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Processo n.º 923/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.No processo comum colectivo n.º 53/97.7TBVRS, que correu termos no Tribunal Judicial de Vila Real de Santo António, os arguidos A. e B. foram submetidos a julgamento pela prática, em concurso efectivo, de um crime de tráfico de estupefacientes, na forma consumada, e de um crime de associação criminosa, previstos e punidos pelos artigos 21.º, n.º 1, 24.º, alínea c), e 28.º, n.ºs 1 e
3, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e o primeiro ainda pela prática de um crime de furto de uso, previsto e punido pelo artigo 304.º do Código Penal. Por acórdão de 15 de Julho de 2003, os arguidos foram absolvidos da prática desses crimes. Desse acórdão interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal da Relação de Évora, bem como das deliberações tomadas na sessão de audiência e julgamento do dia 12 de Junho de 2003 (a fls. 4842 a 4844 dos autos), que consideraram aplicáveis às testemunhas C., D., E., F. e G. o regime previsto no artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e consequentemente, não admitiram a leitura das declarações prestadas por essas testemunhas perante o juiz de instrução criminal, então na qualidade de arguidos, requerida pelo Ministério Público. No recurso intercalar (fls. 4885 a 4899), o Ministério Público apresentou as seguintes conclusões:
«I. Tendo havido separação de culpas, um arguido já julgado no processo inicial tem plena capacidade para ser testemunha no julgamento de outro co-arguido, não lhe sendo aplicável o disposto no art.º 133.º, n.ºs 1 e 2, do CPP e podendo o seu depoimento ser utilizado como meio de prova na formação da convicção do tribunal; II. Uma vez que o art.º 356.º, n.º 3, do CPP não restringe a sua aplicabilidade a um interveniente processual concreto, a leitura aí prevista é admissível em relação a qualquer um, desde que as declarações tenham sido prestadas perante o juiz - única exigência legal prevista na norma; III. O tribunal pode proceder à leitura de declarações prestadas na fase de inquérito, desde que o hajam sido perante o juiz e houver entre elas e as prestadas em audiência contradições ou discrepâncias sensíveis que não possam ser esclarecidas de outra forma; IV. As deliberações do tribunal colectivo ora recorridas violaram assim o disposto nos art.ºs 133.º, n.º 2, e 356.º, n.º 3, do CPP, ao interpretar tais normas da forma como o fizeram, quando deveriam ser interpretadas no sentido defendido nas conclusões acima enunciadas. V. Cometeu-se assim nulidade ou irregularidade processual que conduz à invalidade do julgamento e dos actos subsequentes, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 120.º, n.º 2, alínea d), 122.º e 123.º do CPP. Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis devem as decisões recorridas ser revogadas e substituídas por outras que decidam nos termos das conclusões acima enunciadas, declarando-se inválido o julgamento efectuado e todos os actos subsequentes.» No recurso do acórdão absolutório de 15 de Julho de 2003 (fls. 4974 a 4984), o Ministério Público concluiu pela seguinte forma:
«I. Mantém interesse o conhecimento do recurso já interposto pelo Ministério Público das decisões proferidas em audiência, o que se declara nos termos do disposto no art.º 412.º, n.º 5, do CPP. II. Dão-se aqui por reproduzidas todas as conclusões e respectivos fundamentos, constantes da motivação do aludido recurso. III. Ao permitir a recusa do depoimento de algumas testemunhas e ao não permitir, quanto às que depuseram, a leitura de declarações anteriores prestadas perante um juiz (inviabilizando também quanto às primeiras a leitura de anteriores declarações também prestadas perante juiz) o tribunal incorreu em omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade, cometendo assim a nulidade prevista no art.º 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP. IV. Tal nulidade não se encontra sanada e torna inválido o julgamento e todos os actos que dele dependem, conduzindo assim também à nulidade do acórdão ora recorrido, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 121.º, 122.º e
410.º, n.º 3, do CPP. V. Não realizando as diligências referidas o tribunal incorreu igualmente em erro notório na apreciação da prova, ao ter fundamentado a absolvição na existência de dúvidas conducentes à aplicação do princípio “in dubio pro reo”, dúvidas cujo esclarecimento não realizou por omissão de diligências essenciais e legalmente admissíveis. VI. Mostram-se pois violadas as normas dos art.ºs 120.º, n.º 2, alínea d),
121.º, 122.º, 133.º, n.ºs 1 e 2, 356.º, n.º 3, e 410.º, n.º 2, alínea c), e n.º
3, do CPP, as quais deverão ser interpretadas no sentido defendido pelo Ministério Público na presente motivação e na motivação do recurso já interposto. VII. Mostram-se incorrectamente julgados todos os factos constantes do ponto 2. do acórdão, em que considerou como não provados todos os factos descritos na acusação, dado que a realização das diligências omitidas conduziria a decisão diversa da recorrida. Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, deve o douto acórdão recorrido ser declarado nulo, em consequência da nulidade da audiência de julgamento, ordenando-se o reenvio do processo para novo julgamento e julgando-se assim procedentes ambos os recursos interpostos.» Somente o arguido A. respondeu ao recurso interlocutório (a fls. 4970 a 4972v), concluindo:
«1. Dispõe o art.º 25.º, n.º 1, da Constituição que: “A integridade moral e física das pessoas é inviolável”;
2. Dispõe, também, o art.º 26.º, n.º 1, da Constituição que: “A todos são reconhecidos os direitos...ao bom nome e reputação...”;
[3] O crime que havia sido imputado à testemunha C. é o mesmo que o imputado ao ora arguido;
[4] Ao serem ouvidos sobre factos criminosos de que haviam sido acusados os arguidos do mesmo crime já condenados no processo principal, ora testemunhas, tinham que expressamente consentir em depor, nos termos do art.º 133.º, n.º 2, do CPP para falar sobre factos que, sem qualquer dúvida, ofendiam a sua integridade moral e o seu bom nome e reputação;
[5] Ora, sobre tais factos, por consubstanciarem direitos pessoais constitucionalmente garantidos, não podiam as mencionadas testemunhas ser ouvidas;
[6] Ora, o art.º 356.º, n.º 3, alínea b), do CPP só se aplica aos casos em que houver discrepâncias sensíveis, que não possam ser esclarecidas doutro modo, entre as declarações prestadas anteriormente no processo e as feitas em audiência;
[7] Ora, como bem se diz no acórdão recorrido, o disposto no art.º 356.º, maxime no seu n.º 3, alínea b), é no pressuposto de que os intervenientes processuais aí em causa são-no de modo homogéneo no mesmo processo, quer dizer, tal preceito só faz sentido quando interpretado no sentido de que as contradições e discrepâncias eventualmente existentes o são quando tiverem sido prestadas quando o interveniente processual está sujeito aos mesmos deveres de conduta;
[8] Assim sendo, e uma vez que a requerida leitura de declarações prestadas pela testemunha C. perante Juiz de Instrução Criminal o foram, não enquanto testemunha - e, portanto, não estava obrigada aos deveres de conduta exigidos processualmente a todas as testemunhas - mas enquanto arguido, e, portanto, usufruindo de um estatuto processual específico e distinto daquele de que dispunha em audiência de julgamento;
[9] Assim, as eventuais discrepâncias estão esclarecidas pela diferença de estatuto em que umas declarações foram prestadas - as prestadas enquanto arguido
- e as prestadas em audiência pelo que não havia que determinar a leitura das anteriores;
[10] O acórdão em crise, ao decidir como decidiu, interpretou e aplicou correctamente a Lei, designadamente os art.ºs 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Constituição e o art.º 133.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, e 356.º do CPP». Quanto ao recurso do acórdão absolutório, o mesmo arguido A. declarou não pretender fazer uso do direito de resposta conferido pelo artigo 413.º do Código de Processo Penal, dando por reproduzidas as conclusões por si apresentadas na resposta à motivação apresentada no recurso interlocutório. A representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora, emitiu parecer no qual sustentou o provimento do recurso quanto à alegada violação do artigo 356.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, mas já não quanto
à parte em que a recorrente defende que a situação prevista no artigo 133.º do Código de Processo Penal só ocorre quando o depoente ainda não foi julgado no processo conexo ou separado. Por acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 30 de Junho de 2004, foi concedido provimento ao recurso intercalar e foram revogadas as deliberações do Tribunal Judicial de Vila Real de Santo António tomadas na sessão de audiência e julgamento do dia 12 de Junho de 2003, tendo sido ordenado que fossem
“substituídas por outras a admitir a inquirição das testemunhas, independentemente do aludido consentimento, bem como a leitura das declarações que foram prestadas anteriormente pelas testemunhas acima referidas, ainda que na qualidade de arguidos, posto que verificados os requisitos enumerados nas alíneas a) e b) do n.º 3 do art.º 356.º do CPP”. Consequentemente, foi anulado o acórdão de 15 de Julho de 2003, do Tribunal Judicial de Vila Real de Santo António, ficando, assim, prejudicado o conhecimento do recurso dele interposto, bem como foi anulado o julgamento realizado pelo tribunal recorrido, tendo sido ordenada a sua repetição em conformidade com a decisão da Relação. Pode ler-se nesse aresto:
«(...)
11. – O objecto de cada recurso é demarcado pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da respectiva minuta - art.º 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Os poderes cognitivos deste Tribunal cingem-se ao reexame da matéria de direito, na dissidência aportada pela ilustre recorrente, bem como aos vícios do art.º
412.º, n.º 1, do CPP. Nestes termos, e atenta a conformação que a ilustre recorrente atribui ao objecto dos recursos, importa examinar por ordem preclusiva as seguintes questões: a) Se, no caso de separação de processos, ao arguido já julgado no processo inicial, é aplicável ou não o disposto no art.º 133.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, quando chamado a depor no julgamento de outro co-arguido, podendo o seu depoimento ser utilizado como meio de prova na formação da convicção do tribunal; b) Se a leitura prevista no n.º 3 do art.º 356.º do CPP é admissível em relação a qualquer interveniente processual; c) Se as declarações prestadas perante o juiz de instrução na fase de inquérito podem ser lidas em audiência se houver entre elas e as prestadas em audiência contradições ou discrepâncias sensíveis que não possam ser esclarecidas de forma diferente; d) Se a não leitura das declarações de co-arguido já julgado no processo inicial e prestadas na fase de inquérito perante juiz, importa nulidade do julgamento e actos subsequentes nos termos do disposto nos art.ºs 120.º , n.º 2, alínea d),
122.º e 123.º do CPP; e) Se a permissão de recusa de depoimento de co-arguido já julgado no processo inicial importa omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade e nulidade do art.º 120.º, n.º 2, alínea a), do CPP, do julgamento e actos subsequentes; f) Se a não realização da leitura dos depoimentos referidos e a permissão de recusa de depoimento consubstancia erro notório na apreciação da prova e impõe o reenvio do processo para novo julgamento.
12. – As deliberações do tribunal colectivo, objecto do recurso intercalar, são do seguinte teor:
“Os presentes autos de processo comum colectivo surgem na sequência da separação de processos ordenada no Processo Comum Colectivo 308/95 deste Tribunal. Ora nestes últimos autos referidos (de que os presentes autos se separaram) a presente testemunha C. apresentava-se então como arguido, tendo nessa qualidade sido julgado e condenado. Entende este colectivo que a norma constante no n.º 2 do art.º 133.º do CPP está precisamente configurada para fazer face às situações em que, como a actual, quem depõe como arguido em virtude da separação processual entretanto ocorrida passa a poder depor noutro processo - separado do original - como testemunha. Aliás, a não se entender assim o n.º 1, alínea a), do art.º 133.º do CPP veria atingida, em grande parte, a sua finalidade. Nestes termos, e reconhecendo não se ter dado cumprimento aquando do início da inquirição da presente testemunha, ao exposto no art.º 133.º, n.º 2, do CPP, como muito bem é salientado pelo ilustre defensor do arguido A., decide-se suprir tal irregularidade perguntando-se agora à testemunha se pretende depor enquanto tal, uma vez que noutra ocasião já respondeu como arguido no processo comum colectivo 308/97”.
(...)
“Em face da disponibilidade mostrada por C. em prestar depoimento como testemunha, ganha acuidade apreciar o doutamente requerido pela Digna Procuradora da República, no que diz respeito à possibilidade de ser a actual testemunha confrontada com as declarações por si prestadas, enquanto arguido perante o juiz de instrução criminal. Entende o colectivo de juízes que compõem este Tribunal que o disposto em todo o art.º 356.º do CPP, maxime o que dispõe o n.º 3, alínea b), de tal preceito, é no pressuposto de que os intervenientes processuais aí em causa são-no de modo homogéneo no mesmo processo, quer dizer, tal preceito só faz sentido quando interpretado, salvo melhor opinião, no sentido de que as contradições ou discrepâncias eventualmente existentes o são quando tiverem sido prestadas quando interveniente processual está sujeito exactamente aos mesmos deveres de conduta. Assim sendo e, uma vez que a requerida leitura de declarações prestadas pela actual testemunha perante juiz de instrução criminal, o foram, não enquanto testemunha (e, portanto, não estava obrigada aos deveres de conduta exigidos processualmente a todas as testemunhas) mas enquanto arguido (e portanto usufruindo de um estatuto processual específico e distinto daquele de que agora dispõe) decide-se não admitir a leitura de tais declarações”. As referidas deliberações foram renovadas em relação às promoções do Ministério Público efectuadas após a audição das testemunhas D., F., E. e G., arguindo ainda o Ministério Público a irregularidade da aplicação do art.º 133.º, n.º 2, do CPP.
[...]
14. – Quanto à 1.ª questão e enunciada em 11. – a) impõe-se conhecer se é ou não aplicável o disposto no art.º 133.º, n.º 2, do CPP em relação às testemunhas C., D., E., F. e G.. Dispõe o art.º 133.º do CPP:
“1. Estão impedidos de depor como testemunhas: a) O arguido e os co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos, enquanto mantiverem aquela qualidade; b) As pessoas que se tiverem constituído assistentes, a partir do momento da constituição; c) As partes civis.
2. Em caso de separação de processos, os arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo podem depor como testemunhas, se nisso expressamente consentirem.” A Doutrina já respondeu que os arguidos não estão impedidos de produzir prova
“por declarações do arguido no decurso do julgamento, nos termos dos art.º 140.º e seguintes, como decorre, entre outros, do disposto nos art.º 343.º e 345.º, todos do CPP, mas que essas declarações - na decorrência de co-arguição - não podem validamente ser assumidas como meio de prova relativamente aos outros arguidos. Mas a propósito da mesma questão do depoimento de co-arguido, enquanto meio proibido ou não de prova, também se concluiu pela não proibição, mas lembrando que se trata de um meio de prova frágil, que impõe o controle pela defesa do co-arguido e prefere a corroboração por outras provas. E concluiu-se igualmente que é a posição de interessado do arguido, a par de outros intervenientes citados nesse art.º 133.º, que dita o impedimento, o que significa que nada obsta a que preste declarações, nomeadamente para se desonerar ou atenuar a sua responsabilidade, o que acarreta que, não sendo meio proibido de prova, as declarações do co-arguido podem e devem ser valoradas no processo, não esquecendo o tribunal a posição que ocupa quem as prestou e as razões que ditaram o impedimento deste artigo. E tem sido neste último sentido que se tem formado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Com efeito decidiu-se que “a crítica feita no sentido de que não seria lícita a utilização das declarações dos arguidos como meio de prova contra os outros, não tem razão de ser em face do art.º 125.º do CPP; na verdade, este artigo estabelece o princípio da admissibilidade de quaisquer provas no processo penal, estabelecendo o art.º 126.º aquelas que são proibidas, não constando deste elenco o caso das declarações dos co-arguidos. Estas são perfeitamente possíveis como meios de prova do ponto de vista da sua legalidade, como o são as declarações do assistente, das partes civis, etc.; o que acontece é que a Lei Processual, ao proibir que o arguido seja ouvido como testemunha, pretende, tão-só, protegê-lo e impedi-lo, por exemplo, que venha a ser condenado por perjúrio”. E que o art.º 133.º do CPP apenas proíbe que os arguidos sejam ouvidos como testemunhas uns dos outros, ou seja, que lhes seja tomado depoimento sob juramento, mas não impede que os arguidos de uma mesma infracção possam prestar declarações no exercício do direito, que lhes assiste, de o fazerem em qualquer momento do processo. Nada impede que o arguido preste declarações sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova, ou seja, tanto sobre factos que só a ele digam directamente respeito, como sobre factos que respeitem a outros arguidos. A proibição constante do art.º 133.º, n.º 1, alínea a), do CPP tem um objectivo muito próprio: o de garantir ao arguido o seu direito de defesa, que facilmente se mostraria incompatível com o dever de responder, e com verdade, ao que lhe fosse perguntado, com as sanções inerentes à recusa de resposta ou à resposta falsa. No caso em apreciação houve separação de processos nos termos do art.º 30.º, n.º
1, do CPP, tendo sido extraída do processo 308/95 do Tribunal de Vila Real de Santo António a culpa tocante aos ora arguidos-recorridos. Naquele processo eram também co-arguidos, além de outros, os cidadãos C., D., E., F. e G. (v. fls. 4468 a 4487), que foram pronunciados com os ora recorridos, como co-autores, em concurso real, de um crime de associação criminosa para o tráfico de estupefacientes e de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, como melhor consta de fls. 4481 a 4484. Entretanto, no referido processo, foram aqueles julgados e alguns deles condenados, por acórdão transitado em julgado. E tendo sido indicados oportunamente como testemunhas, nos presentes autos,
53/97.7TBVRS, que são traslado daqueles, a questão que se coloca em primeiro lugar é a de saber se, nas descritas circunstâncias, ainda se exige o respectivo consentimento expresso para os mesmos poderem depor nessa qualidade (como testemunhas), face ao preceituado no citado n.º 2 daquele art.º 133.º do C. P. Penal, sendo certo que o Tribunal “a quo” entendeu que os mesmos só poderiam ser ouvidos nessa qualidade se nisso consentissem, e, como os cidadãos E. e G. não consentiram, não foi admitida a respectiva inquirição. Ora, no que a tal respeita, concordamos com o entendimento expresso pela Exma. Procuradora da República do tribunal recorrido, ora recorrente, no sentido de que não se aplica ao caso o disposto naquele normativo, uma vez que as referidas testemunhas foram mas já não são arguidos no processo 308/95, que correu termos contra os mesmos, por este já se encontrar definitivamente julgado e sendo certo que a qualidade de arguido se conserva apenas durante o decurso do processo, em conformidade com o preceituado no art.º 57.º, n.º 2, do CPP, pressupondo o referido n.º 2 do art.º 133.º a manutenção da qualidade de arguido, isto é, que o respectivo processo se mantenha em curso. Assim sendo, no caso de separação de processos, cessada a qualidade de arguido de um mesmo crime ou de um crime conexo, e à semelhança do que indiscutivelmente acontece quando se trata do mesmo processo ou de processos conexos - cf. alínea a) do n.º 1 do citado art.º 133.º - nenhuma razão existe para que não seja, obrigatoriamente, prestado o respectivo depoimento como testemunha (sublata causa, tollitur effectus). Já assim decidiram também os acórdãos do STJ de 6.3.96, in CJ STJ, ano IV, tomo
1, pág. 221, de 20.11.2002, in CJ STJ, ano X, tomo III, pág. 230/1, da Relação de Lisboa de 18.5.99, in CJ, ano XXIV, tomo 3, pág.140. E é este também o entendimento de Medina Seiça, em “O conhecimento probatório do co-arguido”, in Boletim da Faculdade de Direito, Studia Juridica 42, pág. 91, que sobre a questão em apreciação acaba por defender que, “de facto, ao vincular o impedimento à manutenção da qualidade de co-arguido, a lei não pressupõe por certo que essa qualidade, uma vez adquirida, permaneça qual estatuto inamovível. Por outro lado, quando admite, caso haja consentimento expresso, o testemunho do arguido do mesmo crime ou crime conexo, o mesmo é dizer no nosso entendimento, quando reconhece a persistência do fundamento do impedimento, colocando-o tão-só na disponibilidade do arguido, a lei quando admite esta possibilidade, dizíamos pressupõe a manutenção da qualidade de arguido, isto é, que o processo, embora separado, se mantenha em curso”. Também José António Barreiros, in “Sistema e Estrutura do Processo Penal Português”, a pág. 218, defende que o estatuto do arguido terminará com qualquer decisão que ponha termo ao processo no qual ele tiver sido adquirido pelo virtual agente da infracção. Tudo a significar que é nosso entendimento que padecem de fundamento legal, violando, por erro de interpretação, o disposto no art.º 133.º, n.º 2, do CPP, as deliberações do tribunal colectivo que entenderam ser aplicável esse preceito
às testemunhas acima referidas e, por conseguinte, não admitiu que fossem ouvidas as testemunhas E. e G., que, feita a advertência da exigência do respectivo consentimento, optaram por não depor. Assim, tendo as referidas testemunhas perdido o estatuto de arguidos, impõe-se que dêem obrigatoriamente o seu concurso, como testemunhas, para a descoberta da verdade, se tal for julgado necessário, como acontece com a generalidade dos cidadãos e que esses depoimentos sejam utilizados como meios de prova na formação da convicção do Tribunal. Procede, pois. o recurso neste conspecto.
(...)»
2.Inconformado, o arguido A. dirigiu-se ao Tribunal Constitucional com o presente recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), pretendendo ver apreciada a constitucionalidade do artigo 133.º do Código de Processo Penal, no entendimento que lhe foi dado no acórdão recorrido, por entender que esse entendimento viola os artigos 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Admitido o recurso no Tribunal Constitucional, o recorrente concluiu assim as suas alegações:
«1. O presente recurso foi interposto do, aliás douto, acórdão da Relação de
Évora que entendeu não ser aplicável o disposto do art.º 133-2 do CPP, às testemunhas E. e G.;
2. Por estes já não terem a qualidade de arguidos no processo 308/95 – do qual foram separados os presentes autos – por aquele processo já se encontrar definitivamente julgado tendo, ali, a testemunha E. sido condenado em pena de prisão que cumpriu e a testemunha G. sido absolvido;
3. A Doutrina e a Jurisprudência têm entendido pacificamente que o impedimento previsto no art.º 133.º-1-a) do CPP, foi fixado para protecção do próprio arguido-depoente que, como arguido, tem direito ao silêncio;
4. Direito que, como testemunha, não poderia ter por estar sujeito às obrigações constantes do art.º 132.º do CPP, designadamente, à de responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas – art.º 132.º-1-d) do CPP;
5. Com o impedimento previsto no art.º 133.º-1-a) do CPP pretendeu-se evitar que o arguido-depoente pudesse cometer o crime de perjúrio caso depusesse falsamente;
6. Para que se verifique o impedimento previsto no art.º 133.º-2 do CPP têm que se verificar os seguintes requisitos:
1. Ter havido separação de processos;
2. Os arguidos que devem depor como testemunhas têm que o ser dum mesmo crime ou de um crime conexo;
3. Têm que expressamente consentir.
7. Até à data, quer a Doutrina quer a Jurisprudência têm entendido, na generalidade, que é o mesmo o significado da palavra “arguido/co-arguidos” constante do art.º 133.º-1-a) do CPP e o significado da palavra “arguidos” constante do art.º 133.º-2 do CPP;
8. Para esse efeito, tem sido utilizada a expressão “enquanto mantiverem essa qualidade” existente no art.º 133.º-1-a) do CPP, na interpretação que fazem da palavra “arguidos” constante no art.º 133.º-2 do CPP;
9. Entendemos que tal interpretação é errada e que se trata duma apropriação abusiva da expressão “enquanto mantiverem essa qualidade” quando o legislador pretendeu dar-lhe, no art.º 133.º-2 do CPP, um sentido diferente;
10. É certo que a qualidade de arguido se conserva durante o decurso do processo que contra ele existe – art.º 57.º-2 do CPP;
11. Significando que, em termos processuais, a qualidade de arguido termina com a conclusão do processo;
12. Mas não é esse o entendimento que a palavra “arguidos” tem no art.º 133.º-2 do CPP;
13. Ao entender-se que as palavras “arguido/co-arguidos” existentes no art.º
133.º-1-a) do CPP, e a palavra “arguidos” constante no art.º 133.º-2 do CPP, tivessem a mesma amplitude então o disposto naquele art.º 133.º-2 do CPP, seria desnecessário;
14. Na verdade, não faria qualquer sentido dar-se ao arguido, dum mesmo crime ou de crime conexo, com processo ainda pendente, o direito de consentir ou não em depor como testemunha em processo dele separado;
15. Pois, se, como tem entendido a Doutrina e a Jurisprudência – designadamente, as indicadas no acórdão em crise – tal disposição se destina a proteger o arguido-depoente então tal protecção já consta do art.º 132.º-2 do CPP;
16. Que é o direito do arguido-depoente poder remeter-se ao silêncio e não se auto-incriminar;
17. O art.º 132.º-2 do CPP já dá o direito ao arguido-depoente, assim como a todas as outras testemunhas em processo penal, de não ser obrigado a responder a perguntas de que possa resultar a sua responsabilização penal;
18. Assim, a palavra “arguidos” usada no art.º 133.º-2 do CPP tem uma abrangência maior do que a utilizada no art.º 133.º-1-a) do CPP – a existência de um processo-crime ainda pendente;
19. Tal abrangência vai para além da pendência de processo-crime;
20. No dizer de Medina de Seiça trata-se do fenómeno da ultra-actividade do impedimento para além do termo da qualidade de arguido;
21. Para efeitos da aplicação do art.º 133.º-2 do CPP, a expressão “arguidos” significa, pois, as pessoas contra quem pende ou pendeu processo-crime;
22. E não apenas e só as pessoas com processo-crime ainda pendente;
23. Só assim se percebe a existência do consentimento previsto no art.º 133.º-2 do CPP;
24. Pois, o testemunho do arguido, quando permitido, tem um cariz muito particular e que determinou o legislador a dedicar-lhe uma disposição própria que se contém, exactamente, no art.º 133.º-2 do CPP;
25. Esse cariz muito particular está directamente relacionado com o teor do depoimento a prestar;
26. Sendo – ou tendo sido – o depoente arguido do mesmo crime ou de crime conexo, o teor do seu depoimento terá necessariamente por objecto a sua intervenção no crime ou crimes que lhe são – ou foram – imputados juntamente com o arguido em cujo processo ele deverá depor;
27. E não é para protecção contra a auto-incriminação do arguido-depoente que se lhe dá o direito de consentimento previsto no art.º 133.º-2 do CPP;
28. Tal norma pretende proteger os direitos à integridade moral e física e, bem assim, os direitos ao bom nome e reputação do arguido-depoente;
29. Direitos esse que se encontram constitucionalmente consagrados nos art.ºs
25.º e 26.º da Constituição;
30. Não existindo qualquer Lei que os restrinja nos termos do art.º 18.º-2 da Constituição;
31. Ao serem ouvidos sobre factos criminosos de que haviam sido acusados os arguidos do mesmo crime já condenados no processo principal – as testemunhas E. e G. – têm que expressamente consentir em depor, nos termos do art.º 133.º-2 do CPP;
32. Para falarem sobre factos que, sem qualquer dúvida, ofendem a sua integridade moral e o seu bom nome e reputação;
33. Ora, sobre tais factos, por consubstanciarem direitos pessoais invioláveis constitucionalmente garantidos, não podem as mencionadas testemunhas ser ouvidas sem que para isso expressamente consintam;
34. Pois, não se pode querer obter a condenação de outrem através dum meio de prova que obrigue alguém a confessar ter cometido factos criminosos ou torpes;
35. O acórdão em crise, ao decidir como decidiu, interpretou e aplicou incorrectamente a Lei, violando, designadamente, os art.ºs 18.º-2, 25.º-1 e
26.º-1, da Constituição e o art.º 133.º-1-a)-2, do CPP;
36. Pois tal decisão e interpretação viola os direitos fundamentais de integridade moral e o bom nome e reputação das testemunhas sobre as quais incidiu a decisão em crise e que se acham constitucionalmente protegidos. Pelo exposto e pelo muito mais que resultar do douto suprimento de Vossas Excelências, deve dar-se provimento ao recurso, considerando-se a desconformidade com a Constituição da norma constante do art.º 133.º-2 do CPP, interpretada no sentido de ser válido o depoimento prestado, em processo separado, por co-arguido – cujo processo já terminou – de um mesmo crime ou crime conexo, sem afirmação do seu consentimento expresso, com as legais consequências.» Contra-alegando, concluiu o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional:
“1 – A norma do n.º 2 do artigo 133.º do Código de Processo Penal visa exclusivamente a protecção dos direitos de defesa do co-arguido no processo separado, tendo em vista garantir o seu direito de se não auto-incriminar.
2 – Tendo perdido a qualidade de arguido, cessa o impedimento estabelecido, podendo e devendo depor como testemunha, sem nisso ter que expressamente consentir.
3 – A descoberta da verdade material, no âmbito de actividade do Estado na administração da justiça em processo penal, não é incompatível com a tutela constitucional dos direitos fundamentais.
4 – Termos em que não deverá proceder o presente recurso.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.O presente recurso foi interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, visando a apreciação da conformidade com a Constituição da República Portuguesa do artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, num determinado entendimento, que foi adoptado pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora recorrido. Dispõe esse artigo 133.º do Código de Processo Penal, com a epígrafe “Impedimentos”:
«1 – Estão impedidos de depor como testemunhas: a) O arguido e os coarguidos no mesmo processo ou em processos conexos, enquanto mantiverem aquela qualidade; b) As pessoas que se tiverem constituído assistentes, a partir do momento da constituição; c) As partes civis.
2 – Em caso de separação de processos, os arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo podem depor como testemunhas, se nisso expressamente consentirem.» Segundo o recorrente, “[s]endo – ou tendo sido – o depoente arguido do mesmo crime ou de crime conexo, o teor do seu depoimento terá necessariamente por objecto a sua intervenção no crime ou crimes que lhe são – ou foram – imputados juntamente com o arguido em cujo processo ele deverá depor”; e “não é para protecção contra a auto-incriminação do arguido-depoente que se lhe dá o direito de consentimento previsto no art.º 133.º-2, do CPP”, protegendo antes tal norma
“os direitos à integridade moral e física e, bem assim, os direitos ao bom nome e reputação do arguido-depoente”. Pelo que seria de considerar inconstitucional, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da Constituição”, a norma “constante do artigo 133.º-2, CPP, interpretada no sentido de ser válido o depoimento prestado, em processo separado, por co-arguido – cujo processo já terminou – de um mesmo crime ou crime conexo, sem afirmação do seu consentimento expresso, com as legais consequências.” No acórdão recorrido, diversamente, entendeu-se (no seu ponto 14) que a norma do artigo 133º, n.º 2, do Código de Processo Penal “tem um objectivo muito próprio: o de garantir ao arguido o seu direito de defesa, que facilmente se mostraria incompatível com o dever de responder, e com verdade, ao que lhe fosse perguntado, com as sanções inerentes à recusa de resposta ou à resposta falsa”. Pelo que, “no caso de separação de processos, cessada a qualidade de arguido de um mesmo crime ou de um crime conexo, e à semelhança do que indiscutivelmente acontece quando se trata do mesmo processo ou de processos conexos - cf. alínea a) do n.º 1 do citado art.º 133.º - nenhuma razão existe para que não seja, obrigatoriamente, prestado o respectivo depoimento como testemunha (sublata causa, tollitur effectus)”, como tem sido, aliás, também decidido por outros tribunais superiores (cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Março de 1996, in Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, IV, tomo 1, p. 221, e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26 de Junho 2002, in Colectânea de Jurisprudência, XXVII, tomo 4, p. 40). Desta forma, o tribunal recorrido decidiu que careciam “de fundamento legal, violando, por erro de interpretação, o disposto no art.º 133.º, n.º 2, do CPP, as deliberações do tribunal colectivo que entenderam ser aplicável esse preceito
às testemunhas acima referidas e, por conseguinte, não admitiu que fossem ouvidas as testemunhas (...) que, feita a advertência da exigência do respectivo consentimento, optaram por não depor”. E concluiu que, “tendo as referidas testemunhas perdido o estatuto de arguidos, impõe-se que dêem obrigatoriamente o seu concurso, como testemunhas, para a descoberta da verdade, se tal for julgado necessário, como acontece com a generalidade dos cidadãos e que esses depoimentos sejam utilizados como meios de prova na formação da convicção do Tribunal”. Importa precisar, porém, que na decisão recorrida esteve em causa a não aplicabilidade da exigência de consentimento para o depoimento como testemunha, em geral “no caso de separação de processos, cessada a qualidade de arguido de um mesmo crime ou de um crime conexo”, mas apenas quando essa cessação resulte de decisão desse processo transitada em julgado (pois disse-se: “Entretanto, no referido processo, foram aqueles julgados e alguns deles condenados, por acórdão transitado em julgado”), e não, por exemplo, quando resulte de arquivamento devido a falta de indícios contra os arguidos em questão. Só está, pois, em causa uma “ultra-actividade” do impedimento previsto no artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, após a cessação da qualidade de arguido, quando esta se deveu a decisão com trânsito em julgado. Por outro lado, importa ainda deixar claro que também não está em questão no presente processo apurar se, e como, o depoimento de um ou mais co-arguidos (no mesmo processo, ou em processo que foi separado, e tendo ou não este já sido julgado) há-de, ou não, ser valorado como meio de prova – ou, sequer, se, devido
à sua natureza “particularmente frágil”, pode servir para sustentar uma condenação (sobre esta questão, cfr. Teresa Beleza, “Tão amigos que nós éramos: o valor probatório do depoimento do co-arguido no processo penal português”, in Revista do Ministério Público, n.º 74, pp. 39-59, e Rodrigo Santiago, “Reflexões sobre as ‘declarações do arguido’ como meio de prova no Código de Processo Penal de 1987”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4, 1994, pp. 27-62, respondendo ambos em sentido negativo). É que, no presente caso, a possibilidade de depoimento de anteriores co-arguidos (sem necessidade do seu consentimento), cujo processo foi separado e já decidido, foi negada, e não reconhecida, na decisão de que o Ministério Público recorreu para o Tribunal da Relação de
Évora. Se tal depoimento dever ser prestado, resta ainda saber – mas a essa questão não pode o Tribunal Constitucional responder (pelo menos no presente recurso) – se, e como, há-de ser valorado. A interpretação do artigo 133º, n.º 2, do Código de Processo Penal que há que apreciar é, pois, aquela segundo a qual não é de exigir consentimento para o depoimento, como testemunha, de anterior co-arguido cujo processo, tendo sido separado, foi entretanto objecto de decisão transitada em julgado.
4.O Tribunal Constitucional teve já ocasião de se pronunciar sobre dimensões interpretativas do artigo 133.º do Código de Processo Penal. Para além do acórdão n.º 524/97 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 37.º, pp. 533 e ss.), pelo qual se julgou inconstitucional a norma “extraída com referência aos artigos 133º, 343º e 345º do Código de Processo Penal, no sentido em que confere valor de prova às declarações proferidas por co-arguido, em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias destoutro co-arguido, o primeiro se recusa a responder, no exercício do direito ao silêncio”, fê-lo no acórdão n.º 304/2004 (publicado no Diário da República, II série, n.º 169, de 20 de Julho de 2004, p. 10911), pronunciando-se igualmente sobre a ratio do n.º 2 desse artigo 133.º. No caso decidido por este último aresto estava em questão a constitucionalidade de um entendimento dessa norma no sentido de admitir a valoração, no processo em que é prestado, de um depoimento prestado por co-arguido que não deixara ainda de ser arguido, pelo mesmo crime, em processo separado, e que não consentiu expressamente em depor. O Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional essa norma baseando-se na sua finalidade de protecção do próprio co-arguido. Disse-se então:
«(...)
4 – A importância de que se reveste a produção de prova em processo penal, enquanto superação de um modelo inquisitorial do processo e conquista basilar do processo de estrutura acusatória, tem subjacente a ideia da existência de limites intransponíveis à prossecução da verdade em processo penal, limites que se traduzem nos conceito e regime das proibições de prova. Costa Andrade, citando Gössel, afirma que “às proibições de prova cabe a importante tarefa de “prevenir que o imperativo da realização da justiça material que dimana do Estado de Direito redunde precisamente no seu contrário”.
(...) “É que, precisa Gössel, ‘do princípio do Estado de Direito decorre o dever de averiguar a verdade e, ao mesmo tempo, a delimitação dessa averiguação’ ”
(cfr. Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, págs. 117 a 119). Em particular, quanto à liberdade de declaração do arguido, ela é analisada pela doutrina numa dupla dimensão, positiva e negativa. Pela positiva, abre ao arguido o “mais irrestrito direito de intervenção e declaração em abono da sua defesa”, e, pela negativa, a liberdade de declaração do arguido veda todas as tentativas de obtenção, por meios enganosos ou por coacção, de declarações auto-incriminatórias. A vertente negativa (nemo tenetur se ipsum accusare) assume particular relevância em matéria de proibições de prova, não podendo o arguido ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir para a sua incriminação. De novo com Costa Andrade, o que está em jogo “é garantir que qualquer contributo do arguido, que resulte em desfavor da sua posição, seja uma afirmação esclarecida e livre de autoresponsabilidade.” (cfr. ob. cit., pág.
121). E isto porque, na liberdade de declaração espelha-se o estatuto do arguido como autêntico sujeito processual decidindo, por força da sua liberdade e responsabilidade, sobre se e como quer pronunciar-se. Ou, como Eser – autor citado por Costa Andrade – “senhor das suas declarações”. A lei processual penal dedica várias normas ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare, delas se salientando “um total e absoluto direito ao silêncio” do arguido [cfr. artigos 61º, n.º 1, alínea c), 343º, n.º 1, e 345º, n.º 1, todos do CPP]. O conteúdo material do referido princípio (nemo tenetur ...) é assegurado através da imposição dos deveres de esclarecimento ou de advertência às autoridades judiciárias e aos órgãos de polícia criminal [cfr. artigos 58º, n.º
2; 61º, n.º 1, alínea g); 141º, n.º 4, e 343º, n.º 1], estabelecendo-se a sanção de proibição de valoração, nos termos do artigo 58º, n.º 4, e da nulidade das provas obtidas mediante tortura, coacção ou ofensa da integridade, física ou moral (cfr. artigo 126º, n.º 1, todos do CPP). O Código Penal de 1982 concluía a tutela da liberdade de declaração e depoimento com a incriminação da extorsão de depoimento (cfr. artigo 412º do Código Penal), podendo entender-se que hoje tal incriminação resulta das disposições conjugadas dos artigos 155º, n.º 1, alínea d), e 154º do Código Penal. A norma do artigo 133º do CPP encontra-se inserida no Livro III do CPP que trata da prova, destacando-se os seguintes meios de prova: prova testemunhal (artigos
128º a 139º), declarações do arguido (artigo 140º a 144º), declarações do assistente e das partes civis (artigo 145º), acareação (artigo 146º), reconhecimento (artigos 147º a 149º), reconstituição do facto (artigo 150º), prova pericial (artigos 151º a 163º) e prova documental (artigos 164º a 170º). Deste elenco resulta, em primeiro lugar, e como assinala Medina de Seiça (“O conhecimento probatório do co-arguido”, Boletim da Faculdade de Direito, Studia Iuridica, n.º 42, Coimbra Editora, 1999, pág. 152), a inexistência nominal e autónoma das declarações do co-arguido. Com efeito, a referência expressa ao co-arguido insere-se, em sede de “meios de prova”, na prova testemunhal – maxime, no artigo 133º – e na prova por acareação
(cfr. artigo 146º). Na fase de audiência de discussão e julgamento, em especial na fase de produção da prova em audiência de discussão e julgamento, encontram-se no Código de Processo Penal referências ao co-arguido nos artigos 343º, n.º 4 (“declarações do arguido”), 344º, n.º 3, alínea a) (“confissão”), e 348º, n.º 6 (“inquirição das testemunhas”). Segundo Medina de Seiça, a norma constante do artigo 133º do CPP – impedimento para depor como testemunha – representa “uma das regras que caracterizam em maior medida a actual disciplina da prova testemunhal” e “constitui o vértice da concepção global sobre a função ou posição processual que ao co-arguido se deve reconhecer no quadro do direito probatório” (cfr. ob. cit., pág. 17). A consagração de um impedimento em sede de obtenção/produção de prova implica forçosamente uma limitação à aquisição de material probatório. A justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial uma ideia de protecção do próprio arguido, como decorrência da vertente negativa da liberdade de declaração e depoimento, a que acima se fez referência e que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare, o também chamado privilégio contra a auto-incriminação (cfr. neste sentido, Costa Andrade, ob. cit., pág. 121). A proibição de o arguido ser ouvido como testemunha, enquanto limitação dos mecanismos de constrangimento inerentes à prova testemunhal, constitui expressão do privilégio contra a auto-incriminação. O alargamento do impedimento – alargamento do direito do arguido ao silêncio – ao próprio co-arguido arranca desta mesma matriz da garantia contra a auto-incriminação, enquanto expressão do direito de defesa, entendida como a exigência de assegurar ao co-arguido o direito a defender-se, sem que, através do testemunho sobre facto de outro, ele comprometa a sua própria posição processual, auto-incriminando-se (cfr. neste sentido, Medina de Seiça, ob. cit., págs. 36 e 37). A consagração do impedimento representa uma renúncia do Estado à “colaboração forçada” na investigação de factos criminosos de quem é alvo dessa mesma investigação. O modelo do testemunho consentido, previsto no artigo 133º, n.º 2, do CPP, pretende satisfazer a exigência de trazer o conhecimento probatório do co-arguido a um processo em que ele não se encontra a responder, sem eliminar a garantia do impedimento: a não sujeição dos arguidos do mesmo crime ao constrangimento característico da prova testemunhal. Ao cometer ao co-arguido a decisão sobre o exercício concreto da protecção, o impedimento deixa de ser absoluto e passa a relativo (ainda neste sentido Costa Andrade, ob. cit., pág. 121, e Medina de Seiça, ob. cit., pág. 123)
5 – O que se deixa dito permite-nos agora abordar, directamente, e com a limitação dos poderes de cognição deste Tribunal (no caso, aceitando que o co-arguido não deixara ainda de ser arguido, pelo mesmo crime, em processo separado e que não consentiu, expressamente, em depor como testemunha), a questão de constitucionalidade em causa: saber se a admissão e valoração do referido meio de prova contra o arguido no processo em que é prestado o depoimento, tal como resulta da interpretação feita pelo acórdão recorrido da norma do artigo 132º, n.º 2, do CPP, ofende a Constituição. E, desde logo, a de saber se se verifica a violação do artigo 32º, n.º 1, da CRP. Ora, o Tribunal entende que a norma que estabelece o assinalado impedimento relativo visa, exclusivamente, a protecção dos direitos do co-arguido, enquanto tal, no processo pertinente, em ordem a garantir o seu direito de se não auto-incriminar. Para assim concluir o Tribunal tem, antes do mais, em conta que o impedimento cessa no caso de o co-arguido deixar de o ser no processo separado, por qualquer forma por que o procedimento criminal se pode extinguir. E, por outro lado, faz relevar o facto de o consentimento expresso do mesmo co-arguido ser suficiente para a legalidade deste meio de prova. O que significa, por outras palavras, que o arguido no processo onde o depoimento é prestado nada pode opor, no estrito plano do direito infraconstitucional e verificado o consentimento expresso do depoente, à inquirição do co-arguido como testemunha.»
(últimos itálicos aditados)
5.No presente caso, verifica-se uma discordância do recorrente em relação ao tribunal recorrido, quanto à finalidade da norma do artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e, consequentemente, quanto ao seu alcance. Ora, independentemente do juízo que se faça sobre a dimensão normativa que foi apreciada pelo Tribunal Constitucional no citado acórdão n.º 340/04 - a qual não está em causa no presente processo –, entende-se que é de reiterar o que então se disse quer sobre a finalidade do artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – que este “visa, exclusivamente a protecção dos direitos do co-arguido, enquanto tal, no processo pertinente, em ordem a garantir o seu direito de se não auto-incriminar”, o que, aliás, é também salientado entre nós pela doutrina
(veja-se, por todos, António Medina de Seiça, O conhecimento probatório do co-arguido, Coimbra, 1999, pp. 34 e segs., que situa na protecção do próprio co-arguido contra a auto-incriminação o fundamento do “princípio da incompatibilidade entre a posição de (co)-arguido e de testemunha”) –, quer, em obiter dictum, sobre o alcance dessa norma no que diz respeito à cessação do impedimento: isto é, “que o impedimento cessa no caso de o co-arguido deixar de o ser no processo separado, por qualquer forma por que o procedimento criminal se pode extinguir”. Esta última afirmação só pode, aliás, sair reforçada se se trata de um caso, como o presente, em que o procedimento criminal se extinguiu, no processo separado, por decisão transitada em julgado, com alguns arguidos condenados. E, não estando em causa a defesa do co-arguido neste processo, que já terminou, também não está, pois, em causa a protecção das garantias de defesa em processo criminal desse co-arguido, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição. Talvez por isso, o que o recorrente invoca é, antes, a protecção dos direitos à integridade moral e física, ao bom nome e reputação do co-arguido depoente. Ora, não pode negar-se, é certo, que da inexistência de uma obrigação do co-arguido de, sem consentimento, prestar depoimento como testemunha, pode resultar, como efeito, que a honra e reputação (enquanto imagem moral exterior) do arguido depoente, ou de outras pessoas que seriam mencionadas no depoimento, sejam preservadas. Trata-se, todavia, de mera consequência da protecção do depoente resultante dessa disposição, como projecção da inexistência de qualquer obrigação de auto-incriminação em processo penal – protecção, esta, que não está já em causa se o arguido foi já julgado, com decisão transitada em julgado, no processo separado que lhe dizia respeito. E tal afectação desses direitos fundamentais à honra e reputação do depoente, fora do âmbito do processo penal, só poderá, aliás, resultar do conhecimento dos factos tal como resultam do seu depoimento. Desta forma, não é de considerar incompatível com tais direitos fundamentais, constitucionalmente protegidos, uma compreensão da exigência de consentimento para prestar depoimento como testemunha, prevista no artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, colimada a uma finalidade apenas relativa ao processo criminal, em benefício do co-arguido. Isto é, não é incompatível, nem com as garantias processuais penais, nem com os direitos fundamentais invocados pelo recorrente, o entendimento de que o n.º 2 do artigo 133.º do Código de Processo Penal visa exclusivamente a protecção dos direitos de defesa do co-arguido em processo penal (designadamente, no processo separado), garantindo o seu direito de se não auto-incriminar, e não também proteger direitos fundamentais, como os direitos à integridade moral e física, ao bom nome e reputação, seja do arguido depoente, seja do arguido que é objecto do depoimento ou nele mencionado, seja de quaisquer outras pessoas. E, assim, tendo o depoente já perdido a qualidade de arguido, por decisão transitada em julgado no processo separado, não é inconstitucional o entendimento de que cessa o impedimento estabelecido, podendo e devendo aquele depor como testemunha, sem nisso ter que consentir. Pelo que se conclui que é de negar provimento ao presente recurso. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional o artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de não exigir consentimento para o depoimento, como testemunha, de anterior co-arguido cujo processo, tendo sido separado, foi já objecto de decisão transitada em julgado; b) Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita; c) Condenar o recorrente em custas, fixando em 20 (vinte) unidades de conta a taxa de justiça.
Lisboa, 5 de Abril de 2005
Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos