razão entende existir equiparação (errada) entre o crime de associação criminosa e de corrupção e o de criminal conspiracy, pelo qual ordena a extradição de A.. E a remissão para o preceito constante do artigo 120º - B do Código Penal Indiano não pode considerar-se uma fundamentação da decisão, já que o título de
“associação criminosa” erradamente aposto na incorrecta tradução portuguesa desta incriminação, cuja versão original tem como título “punishment of criminal conspiracy”, não permite concluir estarmos perante idêntico comportamento criminoso. Em rigor, exigia-se uma análise comparativa das duas incriminações, com recurso
às suas versões originais e respectivos projectos e evoluções legislativas. Tanto mais que a leitura do tipo descrito nas duas incriminações - portuguesa e indiana - torna manifesto estarmos perante realidades distintas. Com efeito, enquanto o nosso artigo 299° do Código Penal se reporta à criação de uma Organização dirigida à prática de crimes, com uma estrutura hierárquica definida (contém, inclusivamente, punições distintas para os diferentes graus hierárquicos), o tipo indiano não vai mais além do encontro de vontades de dois agentes, na prática de um crime concreto, fazendo corresponder diferente tipo de penas consoante a diferente tipologia e gravidade dos crimes. Donde, é igualmente inconstitucional por violação do artigo 205° da Constituição
- a interpretação revelada do artigo 31° n° 2 da Lei de Cooperação, no sentido em que o Julgador não está obrigado a fundamentar, explicando na decisão de extradição de alguém reclamado pela prática de ilícitos que não fazem parte do leque de ilícitos criminais previstos no nosso ordenamento jurídico, as razões de equiparação do mesmo, a crimes conhecidos e consagrados no Estado requerido, limitando-se (como sucedeu neste caso, a fls 39 da decisão recorrida), a remeter para a tradução de um preceito do Código Penal Indiano. E a recorrente não podia, como se afirma na decisão reclamada, ter suscitado esta inconstitucionalidade com base na diferença de qualificação jurídica dos factos que lhe são imputados, pelos dois ordenamentos em concurso, pois em causa está a imputação de factos diferentes: A União Indiana, por pretender puni-la por co-autoria na falsificação de documentos (criminal conspiracy) erradamente traduzida para português, como associação criminosa; As nossas autoridades judiciárias, por estarem convencidas que está em causa a imputação à recorrente de factos subsumíveis num crime de associação criminosa que, na verdade, não correspondem à pretendida imputação indiana (...)'.
6.4. 'Estes normativos [artigos 3º, nº 2, e 25º, nº 2, da Lei nº 144/99] impõem a aplicação subsidiária das disposições do Código de Processo Penal ao processo de extradição; Entre essas disposições, estão as normas e princípios que impõem objectivos de investigação e de descoberta da verdade material e, por outro lado, consagram o princípio da presunção de inocência, bem como o seu corolário in dubio pro reo. A decisão recorrida veio confirmar a decisão da Relação de Lisboa, no passo em que esta considerou não haver prova dos alegados riscos de violação de Direitos Humanos, em caso de extradição para a Índia, o que justificava a concessão da extradição reclamada; Ao reiterar essa linha de argumentação, o tribunal recorrido revelou uma interpretação dos artigos 3° nº 2 e 25° n° 2 da Lei de Cooperação inconstitucional, enquanto violadora do princípio in dubio pro reo que enforma o processo penal e está consagrado no artigo 32° n° 2 da Constituição da República Portuguesa, este corolário da presunção de inocência e da descoberta da verdade material. Ou seja, a interpretação dos artigos 3° nº 2 e 25° n° 2 da Lei de Cooperação e respectiva remissão para as normas e princípios que regem o nosso processo penal, no sentido em que, em face da ausência de elementos nos autos que comprovem os riscos alegados, se deve decidir não estar provada a sua existência, é inconstitucional, porquanto violadora do artigo 32º n° 2 da Lei Fundamental, concretamente o princípio in dubio pro reo. Mais revela, simultaneamente, a violação do artigo 205º da Lei Fundamental, porquanto uma decisão judicial não se pode bastar com a mera indicação de ausência de prova, para dar factos como não assentes, (quando estes nem constam da decisão da Relação que deferiu a extradição), exigindo-se um dever de análise crítica e de fundamentação dos elementos analisados, para se dar a materialidade em apreço como não provada Porém, na decisão ora reclamada, é dito que a recorrente não suscitou atempadamente a inconstitucionalidade em apreço, pelo facto desta apenas ter mencionado a violação destas normas de remissão para o processo penal e seus princípios subjacentes. Ora, neste passo, entende-se que a menção feita pela recorrente à violação dos artigos da “Lei Fundamental, nos termos dos arts 20º, n° 4, 202º, n°2, 204°,
205°, nº1 e 32º nº2 todos da Constituição da República”, como consequência dessa errada aplicação das normas, remissivas supra mencionadas, deve considerar-se suficiente, por ter permitido ao tribunal recorrido confrontar-se e pronunciar-se sobre a mesma. Na verdade, tendo o tribunal recorrido, a fls 47, da sua decisão de 2 de Dezembro de 2004, declarado não se verificar a inconstitucionalidade interpretativa invocada, nos seguintes termos:
'(...) o Tribunal da Relação considerou não provadas situações legais que desrespeitassem as exigências da Convenção Europeia para a protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e, naturalmente, as consagradas na Constituição da República. E este quadro não configura violação do principio in dubio pro reo - fls - 47 da decisão recorrida;
(...) Tendo presente tudo o que acaba de ser exposto, conclui-se que as disposições da lei ordinária convocadas para a decisão, na dimensão em que foram aplicadas, não desrespeitam os comandos constitucionais das normas dos arts.
8º,13°,20º,29° nº5, 32° n° 1, 2 e 8, 33° nº 4 e 6, 202º, nº 2, 204° e 205º da Lei Fundamental'.
7. Notificado desta reclamação, o Ministério Público junto deste Tribunal respondeu nos termos seguintes:
'1 – A presente reclamação é, a nosso ver, claramente improcedente, em nada abalando os fundamentos da douta decisão sumária, no que respeita à inverificação dos pressupostos da admissibilidade do recurso.
2 – Afigurando-se que – na sua argumentação – a recorrente não tem, desde logo, na devida conta a natureza estritamente normativa do controlo da constitucionalidade, cometido ao Tribunal Constitucional, movendo-se antes no
âmbito da fisionomia de um verdadeiro “recurso de amparo”, inexistente no nosso ordenamento jurídico (vide o alegado, desde logo nos pontos I e 4 da sua reclamação).
3 – No que se refere à questão da inconstitucionalidade, construída em torno da pretensa aplicação dos artigos 165° e 340° do Código de Processo Penal, a reclamação apenas confirma o bem fundado da decisão reclamada, ao transmutar a
“aplicação” de tais normas na “omissão da sua aplicação” - (fls. 2023) – situação obviamente insusceptível de fundar o recurso tipificado na alínea b) do n° 1 do artigo 70° da Lei n° 28/82.
4 – Por outro lado – e quanto ao artigo 19° da Lei n° 149/99 – é óbvio que não foi aplicada a interpretação normativa questionada pela recorrente e violadora do princípio “ne bis in idem” – assentando a “ratio decidendi” do acórdão do Supremo precisamente na interpretação oposta, que ditou, aliás, a restrição do pedido de extradição, com exclusão da matéria já jurisdicionalmente apreciada em Portugal.
5 – No que respeita à questão suscitada quanto ao artigo 31º, n° 2, da Lei n°
144/99, importa, desde logo, notar que não compete obviamente ao Tribunal Constitucional interpretar e determinar o sentido de quaisquer preceitos constantes do Código Penal Indiano, fixando definitivamente o âmbito do tipo da
“criminal conspiracy”, por tal transcender o objecto do controlo normativo da constitucionalidade'.
8. Notificada da reclamação, a União Indiana veio dizer que:
'quanto ao (des)respeito pelos necessários requisitos do recurso de constitucionalidade consagrados no artigo 70.º, n.º 1, b) da Lei do Tribunal Constitucional – o (único) objecto da presente reclamação –, remete integralmente para, a referida Decisão Sumária, e respectivos fundamentos, proferida pela Ex.ma Conselheira Relatora.
4. Contudo, tendo presente que a Extraditanda, na sua reclamação, extravasa o
âmbito da discussão da decisão reclamada, isto é, a discussão acerca do
(in)cumprimento dos necessários pressupostos processuais legitimadores do recurso de constitucionalidade,
5. Nomeadamente na parte I da reclamação, sob o título “Dos sérios e fundados riscos que a decisão de extradição da recorrente, acarreta para a sua vida e integridade física”, onde são feitas afirmações incorrectas (e irrelevantes), designadamente acerca de uma eventual violação do princípio da especialidade.
6. A União Indiana esclarece que o pedido de extradição adicional apresentado às autoridades portuguesas no passado dia 10 de Dezembro de 2004, ao abrigo do artigo 16.º, n.º 5 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, corresponde precisamente
à execução da intenção que foi desde logo manifestada ao Estado Português no pedido de extradição inicial (...)'.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação Resulta da Constituição da República Portuguesa e da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional que a justiça constitucional portuguesa não foi configurada como 'um amparo para a defesa de direitos fundamentais, possibilitando-se aos cidadãos, em certos termos e dentro de certos limites, o direito de recurso aos tribunais constitucionais, a fim de defenderem, de forma autónoma, os direitos fundamentais violados ou ameaçados'
(Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição7, Almedina, p.
893 e s.). Não comporta, assim, institutos como os da Verfassungsbeschwerde alemã, o recurso de amparo hispano-americano e os mandados de segurança e injunção brasileiros, o que é uma consequência da opção por uma justiça constitucional que exclui do controlo de constitucionalidade 'actos jurídico-públicos não reentrantes no conceito de acto normativo', nomeadamente decisões jurisdicionais. Segundo Gomes Canotilho, 'entre nós, o problema do controlo da constitucionalidade de decisões jurisdicionais tem de enfrentar, desde logo, o problema da inexistência de acções constitucionais de defesa. Mas, além disso, deve ter-se em conta que uma coisa é controlar normas e outra coisa é controlar sentenças de tribunais. Por outras palavras: fiscalizar a constitucionalidade de normas jurídicas aplicadas pelos tribunais não se confunde com a fiscalização da constitucionalidade das próprias decisões jurisdicionais. O controlo da constitucionalidade é um controlo normativo incidente sobre normas e não sobre decisões judiciais aplicadoras de normas (cf. Ac. TC 178/95, DR, II, 21-6-95 e Ac. 674/98, DR, II, 25-2-2000) (...). Num plano prático, está vedado, por exemplo, o recurso ao Tribunal Constitucional com fundamento em erros de julgamento ou errada qualificação da matéria de facto' (ob. cit., pp. 939 e 943. No mesmo sentido, cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional. Inconstitucionalidade e Garantia da Constituição, t. VI, Coimbra Editora, 2001, p. 201). Em razão do exposto, não foi sequer transcrita na presente peça processual a primeira parte da reclamação apresentada – Dos sérios e fundados riscos que a decisão de extradição da recorrente acarreta, para a sua vida e integridade física.
1. No que diz respeito à parte da decisão sumária que se pronuncia pelo não conhecimento do recurso quanto à questão da 'inconstitucionalidade da interpretação acolhida na decisão recorrida quanto aos normativos previstos nos arts. 165º e 340º do CPP', a reclamação em apreço acaba por confirmar a razão fundamental que levou a tal decisão – a inobservância do requisito do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC da aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade
é questionada. Acaba por confirmar, quando conclui que
'apesar do Supremo Tribunal de Justiça não ter aplicado os invocados artigos
165° e 340º do Código de Processo Penal, estava obrigado a fazê-lo, pelo que a sua omissão é reveladora da invocada interpretação inconstitucional dos mesmos'
(itálico nosso).
Pelo que, acompanhando o ponto 3. da resposta do Ministério Público, importa remeter para o que então se disse na decisão reclamada quanto àquele requisito do recurso de constitucionalidade que a reclamante pretendia interpor, bem como para a demonstração então feita em como o Supremo Tribunal de Justiça não aplicou aqueles artigos do Código de Processo Penal, a qual é agora corroborada na reclamação. Dada a insistência da reclamante quanto à aplicabilidade dos artigos 165º e 340º deste Código, justifica-se, ainda, que sejam de novo reproduzidas as palavras de Cardoso da Costa: '(...) é óbvio que não pode o Tribunal alargar a sua apreciação a normas diversas da aplicada (...) pelo tribunal a quo, ainda que eventualmente também aplicáveis à hipótese sub judice' ('A jurisdição constitucional em Portugal', Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p.
247). Ainda que se entenda que a decisão recorrida aplicou os artigos 165º e 340º do Código de Processo Penal, será sempre forçoso concluir que, de todo o modo, a recorrente não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade relativamente
à interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça. De resto, a forma como a recorrente suscita a questão – a interpretação dos 'artigos 165º e 340º do CPP no sentido em que não é admissível a junção de documentos apresentados no decurso de um processo de extradição, quando é manifesta e está demonstrada pela extraditanda a sua relevância para a boa decisão da causa, é inconstitucional
(...)' – é, isso sim, reveladora da pretensão de questionar o acórdão daquele Tribunal.
Assim sendo, é de manter a decisão reclamada, na parte em que se pronuncia pelo não conhecimento desta parte do objecto do recurso.
2. A conclusão, constante da reclamação, no sentido de que
'deverá ser declarada inconstitucional a interpretação do artigo 19º da Lei de Cooperação revelada no acórdão recorrido, no sentido que permita que um extraditando já julgado e condenado em Portugal por factos que foram objecto de apreciação nesse processo, seja extraditado para julgamento pela prática de factos com os mesmos relacionados e já apreciados nesse julgamento no Estado requerente',
quando confrontada com o conteúdo do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, só confirma que este Tribunal não aplicou a interpretação normativa questionada pela recorrente, tal como ficou demonstrado na decisão sumária, para a qual se remete, uma vez que tal demonstração não foi posta em causa na reclamação agora apresentada. A razão do não conhecimento desta parte do objecto do recurso tem, pois, a ver com a não verificação, no caso, de um dos requisitos do recurso de constitucionalidade interposto pela recorrente – a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da interpretação normativa cuja constitucionalidade é questionada. Como bem conclui o Ministério Público, a ratio decidendi do acórdão do Supremo assenta precisamente na interpretação oposta, que ditou, aliás, a restrição do pedido de extradição, com exclusão da matéria já jurisdicionalmente apreciada em Portugal. Não se trata, por conseguinte, de recusar a apreciação da questão suscitada pela recorrente 'com fundamento numa interpretação restritiva do princípio 'ne bis in idem'. Por outro lado, as considerações que antecedem aquela conclusão e ela própria, já que a interpretação invocada não é sequer consentida pela letra da disposição legal questionada, confirmam que, em boa verdade, o que se pretende questionar é a decisão judicial recorrida. Pelo que se dá aqui como reproduzida a parte da decisão sumária em que se demonstra esta pretensão da recorrente, a qual não foi posta em causa na reclamação, bem como aquela que se refere, em geral, ao objecto do recurso de constitucionalidade. Impõe-se, por conseguinte, concluir pelo não conhecimento do objecto do recurso, com a consequência de dever ser mantida a decisão reclamada.
3. Quanto ao artigo 31º, nº 2, da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto, a reclamação questiona a decisão sumária por nela se ter entendido que 'o tribunal recorrido não aplicou o preceito invocado, de acordo com a interpretação defendida pela recorrente, a qual não é sequer tolerada pelo normativo em apreço'. A interpretação segundo a qual é 'admissível a extradição de alguém para julgamento por crimes que não são objecto de punição no Estado requerente'. Com efeito, a análise do conteúdo do acórdão recorrido comprova que o Supremo Tribunal de Justiça deferiu parte do pedido de extradição apenas porque concluiu que os crimes em questão são objecto de punição no Estado requerente, justificando-se, também quanto a este ponto uma remissão para a decisão sumária, na parte em que tal é demonstrado. Demonstração que a reclamante não questiona de forma a abalar o então decidido. De resto, tudo o que extravase aquela conclusão será significativo de que em causa estará a decisão judicial recorrida e, consequentemente, algo que estará para além dos poderes de apreciação do Tribunal Constitucional. Como bem conclui o Ministério Público,
'não compete obviamente ao Tribunal Constitucional interpretar e determinar o sentido de quaisquer preceitos constantes do Código Penal Indiano, fixando definitivamente o âmbito do tipo da “criminal conspiracy”, por tal transcender o objecto do controlo normativo da constitucionalidade'.
Pelas razões expostas na decisão reclamada, também não pode aceitar-se que o tribunal recorrido tenha feito uma interpretação do artigo 31º, nº 2, da Lei nº
144/99, de 31 de Agosto, no sentido de que 'o julgador não está obrigado a fundamentar, explicando na decisão de extradição de alguém reclamado pela prática de ilícitos que não fazem parte do leque de ilícitos criminais previstos no nosso ordenamento jurídico, as razões de equiparação do mesmo, a crimes conhecidos e consagrados no Estado requerido, limitando-se (...) a remeter para a tradução de um preceito do Código Penal Indiano'. A este propósito e na medida em que a recorrente (ora reclamante) invoca, frequentemente, interpretações que não são sequer consentidas pelo preceito legal que convoca, impõe-se chamar a atenção para o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 106/99 (não publicado), onde se conclui o seguinte:
'Pode suscitar-se a inconstitucionalidade de uma determinada norma jurídica (ou de várias) ou uma dada interpretação dessa norma (ou de várias). Quando, porém, se suscita a inconstitucionalidade de uma determinada interpretação de certa (ou de certas) normas jurídicas, necessário é que se identifique essa interpretação em termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os destinatários dela e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa (ou essas) normas não podem ser aplicadas com um tal sentido. Acresce que só pode apresentar-se como sendo interpretação de uma determinada norma jurídica, mesmo quando ela seja lida conjugadamente com outra ou outras normas jurídicas, um sentido que seja referível ao seu teor verbal: é que, o intérprete não pode considerar 'o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso' e deve presumir 'que o legislador [...] soube exprimir o seu pensamento em termos adequados' (itálico nosso). Quanto à observação final da reclamante no sentido que de que não podia, 'como se afirma na decisão reclamada, ter suscitado esta inconstitucionalidade com base na diferença de qualificação jurídica dos factos que lhe são imputados, pelos dois ordenamentos em concurso, pois em causa está a imputação de factos diferentes', note-se apenas, para além de esta afirmação não reproduzir de forma fiel o que é dito na decisão sumária, que os dois parágrafos seguintes demonstram que o problema, verdadeiramente, não é quanto aos factos, mas sim quanto à diferente qualificação jurídica dos mesmos. Não há, assim, razões para, quanto a esta parte, conhecer o objecto do recurso, mantendo-se, pois, nesta medida, a decisão anteriormente proferida.
4. Quanto ao último ponto que consta da reclamação, a decisão sumária conclui que a recorrente não cumpriu de forma cabal o ónus da suscitação atempada da questão de constitucionalidade, que a recorrente reportou, na resposta ao convite ao aperfeiçoamento, aos artigos 3º, nº 2, e 25º, nº 2, da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto. Ao contrário do sustentado pela reclamante e pelas razões expostas naquela decisão, não pode dar-se como verificado o requisito do recurso de constitucionalidade da suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo e de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer
(artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da LTC), quando o recorrente se limita a uma menção da violação da Lei Fundamental, nos termos dos arts. 20º, nº
4, 202º, nº 2, 204º, 205º, nº 1 e 32º nº 2 todos da Constituição da República. Diferentemente do sustentado pela reclamante, as primeiras palavras citadas do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (fl. 47) em nada mostram que este Tribunal estava através delas a conhecer uma questão de inconstitucionalidade normativa, não se podendo extrair tal da referência ao princípio in dubio pro reo, uma vez que este não se confunde com o princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, nº 2, da CRP. Quanto às últimas palavras que imputa à decisão de 2 de Dezembro de 2004, note-se que, diferentemente do que a reclamante deixa sugerido, elas integram um ponto autónomo do acórdão (ponto 5.) que abrange todas as questões de inconstitucionalidade normativa (e da decisão) suscitadas pela então recorrente. Não se reportam, pois, especificamente à
última das questões suscitadas. Também por esta razão, forçoso será concluir pelo não conhecimento do objecto do recurso, mantendo-se, pois, nesta medida, a decisão reclamada.
III. Decisão Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2005
Maria João Antunes Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício