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Processo n.º 741/01
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 7 de Fevereiro de 2000, A., melhor identificado nos autos, requereu
instauração de procedimento criminal contra B., melhor identificado nos autos,
pela prática dos crimes de difamação, publicidade e calúnia, previstos e punidos
na Lei de Imprensa e nos artigos 180º, 182º e 183º do Código Penal, requerendo a
sua constituição como assistente.
Pronunciado pelo Tribunal da Relação de Lisboa (em razão do seu estatuto de
magistrado judicial) pelos crimes de difamação e injúria (artigos 180º e 181º do
Código Penal), agravados nos termos do artigo 183º, n.º 2, do mesmo Código, veio
o arguido interpor recurso da dita decisão alegando que, ao indeferir-se todas
as diligências de prova testemunhal antes requeridas pelo arguido, se teria
verificado “um caso de verdadeira falta de instrução”, invocando a
inconstitucionalidade material do disposto nos artigos 310º, 119º, alínea d),
286º, n.º 1, 289º, n.º 1, e 291º, n.º 1 (2ª parte), do Código de Processo Penal,
quando interpretados no sentido de que a decisão de pronúncia e a de
indeferimento de diligências instrutórias são irrecorríveis, e do disposto no
artigo 307º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redacção do Decreto-Lei n.º
320-C/2000, de 15 de Dezembro, por considerar que a remissão para as razões de
facto e de direito da acusação particular equivale a total ausência de
fundamentação.
O recurso não foi admitido pela Ex.mª Desembargadora-relatora, por despacho de 6
de Março de 2001, mas, decidindo a reclamação que o arguido lhe dirigiu, o
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça mandou admiti-lo por despacho de 6 de
Abril de 2001.
Tendo os autos subido ao Supremo Tribunal de Justiça, em resultado da decisão
proferida pelo seu Presidente, de novo se suscitou a questão da
inadmissibilidade do recurso, face ao disposto no artigo 405º, n.º 4, parte
final, do Código de Processo Penal. Por acórdão de 24 de Outubro de 2001, o
Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o recurso do arguido “com base nas
disposições conjugadas dos art.ºs. 420º, n.º 1, e 414º, n.º 2, do C.P.P.”, e
condenou-o em custas.
2.Veio então o arguido apresentar recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, para ver apreciadas as
seguintes normas:
“a) Art. 310º, n.º 1, do C.P.P., interpretado e aplicado no sentido da
irrecorribilidade da decisão instrutória, por violação dos preceitos e
princípios dos artigos 20º, n.º 1, 32º, n.º 1, e 268º, n.º 4, todos da C.R.P..
b) Artigos 119º, al. a), 286º, n.º 1, e 291º, n.º 1 (2ª parte), todos do C.P.P.,
interpretados e aplicados no sentido de possibilitarem que se considere existir
instrução e logo não se verifica a sua falta, quando todas as diligências
requeridas pela defesa são indeferidas, por violação dos preceitos e princípios
dos art.ºs. 20º, n.º 1, 32º, n.º 1, 268º, n.º 1, todos do C.P.P..
c) A norma do art.º 307º, n.º 1, do C.P.P. (na redacção dada pela Lei
320-C/2000, de 15/12) interpretada e aplicada, em conjugação com os art.ºs 379º,
n.º 1, al. a), e n.º 2, e 374º, n.º 2, igualmente do C.P.P., no sentido de
permitir a completa ausência de fundamentação (pois se limita a uma mera adesão
à acusação, sem fazer qualquer juízo ou balanço crítico da própria instrução),
por violação dos preceitos e princípios dos art.ºs 32º, n.º 1, e 205º, n.º 1, da
C.R.P.).
d) A norma do n.º 4 do art.º 420º do C.P.P. quando interpretada e aplicada no
sentido de determinar que num dado recurso, cuja admissão – repete-se – fora
ordenada pelo Sr. Juiz-Presidente, o recorrente, num caso como o dos autos,
possa ser condenado sem qualquer espécie de fundamentação, em 5 Ucs de taxa de
justiça e mais 7 Ucs, nos termos do n.º 4 do já citado art.º 420º, num total de
12 Ucs (!?) por tal representar uma punição económica absolutamente
desproporcionada, com manifesta violação dos preceitos e princípios já citados
dos art.ºs 32º, n.º 1, e 205º, n.º 1, e também do princípio da razoabilidade e
da boa fé ínsitos na ideia de Estado de Direito, consagrados no art.º 2 da
C.R.P.”
Admitido o recurso e determinada a produção de alegações, o arguido/recorrente
encerrou-as deste modo:
“1ª A regra de irrecorribilidade das decisões judiciais tem, face ao art.º 399º
do C.P.P., natureza claramente excepcional, não sendo assim passível de
aplicação analógica.
2ª Mas se o art.º 310º, n.º 1, do C.P.P. puder ser interpretado e aplicado no
sentido da irrecorribilidade do despacho de pronúncia que, em sede de crime
particular, reproduz a acusação do M.º P.º, a qual por seu turno acompanha a
acusação do assistente, então padece de evidente inconstitucionalidade material
por violação dos art.ºs 20º, n.º 1, 32º, n.º 1, e 268º, n.º 4, todos da C.R.P..
3ª Acresce que na presente questão o indeferimento de todas as diligências de
prova testemunhal requeridas pelo arguido criou uma situação de verdadeira falta
de instrução, que deveria ser geradora, nos termos do art.º 119º, al. c), do
C.P.P., de nulidade insanável.
4ª Na interpretação e aplicação dadas pelo acórdão do S.T.J. – e que determinam
não existir aí qualquer nulidade – os art.ºs. 119º, al. d), 286º, n.º 1, 289º,
n.º 1, e 291º, n.º 1 (2ª parte), todos do C.P.P., estão feridos de
inconstitucionalidade material por violação dos art.ºs 20º, n.º 1, 32º, n.º 1, e
268º, n.º 1, todos da C.R.P..
Ademais,
5ª O despacho dito instrutório não contém, como devia, qualquer vislumbre de
fundamentação de facto ou de direito,
6ª Sendo certo que o art.º 307º, n.º 1, do C.P.P. (na redacção dada pelo
Dec.-Lei 320-C/2000, de 15/12), interpretado e aplicado como foi no acórdão do
S.T.J., ou seja, no sentido de permitir a completa ausência de fundamentação e a
mera reprodução da própria acusação do M.º P.º, é materialmente inconstitucional
por violação dos art.ºs 32º, n.º 1, e 205º, n.º 1, da Lei Fundamental.
7ª O papel do Juiz – designadamente do Juiz de Instrução – não pode ser reduzido
ao de quem, por despacho irrecorrível, pode indeferir todas as diligências de
prova em sede de instrução e, pior do que isso, ao de alguém que, em vez de
apreciar, julgar e decidir, se limita a transcrever a acusação do Mº Pº.
8ª Interpretados e aplicados desta forma, como o foram no Acórdão recorrido, os
supra referenciados dispositivos legais conduzem não apenas à negação do
princípio da necessária fundamentação de todos os actos que afectem direitos e
interesses legítimos dos cidadãos, e muito em particular os actos judiciais, mas
também à negação do próprio poder jurisdicional e, sobretudo, a uma totalmente
inaceitável e injustificável compressão dos direitos dos cidadãos, em particular
dos direitos dos cidadãos arguidos,
9ª Consubstanciando assim uma grave e grosseira violação de todos os preceitos e
princípios constitucionais já citados (art.º 20º, n.º 1, art.º 32º, n.º 1, art.º
205º, n.º 1, e art.º 32º, n.º 1, todos da C.R.P.).”
Nas suas contra-alegações, o Ministério Público notou que o arguido/recorrente
abandonara a questão de constitucionalidade suscitada a propósito da norma do
n.º 4 do artigo 420º do Código de Processo Penal e que “relativamente às duas
questões, atrás identificadas por referência às alíneas b) e c), falta
manifestamente um pressuposto do recurso: a efectiva aplicação de tais normas
pelo Supremo Tribunal de Justiça, como ‘ratio decidendi’ da solução jurídica
acolhida”, concluindo pela não inconstitucionalidade da norma constante do
artigo 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no seguimento da jurisprudência
deste Tribunal (Acórdãos n.ºs 265/94, 610/96, 468/97, 45/98, 101/98, 156/98,
238/98, 266/98, 299/98, 300/98 e, muito em especial, 30/01, que se pronunciou
“precisamente sobre situação idêntica à dos autos, entendendo que não é
inconstitucional tal norma enquanto considera irrecorrível a decisão instrutória
que pronunciou o arguido pelos factos constantes da acusação particular, quando
o Ministério Público haja acompanhado tal acusação.”).
Por sua vez, o assistente encerrou assim as suas alegações:
«a) – Em 24 de Outubro de 2001, e na sequência de recurso interposto pelo
recorrente, relativo ao despacho que determinou a sua pronúncia, proferiu o
S.T.J., acórdão, entendendo que:
– a decisão instrutória no caso vertente era irrecorrível;
– como não sendo violador da nossa Lei Fundamental, o facto de o Juiz de
Instrução, ter recusado a inquirição de testemunhas arroladas pelo arguido; e
– que não há falta de fundamentação na remissão feita na decisão instrutória
para os termos da acusação, já que tal é hoje permitido pelo n.º 1, parte final,
do art.°307° do C.P.P..
b) – Não se conformando com o douto acórdão do S.T.J., interpôs o recorrente o
presente recurso;
c) – Para tal, usou os seguintes fundamentos:
– a regra da irrecorribilidade das decisões judiciais tem, face ao art.º 399° do
C.P.P., natureza claramente excepcional, não sendo assim passível de aplicação
analógica;
– Mas se o art.º 310°, n.º 1, do C.P.P. puder ser interpretado e aplicado no
sentido da irrecorribilidade do despacho de pronúncia que, em sede de crime
particular, reproduz a acusação do M.ºP.º, a qual por seu turno acompanha a
acusação do assistente, então padece de evidente inconstitucionalidade material
por violação dos art.°s 20°, n.º 1, 32° n.º 1 e 268°, n.º 4, todos da C.R.P.;
– Na presente questão o indeferimento de todas as diligências de prova
testemunhal requeridas pelo arguido criou uma situação de verdadeira falta de
instrução, que deveria ser geradora, nos termos do art.º 119°, al. d), do
C.P.P., de nulidade insanável;
– Na interpretação e aplicação dadas pelo acórdão do S.T.J. - e que determinam
não existir aí qualquer nulidade - os art.ºs 119°, al. d), 286°, n.º 1, 289°,
n.º 1, e 291º, n.º 1 (2ª parte), todos do C.P.P., estão feridos de
inconstitucionalidade material por violação dos art.ºs 20°, n.º 1, 32°, n.º 1, e
268°, n.º 1, todos da C.R.P.;
– Que o despacho dito instrutório não contém, como devia, qualquer vislumbre de
fundamentação de facto ou de direito, sendo certo que o art.º 307º, n.º 1, do
C.P.P. (na redacção dada pelo Dec. Lei 320-C/2000, de 15/12), interpretado e
aplicado como foi no acórdão do S.T.J., ou seja, no sentido de permitir a
completa ausência de fundamentação e a mera reprodução da própria acusação do
M.ºP.º, é materialmente inconstitucional por violação dos art.ºs 32°, n.º 1 e
205°, n.º 1 da Lei Fundamental.
d) – Entendimento esse o do recorrente, com o qual o recorrido, discorda por
completo.
e) – Como bem entendem Leal Henriques e Simas Santos (Código de Processo Penal
Anotado, 2ª ed., 2° vol., pág. 225), “nos crimes particulares, acompanhando o
M.ºP.º a acusação do assistente, se poderá falar de 'factos constantes da
acusação do M.P.' (...), indo-se assim ao encontro da intenção legislativa de
aceleração processual, num caso onde é evidente uma maior força indiciária, dado
até o seu especial posicionamento na acção penal (interessado na prossecução e
na realização da justiça por parte do Estado ).”
f) – Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 30/2001, de 30 de Janeiro: “Como
sublinha o Ministério Público nas contra-alegações, está perfeitamente
sedimentado na jurisprudência do Tribunal Constitucional que a norma constante
do artigo 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal não padece de
inconstitucionalidade, não ofendendo o artigo 32º, n.º 1, da Constituição.”
g) – Para o efeito, cita o douto acórdão a título de exemplo:
“(...) vejam-se os Acórdãos n.ºs 265/94, de 23 de Março (Diário da República, II
Série, n.º 165, de 19 de Julho de 1994, p. 7237 ss), 610/96, de 17 de Abril
(Diário da República, II Série, n.º 155, de 6 de Julho de 1996, p. 9117 ss),
468/97, de 2 de Julho (inédito), 45/98, de 3 de Fevereiro (inédito), 101/98, de
4 de Fevereiro (inédito), 156/98, de 10 de Fevereiro (Diário da República, II
Série, n.º 105, de 7 de Maio de1998, p. 6178 ss), 238/98, de 5 de Março
(inédito), 266/98, de 5 de Abril (Diário da República, II Série, n.º 158, de 11
de Julho de 1998, p. 9618 ss), 299/98, de 28 de Abril (inédito), e 300/98 de 28
de Abril (inédito)”.
h) – No Acórdão n.º 265/94, entende o Tribunal Constitucional, que:
«A Constituição da República não estabelece em nenhuma das suas normas a
garantia de existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos
das diferentes espécies. E certo que a Constituição garante a todos “o acesso ao
direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos,
não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos” (art.º
20°, n.º 1) e, em matéria penal, afirma que “o processo criminal assegurará
todas as garantias de defesa” (art.º 32º, n.º 1). Destas normas, porém, não
retira a jurisprudência do Tribunal Constitucional a regra de que há-de ser
assegurado o duplo grau de jurisdição quanto a todas as decisões proferidas em
processo penal. (...) A garantia do duplo grau de jurisdição existe quanto às
decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes à
situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer
outros direitos fundamentais. Sendo embora a faculdade de recorrer em processo
penal uma tradução da expressão do direito de defesa, a verdade é que, como se
escreveu no Acórdão 31/87 do mesmo Tribunal, “se há-de admitir que essa
faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo
(...).”»
i) – Igualmente no Acórdão n.º 610/96, expõe o Tribunal Constitucional, que:
“Sendo certo que o n.º 1 do artigo 32º da Constituição impõe que se consagre o
direito de recorrer de decisões condenatórias e de actos judiciais que, durante
o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de
outros direitos fundamentais do arguido, é admissível que o legislador determine
a irrecorribilidade de outros actos judiciais desde que não atinja o conteúdo
essencial das garantias de defesa (cf. Acórdãos n.ºs 8/87, 31/87 e 177/88 ...) e
a limitação seja justificada por outros valores relevantes no processo penal.”
j) – Semelhante entendimento, levou a que o Tribunal Constitucional, no seu
Acórdão n.º 30/01, entendesse que:
«Em suma, o “direito de recurso”, como imperativo constitucional, hoje
consagrado de modo expresso no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, deve
continuar a entender-se no quadro das “garantias de defesa” – só e quando estas
garantias o exijam – o que, pelas razões apontadas nos anteriores acórdãos deste
Tribunal, não compreende necessariamente a impugnação do despacho de pronúncia.
(...) E a circunstância de, no presente recurso, estar em causa um crime
particular, tendo o Ministério Público acompanhado a acusação particular, não
torna naturalmente inaplicável aquela jurisprudência constante do Tribunal
Constitucional. Como bem refere o Ministério Público nas contra-alegações, “os
factos em que assentou a pronúncia não resultam de um puro juízo formulado pelo
ofendido/assistente, sendo identicamente objecto de uma apreciação ou valoração
pelo órgão a que está constitucionalmente cometido o exercício da acção penal.”»
k) – Não poderá por isso proceder a arguição de inconstitucionalidade invocada,
pois, a irrecorribilidade do despacho de pronúncia, nos termos do art.º 310º,
n.º 1, do C.P.P., como é entendimento jurisprudencial, em nada viola a nossa Lei
Fundamental.
l) – Quanto à questão da não inquirição de testemunhas, no âmbito da instrução,
entende também o requerido, que tal não é violador da Constituição da República.
m) – Para a referida recusa, usou o Digníssimo Juiz de Instrução, da seguinte
argumentação:
“No requerimento para abertura da instrução, o arguido, observando o disposto no
n.º 2 do artigo 287º do C.P.P., parte dos factos concretamente presentes na
acusação, e só deles, para situar a discussão ao nível dos efeitos
jurídico-penais desses factos. Evidenciando o requerimento para abertura da
instrução que a discordância do arguido relativamente à acusação incide sobre a
dimensão normativa dos factos constantes da acusação, ou seja, sobre o desvalor
jurídico-penal dessa factualidade concreta.”
n) – Não se pode subsumir a não inquirição de testemunhas, ao estatuído no art.º
119º, al. d), do C.P.P.
o) – Isso mesmo, concluiu o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 2 de
Fevereiro de 1994:
“O artigo 119º, al. d), do C.P.P., ao considerar nulidade a falta de instrução,
quer referir-se aos casos em que, podendo haver instrução, ela foi requerida em
tempo, por quem tem legitimidade.”
p) – Também a Jurisprudência do Tribunal Constitucional é nessa matéria muito
clara, curiosamente também quanto a uma questão suscitada nos termos do artigo
291º do C.P.P., que decidiu não inquirir as testemunhas arroladas no
requerimento de abertura de instrução.
q) – Tome-se para o efeito, o Acórdão n.º 375/00 de 13 de Julho de 2000:
«Não se nega que os actos de instrução, requeridos pelo arguido, constituam uma
garantia de defesa do mesmo, pois poderão condicionar a própria realização do
julgamento.
Acusado o agente do crime, a instrução surge como meio colocado ao seu dispor
para infirmar a acusação que sobre ele impende, e assim, para, pelo menos em
alguma medida que lhe venha a ser favorável, contribuir de forma imediata para o
sentido do despacho de pronúncia ou, mais relevantemente para ele, de não
pronúncia, que a final haverá de ser proferido pelo juiz. Mas mesmo neste plano,
“a Constituição não estabelece qualquer direito dos cidadãos a não serem
submetidos a julgamento, sem que previamente tenha havido uma completa e
exaustiva verificação de existência das razões que indiciem a sua presumível
condenação. O que a Constituição determina no n.º 2 do artigo 32º é que todo o
arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de
condenação.” cfr. Acórdão n.º 474/94, publicado nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 28° vol., pág. 402, transcrevendo o acórdão n.º 31/87, publicado
nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9° vol.)»
r) – Continua o referido acórdão, dizendo:
«Tomando o exemplo do caso: o indeferimento da inquirição de testemunhas não
foi, como também não é no plano da lei adjectiva, óbice à determinação da
marcação de debate instrutório, que não se pode entender que se torna inútil
apenas por ter sido rejeitada a audição de testemunhas. Não sendo antecipação do
julgamento, será incongruente transpor para ele, na íntegra, o regime aplicável
à produção de prova na fase final. E não será legítimo desvalorizar o debate,
por definição de estrutura contraditória, como meio de defesa por si só,
realizado como é sob a direcção (artigo 301º do Código) e na presença do juiz,
com a presença e participação das partes, as quais, no seu decurso, poderão
inclusivamente requerer “a produção de provas indiciárias suplementares que se
proponham apresentar, durante o debate, sobre questões concretas controversas”
(n.º 2 do artigo 202º). Aí se dá tradução à exigência contida no n.º 5, do
artigo 32º da Constituição.»
s) – Ter-se-á de concluir portanto, que a não inquirição de testemunhas não é
geradora de nulidade nos termos do artigo 119º, al. d), do C.P.P., sendo por
isso de manter a interpretação e aplicação dadas pelo S.T.J..
t) – Por último, resta analisar a questão da não fundamentação do despacho de
pronúncia, sendo que também aqui não se está perante qualquer
inconstitucionalidade.
u) – Diz-nos o artigo 307º, n.º 1, do C.P.P., que:
«1- Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de
não pronúncia, que é logo ditado para acta, considerando-se notificado aos
presentes, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito
enunciadas na acusação, ou no requerimento de abertura de instrução.»
v) – O Juiz de Instrução, entendeu pronunciar o arguido, factual e legalmente,
de acordo com o constante na acusação, do assistente e do Ministério Público.
w) – Nunca que pode ser invocada a violação das garantias de defesa do arguido,
quando este tem perfeito conhecimento de qual a acusação que impende contra si.
x) – Teve-a aquando da acusação do assistente, teve-a quando o Ministério
Público também deduziu acusação nos termos efectuados pelo assistente.
y) – Questão diferente seria, se o arguido fosse pronunciado por factos diversos
dos constantes da acusação, pois aí teria o Juiz de Instrução, de justificar o
porquê do seu entendimento diverso.
z) – Não sendo o caso, sabe por isso o ora recorrente, qual a acusação que
impende contra si, não necessitando que o Juiz de Instrução reproduza novamente.
aa) – Está por isso o arguido salvaguardado, pois sabe, qual o ónus que recai
sobre si, sabe os pressupostos que sustentam a acusação, tendo por isso ao seu
dispor todas as garantias de defesa.
bb) – Também aqui, a inconstitucionalidade arguida terá que improceder, e
entender como correcta a interpretação e aplicação por parte do S.T.J., da norma
constante do art.º 307º, n.º 1, do C.P.P..
cc) – Por todo o supra exposto, terá de ser negado provimento ao presente
recurso, subscrevendo por inteiro o acórdão recorrido, não se considerando
válidas, nenhuma das inconstitucionalidades arguidas.»
Já no Tribunal Constitucional, foi proferido despacho delimitando o objecto do
recurso à norma do artigo 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal, nos
seguintes termos:
«1. B., melhor identificado nos autos, apresentou recurso de constitucionalidade
ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, dizendo o seguinte quanto
às normas que pretendia ver apreciadas:
“As normas cuja inconstitucionalidade, da forma como foram interpretadas e
aplicadas, se pretende seja declarada são as seguintes:
a) Art. 310º, n.º 1 do C.P.C. [querendo por certo escrever-se
‘Código de Processo Penal’], interpretado e aplicado no sentido da
irrecorribilidade da decisão instrutória, por violação dos preceitos e
princípios dos artigos 20º, n.º 1, 32º, n.º 1 e 268º, n.º 4, todos da C.R.P..
b) Artigos 119º, al. a), 286º, n.º 1, e 291º, n.º 1, (2ª parte),
todos da C.R.P. [querendo por certo escrever-se ‘do Código de Processo Penal’],
interpretados e aplicados no sentido de possibilitarem que se considere existir
instrução e logo não se verifica a sua falta, quando todas as diligências
requeridas pela defesa são indeferidas, por violação dos preceitos e princípios
dos art.ºs 20º, n.º 1, 32º, n.º 1, 268º, n.º 1, todos da C.R.P..
c) A norma do art.º 307º, n.º 1 do C.P.P. (na redacção dada pela
Lei 320-C/2000, de 15/12), interpretado e aplicado, em conjugação com os art.ºs
379º, n.º 1, al. a), e n.º 2 e 374º, n.º 2, igualmente do C.P.P., no sentido de
permitir a completa ausência de fundamentação (pois se limita a uma mera adesão
à acusação, sem fazer qualquer juízo ou balanço crítico da própria instrução),
por violação dos preceitos e princípios dos art.ºs 32º, n.º 1, e 205º, n.º 1, da
C.R.P..
A inconstitucionalidade destas normas foi logo arguida na motivação do recurso
interposto da referida decisão instrutória, e reafirmada na reclamação dirigida
ao Sr. Presidente deste Supremo Tribunal de Justiça (e aliás por este deferida)
contra o despacho que lhe não admitiu o dito recurso,
d) A norma do n.º 4 do art.º 420º do C.P.P. quando interpretada
e aplicada no sentido de determinar que num dado recurso, cuja admissão –
repete-se – fora ordenada pelo Sr. Juiz Presidente, o recorrente, num caso como
o dos autos, possa ser condenado sem qualquer espécie de fundamentação, em 5 Ucs
de taxa de justiça e mais 7 Ucs, nos termos do n.º 4 do já citado art.º 420º,
num total de 12 Ucs (!?) por tal representar uma punição económica absolutamente
desproporcionada, com manifesta violação dos preceitos e princípios já citados
dos art.ºs 32º, n.º 1, e 205º, n.º 1, e também do princípio da razoabilidade e
da boa fé ínsitos na ideia do Estado de Direito, consagrados no art.º 2º da
C.R.P..
Como esta norma do art.º 420º, n.º 4, do C.P.P. só agora foi aplicada e o
recorrente não podia razoavelmente esperar que o fosse desta forma em absoluto
inadequada, a respectiva inconstitucionalidade é arguida no primeiro momento
processualmente adequado, ou seja, o presente requerimento.”
2. Ordenada a produção de alegações, o recorrente veio, porém, a abandonar
nestas a questão de constitucionalidade identificada em c), razão pela qual dela
se não pode conhecer – cfr., neste sentido, o artigo 684º, n.º 3, do Código de
Processo Civil, aplicável por força do artigo 69º da Lei do Tribunal
Constitucional, conjugado com o artigo 75º-A, n.º 1, desta Lei, e a
jurisprudência unânime deste Tribunal (v., por exemplo, o Acórdão n.º 20/97,
publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 36, págs. 193-201).
3.Por outro lado, afirma-se nas contra-alegações do Ministério Público, que,
“relativamente às duas questões, atrás identificadas por referência às alíneas
b) e c), falta manifestamente um pressuposto do recurso: a efectiva aplicação de
tais normas pelo Supremo Tribunal de Justiça, como ‘ratio decidendi’ da solução
jurídica acolhida: na verdade, o acórdão recorrido considerou prejudicado o
conhecimento de tais questões, ao considerar irrecorrível a decisão instrutória
proferida, devendo considerar-se a sucinta argumentação, expendida a fls.
247-248, como evidentemente ‘obiter dictum’, já que a irrecorribilidade da
decisão instrutória naturalmente dispensava o Supremo de entrar na apreciação
dos argumentos e razões invocadas pelo impugnante.” O mesmo entendimento parece,
aliás, professado pelo próprio recorrente, que começou as suas alegações de
recurso dando conta de que “por óbvia cautela de patrocínio”, se sentia obrigado
a atacar também essa outra parte do dito acórdão, apenas para evitar correr o
risco de “vir a ver invocada a pretensa falta de interesse nessa mesma
declaração de inconstitucionalidade (…) por alegadamente o mesmo não ter
qualquer efeito útil.”
Suscita-se, pois, a dúvida sobre a possibilidade de se conhecer o recurso nessa
parte.
As normas impugnadas pelo recorrente e identificadas na alínea b) do seu
requerimento de interposição do recurso como pertencendo à C.R.P. são,
obviamente, normas do Código de Processo Penal. Tratando-se de lapso evidente,
daí não resulta alteração do objecto do recurso entre o requerimento de
interposição e as alegações. O mesmo se diga da troca da alínea d) do artigo
119º desse Código pela sua alínea a), no dito requerimento de interposição de
recurso.
Decisivamente, obsta ao conhecimento das questões de constitucionalidade
relativas a tais normas o facto de não se ter verificado impugnação atempada das
decisões nelas sustentadas com fundamento na sua nulidade, já que, nos termos do
acórdão de fixação de jurisprudência (“Assento”) n.º 6/2000 (publicado no Diário
da República, I Série, de 7 de Março de 2000), em relação a nulidades arguidas
no decurso do inquérito ou da instrução, e demais questões prévias ou
incidentais, pode haver recurso. Não tendo este sido interposto – e a decisão de
recusar a inquirição de testemunhas foi tomada em 23 de Janeiro de 2001, quando
o debate instrutório só teve lugar a 9 de Fevereiro de 2001, nada tendo o
arguido requerido nessa ocasião –, não pode agora reabrir-se tal questão. Aliás,
a própria fundamentação do acórdão recorrido – o relator suscitou questão que
obstava ao conhecimento do objecto do recurso, os autos foram a vistos com
projecto de acórdão e este foi tirado em conferência – impediria a decisão sobre
o mérito da causa: não obstante o “obiter dictum” sobre outras questões, a
decisão refere-se exclusivamente à possibilidade, ou não, de se recorrer do
despacho de pronúncia em situações em que o Ministério Público acompanha a
acusação do assistente em casos de crimes particulares. Ora, a única norma
determinante para a resolução dessa questão é a do n.º 1 do artigo 310º do
Código de Processo Penal.
4.Quanto à invocada falta de fundamentação do despacho de pronúncia decorrente
da utilização da prerrogativa conferida pelo artigo 307º, n.º 1, do Código de
Processo Penal, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de
Dezembro, dúvidas não restam de que a decisão seguiu esta norma. Não há,
portanto, défice de fundamentação em relação ao que essa norma da lei impõe. O
que há é uma fundamentação por remissão, consentida por uma norma legal, que o
recorrente considera desconforme com a obrigação constitucional de fundamentação
das decisões jurisdicionais.
Tal configura, é certo, uma verdadeira questão de constitucionalidade, mas dela
não pode o Tribunal conhecer: o recorrente não pode suscitar a fiscalização
abstracta de normas e a fiscalização concreta impõe que as normas a apreciar
tenham sido aplicadas na decisão recorrida. Ora, na medida em que o acórdão
recorrido se não pronunciou sobre o fundo ou a forma da decisão do Tribunal da
Relação de Lisboa, mas apenas sobre a inadmissibilidade do recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça, a consideração desta questão depende da decisão que
vier a ser proferida sobre a (in)constitucionalidade da norma que veda esse
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Se tal limitação for ilegítima, o
Supremo Tribunal de Justiça terá de se pronunciar sobre o fundo e a forma da
decisão do Tribunal da Relação de Lisboa e, nesses termos, a questão da
constitucionalidade do n.º 1 do artigo 307º do Código de Processo Penal (na
redacção dada em 2000) poderá, eventualmente, vir a ser trazida a este Tribunal,
em futuros desenvolvimentos deste mesmo processo. Pelo contrário, se tal
limitação for constitucionalmente conforme, a decisão liminar de rejeição do
recurso consolidar-se-á, e, na medida em que nela se não aplicou a norma
impugnada, neste processo não se poderá mais apreciar a sua conformidade
constitucional.
Certo é que, por agora, não poderá ser apreciada.
5.Fica, portanto, delimitado o objecto do presente recurso à apreciação da
constitucionalidade da norma do artigo 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal
interpretada no sentido de que é irrecorrível a decisão instrutória que
pronuncia o arguido por crimes particulares, conforme a acusação particular
secundada pelo Ministério Público.»
Notificado para se pronunciar, o arguido/recorrente veio dizer:
«1° Antes de mais, importa referir que só por algum lapso se poderia pretender
que o A. teria abandonado nas suas alegações de recurso a questão da
inconstitucionalidade identificada na al. c) do n° 1 do despacho de V.Ex.a,
2° Isto já que tal questão da inconstitucionalidade do art.º 307°, n.° 1 do CPP,
na redacção dada pela Lei 320-C/2000, de 15/12, interpretada e aplicada, em
conjugação com o art.º 379°, n.° 1, al. a) e n.° 2 e art.º 374°, n.° 2, todos do
CPP, no sentido de permitir a completa ausência de fundamentação própria pois se
limita a uma mera adesão à acusação, sem fazer qualquer juízo ou balanço crítico
da própria instrução, por violação dos preceitos e princípios dos art.ºs 32°,
n.° 1 e 205°, n.° 1, constitui objecto expresso amplamente examinado e
argumentado nas suas já referenciadas alegações de recurso, constituindo toda a
primeira parte do Capítulo V daquelas, pp. 7, 8, 9 e 10,
3° E estando vertida nas respectivas conclusões, muito em particular a 5ª e a
6ª.
4° Não se alcança, pois, como se pode pretender que nas alegações de recurso
para este Tribunal Constitucional a mesma questão teria sido “abandonada”. Por
outro lado,
5° O recorrente manifesta a sua discordância quanto à restante e pretendida
delimitação do objecto do recurso, tal como é propugnada.
6° É que o dilema em que se pretende colocar o recorrente, já este o previra
exactamente no início das suas supracitadas alegações de recurso.
7° É que a verdade é que se o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o recurso
oportunamente interposto do despacho de pronúncia, com o fundamento da pretensa
irrecorribilidade do mesmo despacho de pronúncia no caso dos autos, não obstante
não deixou também de decidir as demais questões oportunamente suscitadas em sede
do mesmo recurso, sob o verdadeiro subterfúgio de dizer “de passagem, e ainda
que ex abundante, que se o recurso fosse de prosseguir, não lograria melhor
sorte” (sic).
8° Tal circunstância obrigou o recorrente a, por óbvia cautela de patrocínio,
atacar também essa outra parte do dito Acórdão, ainda que ilegitimamente sujeito
a este dilema assim propositadamente criado: se acaso suscitasse, como nestas
condições não pôde deixar de fazer, a patente inconstitucionalidade das normas
aí (nessa outra parte da decisão) aplicadas, corria o risco de - tal como acaba
precisamente de suceder - vir a ser-lhe oposta a já conhecida tese do mero
“obiter dictum”; se, por outro lado, o não tivesse feito, tinha corrido o risco
de - isto, mesmo reconhecendo-se a inconstitucionalidade da(s) norma(s)
invocada(s) para fundamentar a pretensa irrecorribilidade do já citado despacho
de pronúncia! - vir a ver invocada a pretensa falta de interesse nessa mesma
declaração de inconstitucionalidade (à mesma com a consequente improcedência do
presente recurso) por alegadamente o mesmo não ter qualquer efeito útil, já que
mesmo se aquele fosse de prosseguir, sempre o S.T.J. já teria tomado a decisão -
e nessa hipótese não impugnada e, logo, transitada em julgado - da sua
improcedência. Ora,
9° Até porque isso significaria a inadmissível possibilitação do impedimento de
recurso para este Tribunal Constitucional, para tanto bastando que o Tribunal
recorrido, como última instância ordinária, julgasse improcedente ou mesmo
rejeitasse o recurso para ele interposto sob a invocação de uma qualquer
motivação por mais infundamentada que fosse (mas que não constituísse questão de
inconstitucionalidade) e “tamponar” a fiscalização de constitucionalidade das
normas verdadeiramente em causa na questão decidenda, reportando-se às mesmas
como o tão proclamado e invocado... “obiter dictum”.
10° Que o MºPº se oponha com unhas e dentes à apreciação da questão de fundo de
constitucionalidade das mais gravosas normas do processo penal (em particular as
que se prendem com a posição que nele o mesmo MºPº ainda ocupa) já estamos
infelizmente habituados, e um dia se fará seguramente o exacto balanço das
posições que sucessivamente foram por ele assumidas a tal respeito!...
11° Mas que por esta via do subterfúgio se pudesse vir a obstar ao conhecimento
do recurso (também) nesta parte, é que já seria de todo inadmissível. Por outro
lado,
12° E já no tocante à questão de inconstitucionalidade dos art.ºs 119°, al. d),
286°, n.° 1 e 291°, n.° 1 (2ª parte), todos da CRP, a verdade é que a instrução
só está terminada com o proferimento da decisão instrutória (antes do
proferimento da qual o Mº Juiz a quo até podia ter ordenado oficiosamente
qualquer das diligências requeridas pela defesa) e só com tal decisão, e após a
mesma, se poderá ter por certo e definitivamente adquirido que, nestes autos, a
instrução foi uma total e completa “não-instrução”. Ou seja,
13° A decisão que verdadeiramente corporizou e consagrou a vertente normativa
anticonstitucional foi assim a própria decisão instrutória, e esta foi mais do
que atempadamente impugnada.
14° Aliás, o entendimento que se parece pretender propugnar tem como efeito
directo e imediato - em flagrante violação dos basilares princípios da economia
e simplicidade processuais - a multiplicação de recursos até à exaustão.
15° Com efeito e para semelhante tese, em sede de instrução, perante uma decisão
do Juiz de instrução que indefere todas as diligências de prova requeridas pelo
arguido, e que depois pronuncia este por mera adesão à acusação do MºPº em
processo de crime particular, teria que:
1° Interpor recurso da decisão de indeferimento (se considera que a norma da
irrecorribilidade é inconstitucional) e em caso de não admissão do mesmo,
reclamar para o Presidente do Tribunal Superior e da decisão deste interpor
então recurso para este Tribunal Constitucional;
2° Arguir a nulidade decorrente daquele indeferimento, interpor recurso
ordinário da decisão que desatendesse tal nulidade e, face à improcedência do
mesmo recurso, interpor recurso para este Tribunal Constitucional;
3° Esperar pela decisão instrutória e face ao não ordenar de qualquer
diligência, interpor então recurso daquela, perante a não admissão de tal
recurso reclamar para o Presidente do Tribunal Superior e, face ao eventual não
atendimento de tal reclamação, interpor recurso para este Tribunal
Constitucional dessa decisão (e com o fundamento de que a decisão instrutória se
tinha de ter por recorrível),
16° Com tudo isto a representar muito provavelmente condenações em custas na
ordem das 12 ou 15 UC’s mais a necessidade do pagamento das taxas de Justiça
devidas pela interposição de cada recurso ou cada apresentação de reclamação,
forçoso é concluir que o que tal significaria era a perfeita impossibilitação
prática do direito de recurso e a prática irrecorribilidade de decisões que
consagram interpretações normativas totalmente desconformes com a letra e o
espírito da Lei Fundamental.
17° Dito de outra forma: não é constitucionalmente admissível, no entender do
recorrente, o caucionamento de uma qualquer forma que consubstancie, afinal, a
denegação da submissão pelos cidadãos comuns a este Tribunal Constitucional da
fiscalização concreta de constitucionalidade, como é o já apontado mecanismo de
se proceder na 1ª instância a uma interpretação e aplicação de uma dada norma em
sentido frontalmente violador da Lei Fundamental e, uma vez interposto o
competente recurso com fundamento precisamente na inconstitucionalidade, a
instância superior (de cuja decisão não cabe recurso ordinário) vir julgar
improcedente o mesmo recurso por decisão com outro fundamento qualquer, por mais
insubsistente que ele seja, mas em que se declara “de passagem, e ainda que ex
abundante, se o recurso fosse de prosseguir, não lograria melhor sorte”,
deixando o recorrente na insólita e ilegítima situação de não poder recorrer da
principal parte decisória (por se tratar de instância suprema) e também não
poder recorrer da questão da inconstitucionalidade, por esta ... alegadamente
não passar de um mero “obiter dictum”!!??
18° E porque também se discorda do entendimento de que se haja suscitado a
fiscalização abstracta (?!) da norma do art.º 307°, n.° 1 do CPP, o recorrente
nenhum fundamento vê para a pretendida restrição do objecto do recurso.»
Cumpre agora apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3. Há que começar, naturalmente, pela delimitação do objecto do recurso
efectuada. Ora, como era visível pela leitura do despacho de delimitação do
objecto do recurso, a questão de inconstitucionalidade identificada na alínea c)
do n.º 1 do despacho era tratada no ponto 4 desse despacho, devendo entender-se
que a questão de constitucionalidade abandonada pelo arguido/recorrente, como se
referia no ponto 2 desse despacho, era, obviamente, a única constante do
requerimento de recurso não abordada nas suas alegações – nem na resposta ao
despacho de delimitação do objecto do recurso, de resto -, referente à
condenação pela rejeição do recurso, nos termos do n.º 4 do artigo 420º do
Código de Processo Penal. A apreciação da constitucionalidade desta norma,
porque o recorrente a abandonou, não lhe fazendo referência, nas alegações de
recurso, não pode, pois, integrar o objecto do presente recurso.
A impossibilidade de apreciação das restantes normas identificadas no
requerimento de interposição do recurso deve-se, inteiramente, às razões
objectivas expostas no despacho, que não são postas em causa pela resposta do
arguido/recorrente. Com efeito, o suposto dilema adiantado pelo recorrente, em
que se julga sempre perdedor, não tem qualquer razão de ser: no quadro em que o
Supremo Tribunal de Justiça proferiu a decisão recorrida, as considerações que
teceu sobre outras normas impugnadas, que não a do n.º 1 do artigo 310.º do
Código de Processo Penal, constituíam meros obiter dicta, insusceptíveis,
portanto, de configurar motivação alternativa à que levou à rejeição do recurso,
e de lhes fazer perder utilidade. Para retomar as expressões do
arguido/recorrente, não há, portanto, qualquer “tamponamento” da fiscalização de
constitucionalidade. Antes o Tribunal Constitucional não pode tomar conhecimento
do recurso por as restantes normas impugnadas não terem constituído ratio
decidendi para o tribunal recorrido.
6.Circunscrito, assim, o objecto do recurso à norma do n.º 1 do artigo 310º do
Código de Processo Penal – “A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos
factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível e determina a
remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento” –, cumpre
recordar que este Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a sua
conformidade constitucional de tal norma. Tal como referido no Acórdão n.º 30/01
(publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 49, pp. 171-179), que
decidiu um caso suscitado pela acusada de um crime particular, em que o
Ministério Público acompanhara a acusação da assistente, tal como nos presentes
autos:
“A argumentação da recorrente, como se verá, nada inova e não justifica que seja
afastada, no presente processo, a decisão e respectiva fundamentação dos
acórdãos do Tribunal Constitucional que emitiram aquela pronúncia e aqui se dão
por reproduzidos: vejam-se os Acórdãos n.º s 265/94, de 23 de Março (Diário da
República, II Série, n.º 165, de 19 de Julho de 1994, p. 7237 ss), 610/96, de 17
de Abril (Diário da República, II Série, n.º 155, de 6 de Julho de 1996, p. 9117
ss), 468/97, de 2 de Julho (inédito), 45/98, de 3 de Fevereiro (inédito),
101/98, de 4 de Fevereiro (inédito), 156/98, de 10 de Fevereiro (Diário da
República, II Série, n.º 105, de 7 de Maio de 1998, p. 6178 ss), 238/98, de 5 de
Março (inédito), 266/98, de 5 de Abril (Diário da República, II Série, n.º 158,
de 11 de Julho de 1998, p. 9618 ss), 299/98, de 28 de Abril (inédito), e 300/98,
de 28 de Abril (inédito).”
É verdade que invoca agora o recorrente que, não sendo o Ministério Público
titular da acção penal no que diz respeito aos crimes particulares, não pode
fazer-se relevar o “acompanhamento” da acusação do assistente. Tal implicaria
perder o critério da adesão ou não do Ministério Público à acusação particular,
para delimitar o âmbito do recurso dos despachos de pronúncia – que é, parece, a
tese do recorrente. Sem tal critério, porém, todos os despachos de pronúncia nos
crimes particulares seriam recorríveis, ao passo que nos crimes públicos e
semi-públicos só o seriam os que pronunciassem o arguido por factos diferentes
dos constantes da acusação do Ministério Público. E tal solução não pareceria
compaginável com os intuitos do legislador, nem com a gravidade dos ilícitos, na
medida em que nos crimes menos graves as possibilidades de recurso dos arguidos
seriam mais amplas do que nos crimes mais graves. Como se escreveu na decisão
recorrida, “[a]cusação do Mº Pº será, assim, toda e qualquer acusação que ele
venha a subscrever, quer só, quer acompanhando o assistente.”
De qualquer modo, porém, tais considerações não inovam face à anterior
argumentação, porque se não situam no plano de aferição em que este Tribunal tem
necessariamente de sediar a sua questão de constitucionalidade que importa
apreciar – nas palavras do recorrente, que “se tal norma pudesse ser
interpretada e aplicada no sentido da decisão ora ‘sub judice’, ela
representaria uma compressão, para não dizer supressão, totalmente
desproporcionada e infundamentada, do direito de recurso (…) pela assim
injustificada redução das garantias de defesa do arguido e pela denegação,
igualmente injustificada, do princípio do duplo grau de jurisdição em matéria
penal, expressamente consagrado no art. 14º, n.º 5, do Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos e que resulta com clareza do citado artigo 32º, n.º
1, da C.R.P.”. A seu ver, “no caso de meros crimes particulares rigorosamente
nada justifica tal regime diferenciado, desviado e excepcional relativamente ao
princípio geral da recorribilidade de decisões.”
A verdade, porém, é que o princípio geral da decisão de pronúncia é bem outro –
o da irrecorribilidade. Como se escreveu na decisão recorrida:
«ela vai ao encontro da intenção legislativa no sentido de se evitar dilatação
processual quando já há uma confirmação judicial dos factos criminalmente
relevantes imputados ao arguido (uma espécie de “dupla conforme”), devendo
entender-se que quando se fala em acusação do Mº Pº tem-se em vista quer a sua
acusação isolada, quer aquela que se limita a acompanhar a acusação particular
do assistente.»
No Acórdão n.º 610/96 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol.
33, pp. 841-848), deu-se conta da razão de ser dessa irrecorribilidade:
«este regime especial não é arbitrário, encontrando fundamento na existência de
indícios comprovados, de modo coincidente, em duas fases do processo: pelo
Ministério Público, dominus do inquérito, e pelo juiz de instrução. E o
Ministério Público é configurado constitucionalmente como uma magistratura
autónoma (artigo 221º, n.º 2, da Constituição), sendo concebido, no processo
penal, como um sujeito isento e objectivo, que pode, nomeadamente, determinar o
arquivamento do inquérito em caso de dispensa de pena, propugnar, findo o
julgamento, a absolvição do arguido e interpor recurso da decisão condenatória
em exclusivo benefício do arguido [artigos 280º, n.º 1, e 53º, n.º 2, alínea d),
do Código de Processo Penal; cf. Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais
no novo Código de Processo Penal”, O Novo Código de Processo Penal, ob. col.,
1988, pp. 22 e ss. e 31].»
Assim, o princípio constitucionalmente aceite é – como se repetiu, por exemplo,
no Acórdão n.º 265/94 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol.
27, pp. 751-762) –, o de que a garantia do duplo grau de jurisdição só existe
quanto às decisões penais condenatórias e quanto às decisões penais respeitantes
à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer
direitos fundamentais. Retomando o já citado acórdão n.º 30/01:
«Sempre se entendeu, portanto, na jurisprudência do Tribunal Constitucional que
a faculdade de recorrer em processo penal constitui uma tradução da expressão do
direito de defesa, correspondendo mesmo a uma imposição constitucional a
consagração do recurso de sentenças condenatórias ou de actos judiciais que
durante o processo tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou
de outros direitos fundamentais, mas sempre se recusou que a Constituição
impusesse a recorribilidade de todos os despachos proferidos em processo penal.
Não o impunha antes, nem o impõe depois da revisão de 1997, onde o segmento
aditado ao artigo 32º, n.º 1, apenas explicita o que a jurisprudência do
Tribunal Constitucional já entendia compreendido nas “garantias de defesa em
processo penal”.
Em suma, o “direito de recurso”, como imperativo constitucional, hoje consagrado
de modo expresso no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, deve continuar a
entender-se no quadro das “garantias de defesa” – só e quando estas garantias o
exijam – o que, pelas razões apontadas nos anteriores acórdãos deste Tribunal,
não compreende necessariamente a impugnação do despacho de pronúncia.»
Como se vê, conclui-se, portanto, que a questão de constitucionalidade relevante
nestes autos se perfila de forma análoga à das citadas decisões precedentes do
Tribunal Constitucional, devendo merecer solução idêntica – a da não
inconstitucionalidade do artigo 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal,
interpretado no sentido de ser irrecorrível a decisão instrutória que pronunciar
o arguido pelos factos constantes da acusação particular, quando o Ministério
Público acompanhar essa acusação –, mediante remissão para a sua fundamentação.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 310º do
Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual é irrecorrível a
decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação
particular, quando o Ministério Público acompanhe tal acusação;
b) Em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida
no que se refere à questão de constitucionalidade.
c) Condenar o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte)
unidades de conta.
Lisboa, 15 de Fevereiro de 2005
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos