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Processo n.º 100/03
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
Em acção de despejo instaurada na 4.ª Vara Cível da Comarca do
Porto, A. formulou, contra B., L.da, com fundamento no não pagamento das rendas
vencidas desde 1 de Outubro de 2000, pedido de condenação na entrega,
inteiramente devolutas de pessoas e bens, de três fracções autónomas por ele
arrendadas a essa ré e no pagamento das rendas vencidas e vincendas.
A ré contestou, excepcionando a sua ilegitimidade, por, em 20 de
Maio de 1998, ter comunicado por fax ao autor, após conversações entre ambos, a
cedência do estabelecimento a C., L.da, comunicação que, recepcionada pelo
autor, foi por ele assinada e devolvida, tendo a ré formalizado o trespasse por
escritura pública celebrada em 17 de Setembro de 1998, tendo a partir desta data
a C. assumido a posição de arrendatária.
O autor, na réplica, para além de ampliar a causa de pedir à não
comunicação do alegado trespasse, pediu a intervenção principal desta sociedade.
Citada a C., veio esta interveniente contestar e reconvir,
corroborando a descrição dos factos feita pela ré B. e aduzindo, em suma, que
em 21 de Dezembro de 1999, acordou com o autor a compra e venda das fracções,
pelo preço de Esc. 190 000 000$00, montante em que seriam reduzidos os valores
até aí entregues a título de rendas, tendo no acto, como sinal e princípio de
pagamento, a C. entregue dois cheques pré‑datados, nos valores de Esc. 2 000
000$00 e 2 210 000$00, que posteriormente foram recebidos pelo autor. Apesar de
posteriormente ter efectuado entregas de valores no total de Esc. 3 912 500$00,
um representante do autor ter-lhe‑á comunicado, no decurso do ano de 2001, que o
referido acordo ficara sem efeito. Termina preconizando a improcedência da
acção e deduzindo reconvenção, visando a condenação do autor na execução
específica do contrato promessa de compra e venda ou, em alternativa, a
pagar‑lhe o valor das fracções à data da rescisão, com dedução do preço
convencionado, ou restituir‑lhe o sinal e a parte do preço que pagou em dobro.
Após réplica do autor à contestação da interveniente e frustração
de tentativa de acordo, o autor veio requerer o despejo imediato do locado, ao
abrigo do artigo 58.° do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo
Decreto‑Lei n.º 321‑B/90, de 15 de Outubro (doravante designado por RAU), com
fundamento na falta de pagamento, quer pela primitiva ré, quer pela
interveniente, das rendas vencidas na pendência do processo, pretensão a que a
interveniente se opôs, aduzindo que, aquando da celebração do acordo tendo em
vista a venda das fracções em causa, o autor dispensou a interveniente do
pagamento da renda, conforme já alegado na artigo 13.º da contestação, para além
de que, face à posição do autor que considera ineficaz o trespasse efectuado,
encontra‑se por determinar quem é o actual arrendatário das fracções.
Foi elaborada a base instrutória, com formulação de quesitos
relativos, designadamente, à alegada celebração de contrato promessa de compra
e venda entre o autor e a interveniente, à entrega por esta de valores por conta
do preço estipulado e à falta de colaboração do autor no sentido da celebração
do contrato definitivo de compra e venda (quesitos 14.º a 26.º). E, de seguida,
foi proferido despacho a decretar o despejo imediato da ré e da interveniente do
local em causa, do seguinte teor:
“Incidente de despejo imediato de fls. 116 e seguintes:
Vem o autor requerer este incidente, nos termos do artigo 58.º do RAU,
invocando completa falta de pagamento de rendas até 8 de Março de 2002.
Ouvidas a ré e a interveniente (demandada a título subsidiário) nem uma nem
outra fizeram prova do pagamento ou depósito de qualquer das rendas em causa,
invocando esta última a circunstância de estar alegada a dispensa de pagamento
de rendas.
Cumpre decidir.
É fundamento de despejo imediato a não comprovação do pagamento das rendas
vencidas após o termo do prazo da contestação quando seja causa de pedir da
acção a falta de pagamento de rendas.
O arrendatário, a título de réu principal ou subsidiário, apenas pode fazer
prova documental do pagamento ou do depósito das rendas respectivas.
Não lhe é permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas ou
impeditivas do pagamento, sendo as mesmas a apreciar e a decidir na acção.
Nenhum dos ouvidos fez tal prova.
Assim, nos termos da norma referida, decreto o despejo imediato da ré e da
interveniente do locado, sendo este constituído pelas fracções descritas em A) e
B) da matéria assente.”
A interveniente interpôs recurso de agravo deste despacho para o
Tribunal da Relação do Porto, terminando as respectivas alegações com a
formulação das seguintes conclusões:
“1. A douta decisão recorrida, ao considerar que, no âmbito do incidente
previsto no artigo 58.º do RAU, a recorrente «apenas pode fazer prova
documental do pagamento ou de depósito das rendas respectivas», não lhe sendo
«permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas ou impeditivas do
pagamento», fez incorrecta interpretação do citado preceito, contrariando a
jurisprudência que vem sendo seguida a propósito, designadamente a constante do
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Maio de 1998, in Colectânea de
Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, tomo 2, pág. 81,
e do Acórdão da Relação do Porto, de 17 de Maio de 1994, Boletim do Ministério
da Justiça, n.° 437, pág. 577.
2. Perante a actual redacção do artigo 58.° do RAU não é mais aceitável a
conclusão que prevalecia no domínio de aplicação do anterior artigo 979.º do
CPC, nos termos da qual a única defesa relevante que o arrendatário pode
produzir é demonstrar que pagou ou depositou a renda.
3. Da actual redacção do artigo 58.° do RAU resulta que este artigo pressupõe
que as rendas deviam ser pagas e não o foram; isto é o mesmo que dizer que não
se justifica o despejo imediato previsto no artigo 58.° do RAU quando se discute
se aquele que se arroga o direito de receber renda está, ou não, em situação de
poder exigi‑la.
4. A providência do artigo 58.° do RAU pressupõe que se encontra assente a
relação processual entre demandante e demandado.
5. Nos presentes autos, é o próprio autor que põe em causa a validade do
arrendamento em relação à recorrente C., não a reconhecendo como actual legítima
arrendatária, sustentando expressamente que o trespasse realizado é ineficaz em
relação a si (cfr. artigos 4.º, 13. °, 14. ° e 15. ° da réplica).
6. Daí que, não sendo à recorrente reconhecida pelo senhorio a qualidade de
actual arrendatária, não se lhe pode impor uma obrigação (pagar rendas) que
apenas sobre o detentor de tal posição impende.
7. A dar‑se como assente (?) a validade do arrendamento nos termos em que o
autor configurou a presente acção, então a obrigação de pagar as rendas recairia
sobre a ré B. – que, nos termos da petição inicial, é a única entidade
reconhecida pelo autor como legítima arrendatária (cfr. artigos 4.°, 13.º e 15.º
da réplica).
8. Sendo controversos os termos que assumiu a relação locatícia estabelecida
entre as partes, o que foi levado à base instrutória dos presentes autos,
nomeadamente por indefinição quanto à identidade do actual arrendatário e actual
montante das rendas, não é possível impor a qualquer uma das rés uma obrigação
(pagamento de rendas) sem previamente se apurar quem possui legitimidade para
suportar tal obrigação e qual o actual montante mensal da renda.
9. Por outro lado, na sua defesa, a recorrente veio alegar factos que
colocam em causa o direito que o autor se arroga de receber rendas,
nomeadamente por ter sido este que a dispensou do respectivo pagamento (artigo
13.° da contestação) e ainda porque se recusou a dar quitação (artigo 31.° da
contestação).
10. Assim sendo, é inaceitável que o arrendatário, não tendo pago por razões
unicamente imputáveis ao senhorio, esteja obrigado a ir pagar ou depositar, com
indemnização, as rendas em questão.
11. É que o incidente previsto no artigo 58.º do RAU, «porque é de uma nova
acção – incidental embora – que se trata, ao arrendatário está aberta a
possibilidade de se opor ao seu senhorio do mesmo modo e nos exactos termos em
que se lhe oporia numa acção autónoma» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,
de 11 de Novembro de 1995, in Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo
Tribunal de Justiça, 1995, tomo 3, pág. 59).
12. Aliás, o entendimento do despacho recorrido viola as disposições dos
artigos 2.°, 9.°, alínea b), 13.°, 18.° e 20.°, n.ºs 1 e 4, da Lei Fundamental,
colidindo directamente contra princípios constitucionais como o do Estado de
direito democrático, princípio da igualdade, do acesso ao direito e tutela
jurisdicional efectiva.”
Por acórdão de 14 de Novembro de 2002, este Tribunal da Relação
negou provimento ao agravo, desenvolvendo, para tanto, a seguinte
fundamentação:
“III – Temos, portanto, que, na situação em presença, o autor pretende, através
do incidente a que se reporta o artigo 58.° do RAU, obter o despejo imediato das
fracções objecto do contrato de arrendamento, invocado como causa de pedir na
acção em que o aludido incidente foi deduzido.
Com efeito, do indicado normativo da codificação locatícia urbana decorre que,
durante a pendência de qualquer acção de despejo que haja sido instaurada,
devem continuar a ser pagas ou depositadas as rendas devidas, constituindo a
omissão de tal pagamento fundamento para a dedução de uma nova acção, agora de
natureza incidental, a qual é enxertada na acção principal, independentemente
de, nesta, ser idêntica ou diversa a causa de pedir que haja sido aduzida pelo
senhorio, como fundamento para a resolução do contrato de arrendamento
celebrado.
Na verdade, a obrigação de pagamento da renda convencionada ou fixada, imposta
ao locatário como contrapartida da obrigação que impende sobre o locador de
proporcionar àquele o gozo da coisa, constitui um dos requisitos do contrato de
locação em geral – artigos 1022.° e 1038.°, alínea a), do Código Civil – e, na
concreta situação em apreço, do contrato de arrendamento urbano – artigos 1.º e
8.°, n.° 1, alínea c), do RAU –, requisito esse, aliás, representativo do
sinalagma funcional em que se desdobra o negócio jurídico bilateral em que foram
intervenientes senhorio e inquilino – vide Das Obrigações em Geral, do Prof.
Antunes Varela, vol. I, 8.ª edição, pág. 396.
Temos, pois, que, no aludido normativo locatício – artigo 58.° do RAU –, aliás
analogamente ao já antecedentemente estatuído no artigo 979.° do Código de
Processo Civil de 1961, consagra‑se a atribuição ao senhorio, e no decurso da
tramitação de uma qualquer acção de despejo pelo mesmo instaurada, da
possibilidade de utilização da faculdade de obtenção daquele desiderato por via
incidental, desde que se verifique a existência cumulativa de dois pressupostos
fundamentais, traduzidos na falta de pagamento pelo inquilino das rendas
devidas pela ocupação e uso do imóvel e na circunstância de tais rendas se terem
vencido na pendência da lide – n.° 2 daquele artigo 58.° e Código Civil Anotado,
dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, vol. II, 4.ª edição, pág. 586.
Com efeito, salvo convenção em contrário, no domínio do arrendamento urbano, há
lugar ao vencimento das rendas locatícias, no primeiro dia útil do mês do
calendário gregoriano imediatamente anterior àquele a que as mesmas digam
respeito – artigo 20.° do RAU –, donde portanto decorre que, para que possa
haver lugar a rendas vencidas no decurso de uma acção de despejo, torna-se
necessário, sob o ponto de vista do obrigado ao pagamento daquelas –
arrendatário –, que se verifique a existência de um arrendamento pelo mesmo não
impugnado na acção instaurada, impugnação essa respeitante, quer quanto ao
conteúdo do objecto do contrato, quer quanto à titularidade do direito,
relativamente àquele que se arroga, para o recebimento das referidas rendas, a
assunção da qualidade de senhorio – Arrendamento Urbano, do Cons. Aragão Seia,
6.ª edição, pág. 367.
Na verdade, a consagração, por via legislativa, do referido despejo incidental,
constitui «a única forma de evitar que alguém possa, gratuitamente, desfrutar de
imóveis, durante o longo período que pode levar à conclusão de um despejo e numa
situação que já não seria reparada por nenhuma condenação em indemnização ou em
rendas vencidas, sempre que o despejado não tivesse bens bastantes» – n.° 11 do
preâmbulo do Decreto‑Lei n.° 321‑B/90, de 15 de Outubro.
Por outro lado, confinando‑se a tramitação processual do aludido incidente à
petição do senhorio e à resposta do arrendatário, o único meio de defesa de que
este pode lançar mão, a fim de obviar ao decretamento do despejo imediato do
arrendado, encontra‑se limitado à alegação do pagamento ou do depósito do
quantitativo invocado pelo senhorio como encontrando‑se em dívida – artigo
58.°, n.° 3, do RAU –, já que a alegação de quaisquer circunstâncias
modificativas ou impeditivas da efectivação do atempado pagamento pelo
arrendatário das rendas vencidas na pendência da acção, inclusive a mora
accipiendi do senhorio – Boletim do Ministério da Justiça, n.º 484, pág. 355 –,
têm como necessário pressuposto da sua relevância a possibilidade de produção de
prova sobre tais factos, possibilidade essa, porém, que se não coaduna com os
meios probatórios estabelecidos pelo legislador, relativamente a tal
procedimento incidental.
Com efeito, a prova a produzir, tendente à caducidade do despejo peticionado
pelo senhorio, embora pelo legislador haja sido consagrada a sua efectivação
por qualquer meio – artigo 58.°, n.° 3, do RAU e Novo Regime do Arrendamento
Urbano, do Prof. Menezes Cordeiro e Dr. Francisco Fraga, pág. 105 –,
contrariamente, aliás, ao que se dispunha no artigo 979.°, n.° 2, do Código de
Processo Civil, quanto à exclusividade da prova do pagamento das rendas vencidas
no decurso da acção ter de revestir a forma de documento, reconduz‑se, todavia,
e em última análise, apenas àquela prova documental.
Assim, e desde logo, se não sofre dúvidas que a prova do pagamento ou do
depósito das rendas em mora resulta, necessariamente, do competente recibo ou
do duplicado da guia do respectivo depósito bancário, por outro lado, a
obrigatoriedade legal da apresentação da prova daqueles indicados factos
extintivos do direito peticionado ter de acompanhar a resposta do arrendatário
– artigo 58.°, n.° 3, do RAU –, constitui factor manifestamente obstaculizante
de que sobre os mesmos possa ser produzido qualquer outro meio de prova, com
excepção, a priori, da confissão extrajudicial do senhorio, a qual, porém, tem
igualmente de revestir a forma escrita, dado que a antecedentemente
referenciada simplificação processual dos actos que integram o incidente em
apreço não se compadece com a possibilidade de poder ter lugar a confissão
judicial – artigos 352.°, 355.° e 364.°, n.° 2, do Código Civil.
Temos, portanto, e em síntese, que, caso não seja feita, documentalmente, e
pelo arrendatário, a prova do pagamento ou do depósito das rendas vencidas na
pendência da acção, tem, óbvia e necessariamente, de ser decretado o despejo
incidental imediato, requerido pelo senhorio.
Ora, na situação que nos vem presente para decisão, mostra‑se aceite pelos
respectivos sujeitos passivos processuais – ré e interveniente –, que as
fracções que o autor ora pretende ver despejadas, por falta de pagamento das
rendas vencidas na pendência da acção por si instaurada, foram objecto de
arrendamento para comércio de mobiliário, não tendo sido objecto de qualquer
impugnação quer a titularidade da qualidade de senhorio por aquele invocada,
quer a existência de qualquer vício susceptível de constituir factor limitativo
do pleno uso e fruição do arrendado por parte da interveniente que, na lide, se
arroga a qualidade de arrendatária.
Temos, portanto, que, encontrando‑se a recorrente a ocupar o locado, não
vislumbramos a que título, e com que fundamento legal, possa aquela questionar a
obrigação de eximir‑se ao pagamento da retribuição correspondente à aludida
disponibilidade de uso do mesmo, durante o período de pendência da acção de
despejo, já que, impendendo tal obrigação, como já anteriormente foi referido,
das normas em vigor para o contrato de arrendamento, nestas não foi consagrada
qualquer norma susceptível de, nas circunstâncias descritas, isentar o
arrendatário do pagamento da renda devida.
Por outro lado, a já «estafada e comum» alegação de inconstitucionalidade de
qualquer norma que não sirva os interesses da parte vencida, também, e em nosso
entender, no caso em apreço, não colhe qualquer acolhimento.
Com efeito, a recorrente alegou a inconstitucionalidade do artigo 58.° do RAU,
quando interpretado no sentido de a defesa por parte do arrendatário se
restringir apenas à prova documental, alegação essa que se torna, inclusive,
incompreensível na situação vertente, uma vez que, tendo a mesma referido que, a
partir de Setembro de 2000, «não procedeu a qualquer pagamento adicional ao
autor» – artigos 20.° e 32.° da contestação de fls. 46 e seguintes –, não
vislumbramos como poderia ser objecto de prova testemunhal a ocorrência de um
facto – pagamento das rendas vencidas na pendência da acção –, aliás o único em
causa no incidente em apreço, que a própria recorrente afirma não se ter
verificado.
Todavia, ainda que o direito de defesa revista reconhecimento expresso de índole
constitucional, no âmbito do processo criminal – artigo 32.° da CRP –, e, de
natureza implícita, no domínio do processo civil – artigo 20.°, n.° 1, da CRP –,
tal direito, que tem como necessário pressuposto o chamamento do réu a juízo –
artigo 3.°, n.° 1, do Código de Processo Civil –, concretiza‑se, relativamente
àquele, no conhecimento efectivo do processo instaurado, na concessão de um
prazo suficientemente amplo para a dedução de oposição e no tempero da rigidez
das preclusões e cominações decorrentes da falta de contestação – Introdução ao
Processo Civil, do Prof. Lebre de Freitas, pág. 83 –, matérias estas das quais
se encontra manifestamente afastada a que se relaciona com os meios probatórios
admissíveis, na fase processual da instrução, quanto aos factos alegados pelas
partes intervenientes na lide.
Na verdade, a opção do legislador comum por determinado meio de prova, em
detrimento de outro, não configura que tal opção seja violadora das garantias de
defesa daquele a quem incumbe a prova do facto em causa, antes sim constituindo
um meio de garantia e certeza do tribunal, quanto ao cumprimento ou
incumprimento de determinada obrigação, por parte daquele sobre quem impenda a
produção de tal meio de prova, encontrando‑se, portanto, em íntima correlação
com uma clara e nítida intenção da entidade legiferante de permitir ao órgão
judicial a prolação de uma decisão que constitua a efectiva concretização da
correcta e inquestionável solução do direito em litígio.
Improcedem, pois, as conclusões da agravante.
IV – Porém, ainda que, por mero exercício de raciocínio, pudesse
colher qualquer acolhimento a tese da recorrente, quanto à preterição, na
decisão impugnada, dos meios probatórios que são legalmente admissíveis no
incidente deduzido, sempre, porém, lhe não assistiria qualquer razão, no que
respeita à decidida restituição imediata do arrendado ao autor.
Com efeito, à data da outorga do contrato de arrendamento
invocado na acção – 15 de Novembro de 1995 –, encontrava‑se em vigor a primitiva
redacção do artigo 7.° do RAU, em cujo n.° 2 se estatuía a obrigatoriedade de
redução a escritura pública dos arrendamentos para o exercício do comércio –
alínea b) e artigo 80.°, n.° 2, alínea l), do Código do Notariado.
E, se é certo que tal imposição legal foi abolida pelo
Decreto‑Lei n.° 64‑A/2000, de 22 de Abril, a qual determinou a substituição da
exigência daquele documento autêntico por mero documento escrito – n.° 1 do
citado artigo 7.° do RAU –, a referida alteração, todavia, é irrelevante,
relativamente aos contratos, que, embora celebrados em momento anterior, se
mantinham em plena vigência à data da entrada em vigor da modificação ocorrida
quanto à forma a observar na sua celebração.
Tal inaplicabilidade resulta do facto de a lei nova, referente à
forma a observar na celebração dos negócios jurídicos, ter o seu âmbito de
aplicação circunscrito às situações jurídicas que se venham a constituir após a
sua entrada em vigor, daí decorrendo a inalterabilidade das imposições legais
que se mostravam exigíveis à data da constituição das relações jurídicas já
existentes – artigo 12.°, n.° 2, do Código Civil, Código Civil Anotado, dos
Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, vol. I, 4.ª edição, pág. 61, e Sobre a
Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, do Prof. Baptista Machado, págs. 65,
66, 69 e 70.
Assim, e uma vez que a celebração do contrato de arrendamento
entre o autor e a ré teve lugar por escrito particular, datado de 15 de Novembro
de 1995, ou seja, já no domínio da vigência do RAU – 1995 –, sempre,
igualmente, lhe será inaplicável o disposto no artigo 6.° do diploma preambular
do Decreto‑Lei n.° 321‑B/90, pelo que, consequentemente, a inobservância da
forma à data legalmente estabelecida para a celebração dos contratos de
arrendamento destinados a fim comercial tem como directa e imediata
consequência a nulidade do referido negócio jurídico – artigo 220.° do Código
Civil.
Por outro lado, encontra‑se também apurado nos autos que a ré
procedeu ao trespasse à interveniente, e ora recorrente, do estabelecimento
comercial instalado nas fracções objecto do contrato de arrendamento celebrado
entre o autor e aquela trespassante.
Ora, em caso de ocorrência do trespasse do estabelecimento
comercial ou industrial, que pode definir‑se como sendo o contrato mediante o
qual o arrendatário transmite para outrem, a título definitivo, juntamente com
o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial no
mesmo instalado, transmissão essa que, normal e habitualmente, engloba o
respectivo direito ao arrendamento – vide Arrendamento Urbano, do Cons. Aragão
Seia, 6.ª edição, pág. 646, e Sobre a Transferência da Posição do Arrendatário
no Caso de Trespasse, do Prof. Rui Alarcão, págs. 36 e 38 –, se, por um lado, a
transmissão, por parte do trespassante para o trespassário, da posição de
arrendatário de que aquele era titular não se encontra condicionada à
autorização do respectivo senhorio – artigo 115.°, n.° 1, do RAU –, por outro
lado, é incontroverso que a titularidade daquele direito de uso e fruição
apenas pode ser transmitida por quem do mesmo seja titular, já que nemo
transferre potest quam ipse habet.
Temos, portanto, que, carecendo a aludida ré da qualidade de
arrendatária, esta não poderia intervir no trespasse do aludido direito ao
arrendamento celebrado com a interveniente, e ora recorrente, procedendo à
transmissão de um direito de que não era titular, pelo que, não constando dos
autos que aquele direito haja sido excluído do negócio jurídico celebrado, e
sendo este presuntivamente oneroso, já que do conteúdo das peças processuais
juntas aos autos não resulta a gratuitidade do referido contrato, no que
respeita àquela indicada transmissão, tal contrato ter‑se‑á de considerar como
inquinado de um vício de invalidade, do tipo nulidade.
Com efeito, no que respeita aos contratos onerosos, em que haja
lugar à alienação de bens, e relativamente aos quais inexista regulamentação
legal específica, como ocorre, v. g., no trespasse, aos mesmos são aplicáveis
as normas relativas ao contrato de compra e venda – artigo 939.° do Código
Civil.
Assim, carecendo a trespassante de legitimidade para a alienação
do direito ao arrendamento referente ao estabelecimento objecto do referido
contrato, por se tratar de um bem do qual não era titular, configurando,
portanto, e em relação àquele, a natureza de um bem alheio, tal contrato é nulo
– artigo 892.° do Código Civil –, nulidade essa de conhecimento oficioso pelo
tribunal, a todo o tempo – artigo 286.° do Código Civil e págs. 263 do vol. I e
185 do vol. II da obra citada dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela.
Ora, do conhecimento oficioso pelo tribunal da referida nulidade,
e uma vez que foram alegados pelo autor factos tendentes à obtenção da entrega
do arrendado, sempre teria de haver lugar à restituição deste àquele – artigo
289.°, n.° 1, do Código Civil e Assento n.° 4/95, in Diário da República, I
Série‑A, n.° 114, de 17 de Maio de 1995 –, face à nulidade do arrendamento
celebrado com a trespassante e à ineficácia do trespasse relativamente ao
senhorio – pág. 185 do vol. II do Código Civil Anotado, dos Profs. Pires de Lima
e Antunes Varela, e Do Contrato de Compra e Venda, do Dr. Baptista Lopes, pág.
141 –, sem prejuízo, contudo, da responsabilidade da trespassária pelo
ressarcimento ao autor das contrapartidas pecuniárias correspondentes ao
período temporal em que deteve, e detém, o gozo e fruição do imóvel em causa.
Temos, pois, que, nada obstaculizava, antes impunha, que o Senhor
Juiz, no despacho saneador, tivesse procedido à restituição das aludidas
fracções ao autor, sem prejuízo do prosseguimento da acção para apuramento dos
quantitativos em dívida peticionados pelo senhorio, mas, não tendo sido seguido
tal caminho, e, dada a procedência do requerido despejo incidental, também, no
momento presente, já se não justifica que tal decisão de índole substantiva,
consubstanciada naquela indicada entrega, seja agora decretada.
V – Perante o exposto, decide-se negar provimento ao recurso
interposto, com a consequente integral manutenção do despacho agravado.”
A interveniente C., L.da, interpôs, ao abrigo do artigo 70.º, n.º
1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por
último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC),
recurso, para este Tribunal Constitucional, do referido acórdão do Tribunal da
Relação do Porto, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da norma do
artigo 58.° do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto‑Lei n.°
321‑B/90, de 15 de Outubro (RAU), na interpretação, acolhida na decisão
recorrida, segundo a qual o arrendatário, na resposta ao incidente de despejo
imediato, “apenas pode fazer prova documental do pagamento ou de depósitos das
rendas”, não lhe sendo “permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas
e impeditivas do pagamento”, considerando a recorrente violados os princípios
do Estado de Direito democrático (artigos 2.° e 9.°, alínea b), da Constituição
da República Portuguesa – CRP), da igualdade (artigo 13.° da CRP), da força
jurídica dos preceitos constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos
direitos, liberdades e garantias (artigo 18.° da CRP) e do acesso ao direito e
da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.° da CRP).
No Tribunal Constitucional, a recorrente apresentou alegações, no
termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1. A interpretação da norma do artigo 58.° do RAU no sentido de
que o arrendatário apenas pode fazer prova documental do pagamento ou de
depósito das rendas respectivas, não lhe sendo permitido invocar quaisquer
circunstâncias modificativas ou impeditivas do pagamento, viola princípios
fundamentais da Constituição da República Portuguesa, designadamente o
princípio do Estado de direito (artigos 2.° e 9.°, alínea b), da CRP), o
princípio da igualdade (artigo 13.° da CRP), o princípio da força jurídica dos
preceitos constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos direitos,
liberdades e garantias (artigo 18.° da CRP) e o princípio do acesso ao direito e
da tutela jurisdicional (artigo 20.° da CRP).
2. Acresce que o entendimento sufragado naquela douta decisão
constitui fundamento de incidente de ilegalidade perante o Tribunal
Constitucional, uma vez que a decisão em crise consagrou o acolhimento de
interpretação normativa impugnada por vício de ilegalidade (artigo 280.°, n.° 2,
alínea d), da CRP).
3. De facto, a douta decisão recorrida fez incorrecta aplicação
legal do disposto no artigo 58.º do RAU, contrariando o entendimento que a
jurisprudência e a doutrina vêm seguindo (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, de 12 de Maio de 1998, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça, 1998, tomo 2, pág. 81; Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, de 26 de Novembro de 1985, Boletim do Ministério da
Justiça, n.° 351, págs. 368 e 369; Acórdão da Relação do Porto, de 17 de Maio de
1994, Boletim do Ministério da Justiça, n.° 437, pág. 577; Acórdão da Relação de
Lisboa, de 18 de Janeiro de 1983, Colectânea de Jurisprudência, 1983, tomo I,
págs. 102 e 103; Acórdão da Relação de Lisboa, de 14 de Junho de 1979,
Jurisprudência das Relações, 15.°, pág. 580; Pais de Sousa, Extinção do
Arrendamento Urbano, 2.ª edição, págs. 437 e seguintes; Aragão Seia,
Arrendamento Urbano, 4.ª edição, Almedina, págs. 306 e 307; Pais de Sousa,
Cardona Ferreira e Lemos Jorge, Arrendamento Urbano, Notas Práticas, Rei dos
Livros, pág. 200).
4. Perante a actual redacção do artigo 58.° do RAU não mais é
aceitável o entendimento nos termos do qual a única defesa relevante que o
arrendatário pode produzir é que pagou ou que depositou a renda a que o senhorio
se refere.
5. É que da redacção do artigo 58.° do RAU resulta que este
artigo pressupõe que as rendas devem ser pagas, e não o foram.
6. Conforme refere Aragão Seia (Arrendamento Urbano, pág. 306),
«só se pode falar em rendas vencidas na pendência da acção se esta tiver
subjacente um arrendamento válido, que não é posto de qualquer modo em questão
pelo réu ou se este não põe em causa o direito que o autor se arroga de receber
rendas».
7. Ora é precisamente este o caso dos presentes autos.
8. Na verdade, por um lado, é o próprio autor (locador) que,
desde logo nos termos em que configurou a acção, põe em causa a validade do
arrendamento em relação à aqui recorrente C., não a reconhecendo como actual
legítima arrendatária, sustentando expressamente que o trespasse realizado é
ineficaz em relação a si (cf. artigos 4.°, 13.°, 14.° e 15.° da réplica).
9. Por outro lado, a recorrente também colocou em causa o direito
que o autor se arroga de receber rendas, nomeadamente alegando que foi este que
a dispensou do respectivo pagamento na sequência de contrato promessa de compra
e venda (artigo 13.° da contestação) e ainda porque o autor se recusou a dar
quitação de pagamentos efectuados (artigo 31.° da contestação).
10. Assim sendo, sendo controversos os termos que assume a
relação locatícia estabelecida entre as partes, mormente por indefinição quanto
à identidade do actual arrendatário, não é possível impor a nenhuma das rés (C.
e B.) uma obrigação (de pagamento ou depósito de rendas) sem previamente se
apurar, em definitivo, quem possui legitimidade para suportar tal obrigação.
11. Aliás, nos presentes autos é igualmente controvertida a
questão de saber qual o montante da renda actual (cf. quesitos 3.°, 4.°, 5.°,
8.°, 13.° e 17.° da base instrutória), pelo que, por maioria de razão, não se
afigura legítimo exigir a qualquer uma das rés o pagamento de rendas e
indemnizações cujo montante não é possível liquidar.
12. Em qualquer caso, a decisão recorrida enferma de vício de
inconstitucionalidade material por desconformidade e violação concreta das
normas e princípios constitucionais supra referidos.
13. De facto, do princípio do Estado de direito, consagrado em
termos gerais no artigo 2.° da CRP, decorre a exigência de um procedimento justo
e adequado de acesso ao direito e de realização do direito – garantia da via
judiciária (artigo 20.°, n.° 1, da CRP).
14. Na concretização desse princípio, a Constituição da República
Portuguesa contém alguns «sub-princípios» e normas designados por garantias
gerais de procedimento e de processo, entre os quais avultam a garantia de um
processo equitativo (artigo 20.°, n.° 4, da CRP) e o princípio da igualdade
processual das partes (artigos 13.° e 20.°, n.° 1, da CRP).
15. Por outro lado, do princípio da garantia da via judiciária
(artigo 20.º da CRP) decorre uma imposição directamente dirigida ao legislador
no sentido de conferir operatividade prática à defesa de direitos,
designadamente por via da consideração de um direito subjectivo público
destinado a assegurar ao cidadão uma posição jurídica subjectiva adequada cuja
violação lhe permite exigir protecção jurídica.
16. A douta decisão que considerou que no âmbito do incidente
previsto no artigo 58.° do RAU, a aqui recorrente «apenas pode fazer prova
documental do pagamento ou de depósito das rendas respectivas», não lhe sendo
«permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas ou impeditivas do
pagamento», consagra uma restrição inaceitável e que colide directamente com o
disposto no artigo 18.°, n.° 2, da CRP.
17. Na verdade, restringir os meios de defesa ao dispor do
arrendatário, no âmbito do incidente previsto no artigo 58.° do RAU, «a pagar ou
a depositar rendas», constitui uma violação clara da norma constitucional
contida no artigo 18.°, n.° 2, da CRP.
18. A sufragar aquele entendimento, ver‑se‑ia comprimida de modo
inadmissível, injusto e desproporcionado (e por isso, inconstitucional) uma das
mais significativas garantias constitucionais de um Estado de direito
consagradas na CRP, como sejam a garantia do processo equitativo e o princípio
da igualdade processual das partes, supra referidos.
19. É, pois, violador da equidade e do princípio da igualdade das
partes restringir, no âmbito do incidente do artigo 58.° do RAU, o leque de
opções de defesa processual admitidas a uma das partes em termos distintos
daquelas que são admitidos em termos gerais processuais.
20. De igual modo, a douta decisão recorrida, na interpretação
que acolheu da referida norma do RAU, colide com o princípio da igualdade
(artigo 13.° da CRP) – princípio estruturante do sistema constitucional global
–, designadamente com a garantia de igualdade processual das partes em litígio
(artigo 20.°, n.° 1, da CRP).”
O recorrido contra‑alegou, preconizando o improvimento do recurso
e a condenação da recorrente como litigante de má fé.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. A primeira questão que, no âmbito do presente recurso,
poderia suscitar‑se respeita à utilidade do conhecimento do seu objecto, atentas
as considerações tecidas no ponto IV do acórdão recorrido, em que se desenvolve
um outro fundamento para o imediato decretamento do despejo das fracções em
causa: a nulidade, por falta de escritura pública, do contrato de arrendamento
para exercício de comércio celebrado com a ré B. e a consequente nulidade, por
falta de legitimidade da transmitente, do trespasse para a interveniente C..
Sabido que o recurso de constitucionalidade tem natureza
instrumental, o que implica que é condição do conhecimento do respectivo objecto
a possibilidade de repercussão do julgamento que nele vier a ser efectuado na
decisão recorrida, a existência de um outro fundamento desta decisão,
insusceptível de ser afectado pelo eventual provimento do recurso de
constitucionalidade, justifica o não conhecimento deste recurso.
Porém, no presente caso, apesar das aludidas considerações sobre
as nulidades do primitivo contrato de arrendamento e do trespasse, o certo é que
o acórdão recorrido acaba por não as assumir como fundamento autónomo da decisão
de improvimento do recurso de agravo. O que nele se consigna é que o juiz de 1.ª
instância, no despacho saneador, poderia ter logo decretado a restituição do
local, com base nas ditas nulidades contratuais, prosseguindo a lide para
apuramento das quantias em dívida ao autor; porém – conclui o acórdão – “não
tendo sido seguido tal caminho [pelo juiz de 1.ª instância], e, dada a
procedência do requerido despejo incidental, também, no momento presente, já
se não justifica que tal decisão de índole substantiva, consubstanciada naquela
indicada entrega, seja agora decretada”.
Neste contexto, não se pode considerar que a decisão contida no
acórdão recorrido assenta também num segundo fundamento autónomo, pelo que
persiste utilidade no conhecimento do presente recurso de constitucionalidade.
2.2. Dispunha o artigo 979.º do Código de Processo Civil, no
âmbito da regulamentação da acção de despejo:
“1. Se o réu deixar de pagar rendas vencidas na pendência da acção, pode o
autor requerer, por esse motivo, que se proceda imediatamente ao despejo.
2. Ouvido o arrendatário, se este não provar, por documento, que fez o
pagamento ou o depósito, é logo ordenado o despejo.
3 (...).”
Esta estatuição foi substituída pelo artigo 58.º do RAU, ora em causa, nos
termos do qual:
“1 – Na pendência da acção de despejo, as rendas vencidas devem ser pagas ou
depositadas, nos termos gerais.
2 – O senhorio pode requerer o despejo imediato com base no não cumprimento
do disposto no número anterior, sendo ouvido o arrendatário.
3 – O direito a pedir o despejo imediato nos termos deste preceito caduca
quando o arrendatário, até ao termo do prazo para a sua resposta, pague ou
deposita as rendas em mora e a importância de indemnização devida e disso faça
prova, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de
levantamento do depósito, que serão contadas a final.”
A formulação genérica do preceito parece indiciar a sua
aplicabilidade sempre que ocorra falta de pagamento de rendas na pendência de
uma acção de despejo, seja qual for o fundamento desta (falta de pagamento de
rendas ou qualquer outro) e independentemente das questões litigiosas no seu
âmbito suscitadas, mas esse entendimento – sufragado no acórdão recorrido – não
tem sido sempre seguido, quer na doutrina, quer na jurisprudência.
Como assinalava Jorge Alberto Aragão Seia (Arrendamento Urbano,
7.ª edição, Coimbra, 2003, p. 382): “Só se pode falar em rendas vencidas na
pendência da acção se esta tiver subjacente um arrendamento válido, que não é
posto de qualquer modo em questão pelo réu ou se este não põe em causa a
qualidade de senhorio que o autor se arroga para receber as rendas”.
A nível jurisprudencial – quer face ao artigo 979.º do CPC, quer
já na vigência do artigo 58.º do RAU – também se tem entendido que a providência
em causa (despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência da
acção), constituindo como que uma nova acção de despejo imediato, com base na
falta de pagamento de renda, inserida ou enxertada na acção pendente, atenta a
sua tramitação simples e expedita, “pressupõe que se acha assente a relação
processual entre demandante e demandado: indiscutido, ou tornado líquido, que
ao demandante assiste o direito a receber uma renda mensal do demandado, se este
se absteve de a pagar no decurso da acção, o preceito em análise [então ainda o
artigo 979.º, n.º 2, do CPC] permite restabelecer prontamente a ordem jurídica
desse modo ofendida; já não, porém, quando precisamente se discute se aquele
que se arroga o direito a recebê‑las está ou não realmente na situação jurídica
de poder exigi‑lo; nessa última hipótese, não há que decretar o despejo com
base neste preceito” (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14 de Junho
de 1969, Jurisprudência das Relações, 15.º, p. 580). Entendimento reiterado no
Acórdão da mesma Relação, de 19 de Janeiro de 1989 (Colectânea de
Jurisprudência, ano XIV, tomo 1, p. 112), segundo o qual “o despejo imediato
por falta de pagamento ou depósito de rendas na pendência da acção pressupõe
estar assente a relação processual onde é proferido” e “tal não sucede se o réu
suscitar a questão da ilegitimidade do autor e esta se mantém em aberto” (no
caso, o réu suscitara a questão da ilegitimidade do autor, sustentando que o
senhorio não era ele, mas a sua ex‑mulher; mantendo‑se esta questão em aberto à
data da suscitação do incidente, entendeu‑se não ser aplicável o incidente de
despejo imediato).
Já na vigência do artigo 58.º do RAU, o acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, de 12 de Maio de 1998, proc. n.º 197/98 ((Colectânea de
Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VI, tomo 2, p. 81;
texto integral disponível em www.dgsi.pt/jstj), sustentou que só na hipótese de
mora do locatário aquele preceito prevê que, para evitar o despejo imediato, ele
tenha de fazer prova de ter pago ou depositado as rendas em dívida e a
indemnização respectiva, pois que, havendo mora do senhorio, tem de se aceitar
que o inquilino se defenda de um eventual pedido incidental de despejo imediato
com a simples invocação dessa mora e seja admitido a prová‑la, não tendo a prova
a produzir de ser apenas documental.
Numerosa jurisprudência das Relações tem também sublinhado que o
incidente de despejo imediato pressupõe que se mostre assente, na acção em que
ele se enxerta, não só a existência de um contrato de arrendamento válido, mas
também que autor e réu são efectivamente as partes no contrato e que nenhum
litígio persiste quanto, por exemplo, ao montante da renda, à mora do locador ou
ao incumprimento, por parte deste, de qualquer dever contratual, que fosse
susceptível de não tornar líquida e incontroversa a mora do locatário no
pagamento das rendas vencidas na pendência da acção. Só perante situações em
que não existe controvérsia quanto ao dever de o réu pagar certa renda ao autor,
por força de contrato de arrendamento, é que seria aceitável que, face a
incumprimento dessa obrigação na pendência da acção de despejo e formulação,
pelo autor, de pedido de despejo imediato, a possibilidade de defesa do réu
fosse restringida à prova do pagamento ou depósito das rendas em dívida.
O Tribunal da Relação de Lisboa (www.dgsi.pt/jtrl), por exemplo,
considerou inaplicável o incidente quando se mantém em aberto a questão de saber
quem é o locatário (acórdão de 4 de Fevereiro de 1992, proc. 37901); se existe
contrato de arrendamento (acórdão de 2 de Junho de 1999, proc. 71622); se é
exigível o pagamento da renda (acórdãos de 8 de Março de 2001, proc. 110012, e
de 19 de Junho de 2001, proc. 32537); ou se foi legal a actualização da renda
efectuada pelo senhorio (acórdão de 30 de Abril de 2002, proc. 24357).
O Tribunal da Relação do Porto (www.dgsi.pt/jtrp) entendeu não
poder ser decretado o despejo imediato em casos em que persiste controvérsia
sobre se o demandado mantém a qualidade de inquilino (acórdãos de 14 de
Fevereiro de 1991, proc. 409737, de 25 de Fevereiro de 1997, proc. 9621498, de 1
de Abril de 1997, proc. 97200008 [este sumariado no Boletim do Ministério da
Justiça, n.º 466, p. 587], e de 5 de Janeiro de 1999, proc. 9820943); sobre o
efectivo vencimento das rendas reclamadas (acórdão de 22 de Junho de 1992, proc.
9230318); sobre o incumprimento pelo senhorio do dever de assegurar ao inquilino
o gozo do local arrendado (acórdão de 17 de Maio de 1994, proc. 9311416); sobre
o direito do autor a receber do demandado as rendas reclamadas (acórdãos de 10
de Abril de 1997, proc. 9730093, de 30 de Junho de 1997, proc. 9651415, de 12 de
Maio de 1998, proc. 9820329, de 14 de Março de 2000, proc. 20145, de 3 de Abril
de 2001, proc. 120328, e de 20 de Maio de 2002, proc. 250216); sobre a
existência de mora do locador (acórdãos de 10 de Julho de 1997, proc. 9520204, e
de 6 de Julho de 2001, proc. 150768) e do locatário (acórdão de 19 de Junho de
2001, proc. 120165); sobre a existência de acordo segundo o qual os réus
pagariam as rendas quando pudessem e iriam entregando quantias para serem
imputadas na liquidação das rendas vencidas, começando pelas mais antigas
(acórdão de 24 de Novembro de 1997, proc. 9750679); sobre o direito do inquilino
a efectuar o depósito de apenas 30% do montante da renda, nos termos do artigo
18.º do RAU, para reembolso das despesas efectuadas com obras por ele
executadas ao abrigo do precedente artigo 16.º (acórdão de 2 de Dezembro de
1997, proc. 965283); sobre a existência de acordo no sentido de não pagamento de
rendas a partir de certa data, como modo de ressarcir prejuízos sofridos pelo
arrendatário, só sendo reactivado o pagamento das rendas após a feitura de
certas obras pelo senhorio (acórdão de 15 de Junho de 1998, proc. 9850631); ou
sobre a validade do contrato de arrendamento (acórdãos de 11 de Outubro de 2004,
proc. 454472, e de 2 de Dezembro de 2004, proc. 436441).
Também o Tribunal da Relação de Coimbra (www.dgsi.pt/jtrc), no
acórdão de 2 de Novembro de 1999, proc. 294/99, entendeu que, porque o incidente
previsto no artigo 58.º do RAU é um incidente autónomo, com cariz de uma acção
nova, enxertada na acção de despejo e independente em relação a esta, “ao
arrendatário está aberta a possibilidade de se opor ao seu senhorio do mesmo
modo em que se lhe oporia numa acção autónoma, designadamente esgrimindo as
excepções que lhe poderia opor em tal acção, como, por exemplo, a ilegitimidade,
a cláusula cum potuerit ou a exceptio non adimpleti ou non rite adimpleti
contractus”; o Tribunal da Relação de Évora, no acórdão de 6 de Março de 1997,
proc. 1201/95 (sumariado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 465, p. 663),
decidiu que “não pode ser ordenado aquele despejo imediato enquanto não estiver
decidida a excepção de ilegitimidade invocada pelo réu na contestação, em que
alega não ter a condição de arrendatário”; e o Tribunal da Relação de Guimarães
(www.dgsi.pt/jtrg), no acórdão de 4 de Fevereiro de 2004, proc. 2387/03‑1,
considerando que “o direito de o senhorio obter o despejo imediato do locado
com fundamento na falta de pagamento ou depósito das rendas vencidas no decurso
da acção não é uma prerrogativa absoluta que sempre lhe assiste no caso de, numa
acção de despejo, se constatar que o arrendatário não demonstra ter pago a renda
invocada pelo demandante”, pois “para que esta medida possa ser accionada
necessário se torna ter como certas a validade do contrato e a certeza de que as
rendas em análise são devidas ao senhorio”, decidiu que “se a própria renda ou
o seu exacto montante estiverem em litígio na acção, essa vicissitude faz com
que já não se esteja no enquadramento da disciplina estatuída no artigo 58.º do
RAU”.
Não compete ao Tribunal Constitucional, no âmbito dos recursos de
constitucionalidade para ele interpostos, tomar posição sobre qual a
interpretação do direito ordinário que considera mais correcta, mas a enunciação
da corrente jurisprudencial que restringe a aplicabilidade do incidente de
despejo imediato, previsto no artigo 58.º do RAU, às situações em que não
persiste, na acção de despejo, controvérsia quer quanto à existência de um
contrato de arrendamento válido, quer quanto à qualidade de locador e locatário
de autor e réu, quer quanto à exigibilidade e valor das rendas não pagas na
pendência de acção, permite compreender que, nessas situações, possa vir a ser
considerada constitucionalmente tolerável a restrição dos meios de defesa do réu
ao pagamento ou depósito das rendas em dívida, mas que idêntica solução já não
seja de acolher em situações em que se encontra questionada, por qualquer
fundamento, o próprio dever de efectuar pagamento de rendas na pendência da
acção.
É esta última a situação dos presentes autos, em que, como se
viu, para além de se encontrar questionada a qualidade de arrendatária quer da
ré B. (por ela própria), quer da interveniente C. (pelo autor), esta invoca a
existência de um acordo (contrato promessa de compra e venda das fracções em
causa), celebrado com o autor, distinto do contrato de arrendamento, acordo esse
que seria o título que legitimaria a sua ocupação do local, e que incluiria
cláusula que a dispensava do pagamento de rendas, sendo os valores que fosse
entregando ao autor imputados no pagamento do preço de compra das fracções.
Trata‑se, como se relatou, de matéria controvertida, que foi levada à base
instrutória (quesitos 14.º a 21.º).
A questão que constitui objecto do presente recurso consiste,
assim, na constitucionalidade da interpretação do artigo 58.º do RAU segundo a
qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia quer quanto à
identidade do arrendatário, quer quanto à existência de acordo, diverso do
arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente
processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em
falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de
defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo
para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora
e da importância da indemnização devida.
2.3. A recorrente alega que a interpretação normativa impugnada
viola os princípios do Estado de Direito democrático (artigos 2.° e 9.°,
alínea b), da CRP), da igualdade (artigo 13.° da CRP), da força jurídica dos
preceitos constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos direitos,
liberdades e garantias (artigo 18.° da CRP) e do acesso ao direito e da tutela
jurisdicional efectiva (artigo 20.° da CRP).
Entende‑se, porém, que o parâmetro constitucional mais pertinente
se centra no princípio da proibição da indefesa, que decorre, em primeira linha,
do princípio do contraditório, a que se deve subordinar todo o processo, uma
vez iniciado. Como refere Carlos Lopes do Rego (“Os princípios constitucionais
da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime
de citação em processo civil”, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel
Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, pp. 835‑859): “A garantia da via judiciária –
ínsita no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e a todos
conferida para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos –
envolve, não apenas a atribuição aos interessados legítimos do direito de acção
judicial, destinado a efectivar todas as situações juridicamente relevantes que
o direito substantivo lhes outorgue, mas também a garantia de que o processo,
uma vez iniciado, se deve subordinar a determinados princípios e garantias
fundamentais: os princípios da igualdade, do contraditório e (após a revisão
constitucional de 1997) a regra do «processo equitativo», expressamente
consagrada no n.º 4 daquele preceito constitucional”, sendo do princípio do
contraditório que “decorre, em primeira linha, a regra fundamental da proibição
da indefesa”.
Este Tribunal, no Acórdão n.º 335/95, teve oportunidade de
densificar o sentido desta regra, ao consignar:
“7. O direito de defesa do demandado é indiscutivelmente um direito de
natureza processual que está ínsito no direito de acesso aos tribunais, nos
termos do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição. Quando este preceito estatui
que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos
seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por
insuficiência de meios económicos, é manifesto que tanto abrange os demandantes
que recorrem aos tribunais para fazer valer as suas pretensões, como os
demandados que ficam sujeitos à jurisdição do tribunal da causa e que têm o
direito de se opor a tais pretensões. Como estabelece o n.º 1 do artigo 103.º da
Grundgesetz alemã, «todos têm o direito a ser ouvidos em juízo» (veja‑se também
o artigo 24.º da Constituição italiana).
Em todas as tramitações de natureza declarativa que conduzem à emissão de um
julgamento (judicium) por parte de um tribunal, tem de existir um debate ou
discussão entre as partes contrapostas, demandante e demandado, havendo o
processo jurídico adequado (a due process of law clause, da tradição
anglo‑americana) de garantir que cada um dessas partes deva ser chamada a dizer
de sua justiça (audiatur et altera pars). E esta exigência alarga‑se a todas as
outras tramitações processuais cíveis, salvo contadas excepções, mesmo nos
processos executivos, em especial quando são deduzidas oposições à própria
execução ou à penhora.
Como escreveu Manuel de Andrade, a estruturação «dialéctica ou polémica do
processo teria partido do contraste dos interesses dos pleiteantes, ou até só do
contraste das suas opiniões (...) para o esclarecimento da verdade. É tal a sua
vantagem – seu rendimento – que as leis a consagram mesmo onde repelem ou
cerceiam o princípio dispositivo (...). Espera‑se que, também para os efeitos do
processo, da discussão nasça luz; que as partes (ou os seus patronos),
integrados no caso e acicatados pelo interesse ou pela paixão, tragam ao debate
elementos de apreciação (razões e provas) que o juiz, mais sereno mas mais
distante dos factos e menos activo, dificilmente seria capaz de descobrir por si
(...)» (Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes
Varela, edição revista por Herculano Esteves, Coimbra, 1979, pág. 379).”
E no Acórdão n.º 473/94:
“2 – A Constituição acolhe e define no artigo 2.º o princípio do Estado de
direito democrático, individualizando depois no artigo 20.º, n.º 1, como um dos
seus subprincípios concretizadores, o direito de acesso aos tribunais.
Este direito inclui, desde logo, no seu âmbito normativo, o direito de
acção, isto é, o direito subjectivo de levar determinada pretensão ao
conhecimento de um órgão jurisdicional, solicitando a abertura de um processo
com o consequente dever (direito ao processo) do mesmo órgão de sobre ela se
pronunciar mediante decisão fundamentada.
Mas, para além do direito de acção, que se materializa através do processo,
compreendem-se, no direito de acesso aos tribunais, nomeadamente: (a) o direito
a prazos razoáveis de acção ou de recurso; (b) o direito a uma decisão judicial
sem dilações indevidas; (c) o direito a um processo justo baseado nos princípios
da prioridade e da sumariedade no caso daqueles direitos cujo exercício pode
ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas; (d) o direito a um
processo de execução, ou seja, o direito a que, através do órgão jurisdicional,
se desenvolva e efective toda a actividade dirigida à execução da sentença
proferida pelo tribunal.
Há‑de ainda assinalar‑se como parte daquele conteúdo conceitual «a proibição
da ‘indefesa’, que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do
particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que
lhes dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o
ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar‑se‑á sobretudo
quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de
processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de
alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses» (cfr. Gomes
Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª
ed., Coimbra, 1993, pp. 163 e 164, e Fundamentos da Constituição, Coimbra,
1991, pp. 82 e 83).
Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal
Constitucional, caracterizando o Acórdão n.º 86/88, Diário da República, II
Série, de 22 de Agosto de 1988, o direito de acesso aos tribunais como sendo
«entre o mais, um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve
chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e
independência, possibilitando‑se, designadamente, um correcto funcionamento das
regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas
razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do
adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cfr. Manuel
de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 364)».”
Fazendo aplicação destas considerações ao caso ora em análise,
surge, de forma ostensiva, como uma restrição constitucionalmente intolerável do
direito de defesa a limitação, no incidente de despejo imediato por falta de
pagamento de rendas na pendência de acção de despejo, das possibilidades de
defesa do requerido à alegação e prova de que, até ao termo do prazo para a sua
resposta, procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância
da indemnização. Tal meio de defesa é manifestamente desajustado em todos os
casos em que justamente se questiona o próprio dever de pagamento de determinada
renda, seja por que fundamento for (inexistência de contrato de arrendamento
válido, não serem autor e/ou réu os verdadeiros locador e/ou locatário,
dissídio quanto ao montante da renda ou da sua imediata exigibilidade, invocação
de diverso título para justificar a ocupação do local). No presente caso, em
que, para além da controvérsia sobre a qualidade de locatária da primitiva ré, a
interveniente (ora recorrente) sustenta o seu direito de ocupação do local em
contrato promessa de compra e venda que teria celebrado com o autor, com
consequente inexistência do dever de pagamento de rendas, sendo as entregas de
valor feitas imputadas no pagamento do preço de compra, questão que se
encontrava ainda pendente quando foram proferidas as decisões das instâncias
ora em causa, é óbvia a desadequação e inefectividade do único meio de defesa
que foi reconhecido à recorrente: a prova do pagamento ou depósito das rendas
pretensamente em falta, acompanhada da indemnização devida.
Tal entendimento não assegura um tratamento equitativo das partes
nem a efectividade da tutela jurisdicional, pelo que não pode deixar de ser
considerado como violador do princípio da proibição da indefesa, ínsito no
artigo 20.º da CRP.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da
proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República
Portuguesa, a norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado
pelo Decreto‑Lei n.º 321‑B/90, de 15 de Outubro, na interpretação segundo a
qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia quer quanto à
identidade do arrendatário, quer quanto à existência de acordo, diverso do
arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente
processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em
falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de
defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo
para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora
e da importância da indemnização devida; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da
decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de
inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Dezembro de 2005
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos