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Processo n.º 117/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A - Relatório
1 – CP-Caminhos de Ferro Portugueses, EP, melhor identificada nos
autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
art. 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (“LTC”), do Acórdão do Supremo
Tribunal Administrativo, de 9 de Dezembro de 2003, pretendendo ver apreciada a
constitucionalidade do artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 65/77, de 26 de
Agosto, quando interpretado no sentido de que compete exclusivamente aos
sindicatos e aos trabalhadores a definição em concreto dos serviços mínimos
durante a greve, por violação do disposto nos artigos 55.º, 56.º, 61.º, n.º 1, e
199.º, alíneas f) e g), da Constituição da República Portuguesa.
2 - Conforme resulta dos autos, o Sindicato A. interpôs, para o
Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso do despacho conjunto do
Secretário de Estado dos Transportes e do Secretário de Estado do Trabalho e
Formação de 28 de Abril de 2000 – proferido no primeiro dia de uma greve
decretada pelo aí recorrente e onde se definiam, em concreto, os “serviços
mínimos” que deviam ser assegurados –, imputando-lhe vários vícios de violação
de lei.
Por Acórdão de 14 de Janeiro de 2003, a 2.ª Subsecção da Secção de
Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, tendo concluído
que “o Governo actuou fora do âmbito das suas atribuições, em violação do
disposto no artigo 8.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto”, concedeu
provimento ao recurso.
3 - Inconformada, a ora Recorrente interpôs recurso para o Pleno da
Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, tendo
sintetizado a sua argumentação discursiva na apresentação das seguintes
conclusões:
“ (...)
I. A exigência de garantia dos serviços mínimos
constitui uma limitação legítima ao exercício do direito de greve;
II. O n.º 1 do artigo 8º da Lei da Greve, ao determinar
que 'nas empresas ou estabelecimentos que se destinem à satisfação de
necessidades sociais impreteríveis ficam as associações sindicais e os
trabalhadores obrigados a assegurar, durante a greve, a prestação dos serviços
mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação daquelas necessidades',
estabelece uma obrigação, isto é, constitui sindicatos e trabalhadores numa
posição jurídica passiva;
III. Ora, salvo o devido respeito, não parece lógico, nem
razoável, transformar uma obrigação num direito, um dever numa prerrogativa ou
uma posição jurídica passiva numa posição jurídica activa;
IV. A Lei da Greve é clara quando, neste domínio, impõe
uma obrigação que tem como destinatários os sindicatos e os trabalhadores. E,
por isso mesmo, não se descortina de que forma pode esta obrigação ser
transformada na atribuição de um poder a estes sujeitos privados;
V. Da mesma forma, não parece lógico, nem razoável, que
o conteúdo desta obrigação, que se consubstancia, como se referiu, numa
limitação ao exercício do direito de greve, seja definido pelos sujeitos
passivos, pelos destinatários dessa exigência, por aqueles cujo direito é
limitado;
VI. Estranho seria, com efeito, que fossem os sindicatos e
os trabalhadores - aqueles que estão vinculados à prestação dos serviços mínimos
- a definir a extensão dessa vinculação. Como seria estranho que fossem
sindicatos e trabalhadores - aqueles cujo direito de greve é limitado - a
estabelecer, em cada caso, a extensão dessa limitação do próprio direito;
VII. O n.º 1 do artigo 8º da Lei da Greve apenas impõe uma
vinculação - a prestação de serviços mínimos -, fixando os seus destinatários -
sindicatos e trabalhadores. Mas nada diz quanto à definição dos serviços
mínimos;
VIII. A declaração de inconstitucionalidade assentou, única e
exclusivamente, em fundamentos de índole formal (processual) e que o Tribunal
Constitucional, no Acórdão n.º 289/92, de 2 de Setembro de 1992 (in Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 23º volume, pág. 7 e ss.), considerou materialmente
conforme à Constituição a possibilidade de intervenção do Governo na fixação dos
serviços mínimos;
IX. O artigo 8º da Lei da Greve, na redacção vigente, não
resolve, pois, a questão da definição dos serviços mínimos. Ora, por força desta
Lei e, desde 1997, também da Constituição (n.º 3 do artigo 57º) é imposta, como
limitação ao direito de greve, a obrigação de prestação de serviços mínimos.
Essa limitação funda-se na tutela de interesses gerais da comunidade e tutela de
direitos fundamentais dos cidadãos;
X. Assim, na falta de uma disposição que, neste
particular, determine a quem cabe a fixação desses serviços, necessariamente se
terá de recorrer aos princípios e regras gerais - com efeito, e como escreve
MENEZES CORDEIRO, 'num prisma mais ligado à decisão, pode dizer-se que, em cada
problema concreto, não se aplica esta ou aquela norma particularmente
vocacionada para nele intervir: é sempre o Direito em bloco (...) que, em cada
saída jurídica, intervém';
XI. É, justamente, por força destes princípios e regras
gerais que, fatalmente, se terá de concluir que cabe em geral ao Governo, no
exercício da competência administrativa, garantir 'a execução da lei no tocante
à satisfação de necessidades colectivas a cargo do Estado-colectividade';
XII. Competências, em suma, claramente delineadas no artigo
199º da Constituição, cuja alínea f) faz incumbir ao Governo a defesa da
legalidade democrática, enquanto que a alínea g) lhe atribui competência para
'praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à promoção do
desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades colectivas';
XIII. Não se trata, portanto, de uma competência presumida ou
ficcionada. Muito pelo contrário, é uma competência que se infere da conjugação
sistemática dos preceitos constitucionais e legais pertinentes, como se
reconheceu no Parecer da PGR n.º 1/99;
XIV. Assim, ao contrário do que se afirma no Acórdão recorrido,
os n.ºs 1 e 2 do artigo 8º da Lei da Greve não permitem - nem no plano literal,
nem nos planos lógico e substancial - sustentar um qualquer poder dos sindicatos
e dos trabalhadores quanto à fixação dos serviços mínimos, sob pena de
inconstitucionalidade (violando o referido artigo 199º da Constituição);
XV. Quando a lei refere os sindicatos e os trabalhadores não
opera, com isso, uma rígida distribuição de tarefas, Limita-se, apenas e só, a
reconhecer que a greve pode ser decretada e gerida tanto por sindicatos como,
directamente, pelos trabalhadores, que para o efeito poderão constituir
estruturas ad hoc (art.ºs 2º e 3º da Lei da Greve);
XVI. Por outro lado, não pode dizer-se que, na medida em que as
associações sindicais não efectuam, por si, qualquer prestação, o sentido da
obrigação a que se refere o n.º 1 do artigo 8º da Lei da Greve se prende com a
gestão da prestação de serviços mínimos;
XVII. Seria, aliás, absurdo pretender que a gestão dos serviços
mínimos pudesse ser directamente assegurada pelos sindicatos: tal envolveria que
o funcionamento, no seio de cada empresa, de tais serviços fosse dirigido pelas
associações sindicais;
XVIII. Não pode, como é evidente, ser este o sentido do n.º 1 do
artigo 8º da Lei da Greve;
XIX. Por outro lado, também não procede a argumentação para a
conclusão formulada no douto aresto em recurso assente na circunstância de a
intervenção do Governo ter ocorrido logo no primeiro dia do processo grevista e
não ter invocado o incumprimento, em concreto, das obrigações decorrentes do n.º
1 do artigo 8º da Lei da Greve, pelo que o Governo teria actuado 'fora do âmbito
das suas atribuições, em violação do disposto no artigo 8º, n.ºs 1 e 2, da Lei
n.º 65/77”;
XX. Se bem entendemos, este raciocínio tem por premissa a
ideia de que a competência do Governo se cinge às hipóteses referidas no n.º 4
do artigo 8º da Lei da Greve, razão pela qual apenas poderia intervir em caso de
incumprimento dos serviços mínimos;
XXI. Trata-se, como se referiu, de entendimento que não
aceitamos e que, a nosso ver, não tem base legal;
XXII. Na verdade, os valores fundamentais e eminentes que
fundamentam a imposição da obrigação de assegurar os serviços mínimos postulam,
necessariamente, uma definição a anteriori por forma a evitar a lesão dos
interesses gerais da comunidade ou dos direitos fundamentais dos cidadãos;
XXIII. Acresce que no douto Acórdão recorrido não foram devidamente
ponderadas as circunstâncias referidas na fundamentação do despacho de fixação
dos serviços mínimos, designadamente a frustração das tentativas de definição
por acordo dos serviços mínimos;
XXIV. Com o devido respeito, pela nossa parte, consideramos que o
entendimento que o Acórdão recorrido perfilhou, para além de não ter apoio
constitucional ou legal, fere o quadro constitucional de competências cometido
ao Governo e é susceptível de legitimar lesões de interesses gerais da
comunidade e de direitos fundamentais dos cidadãos, uns e outros objecto de
tutela constitucional;
XXV. O entendimento do Acórdão recorrido é tanto mais estranho
quanto em face do quadro constitucional e legal vigente os sindicatos se
apresentam como puros sujeitos de direito privado, cuja representação é
naturalmente limitada pelo interesse colectivo da categoria sindical definida
nos seus estatutos;
XXVI. Não se alcança, de facto, como se possa atribuir a estes
sujeitos um poder que vai muito para além dessa representação e se prende com
interesses alheios aos da categoria sindical;
XXVII. Trata-se, a nosso ver, de um entendimento que colide com a
própria visão constitucional das associações sindicais, introduzindo uma
componente publicística de representação de interesses gerais que é, de todo,
alheia à abordagem da Constituição, assente numa leitura privatística da
autonomia colectiva;
XXVIII. Com efeito, não se pronunciando a lei vigente expressamente sobre a
atribuição da referida competência, a solução surge naturalmente ponderados os
interesses que estão em causa na prestação de serviços mínimos, e a entidade a
quem, em termos gerais, se defere a competência para prover a tais interesses e
para praticar os actos que para tanto se mostrem necessários é, nos termos das
alíneas f) e g) do artigo 199º da Constituição, o Governo;
XXIX. O qual, para além de mais, não é parte no conflito colectivo em
cujo desenvolvimento se desencadeia a greve e está, em absoluto, submetido a um
especial dever de objectividade e imparcialidade, garantido por toda uma
panóplia de instrumentos jurídicos que garantem aos cidadãos o controlo dos seus
actos governamentais praticados no exercício da função administrativa.
XXX. Assim, o douto Acórdão recorrido violou, na melhor
interpretação, o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 8º da Lei da Greve, bem como
as alínea f) e g) do artigo 199º da Constituição.
(...)”.
4 - Por Acórdão de 9 de Dezembro de 2003, o Supremo Tribunal
Administrativo decidiu manter a decisão recorrida, louvando-se na argumentação
que infra se passa a transcrever:
“(...)
3.1 Em causa está o Acórdão da Secção, de 14-1-03, que, concedendo provimento ao
recurso contencioso interposto pelo Sindicato A., declarou a nulidade do
despacho conjunto do Secretário de Estado dos Transportes e do Secretário de
Estado do Trabalho e Formação, de 28-4-00, que fixou os serviços mínimos para a
greve convocada pelo aludido Sindicato.
Para assim decidir, o referido aresto considerou, no essencial, que a actuação
do Governo, consubstanciada no questionado despacho, se situou fora do âmbito
das suas atribuições, com violação do disposto no artigo 8°, n.ºs 1 e 2, da Lei
n.º 65/77, de 26/8, deste modo incorrendo na nulidade prevista no artigo 133°,
n° 2, alínea b), do CPA.
E, isto, fundamentalmente, por se ter entendido que, no caso em apreço, era ao
Sindicato e não ao Governo que competia a fixação dos serviços mínimos.
3.2 Contudo, esta postura não é compartilhada pelo agora Recorrente, que
sustenta a legalidade do mencionado despacho conjunto, uma vez que era
efectivamente ao Governo que incumbia a aludida fixação, daí que, ao ter
decidido diversamente, o Acórdão recorrido tenha inobservado os n.ºs 1 e 2 do
citado artigo 8°, bem como o disposto nas alíneas f) e g) do artigo 199° da CRP.
3.3 Não lhe assiste razão.
Na verdade, o Acórdão recorrido perfilhou o entendimento que tem sido afirmado
repetidas vezes por este STA no concernente à questão de saber a quem compete
fixar os serviços mínimos, no caso de greve, sendo que, apesar do esforço
argumentativo que se pode surpreender nas alegações do Recorrente, o que é certo
é que tais argumentos não são de molde a fazer inverter tal posição
jurisprudencial que, aqui, se sufraga.
Como expressão do já aludido entendimento jurisprudencial podemos citar, entre
outros, os Acs. deste Pleno, de 26-12-97 - Rec. 32105, de 18-1-00 - Rec. 37353 e
da Secção, de 19-12-96 - Rec. 31816 e de 12-5-99 - Rec. 32378.
Ora, como se assinala no dito Acórdão deste Pleno, de 26-11-97, '...sendo
contenciosamente recorrido o despacho conjunto que nos termos do...art. 8° fixou
os serviços mínimos, assume decisiva importância na resolução do presente
recurso o Ac. do Tribunal Constitucional de 4/7/96, publicado no DR I Série de
16/10/96, que declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade das
normas contidas nos n.ºs 2, al. g), 4, 5, 7, 8 e 9 do art. 8° da Lei n° 65/77,
por violação do art. 171°, n° 2, da CRP e, consequencialmente, do n.° 6 do mesmo
artigo, não tendo o Tribunal lançado mão da faculdade conferida pelo n.° 4 do
art. 282° da CRP, na redacção então vigente.
A declaração de inconstitucionalidade impõe-se a este Tribunal...
E a primeira questão que surge com relevância, considerando o grau de invalidade
que o despacho contenciosamente recorrido pode determinar, é a de saber se se
inseria na esfera de atribuições dos membros do Governo que subscreveram o
despacho conjunto...a fixação dos serviços mínimos a prestar pelos trabalhadores
durante a greve decretada.'
Por força da mencionada declaração de inconstitucionalidade não pode apelar-se
ao disposto no n.° 6 do dito artigo 8° para legitimar o uso daqueles poderes.
Cumpre ainda realçar que, uma vez repristinado o art. 8° da Lei da Greve, na sua
redacção original, nem nele nem em qualquer outra norma da mesma Lei se atribui
expressamente aos membros do Governo o poder de fixar os 'serviços mínimos'.
Substancialmente inovatória seria, assim, a norma do n° 6 do art. 8° aditada
pelo Lei n° 30/92.
Há, no entanto, que ir mais longe para apurar se na redacção original do art. 8°
se pode surpreender, implícita, a atribuição daquele poder a quem no caso o
exerceu ou a outra ou outras entidades.
Duas são as obrigações durante a greve que o art. 8° impõe às 'associações
sindicais' e aos 'trabalhadores': a prestação dos serviços necessários à
segurança e manutenção do equipamento e instalações (n.º 4) e a prestação de
serviços mínimos indispensáveis à satisfação de necessidades sociais
impreteríveis, desde logo se indicando, exemplificativamente, os sectores onde
se integram empresas e estabelecimentos que se destinam à satisfação dessas
necessidades.
No que a esta última obrigação concerne, não concretiza a lei, nem a título
exemplificativo, quais são os serviços mínimos a prestar.
Não o faz, nem certamente o podia fazer, considerando a multiplicação de
situações configuráveis quando ocorre uma greve. E por isso ela se basta com uma
'cláusula geral' - serviços mínimos indispensáveis à satisfação de necessidades
sociais impreteríveis - a ser preenchida de acordo com as circunstâncias
concretas de cada caso.
Não há, também, qualquer preceito - diferentemente do que viria a acontecer com
as alterações introduzidas pela Lei n.° 30/92 - que, decretada uma greve,
imponha a definição prévia dos serviços mínimos a prestar, o que obviamente não
significa, no plano natural das coisas, que, antes do início da greve, essa
definição se não faça com maiores ou menores formalidades.
A verdade é que nem sequer o art. 8° utiliza em qualquer dos seus números o
termo 'definição'.
Esta não imposição de definição prévia, por quem quer que seja, começa, desde
logo, a apontar para a falta de apoio legal de um acto autoritário dos membros
do Governo que estabeleça os serviços mínimos a prestar.
Não há por outro lado que esquecer que os destinatários directos da norma são os
trabalhadores e as associações sindicais a quem, nos termos do art. 57°, n.° 2,
da CRP, compete definir o âmbito dos interesses a defender através da greve.
Este aspecto - o de serem os trabalhadores os destinatários directos da norma -
foi aliás valorizado no Parecer da PGR, de 8/7/82, publicado in BMJ n.° 325/247,
onde se escreveu:
«Do que já se deixou relatado sobre os trabalhos parlamentares respectivos,
conclui-se que resultou de uma nítida opção legislativa o repúdio da fixação na
lei, em forma taxativa, das actividades destinadas à satisfação de necessidades
sociais impreteríveis, adoptando-se uma formulação suficientemente maleável, com
a adjuvante de uma indicação exemplificativa, para permitir aos trabalhadores,
como imediatos destinatários da norma, no exercício responsável do seu direito à
greve, reconhecerem as empresas ou estabelecimentos destinados à satisfação
daquelas necessidades e concretizarem então os serviços a prestar como o mínimo
indispensável para ocorrer a essa satisfação ou os necessários à segurança e
manutenção do equipamento e instalações, assim se colocando ao abrigo de uma
eventual requisição ou mobilização»...
Idêntico entendimento foi adoptado no Ac. deste STA de 28/1/92, in
'Apêndices...', págs. 417 e segs. (igualmente seguido pelo Ac. de 19-12-96 – P.º
31816) onde a propósito da fixação dos serviços mínimos pelos órgãos da empresa
se escreveu:
«Com efeito, não cabe aos órgãos da empresa o dever legal de fixação de
quaisquer serviços mínimos a prestar pelas associações sindicais e pelos
trabalhadores em greve,....
Efectivamente, nos termos do disposto no art. 8°, n.° 1, da Lei da Greve, a
definição dos serviços mínimos indispensáveis cabe em primeira linha às próprias
associações sindicais e aos trabalhadores em greve, são estes que, nos termos da
lei, têm de assegurar esses serviços mínimos.»
Parece, com efeito, ser esta a melhor doutrina que se pode extrair do artigo 8°
da Lei da Greve na sua redacção original.
Poderia objectar-se - objecção que, de todo o modo, se situaria mais no plano do
direito a constituir - com os riscos de um tal regime, colocando nas mãos dos
trabalhadores em greve a determinação do que constituem as necessidades sociais
impreteríveis e o modo de as satisfazer.
Mas não é assim.
Na verdade, o instrumento da requisição civil sempre poderá funcionar, no âmbito
do art. 8º da Lei da Greve, na redacção repristinada, sem estar condicionada à
eventual 'definição' que os trabalhadores façam dos serviços mínimos a prestar,
bastando que os membros do Governo entendam no preenchimento da aludida
'cláusula geral' que os trabalhadores em greve não estão a assegurar a
satisfação das necessidades sociais impreteríveis.
Em suma, pois, não se vê que o art. 8° da Lei da Greve, expurgado das normas
julgadas inconstitucionais, permita uma definição governamental autoritária dos
serviços mínimos a prestar, pelo que está fora das suas atribuições fazê-lo...'
Temos, assim, que bem andou o Acórdão recorrido ao ter por nulo o despacho
conjunto objecto de impugnação contenciosa.
De facto, como já se viu, tal aresto insere-se na jurisprudência reiteradamente
afirmada por este STA e que, aqui, se coonesta, não se vendo razões válidas que
conduzam a diferente solução, não a autorizando, seguramente, o disposto nas
alíneas f) e g) do artigo 199° da CRP.
É que, contra o que defende nas suas alegações o Recorrente, o entendimento
acolhido no Acórdão da Secção não contende com o preceituado nos citados
preceitos constitucionais, na medida em que nele nada se afirma em contrário do
regime decorrente das ditas normas, não atentando contra o quadro constitucional
de competências do Governo.
Improcedem, assim, todas as conclusões da alegação do Recorrente.
(...)”.
5 - Novamente inconformada, a CP–Caminhos de Ferro Portugueses,
E.P., interpôs, nos termos já mencionados, recurso para o Tribunal
Constitucional e, após ordenada a produção de alegações, veio sustentar, em
conclusão, que:
“(...)
I. A interpretação dada ao artigo 8º, nºs 1 e 2, da Lei n.º 65/77, de 26 de
Agosto, no Acórdão de 14.01.2003, do Supremo Tribunal Administrativo e sufragada
no Acórdão de 9.12.2003 do Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal
Administrativo, ora recorrido, fere o quadro constitucional de competências
cometido ao Governo, é susceptível de legitimar lesões de interesses gerais da
comunidade e de direitos fundamentais dos cidadãos, com tutela constitucional,
envolve uma expropriação ilegítima dos poderes empresariais e assenta numa
perspectiva que colide com a própria visão constitucional das associações
sindicais.
II. O sentido normativo que a jurisprudência, esmagadoramente maioritária (senão
mesmo unânime), do Supremo Tribunal Administrativo tem retirado do artigo 8º,
n.º 1 e n.º 2, da Lei da Greve não pode deixar de se considerar
inconstitucional.
III. A competência do Tribunal Constitucional não se pode esgotar na
fiscalização da norma mas deve comportar a do próprio processo interpretativo,
ou seja, os resultados da sua aplicação/interpretação.
IV. A exigência de garantir serviços mínimos constitui uma limitação ao
exercício do direito de greve e o n.º 1 do artigo 8º da Lei da Greve estabelece
uma obrigação, constitui os sindicatos e trabalhadores numa posição jurídica
passiva.
V. O conteúdo desta obrigação não pode ser definido pelos sujeitos passivos da
obrigação, pelos destinatários desta exigência, por aqueles cujo direito é
limitado.
VI. A definição dos serviços mínimos e a gestão do seu cumprimento projectam-se
directamente na conformação do modo de funcionamento da organização empresarial.
VII. A adequação da empresa à satisfação das necessidades sociais impreteríveis,
como os serviços mínimos, e ainda os necessários a garantir a segurança e
manutenção do equipamento e instalações, bem como a gestão dos trabalhadores
afectos ao cumprimento destes serviços são prerrogativas empresariais, que
decorrem da liberdade, constitucionalmente reconhecida, de organização e gestão
das empresas.
VIII. Por força da posição sustentada pelo Supremo Tribunal Administrativo, o
processo de greve envolveria uma expropriação temporária dos poderes
empresariais, e levaria a que fossem atribuídos, por força da declaração de
greve, às associações sindicais e trabalhadores grevistas, poderes de
conformação da organização empresarial e de gestão dos próprios meios de
produção, que não lhe são reconhecidos fora de uma situação de greve.
IX. A conciliação entre os direitos reconhecidos às entidades representativas
dos trabalhadores e os direitos e prerrogativas decorrentes do reconhecimento
constitucional da liberdade de gestão da empresa, passa pela compressão dos
poderes empresariais, pela procedimentalização do exercício destes poderes, pela
atribuição de direitos de participação nas decisões, pela sujeição a um controlo
externo ou a instâncias negociais. Porém, a assunção dos poderes do empregador
pelos trabalhadores e pelas organizações que os representam não encontra
qualquer fundamento na Constituição.
X. A previsão de serviços mínimos, contida no n.º 3 do art.º 57° da CRP, visa,
claramente, legitimar a possibilidade de restrição do exercício do direito de
greve quando estejam em causa os valores aí salvaguardados.
XI. Assim, os n.ºs 1 e 2 do art. 8º da Lei da Greve não podem ser interpretados
numa lógica expansiva, por forma a reconhecer aos sindicatos e aos
trabalhadores, em caso de greve em empresa que garanta a satisfação de
necessidades impreteríveis, poderes de ingerência na organização e gestão
empresariais, de que claramente não dispõem quando não exista uma situação de
conflito e greve.
XII. A interpretação feita dos n.º 1 a 3 do art.º 8º da Lei da Greve, no Acórdão
de 9 de Dezembro de 2003 do Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal
Administrativo, na medida em que os transforma em preceitos que facultam a
intromissão, à revelia da Constituição, no exercício da liberdade de empresa,
deve ser considerada inconstitucional, nomeadamente por violação do n.º 1 do
art.º 61º da Constituição.
XIII. Em caso de greve susceptível de atingir a prestação de bens fundamentais,
a defesa e protecção destes é tarefa do Governo, ao qual cabe, nos termos da
Constituição, defender a legalidade democrática e praticar todos os actos e
tomar todas as medidas necessárias à satisfação das necessidades colectivas
fundamentais.
XIV. A limitação constitucional do direito de greve que resulta da obrigação de
prestação de serviços mínimos funda-se na tutela de interesses gerais da
comunidade e tutela de direitos fundamentais dos cidadãos.
XV. Na falta de disposição concreta que determine a quem cabe a fixação desses
serviços ter-se-á que recorrer aos princípios e regras gerais, apontando estes
necessariamente para a conclusão de que cabe ao Governo, no exercício da
competência administrativa, garantir a execução da lei no que diz respeito à
garantia das necessidades colectivas a cargo do Estado.
XVI. Estas competências estão claramente expressas no art.º 199º da CRP, sendo
particularmente relevante para o caso a sua alínea f) (que faz incumbir ao
Governo a defesa da legalidade democrática) e sobretudo a alínea g), que, como é
sabido, atribui ao Governo competência para praticar todos os actos e tomar
todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social
e à satisfação das necessidades colectivas.
XVII. O douto Acórdão recorrido põe em causa a competência constitucional da
Administração e do Governo como seu órgão máximo, na definição das condições de
prestação dos serviços mínimos, em cumprimento, de resto, da competência
constitucionalmente atribuída de prosseguir a satisfação das necessidades
colectivas fundamentais.
XVIII. A garantia das posições jurídicas fundamentais postas em causa pelo
exercício do direito de greve não pode, em face do quadro constitucional, caber
a sujeitos privados, sem qualquer conexão com o interesse público e que, para
além disso, são, justamente, os titulares da posição jurídica cujo exercício
desencadeia a situação de colisão.
XIX. A interpretação feita dos nºs 1 a 3 do art.º 8º da Lei da Greve, no Acórdão
de 9 de Dezembro de 2003 do Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal
Administrativo, na medida em que nega a possibilidade de intervenção do Governo
numa matéria que claramente faz parte das suas competências constitucionalmente
reconhecidas, deve ser considerada inconstitucional, designadamente por violação
das alíneas f) e g) do art.º 199º da CRP.
XX. Da posição expressa no Acórdão recorrido é possível concluir que o Supremo
Tribunal Administrativo admite que o exercício do poder que, na interpretação
que faz do art.º 8º da Lei da Greve, é atribuído aos sindicatos e aos
trabalhadores grevistas apenas poderia ser controlado a posteriori, com o
reconhecimento de que estariam a ser lesados os interesses gerais da comunidade
e os direitos fundamentais dos cidadãos cuja tutela justifica a limitação ao
direito de greve.
XXI. Ou seja, a interpretação feita pelo Supremo Tribunal Administrativo do art.
8º da Lei da Greve parece implicar a aceitação de uma margem 'normal' de
violação dos direitos fundamentais com os quais colida o direito de greve, que
corresponderá ao período que mediar entre o eventual incumprimento ou
cumprimento defeituoso da obrigação de prestação de serviços mínimos e o
'remédio' admitido por aquele Tribunal, ou seja, a execução da determinação
governamental de requisição civil.
XXII. Significa isto que a interpretação que o Supremo Tribunal Administrativo
faz do art.º 8º da Lei da Greve conduz, particularmente nas situações de greves
de curta duração, a uma tutela evidentemente insatisfatória dos direitos
fundamentais cuja protecção em caso de greve está expressamente acautelada por
força do n.º 3 do art. 57º da Constituição.
XXIII. Também nesta perspectiva a interpretação do artigo 8º da Lei da Greve
feita no douto Acórdão recorrido é contrária à Constituição, na medida em que
restringe o âmbito de protecção da norma do n.º 3 do art. 57º da Constituição e
consequentemente expõe direitos fundamentais a agressões que possam decorrer de
uma greve, inviabilizando os meios de tutela que possam salvaguardar, em tempo
útil, o respeito pelo seu núcleo essencial.
XXIV. A definição dos serviços mínimos em caso de greve é um modo de
harmonização dos direitos em conflito e corresponde a uma responsabilidade do
Estado, ou seja, é uma tarefa pública.
XXV. Só o Estado, por força dos parâmetros constitucionais de actuação a que
está sujeito, está em condições de responder de forma adequada.
XXVI. De acordo com a interpretação que do art. 8º da Lei da Greve faz o Supremo
Tribunal Administrativo, esse preceito reserva, em exclusivo, a fixação desses
serviços mínimos aos sindicatos e aos grevistas. E fá-lo através de uma
imposição, já que esta competência corresponde a uma obrigação, cuja violação
justifica a requisição civil.
XXVII. Porém, no actual quadro constitucional e legal, os sindicatos
apresentam-se como puros sujeitos de direito privado, cuja representação é
limitada pelo interesse colectivo da categoria sindical definida nos respectivos
estatutos.
XXVIII. Não se pode assim atribuir a estes sujeitos um poder que vai muito além
da representação da categoria sindical e que podem mesmo ser, no caso dos
serviços mínimos para garantir a segurança e manutenção das instalações e
equipamentos, interesses do empregador.
XXIX. Resulta assim que a interpretação feita pelo Supremo Tribunal
Administrativo leva a concluir que o art. 8° impõe aos sindicatos a execução de
uma tarefa do Estado (a definição e organização dos serviços mínimos), que
corresponde a uma função eminentemente pública, colocando, ao mesmo tempo, sob a
alçada do sindicato não apenas direitos fundamentais dos cidadãos em geral como
a tutela de direitos fundamentais do próprio empregador.
XXX. Nesta interpretação, o art. 8° da Lei da Greve não pode deixar de ser
considerado inconstitucional, por chocar com o figurino constitucional da
liberdade sindical e das associações sindicais que está contido nos art.ºs 55° e
56° da Constituição.
Nestes termos, solicita-se a esse Venerando Tribunal a declaração de
inconstitucionalidade dos n.º 1 e 2 do art. 8° da Lei da Greve na interpretação
sustentada no Acórdão de 9 de Dezembro de 2003 do Pleno da 1ª Secção do Supremo
Tribunal Administrativo, segundo a qual a definição e a fixação dos serviços
mínimos a prestar em caso de greve em empresa que se destine à prestação de
necessidades sociais impreteríveis compete às associações sindicais e aos
trabalhadores, não permitindo estes preceitos uma definição governamental dos
serviços mínimos a prestar, por aquela interpretação violar o disposto no n.º 1
do art.º 61º, nas alíneas f) e g) do art.º 199º e nos artigos 55º e 56º da
Constituição da Republica Portuguesa.”
6 - O Recorrido, por sua vez, contra-alegou,
estribando-se na seguinte argumentação:
“ (...)
Quanto à competência própria do Governo, adquirida por via residual genérica, de
acordo com o disposto no art. 199º, f) e g), CRP, diga-se que a função
administrativa não pode servir de pano de fundo para fundamentar uma actuação -
a fixação por acto de autoridade - de limites concretos ao exercício de um
direito constitucionalmente consagrado dado que, no art. 57º/3, se determina que
'A lei define as condições de prestação [...] de serviços mínimos indispensáveis
para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis'. Ou seja, sem a
prévia definição da lei, que não de um mero acto administrativo, a intervenção
governamental carece de título bastante, rectius, é não somente ilegal, como
inconstitucional. A Constituição, ela própria, impõe, na transcrita disposição,
que a lei defina as condições genéricas e abstractas, como lhe é próprio, posto
o que, em tese, se poderia admitir que viesse, de novo, como veio, no vigente
Código do Trabalho, a cometer ao Governo tal faculdade. O recurso a poderes
estritamente administrativos, ainda que de natureza normativa, é insuficiente
para colmatar uma não edição de lei, que é disso que se trata. Ao contrário do
entendimento da recorrente, nada obsta a que se proceda à interpretação útil e
ponderada dos preceitos contidos no art. 8°/I/2, LG, no sentido de aí se topar
não uma obrigação em sentido próprio, mas sim um poder-dever. Isto é, o
legislador ordinário da LG, em 1977, quis criar, e criou efectivamente, para as
associações sindicais e os trabalhadores em greve, a obrigação de prestar
serviços mínimos; o legislador constitucional, em 1997, acentuou que a
respectiva definição e condições de prestação carece de primordial intervenção
legislativa, para o que introduziu o texto do actual n.º 3 do art. 57º, sem com
isso afastar minimamente a ideia de que quem satisfaz essa obrigação pode e deve
defini-la por sua iniciativa, se outra coisa não resultar da lei. Ora, não
resultando da lei ordinária vigente outro comando, esta era a situação de jure
condito. Não há razão para afastar a figura do poder-dever inscrita no art. 8º,
LG, no sentido de que se trata de um poder de exercício obrigatório no interesse
de outrem. Da eventual divergência de entendimentos quanto à valia intrínseca
desta solução não pode é ser retirado que outro é o sentido da norma, ou que a
interpretação que conduz a este resultado é afrontosa do texto constitucional.
II. Em conclusão,
o aresto posto em crise não é merecedor de qualquer crítica, uma vez que:
A) Inexiste violação dos arts. 61°/1, 199°, f) e g), e 56°, todos CRP, na medida
em que a prática de um acto administrativo por parte do Governo em sede de
fixação de serviços mínimos violaria o art. 57º/3, CRP, mercê da inexistência de
norma ordinária expressa;
B) Na sua formulação, a LG cometia aos sindicatos e trabalhadores o poder-dever
de assegurar a prestação de serviços mínimos, tanto na vertente da sua fixação,
como na vertente do seu cumprimento.
(…)”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
B - Fundamentação
7 - No presente recurso está em causa a inconstitucionalidade do
artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto, “na interpretação
segundo a qual a definição e a fixação dos serviços mínimos a prestar em caso de
greve em empresa que se destine à satisfação de necessidades sociais
impreteríveis compete às associações sindicais e aos trabalhadores, não
permitindo esses preceitos uma definição governamental dos serviços mínimos a
prestar”, por violação do disposto nos artigos 55.º, 56.º, 61.º, n.º 1, e 199.º,
alíneas f) e g), da Constituição da República Portuguesa.
7.1 - O artigo 8.º da Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto, dispõe, sob a
epígrafe “Obrigações durante a greve”, que:
“1. Nas empresas ou estabelecimentos que se destinem à satisfação de
necessidades sociais impreteríveis ficam as associações sindicais e os
trabalhadores obrigados a assegurar, durante a greve, a prestação dos serviços
mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação daquelas necessidades.
2. Para efeitos do disposto no número anterior, consideram-se
empresas ou estabelecimentos que se destinam à satisfação de necessidades
sociais impreteríveis os que se integram, nomeadamente, em alguns dos seguintes
sectores:
a) Correios e telecomunicações;
b) Serviços médicos, hospitalares e medicamentosos;
c) Salubridade pública, incluindo a realização de funerais;
d) Serviços de energia e minas, incluindo o abastecimento de combustíveis;
e) Abastecimento de águas;
f) Bombeiros;
g) Transportes, cargas e descargas de animais e géneros alimentares
deterioráveis.
3. As associações sindicais e os trabalhadores ficam obrigados a prestar,
durante a greve, os serviços necessários à segurança e manutenção do equipamento
e instalações.
4. No caso do não cumprimento do disposto neste artigo, o Governo poderá
determinar a requisição ou mobilização, nos termos da lei aplicável.”
7.2 - Por sua vez, os artigos da Constituição invocados como
parâmetro do controlo de constitucionalidade, dispõem que:
“Artigo 55º (Liberdade sindical)
1. É reconhecida aos trabalhadores a liberdade sindical, condição e garantia da
construção da sua unidade para defesa dos seus direitos e interesses.
2. No exercício da liberdade sindical é garantido aos trabalhadores, sem
qualquer discriminação, designadamente:
a) A liberdade de constituição de associações sindicais a todos os níveis;
b) A liberdade de inscrição, não podendo nenhum trabalhador ser obrigado a
pagar quotizações para sindicato em que não esteja inscrito;
c) A liberdade de organização e regulamentação interna das associações
sindicais;
d) O direito de exercício de actividade sindical na empresa;
e) O direito de tendência, nas formas que os respectivos estatutos
determinarem.
3. As associações sindicais devem reger-se pelos princípios da organização e da
gestão democráticas, baseados na eleição periódica e por escrutínio secreto dos
órgãos dirigentes, sem sujeição a qualquer autorização ou homologação, e
assentes na participação activa dos trabalhadores em todos os aspectos da
actividade sindical.
4. As associações sindicais são independentes do patronato, do Estado, das
confissões religiosas, dos partidos e outras associações políticas, devendo a
lei estabelecer as garantias adequadas dessa independência, fundamento da
unidade das classes trabalhadoras.
5. As associações sindicais têm o direito de estabelecer relações ou filiar-se
em organizações sindicais internacionais.
6. Os representantes eleitos dos trabalhadores gozam do direito à informação e
consulta, bem como à protecção legal adequada contra quaisquer formas de
condicionamento, constrangimento ou limitação do exercício legítimo das suas
funções.”
“Artigo 56.º (Direitos das associações sindicais e contratação colectiva)
1. Compete às associações sindicais defender e promover a defesa dos direitos e
interesses dos trabalhadores que representem.
2. Constituem direitos das associações sindicais:
a) Participar na elaboração da legislação do trabalho;
b) Participar na gestão das instituições de segurança social e outras
organizações que visem satisfazer os interesses dos trabalhadores;
c) Pronunciar-se sobre os planos económico-sociais e acompanhar a sua execução;
d) Fazer-se representar nos organismos de concertação social, nos termos da
lei;
e) Participar nos processos de reestruturação da empresa, especialmente no
tocante a acções de formação ou quando ocorra alteração das condições de
trabalho.
3. Compete às associações sindicais exercer o direito de contratação colectiva,
o qual é garantido nos termos da lei.
4. A lei estabelece as regras respeitantes à legitimidade para a celebração das
convenções colectivas de trabalho, bem como à eficácia das respectivas normas.”
“Artigo 61.º (Iniciativa privada, cooperativa e autogestionária)
1. A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros
definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral.
2. (...)
3. (...)
4. (...)
5. (...).”
“Artigo 199.º (Competência administrativa)
Compete ao Governo, no exercício de funções administrativas:
a) (...)
b) (...)
c) (...)
d) (...)
e) (...)
f) Defender a legalidade democrática;
g) Praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à
promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades
colectivas.”
8 - Delimitada a norma sindicanda e mencionados os parâmetros aferidores da sua
(in)constitucionalidade, passa a considerar-se, em primeiro lugar, o problema da
inconstitucionalidade da norma do artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 65/77, de
26 de Agosto, por violação do disposto no artigo 199.º, alíneas f) e g), da
Constituição da República.
8.1 - Considerando a relevância para o esclarecimento da questão que o presente
problema de constitucionalidade envolve, cumpre começar por mencionar a
“história” do artigo 8.º da Lei da Greve, sendo de referir, a esse nível, os
Acórdãos deste Tribunal que, no seu tempo, sobre ele se pronunciaram.
8.1.1 - Assim, a redacção originária do artigo 8.º da Lei n.º 65/77, de 26 de
Agosto, com excepção de algumas alterações ao nível das alíneas constantes do
n.º 2, correspondia ipsis verbis ao teor da norma que constitui o objecto do
presente recurso de constitucionalidade.
Tal preceito foi posteriormente à sua entrada em vigor alterado pela Lei n.º
30/92, de 20 de Outubro, que, além das alterações introduzidas nas alíneas c),
d) e g) do n.º 2, estabeleceu uma regulamentação específica ao nível do
procedimento de definição concreta dos “serviços mínimos”, passando a constar do
artigo 8.º que:
“(...)
4 - Os serviços mínimos previstos no n.º 1 podem ser definidos por
convenção colectiva ou por acordo com os representantes dos trabalhadores.
5 - Não havendo acordo anterior ao pré-aviso quanto à definição dos
serviços mínimos previstos no n.º 1, o Ministério do Emprego e da Segurança
Social convoca os representantes dos trabalhadores referidos no artigo 3.º e os
representantes dos empregadores, tendo em vista a negociação de um acordo quanto
aos serviços mínimos e quanto aos meios necessários para os assegurar.
6 - Na falta de acordo até ao termo do 5.º dia posterior ao pré-aviso de
greve, a definição dos serviços e dos meios referidos no número anterior é
estabelecida por despacho conjunto, devidamente fundamentado, do Ministro do
Emprego e da Segurança Social e do ministro responsável pelo sector de
actividade, com observância dos princípios da necessidade, da adequação e da
proporcionalidade.
7 - O despacho previsto no número anterior produz efeitos imediatamente
após a sua notificação aos representantes referidos no n.º 5 e deve ser afixado
nas instalações da empresa ou estabelecimento, nos locais habitualmente
destinados à informação dos trabalhadores.
8 - Os representantes dos trabalhadores a que se refere o artigo 3.º devem
designar os trabalhadores que ficam adstritos à prestação dos serviços referidos
nos n.ºs 1 e 3, até quarenta e oito horas antes do início do período de greve,
e, se não o fizerem, deve a entidade empregadora proceder a essa designação.
9 - No caso de incumprimento das obrigações previstas nos n.ºs 1, 3 e 8,
pode o Governo determinar a requisição ou mobilização, nos termos da lei
aplicável.”
A promulgação deste diploma, que alterou a redacção originária do
artigo 8.º da Lei n.º 65/77, foi antecedida de um pedido de fiscalização
preventiva da constitucionalidade de todas as normas contidas no artigo único do
Decreto da Assembleia da República n.º 29/VI, de alteração da Lei n.º 65/77, de
26 de Agosto – cujo texto viria a converter-se na Lei n.º 30/92, de 20 de
Outubro –, “face às dúvidas colocadas sobre a sua conformidade com o disposto no
artigo 171.º da Constituição e, também, (...) face às dúvidas colocadas sobre a
sua conformidade com os princípios da precisão ou determinabilidade das leis e
da reserva de lei (artigo 2.º da Constituição) e, ainda, face ao disposto nos
artigos 18.º, n.º 3, e 57.º, n.os 1 e 2, da Constituição”, tendo o Tribunal,
pelo Acórdão n.º 289/92 (publicado no Diário da República II Série, de 19 de
Setembro de 1992; BMJ, 419º, pp. 355, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23º
vol., pp. 7), decidido não se pronunciar pela sua inconstitucionalidade.
Após a entrada em vigor da Lei n.º 30/92, um grupo de Deputados à
Assembleia da República veio requerer, em sede de fiscalização abstracta
sucessiva, “a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral
das normas da Lei n.º 30/92, de 20 de Outubro, artigo único, alterações ao
artigo 8.º, n.º 2, alínea g), e n.os 4, 5, 7, 8 e 9, por violação do artigo
171.º, n.º 2, da Constituição da República e das restantes normas que, face ao
princípio da precisão ou da determinabilidade das leis, não possam subsistir por
força dessa declaração de inconstitucionalidade”.
O Tribunal Constitucional, apreciando o problema da
inconstitucionalidade formal – por vício de procedimento legislativo – decidiu,
pelo seu Acórdão n.º 868/96 (publicado no Diário da República I Série-A, de 16
de Outubro de 1996; BMJ, 459º, pp. 60, e Acórdãos do Tribunal Constitucional,
34º vol., pp. 115), declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória
geral, das normas em crise, bem como, em consequência, da norma do n.º 6 do
mencionado artigo 8.º.
Daí resultou, assim, que se mantivesse, na essência, até à revogação da
Lei n.º 65/77 pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto – que aprovou o Código do
Trabalho –, o regime originariamente estabelecido no que tange com a definição
dos serviços mínimos a prestar durante a greve.
Com a aprovação do Código do Trabalho, introduziu-se – para além da
imposição de obrigações a satisfazer durante a greve (artigo 598.º - que
reproduz, na essência, a redacção do artigo 8.º da Lei da Greve) e da previsão
da possibilidade de requisição ou mobilização no caso de “incumprimento da
obrigação de prestação dos serviços mínimos” (artigo 601.º) – uma disposição
expressamente consagrada à resolução do problema da “Definição dos serviços
mínimos” – o artigo 599.º - que dispõe:
“1. Os serviços mínimos previstos nos n.os 1 e 3 do artigo anterior devem
ser definidos por instrumento de regulação colectiva de trabalho ou por acordo
com os representantes dos trabalhadores.
2. Na ausência de previsão em instrumento de regulamentação colectiva de
trabalho e não havendo acordo anterior ao aviso prévio quanto à definição dos
serviços mínimos previstos no n.º 1 do artigo anterior, o ministério responsável
pela área laboral convoca os representantes dos trabalhadores referidos no
artigo 593.º e os representantes dos empregadores, tendo em vista a negociação
de um acordo quanto aos serviços mínimos e quanto aos meios necessários para os
assegurar.
3. Na falta de um acordo até ao termo do 3.º dia posterior ao aviso prévio
de greve, a definição dos serviços e dos meios referidos no número anterior é
estabelecida, sem prejuízo do disposto no n.º 4, por despacho conjunto,
devidamente fundamentado, do ministro responsável pela área laboral e do
ministro responsável pelo sector de actividade.
4. No caso de se tratar de serviços da administração directa do Estado ou
de empresa que se inclua no sector empresarial do Estado, e na falta de um
acordo até ao termo do 3.º dia posterior ao aviso prévio de greve, a definição
dos serviços e meios referidos no n.º 2 compete a um colégio arbitral composto
por três árbitros constantes das listas de árbitros previstas no artigo 570.º,
nos termos previstos em legislação especial.
5. O despacho previsto no n.º 3 e a decisão do colégio arbitral prevista no
número anterior produzem efeitos imediatamente após a sua notificação aos
representantes referidos no n.º 2 e devem ser afixados nas instalações da
empresa ou estabelecimento, nos locais habitualmente destinados à informação dos
trabalhadores.
6. Os representantes dos trabalhadores a que se refere o artigo 593.º devem
designar os trabalhadores que ficam adstritos à prestação dos serviços referidos
no artigo anterior, até quarenta e oito horas antes do período de greve, e, se
não o fizerem, deve o empregador proceder a essa designação.
7. A definição dos serviços mínimos deve respeitar os princípios da
necessidade, da adequação e da proporcionalidade.”
8.1.2 - Como se infere do exposto anteriormente, a alteração
introduzida face à regulamentação originária da Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto,
pela Lei n.º 30/92, de 20 de Outubro, atingia directamente o regime relativo ao
procedimento de definição dos serviços mínimos durante a greve, passando a
prever-se expressamente, nessa matéria específica, a possibilidade de actuação
do Governo quando os serviços mínimos não fossem definidos por convenção
colectiva ou por acordo com os representantes dos trabalhadores. Em tais
circunstâncias, a actuação do Governo estava, em primeiro lugar, pré-ordenada à
negociação de um acordo com os representantes dos trabalhadores e dos
empregadores quanto à definição dos serviços mínimos e aos meios necessários
para os assegurar, sendo que, na falta desta definição acordada, passaria a
competir ao Governo a definição dos serviços, nos termos fixados no n.º 6 do
artigo 8.º da Lei da Greve.
A bondade constitucional de tal regime foi equacionada no já citado
Acórdão n.º 289/92 do Tribunal Constitucional, que se pronunciou expressamente
sobre a intervenção governativa no domínio da definição dos serviços mínimos.
Assim, escreveu-se nesse aresto:
“(...)
O direito à greve é um direito fundamental garantido aos trabalhadores pela
Constituição. Integra o conjunto de direitos, liberdades e garantias enunciados
no Título II e apresenta uma dimensão essencial de defesa ou liberdade negativa:
a liberdade de recusar a prestação de trabalho contratualmente devida,
postulando a ausência de interferências, estaduais ou privadas, que sejam
susceptíveis de a pôr em causa.
Esta caracterização constitucional do direito à greve como posição
subjectiva fundamental de natureza defensiva não ilude porém a sua ligação aos
fundamentos do Estado Social de direito: a greve é um instrumento de
reivindicação que concorre para a promoção de condições de igualdade real entre
indivíduos e grupos sociais.
Apresentando-se como um direito individual de exercício colectivo,
orientado à tutela comum de um interesse colectivo, o direito à greve revela,
pela própria natureza, a 'imbricação das concepções liberal e social' (G.
Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, págs.
105-106), que na ordem constitucional democrática, em regra, vai ligada ao
entendimento dos direitos fundamentais. O elemento colectivo participa do
próprio conteúdo do direito sem que lhe apague a fisionomia de direito
individual de cada trabalhador (A. Monteiro Fernandes, 'Reflexões sobre a
Natureza do Direito à Greve', Estudos Sobre a Constituição, 2º vol., pág. 333).
A fundamentalidade material do direito à greve liga-se, pois, aos
princípios constitucionais da liberdade e da democracia social. A sua especial
inserção no elenco dos direitos, liberdades e garantias confere-lhe uma
protecção constitucional acrescida que se traduz no 'reforço de mais valia
normativa' (G. Canotilho) do preceito que o consagra relativamente a outras
normas da Constituição. O que significa: (1) aplicabilidade directa, sendo o
conteúdo fundamental do direito afirmado já ao nível da Constituição e não
dependendo o seu exercício da existência de lei mediadora; (2) vinculação das
entidades públicas e privadas, implicando a neutralidade do Estado (proibição de
proibir) e a obrigação de a entidade patronal manter os contratos de trabalho,
constituindo o direito de greve um momento paradigmático da eficácia geral das
estruturas subjectivas fundamentais; (3) limitação das restrições aos casos em
que é necessário assegurar a concordância prática com outros bens ou direitos
constitucionalmente protegidos - sendo certo que a intervenção de lei restritiva
está expressamente vedada quanto à definição do âmbito de interesses a defender
através da greve (C.R.P., art. 57º, n.º 2).
(...)
[4.] Os serviços mínimos e o conteúdo essencial do direito à greve: a
norma do artigo 8º, n.º 6, no Decreto n.º 29/VI da Assembleia da República
[1.] A admissibilidade constitucional de uma obrigação de serviços mínimos
O Decreto n.º 29/VI da Assembleia da República estabelece a obrigatoriedade
da prestação de serviços mínimos, para ocorrer à satisfação de necessidades
sociais impreteríveis (artigo 8º, n.º 1). Esta obrigação imposta aos
trabalhadores em greve de assegurarem a prestação de serviços mínimos não
suscita dúvidas de constitucionalidade.
A fundamentação da admissibilidade constitucional da obrigação de serviços
mínimos reside na tarefa de concordância prática que incumbe ao legislador e ao
intérprete. De um ponto de vista dogmático, estamos aqui perante uma
justificação distinta da do pré-aviso: naquele caso não se tratava de
intervenção restritiva, não havia ingerência no âmbito de protecção da norma -
por isso, não havia que convocar as estruturas de ponderação estabelecidas nos
n.ºs 1 e 2 do artigo 18º da Constituição. Na justificação da admissibilidade
constitucional da obrigação de serviços mínimos confrontamo-nos com uma
restrição (ou limitação) do direito e a necessidade da sua justificação.
Não se diga que o direito à greve não está sujeito a restrições: o que não
está sujeito a intervenção restritiva do legislador é a delimitação dos
interesses a defender através da greve (C.R.P., artigo 57º, n.º 2); foi esta a
decisão do legislador constituinte em termos do programa
normativo-constitucional da greve. O direito à greve está sujeito a reserva de
lei restritiva, desde que a lei restritiva observe os pressupostos formais e
materiais que a Constituição lhe impõe.
Bernardo Lobo Xavier (ob. cit., pág. 187) qualifica esta obrigação de
serviços mínimos como 'indubitavelmente uma limitação ao direito à greve' e
justifica a limitação pela necessidade de 'tutela de outros valores presentes no
ordenamento jurídico, traduzida na genérica expressão de satisfação de
necessidades sociais impreteríveis'.
A generalidade da doutrina juslaborista oferece uma justificação semelhante
para a obrigação legal de serviços mínimos.
Esta justificação também não oferece dúvidas do ponto de vista da dogmática
dos direitos fundamentais: Häberle observa que todos os direitos fundamentais
estão entre si e com o direito de organização do Estado - e aí, em especial, com
as determinações constitucionais dos fins do Estado - numa relação de
complementaridade funcional (Die Wesensgehaltgarantie... cit.). Também
Friedrich Müller chama a atenção para que 'nenhum direito fundamental é
garantido sem restrições' - (Die Positivität der Grundrechte, Fragen einer
praktischen Grundrechtsdogmatik, Berlim, 1969, pág. 41) - isto, em virtude da
'reserva de qualidade jurídica dos direitos fundamentais' (Vorbehalt der
Rechtsqualität der Grundrechte) decorrente da sua inserção na sistemática da
Constituição e no jogo de restrições e complementações implicadas nessa
sistemática.
É também o contexto sistemático da Constituição que Gomes Canotilho invoca
para justificar limites materiais não escritos, avançando precisamente com o
exemplo das restrições (ou limitações) ao direito de greve. Diz: 'Embora a
Constituição não admita limites ao direito de greve, justificar-se-iam limites
constitucionais não escritos a fim de se salvaguardarem outros direitos ou bens
constitucionalmente garantidos (ex.: exigência de garantia de serviços mínimos
em hospitais, serviços de segurança, etc.' (cf. Direito Constitucional... cit.,
pág. 616). De modo semelhante, Bernardo Xavier alude à interconexão sistemática
dizendo que o direito de greve não se move 'numa atmosfera rarefeita sem conexão
com o ordenamento jurídico' (ob. cit., pág. 92). Jorge Miranda fala de
'restrições implícitas, derivadas, também elas, da necessidade de salvaguardar
outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos' (Manual... cit.,
tomo IV, pág. 303).
Certa dogmática dos direitos fundamentais entende estas situações como
limitações internas e prévias do direito fundamental, entendimento que vai
consubstanciado na doutrina dos 'limites imanentes' - doutrina que, em boa
verdade, está correlacionada com uma teoria do Tatbestand restrito. Outro
entendimento dogmático é o de considerar os limites como 'externos' e a
posteriori resultando da conciliação com outro direito fundamental ou interesse
constitucional suficientemente caracterizado e determinado.
Não temos aqui de proceder a opções de construção, nomeadamente pela teoria
restrita ou alargada do Tatbestand e pela sua repercussão na problemática dos
limites dos direitos fundamentais: qualquer das vias, pese embora a diversidade
de perspectivas, conduziria a uma justificação da admissibilidade constitucional
de uma obrigação de serviços mínimos.
[2.] A reserva de lei restritiva e a definição dos serviços mínimos pelo
Governo
[...]
[2.2.] A reserva de lei, em matéria de direitos fundamentais, leva
implicada a exigência de precisão e determinabilidade normativas. (Cf., o
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 285/92, publicado no D.R. I Série, de
17.8.92, que desenvolve amplamente esta temática).
Constituindo um corolário do princípio do Estado de direito (a lei como
garantia de liberdade face à administração) e do princípio democrático (a lei
como consentimento dos cidadãos e como resultado de um procedimento assente na
publicidade, no contraditório e no debate), à reserva de lei não pode
corresponder uma escassa densificação normativa, capaz de contornar a
distribuição constitucional das tarefas de legislação e administração e de
inviabilizar, quanto a estas, um controlo efectivo pelos tribunais.
A ratio da reserva de lei vem, assim, iluminar a apreciação da norma do
artigo 8º, nº 6, constante do Decreto da Assembleia da República. Esta norma só
será constitucionalmente legítima se se constituir em indirizzo para a
Administração e parâmetro de controlo para os tribunais.
E a interpretação haverá ainda de contar com a própria natureza do direito
à greve. É à luz desse direito e das estruturas de ponderação que levam à
justificação dos serviços mínimos que devem ser compreendidos os parâmetros
legais estabelecidos no artigo 8º, n.º 6, do Decreto n.º 29/VI.
[2.3.] A doutrina vem abordando a necessidade de estabelecer uma relação
entre o grau de densidade exigível às normas legais, em razão do princípio da
reserva de lei, e a natureza dos direitos e situações que regulam.
Sérvulo Correia analisa precisamente o problema das autorizações (legais)
para a prática de actos administrativos 'nos domínios abrangidos por reserva de
acto legislativo'. E diz: 'por vezes não depende da vontade do legislador e,
portanto, não pode relacionar-se imperativamente à partida com a natureza formal
da norma o grau de abertura desta em face das situações da vida que deverão ser
conformadas no seu quadro. A sua capacidade de direcção do conteúdo da decisão
(Leistungsfähigkeit für die Steuerung von Entscheidungsinhalten) é condicionada
pela natureza da situação sobre que incide. O princípio formulável é o de que,
em matéria de reserva de acto legislativo, à concessão de discricionariedade
deve presidir o critério da densificação da norma na medida do possível e da sua
abertura para o mínimo incomprimível de margem de livre decisão' (Legalidade e
Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, 1987, págs.
339-340).
Vieira de Andrade sublinha 'o carácter específico da protecção dos
direitos, liberdades e garantias em face da Administração' e rejeita um método
conceitualista de separação entre o que, naquele domínio, é reserva de lei e
espaço de actuação administrativa: 'A questão [diz] não é susceptível de ser
respondida com um simples 'sim' ou 'não'. Tudo depende, por um lado, dos
direitos em causa e, relativamente a cada um deles, da zona de protecção
ameaçada' (ob. cit., págs. 324 e 327).
Também o Tribunal Constitucional Alemão formulou na sentença Lüth (BVerfGE,
7, 198) - no sentido da atenuação dos limites estabelecidos por lei restritiva -
que, de acordo com a teoria dos efeitos recíprocos (Wechselwirkungstheorie), a
lei que estabelece limites aos direitos fundamentais tem ela própria que ser
interpretada à luz dos direitos fundamentais em causa.
Também na norma do artigo 8º, n.º 6, a ligação entre o direito de greve e
os serviços mínimos tem que ver com a própria natureza do direito de greve. A
tarefa de concordância prática e de optimização de diferentes bens, já vimos,
liga-se aí indissociavelmente à avaliação das circunstâncias de cada caso. A
ponderação dos interesses em jogo leva implicados 'juízos concretos de
oportunidade' (B. Xavier) que dificultam a previsão legal de todas as situações
de compressão do direito.
Na perspectiva deste ineliminável grau de abertura da norma do artigo 8º,
n.º 6, e a sua ligação à natureza do direito, há-de ver-se se dela resultam
parâmetros de controlabilidade que a legitimem perante a Constituição.
[2.4.] A norma do artigo 8º, n.º 6, determina que, nos casos em que há
lugar à definição dos serviços mínimos pelo Governo, essa definição seja
'estabelecida por despacho, devidamente fundamentado, do Ministro do Emprego e
da Segurança Social e do Ministro responsável pelo sector de actividade, com
observância dos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade'.
A formulação da norma afigurar-se-á, à primeira vista, redundante: o dever
de fundamentação expressa dos actos administrativos que afectem direitos ou
interesses legalmente protegidos dos cidadãos decorre já do artigo 268º, n.º 3,
da Constituição. Além disso, por força da eficácia geral e da aplicabilidade
imediata das normas constitucionais sobre direitos, liberdades e garantias
(C.R.P., artigo 18º), a Administração está directamente vinculada aos princípios
da necessidade, adequação e proporcionalidade.
Ora, na norma do artigo 8º, n.º 6, há-de reconhecer-se algo mais do que
isso. A norma traça um indirizzo à autoridade administrativa no sentido de
estruturar a fundamentação do despacho de acordo com aqueles princípios. O
autor do despacho tem de explicar como e porque está a observar os critérios de
adequação, necessidade e proporcionalidade. A reiteração por lei destes
critérios constitui ela própria a fixação de uma directiva ou parâmetro legal do
dever de fundamentar, parâmetro este que a natureza das coisas dificilmente
permitiria que fosse mais determinado. Ao que acresce, no plano dos
pressupostos fácticos, a indicação clara pelo artigo 8º, n.º 2, das empresas ou
estabelecimentos que se destinam à satisfação de necessidades sociais
impreteríveis.
A motivação e justificação do acto administrativo haverá assim de
explicitar directamente um princípio de concordância prática. A fundamentação
é, aqui, fundamentação qualificada por critérios de adequação, necessidade e
proporcionalidade. A expressa imposição legal destes critérios, perfeitamente
definidos e delimitados na dogmática jurídico-constitucional, garante a eficácia
do controlo contencioso de anulação ou suspensão do despacho conjunto de
fixação dos serviços mínimos.
A solução em apreço não se desvia, pois, do princípio constitucional da
reserva de lei. E não cabe ao Tribunal Constitucional conceber alternativas de
escolha política que porventura o legislador pudesse nesta sede consagrar. Do
que se trata é tão-só de apreciar a norma do artigo 8º, n.º 6, à luz do
princípio da reserva de lei e de demarcar, neste plano da definição dos serviços
mínimos, o espaço de legislação e o espaço de administração.
Ora, convocando a anterior ordem de considerações, há que concluir que a
norma do artigo 8º, n.º 6, constante do Decreto n.º 29/VI da Assembleia da
República, não é contrária à Constituição.”
Resulta desta jurisprudência que a intervenção do Governo na concreta
fixação dos serviços mínimos a observar durante a greve, talqualmente estava
definida no artigo 8.º da Lei da Greve, em resultado da alteração introduzida
pela Lei n.º 30/92, não devia ter-se por inconstitucional.
A questão de constitucionalidade emergente dos presentes autos, que, na verdade,
se entrecruza com o problema considerado no aresto supra mencionado, não deixa,
todavia, de apresentar contornos diversos porquanto, no caso sub judicio, o
problema em apreciação é o de saber se, não estando previsto um procedimento
específico para a fixação dos serviços mínimos, a Constituição impede que a
fixação dos serviços essenciais possa ser levada a cabo exclusivamente pelos
trabalhadores e suas estruturas sindicais sem que ao Governo, no exercício das
suas competências administrativas, seja permitido intervir na sua definição.
8.2 - Assim, segundo a argumentação da Recorrente, “na falta de
disposição concreta que determine a quem cabe a fixação desses serviços,
ter-se-á que recorrer aos princípios e regras gerais, apontando estes
necessariamente para a conclusão de que cabe ao Governo, no exercício da
competência administrativa, garantir a execução da lei no que diz respeito à
garantia das necessidades colectivas a cargo do Estado, (...) competências [que]
estão claramente expressas no art. 199.º da CRP, sendo particularmente relevante
para o caso a alínea f) (que faz incumbir ao Governo a defesa da legalidade
democrática) e sobretudo a alínea g) que (...) atribui ao Governo competência
para praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à
promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades
colectivas”, o que determinaria a inconstitucionalidade da norma sindicanda. Com
razão?
8.2.1 - Como se acentuou no aresto supra mencionado, o direito à greve,
como de resto a generalidade dos demais direitos fundamentais, não é absoluto e
ilimitado. Aliás, como se assinala na doutrina, relativamente aos direitos
fundamentais em geral, “é inevitável e sistémica a conflitualidade dos direitos
de cada um com os direitos dos outros” (Vieira de Andrade, Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª ed., Coimbra, 2004, p.
283).
Ora, de entre as limitações geralmente assinaladas ao direito à greve,
encontra-se, com fundamento, a imposição de que o exercício de tal direito não
afecte um núcleo de prestações essenciais, compreendendo-se, assim, que a
obrigação de assegurar, em caso de greve, os serviços mínimos ineliminavelmente
ligados à satisfação de necessidades colectivas de natureza básica e
impreterível se prefigure como uma instância de salvaguarda e garantia da
realização de relevantes bens jurídicos constitucionais que resultariam
previsivelmente afectados – e, com isso, potencialmente sacrificados – caso o
direito à greve se configurasse de forma absoluta e sem quaisquer restrições
possíveis.
Assim é, na verdade, porque a questão da manutenção dos serviços mínimos se
situa na confluência de dois direitos - de um lado, o direito de greve, e, do
outro, alguns direitos como o direito à vida, à saúde e à segurança, já que, com
efeito, as greves no sector público e nos serviços públicos têm de particular
que elas não afectam apenas os protagonistas em causa, mas também afectam
terceiros [Assim, também, Jean Bernier, “La détermination des services
essentiels dans le secteur public et les services publics de certains pays
industrialisés”, p. 47, in Aa. Vv. (dir. Jean Bernier), Grèves et services
essentiels, Québec, 1994)]. É, pois, necessário que o direito à greve seja
compreendido em relação com aqueloutros, havendo que confrontar – como afirmam
Gomes Canotilho e Jorge Leite [«Ser ou não ser uma greve (A propósito da chamada
“greve self-service”)», in Questões Laborais, Ano VI, n.º 13, 1999, pp. 26 e
ss.] –, “o direito de greve com virtuais restrições resultantes de um
balanceamento concreto entre este direito e outros bens e direitos tutelados
jurídico-constitucionalmente”, tendo essencialmente em conta “os direitos dos
outros, a continuidade de funcionamento dos serviços públicos e o interesse da
comunidade”, assim se dando por assente que “(...) em todos os regimes jurídicos
democráticos (...) a greve é um poder limitado, na medida em que se lhe
contrapõe a tutela de determinados direitos e interesses que podem ser afectados
pelo respectivo exercício, sejam eles dos trabalhadores não grevistas, da
entidade empregadora, dos indivíduos alheios ao conflito ou do público em geral.
Embora surja nos nossos dias como um poder juridicamente tutelado, a garantia
que lhe é reconhecida há-de naturalmente comportar algumas limitações (...)
[porque] uma liberdade de exercício sem restrições não só poderia provocar
alterações ao normal desenvolvimento da sociedade, como colocaria em risco a
garantia de certos bens fundamentais, cuja lesão se afigura juridicamente
intolerável” (Francisco Liberal Fernandes, “A greve na função pública e nos
serviços essenciais: algumas notas de direito comparado”, in Estudos em
homenagem ao Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró, II vol., número especial,
Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra, 1993, pp.
57-58).
Nessa linha, à imposição de tais obrigações está implícita uma teleologia
determinada por inarredáveis interesses de ordem pública (cf. José João
Abrantes, “Direito de greve e serviços essenciais”, in Questões Laborais, Ano
II, n.º 6, 1995, p. 130), que passam, como se compreende, pela necessidade de
assegurar uma tutela efectiva de certos “bens de relevo constitucional
indiscutivelmente geral e primário (vida, saúde, liberdade e segurança), bem
como de outros bens que se perfilam mais particulares em relação àqueles
(liberdade de circulação, de comunicação (...) [e] de assistência social) e que
podem considerar-se facilmente como uma sua especificação” (cf. Mario
Rusciano/Santoro--Passarelli, Lo sciopero nei servizi essenziali – Commentario
alla legge 12 giugno 1990, n. 146, Milão, 1991, p. 15), pelo que a consideração
de tais dimensões – que um Estado de direito baseado na inviolável dignidade
ética da pessoa humana está absolutamente vinculado a proteger – autoriza,
assim, que o direito à greve encontre como limite intransponível a satisfação
das necessidades sociais impreteríveis cuja realização é instrumental da
garantia dos bens constitucionais supra referidos [cf. Bernardo Xavier –
“Requisição civil, serviços mínimos e greve” - Anotação ao Acórdão do STA de 20
de Março de 2002, Proc. n.º 43934, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º
42, Novembro/Dezembro, 2003, p. 29 –, para quem “as necessidades sociais
impreteríveis são logicamente a outra face da realização de direitos
fundamentais da pessoa (...)”]. Esta concepção, não raras vezes, é expressamente
acolhida pela regulamentação disciplinadora do direito à greve no âmbito dos
serviços essenciais, como sucede, por exemplo, em Itália com a legge 12 giugno
1990, n.º 146, que se propõe “(...) temperar o exercício do direito à greve com
a satisfação dos direitos da pessoa constitucionalmente tutelados” (cf., Mario
Rusciano/Santoro-Passarelli, Lo Sciopero nei servizi essenziali..., op. cit.,
pp. 14 e ss.; Tiziano Treu et al., Sciopero e servizi essenziali, Commentario
sistematico alla legge 12 giugno 1990, n.º 146, Pádova, 1991, pp. 9 e ss.; e
Giuseppe Suppiej, “Realismo e utopia nella legge sullo sciopero nei servizi
pubblici”, in Rivista Italiana di Diritto del Lavoro, ano XII, n.º 2,
aprile-giugno, 1993, pp. 189 e ss.).
Por isso, compreende-se que a Constituição sujeite a reserva de lei a definição
das condições, durante a greve, dos serviços mínimos, como já havia antecipado o
Acórdão n.º 289/92. E este entendimento, manifestado à luz da redacção do artigo
57.º da Constituição anterior à quarta revisão constitucional, permanece e
reforça-se, na sua essência, perante a autorização expressa para restrição
legislativa então introduzida no n.º 3 do mesmo preceito que remete
explicitamente para a lei a definição das condições de prestação, durante a
greve, de serviços necessários à segurança e manutenção de equipamentos e
instalações, bem como de serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à
satisfação de necessidades sociais impreteríveis (cf., quanto ao sentido
emergente desta revisão constitucional, Catarina Ventura, Os direitos
fundamentais à luz da quarta revisão constitucional, Separata do Boletim da
Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, vol. LXXIV, Coimbra, 1998, pp.
515-516; Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais..., op. cit., pp. 344-345;
Jorge Reis Novais, As restrições aos direitos fundamentais não expressamente
autorizadas pela Constituição, Coimbra, 2003, pp. 593-595). Note-se, porém, que
mesmo antes da quarta revisão constitucional, e apesar de possíveis divergências
quanto ao tratamento doutrinal do problema, sempre se devia considerar o direito
à greve em termos de se ver garantida a satisfação das necessidades sociais
impreteríveis da comunidade. Nesse sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p.
312) salientavam que, não estando este direito sujeito a “reserva de lei
restritiva”, os “eventuais limites imanentes resultantes da determinação do seu
âmbito normativo constitucional só podem ser «revelados» (não constituídos) em
caso de colisão de direitos, por necessidade de defesa de outros direitos
constitucionalmente protegidos, [sendo que] somente isso pode legitimar certos
requisitos quanto ao processo de declaração e execução de greve, como sejam a
imposição de pré-aviso e a definição de algumas obrigações de trabalho aos
grevistas nas empresas ou estabelecimentos que se destinem à satisfação de
necessidades sociais impreteríveis, desde que uns e outras não sejam
desproporcionados”; por sua vez, Vieira de Andrade (Os direitos fundamentais...,
op. cit., p. 345, n. 26), criticando a fórmula mobilizada no Acórdão n.º 289/92,
afirma que “(...) em rigor, na falta de previsão constitucional expressa da
restrição, talvez devesse entender-se que a lei estaria, como fez, autorizada a
resolver a colisão entre o direito à greve e os interesses da (...) comunidade,
através de normas harmonizadoras”; finalmente, para Jorge Reis Novais (As
restrições aos direitos fundamentais..., cit., pp. 593-594), o problema seria
susceptível de ser enquadrado no âmbito de uma “restrição não expressamente
autorizada”, pelo que, “(...) quando, entre nós, a revisão constitucional de
1997 aditou um novo n.º 3 ao art. 57.º (...), em que se prevê a necessidade de
prestação de certos serviços durante a greve e, assim, transformou formalmente
um direito fundamental até aí sem reservas em direito sujeito a limitação, não
alterou verdadeiramente a norma do direito à greve nem conferiu ao legislador
ordinário quaisquer poderes restritivos que este não tivesse já, apesar de se
passar agora a prever expressamente a definição (...) das condições de prestação
de tais serviços mínimos. (...) [Assim,] nem o direito à greve – que antes da
revisão de 1997 era um direito fundamental sem reservas e hoje tem aquela
limitação expressa – viu alterados o seu conteúdo ou as possibilidades da sua
restrição por parte dos poderes constituídos, nem a lei ordinária em causa viu
correspondentemente alterada a sua natureza e, muito menos, os parâmetros de
aferição da sua conformidade constitucional”.
Destarte, em todo o caso – isto é, independentemente da configuração dogmática
com que deva recortar-se a obrigação de prestação de serviços mínimos para
promover a satisfação de necessidades impreteríveis –, sempre há que reconhecer,
acompanhando a generalidade da doutrina, que as razões subjacentes à limitação
do direito à greve no domínio dos serviços que asseguram as denominadas
prestações sociais impreteríveis conduzem, assim, a uma configuração do direito
à greve que tem forçosamente de ter em linha de conta, como se viu, determinados
bens jurídicos fundamentais. Daí não decorre, porém, que esteja vedado o
exercício do direito nos domínios afectos à realização de prestações sociais
impreteríveis, mas apenas que, em caso de greve, impenda sobre os trabalhadores
a obrigação de assegurar os serviços mínimos impostos e determinados pela
ponderação que entretece o direito à greve com outros direitos (também)
fundamentais.
A necessidade de uma tal consideração ponderada e omnicompreensiva
do direito à greve com a tutela de realização das prestações direccionadas à
satisfação de necessidades sociais impreteríveis é, assim, sintomática da
necessidade de articulação dos valores constitucionais implicados na tensão
dialéctica dos pólos em causa: por um lado, a consideração da necessidade de
tutela e garantia de certos valores fundamentais impõe que a protecção do seu
conteúdo essencial coloque “fronteiras” inultrapassáveis ao exercício do direito
à greve; mas, por outro lado, a imposição de tais limites deve ter em linha de
conta o respeito pelo direito à greve em termos que não impliquem o seu
sacrifício fora do apodíctico âmbito tutelar preordenado a impedir a frustração
do núcleo intangível dos bens jurídicos que recortam a esfera das necessidades
sociais impreteríveis (cf. Tiziano Treu et al, Sciopero e servizi essenziali...,
cit., Pádova, 1991, p. 45. Para o Autor, “também o direito à greve tem um núcleo
incomprimível, pelo que o respeito pelo conteúdo dos direitos da pessoa deve
realizar-se apenas com o sacrifício estritamente necessário [dos direitos] dos
trabalhadores em greve”).
8.2.2 - Assumindo tal conteúdo axiológico, o legislador não deixou de impor um
conjunto de “obrigações durante a greve”, definindo em abstracto o sentido e o
conteúdo da “obrigação de assegurar a prestação dos serviços mínimos
indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis”.
Não estabeleceu, porém, na redacção original, qualquer “modelo
operatório-procedimental” onde se atribuísse expressis verbis a um determinado
sujeito a tarefa de individualizar e definir em concreto o cabal cumprimento da
obrigação de prestação de serviços mínimos em termos de qualificar e quantificar
tais prestações, sendo que, na verdade, o problema da definição-identificação
das prestações sociais impreteríveis que devem ser observadas durante um
processo de greve desdobra-se em dois momentos relativamente diferenciados: num
primeiro momento – que não tange directamente com o objecto do presente recurso
de constitucionalidade –, está essencialmente em causa a tarefa de definição em
abstracto dos domínios envolvidos no âmbito da obrigação de prover os serviços
mínimos direccionados à satisfação de necessidades sociais impreteríveis e do
regime de imposições acessórias do cumprimento dessa obrigação; num segundo
momento – que se coloca perante a regulamentação da norma sindicanda –, o
problema reside na concreta definição dos serviços mínimos perante um
determinado processo de greve, aí se incluindo o problema da competência para
proceder a tal individualização.
António Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, 12.ª edição, Coimbra, 2004, pp.
924 e ss.) refere, quanto ao problema de saber quem tem o poder e o dever de
definir, em concreto, o âmbito e a natureza dos serviços mínimos a prestar
durante a greve, que ele deve colocar-se em três níveis distintos: “o da
determinação das necessidades a satisfazer e do nível de serviço adequado a essa
satisfação; o da definição do esquema organizativo destinado a garantir a
realização desse nível de serviço e a correspondente satisfação das necessidades
públicas; o da designação das pessoas, em concreto, que, apesar de terem aderido
à greve, deverão prestar trabalho no quadro desse esquema organizativo”.
Quanto a esta sistematização, no caso presente, a summa quaestio concerne
imediatamente ao poder de determinação das necessidades a satisfazer e do nível
de serviços mínimos adequado a essa satisfação, não se questionando, por isso, o
procedimento e as vicissitudes relacionadas com a execução desses serviços.
8.2.2.1 - Ora, quanto a este problema particular – tendo um pouco em conta
alguns modelos discerníveis a partir das experiências jurídicas além fronteiras
–, deve começar-se por referir que, em abstracto, a sua resolução não obedece a
uma regulamentação uniforme, existindo diversas formas de se dar resposta à
questão da competência para a definição dos serviços mínimos [atente-se, a este
nível, nos modelos enunciados por Gomes Canotilho e Jorge Leite (“Ser ou não ser
uma greve...”, op. cit., p. 30): “(i) o da autoregulação assente numa
concertação das partes em conflito quanto à individualização de serviços e
prestações essenciais; (ii) o da autoregulação através da adopção de “códigos de
autoregulamentação” por parte das confederações sindicais; (iii) o da regulação
judicial sobretudo no caso de não existência de acordo quanto à definição de
serviços; (iv) o da regulação através de comissões ou entidades administrativas
independentes; (v) o da regulação, com base na lei, através de lista (taxativa
ou exemplificativa) imposta por lei; (vi) o da regulação através de portarias ou
despachos a cargo dos membros do governo competentes em razão dos sectores em
greve”].
A) Em Espanha, no quadro do Real Decreto 17/1977, de 4 de Março,
considerando-se, em particular, o disposto no artigo 10.º, n.º 2, retém-se que
“quando a greve seja declarada em empresas encarregadas da prestação de qualquer
género de serviços públicos ou de reconhecida e inafastável necessidade e
concorram circunstâncias de especial gravidade, a Autoridade de governo poderá
estabelecer as medidas necessárias para assegurar o funcionamento dos serviços”.
Assente em tal base normativa, o Tribunal Constitucional espanhol decidiu, na
Sentencia n.º 11/81, de 8 de Abril, que não era inconstitucional a atribuição à
autoridade governativa da competência para a definição dos serviços mínimos.
Este entendimento foi posteriormente confirmado – directa ou indirectamente –
por sucessivas decisões do mesmo Tribunal relativas à questão da obrigatoriedade
de observância dos serviços mínimos durante a greve (cf., inter alia, as
decisões n.º 26/1981, de 17 de Julho de 1981, n.º 33/1981, de 5 de Novembro de
1981, n.º 51/1986, de 24 de Abril de 1986, n.º 53/1986, de 5 de Maio de 1986,
n.º 27/1989, de 3 de Fevereiro de 1989, n.º 43/1990, de 15 de Março de 1990, n.º
122/1990, de 2 de Julho de 1990 – com comentário de Maria Soledad Negro
Carrillo, Huelga y servicios..., op. cit., pp. 791 e ss. –, n.º 123/1990, de 2
de Julho de 1990, e n.º 8/1992, de 16 de Janeiro de 1992 – comentada por Manuel
Alonso Olea, “Huelga y mantenimiento de los servicios esenciales”, in Civitas –
Revista española de derecho del trabajo, n.º 58, Marzo/Abril, 1993, pp. 201 e
ss.).
Reflectindo a jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol sobre a questão
– e considerando em particular a afirmação, constante da Sentencia n.º 11/1981,
onde se diz expressamente que “(...) se pode extrair a conclusão de que a
decisão sobre a adopção das garantias de funcionamento dos serviços não pode
pôr-se nas mãos de nenhuma das partes implicada, mas antes deve ser submetida a
terceiro imparcial” e que “deste modo, atribuir à autoridade governativa o poder
de estabelecer as medidas necessárias para assegurar o funcionamento dos
serviços mínimos não é inconstitucional”–, Manuel Carlos Palomeque, “El
ejercicio del derecho de huelga en los servicios esenciales de la comunidad en
el derecho español”, in IV Congresso Nacional de Direito do Trabalho –
Memórias, coord. António Moreira, Coimbra, p. 363) afirma que tal formulação
“impede de lege data, certamente, a virtualidade de fórmulas consistentes na
autorregulación ou autodisciplina sindicais da matéria, ou o estabelecimento
unilateral por parte das organizações sindicais ou dos próprios grevistas de
“códigos de comportamento” que contemplem as garantias necessárias para a
manutenção dos serviços essenciais em caso de greve”.
B) Em França, apesar de não existir uma lei, de alcance geral – para a
totalidade dos serviços públicos –, que fixe os termos da obrigação de prestação
de serviços mínimos e defina a competência para a sua fixação, não deixam de
existir mecanismos direccionados a assegurar a continuidade do serviço público,
pré-ordenada à garantia dos bens e valores constitucionais postos em crise pelo
exercício do direito de greve. Tais mecanismos podem traduzir-se numa negação
pura e simples do direito de greve (1); outros na interdição de algumas formas
particulares de greve, maxime, de greves “não sindicais”, de greves “rotativas”
e de greves “surpresa” (2); outros [mecanismos] revelam-se também na organização
de um serviço mínimo (3) ou no exercício de um direito de requisição (4) (cf.
Jean Pélissier, “Grève et substituts des services essentiels: la situation
française”, in Grèves et services essentiels, p. 136 e ss.; Valérie
Ogier-Bernaund, Les droits constitutionnels des travailleurs, Paris, 2003, p.
86, 307).
Quanto aos serviços mínimos, exceptuando as situações legalmente regulamentadas
– serviço público de radiodifusão (lei de 30 de Setembro de 1986) e segurança da
navegação aérea (leis de 31 de Dezembro de 1984 e de 18 de Dezembro de 1987) –,
a tarefa de promover à sua organização cabe às autoridades administrativas ou à
direcção das empresas, com controlo jurisdicional, não sendo raras as situações
onde se assiste a uma negociação com as organizações sindicais representativas
(cf. Jean Pélissier, “Grève et substituts des services essentiels...”, op. cit.,
in Grèves et services essentiels, op. cit., p. 143) , admitindo-se, em último
caso, com base numa lei de 11 de Julho de 1938, a figura da requisição dos
trabalhadores em greve, prevista como um “meio radical” para assegurar a
continuidade do serviço público (cf. Valérie Ogier-Bernaund, Les droits
constitutionnels..., op. cit., pp. 307-308).
C) Em Itália a disciplina dos serviços essenciais a observar em caso de greve
está contida na Legge 12 giugno 1990, n. 146. Este diploma estabelece uma
regulamentação multiforme da questão, combinando diversos “modelos” para a
fixação dos serviços mínimos essenciais (cf., para uma perspectiva geral desses
modelos no caso particular do regime italiano, Tiziano Treu, “Strikes in italian
essential services”, in Grèves et services essentiels, op. cit., pp. 175 e ss.).
A ideia de base presente em tal regime passa por uma forte intervenção da
autonomia e contratação colectivas para individualizar as medidas direccionadas
ao cumprimento da obrigação de assegurar os serviços mínimos, privilegiando-se,
por motivos relacionados com uma ideia de “consenso social” e “adaptação à
regulamentação de situações dinâmicas e diferenciadas”, uma técnica de “normação
bilateral” assente na contratação colectiva e na correspondente “centralidade de
uma fonte negocial” na definição das regras relativas às prestações
indispensáveis” (cf., sobre este aspecto particular, Tiziano Treu et al,
Sciopero nei servizi essenziali..., op. cit., pp. 21 e ss.), dando-se por
assente que tanto “a contratação colectiva, como a auto-regulamentação,
constituem uma primeira rede de segurança dos interesses dos utentes” (cf. Mario
Rusciano/Santoro-Passarelli, Lo Sciopero nei servizi essenziali..., op. cit.,
pp. 23 e ss.). Nessa mesma linha, ainda que com contornos particulares, é também
dado relevo aos “códigos de autoregulamentação” que se perfilam como uma fonte
de regulamentação alternativa (na expressão de Mario
Rusciano/Santoro-Passarelli, Lo Sciopero nei servizi essenziali..., op. cit., p.
36) à contratação como forma de evitar uma “solução única e sobretudo
obrigatória”, salientando-se, na doutrina italiana, que o seu relevo emerge em
grande medida na ausência de normas resultantes da contratação colectiva (cf.
Tiziano Treu, Sciopero nei servizi essenziali..., op. cit., p. 176; também Mario
Rusciano/Santoro-Passarelli, Lo sciopero nei servizi essenziali..., op. cit., p.
37, colocam em evidência que “parece de difícil observância uma repartição de
competências entre a contratação e a auto-regulamentação no âmbito de uma
matéria tão delicada como a das prestações indispensáveis”).
O mesmo diploma (artigo 12.º) instituiu um “órgão técnico, neutral e
independente do poder executivo” (cf. Tiziano Treu et al, Sciopero nei servizi
essenziali..., op. cit., p. 66) – a “Comissão de Garantia” (“Commissione di
garanzia dell’attuazione della legge sullo sciopero nei servizi pubblici
essenziali”, http://www.commissionegaranziasciopero.it) –, a quem cabe, inter
alia, no exercício de uma “função de controlo” (na expressão de Mario
Rusciano/Santoro-Passarelli, Lo sciopero nei servizi essenziali..., op. cit., p.
36), “valorar a idoneidade das prestações indispensáveis individualizadas nos
acordos entre as partes sociais e nos códigos de auto-regulamentação de modo a
garantir a conciliação do direito de greve com o respeito pelos direitos da
pessoa constitucionalmente tutelados, e, quando não os julgue idóneos, apresenta
às partes uma proposta sobre o conjunto das prestações consideradas
indispensáveis, [cabendo-lhe] na falta de acordo entre as partes (...)
[realizar] uma tentativa de conciliação e, em caso de insucesso, formula[r] a
sua proposta (...)” [artigo 13.º, n.º 1, alínea a)]. A actuação deste órgão
independente no âmbito da definição dos serviços mínimos que hão-de ser
estabelecidos para assegurar a realização das “prestações indispensáveis” assume
um relevo central no sistema italiano, não só pela sua componente tutelar e
preventiva, mas também, como se verá de seguida, porque a intervenção da
“Commissione di Garanzia” acaba por conformar o próprio procedimento governativo
de requisição dos trabalhadores.
Além do exposto, importa referir que no seio de um tal modelo (ou, rectior, de
tais modelos) admite-se igualmente – com a figura da “precettazione”, prevista
no artigo 8.º do citado diploma legislativo – uma intervenção administrativa
autoritária mediante a consagração de um procedimento específico para a
requisição dos trabalhadores em greve.
Tal possibilidade é conformada, como é assinalado pela doutrina, como uma
“válvula de segurança” e como medida de ultima ratio, que tem como
pressuposto-base a “existência de um fundado perigo de um prejuízo grave e
iminente para os direitos da pessoa constitucionalmente tutelados por causa da
falta de funcionamento de serviços de proeminente interesse geral”, sendo apenas
exercitável no final de um procedimento complexo ainda marcado pela busca de uma
solução consensual e onde, uma vez mais, avulta o papel da “Commissione di
Garanzia” – uma vez que a autoridade administrativa tem o dever, após ter levado
a cabo uma tentativa de conciliação, de convidar as partes a respeitar uma
proposta da “Commissione” eventualmente existente (cf. Mario
Rusciano/Santoro-Passarelli, Lo sciopero nei servizi essenziali..., op. cit., p.
37).
D) No ordenamento jurídico alemão – e na ausência de uma regulamentação legal da
greve –, o enquadramento jurídico da problemática em questão tem sido
essencialmente traçado por obra da doutrina e da jurisprudência, com particular
destaque para as sucessivas decisões do Bundesarbeitsgericht, que – como refere
Liberal Fernandes (“A greve na função pública...”, cit., p. 86) – assumem “uma
função verdadeiramente criadora de direito”.
Perscrutando algumas decisões do Bundesarbeitsgericht relativas ao exercício do
direito de greve pelos trabalhadores podem surpreender-se os pontos fulcrais em
discussão quanto à presente temática.
Neste domínio, o Tribunal afirma existir – cf. decisões de 30 de Março de 1982,
de 14 de Dezembro de 1993 e de 31 de Janeiro de 1995 – um consenso generalizado
quanto à obrigação de os trabalhadores assegurarem os serviços essenciais e os
serviços relacionados com a manutenção e segurança dos equipamentos e
instalações da empresa, reconhecendo-se que, estando em causa interesses de
terceiros e da própria empresa, o respeito pelo cumprimento de tal obrigação
acaba por delimitar a extensão da luta laboral.
Já quanto “à questão (...) sobre quem tem de determinar, organizar [e] dirigir”
os serviços mínimos (v. Decisão de 30 de Março de 1982), são patentes algumas
divergências ao nível da doutrina, esclarecendo o Tribunal que tal problema
permanece em aberto.
O Tribunal Federal acaba por salientar que “é tarefa das partes em conflito
esforçarem-se pela regulamentação ordenadora dos serviços mínimos, [sendo que]
se chegarem a um acordo, é este que vale como princípio geral a observar durante
a greve” (v. Decisão de 31 de Janeiro de 1995), privilegiando-se o recurso a
formas convencionais de auto-regulamentação, muitas vezes assentes em directivas
da Deutscher Gewerkschaftsbund ou em acordos celebrados para determinados
serviços de emergência (v. Liberal Fernandes, “A greve na função pública...”,
op. cit., pp. 91-92, maxime, n. 39).
8.2.2.2 - Considerando agora algumas referências que o problema em questão tem
merecido entre nós, atente-se na nossa jurisprudência, designadamente na
orientação sucessivamente firmada pelo Supremo Tribunal Administrativo (cf. os
Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de Janeiro de 1992, de 26 de
Novembro de 1997, de 19 de Maio de 1999 e de 18 de Janeiro de 2000),
substancialmente análoga, quanto aos argumentos mobilizados, à que é acolhida
pelo Acórdão recorrido, segundo a qual não existe, desde logo, qualquer preceito
a impor “[um]a definição prévia dos serviços mínimos a prestar (...)”, pelo que,
no quadro de uma tal pressuposição, entende-se que “(...) a definição dos
serviços mínimos indispensáveis cabe em primeira linha às próprias associações
sindicais e aos trabalhadores em greve, são estes que, nos termos da lei, têm de
assegurar esses serviços mínimos (...). Poderia objectar-se (...) com os riscos
de um tal regime, colocando nas mãos dos trabalhadores em greve a determinação
do que constituem as necessidades sociais impreteríveis e o modo de as
satisfazer. [§] Mas não é assim. [§] Na verdade, o instrumento da requisição
civil sempre poderá funcionar, no âmbito do artigo 8.º da Lei da Greve (...),
sem estar condicionado à eventual «definição» que os trabalhadores façam dos
serviços mínimos a prestar, bastando que os membros do Governo entendam, no
preenchimento da aludida «cláusula geral», que os trabalhadores em greve não
estão a assegurar a satisfação das necessidades sociais impreteríveis”.
Trata-se de uma posição a que corresponde, no essencial, a doutrina sufragada
por José João Abrantes (op. cit., pp. 133 e ss., e “Greve e serviços mínimos”,
in Direito do trabalho – Ensaios, Lisboa, 1995, pp. 205 e ss., esp.te 217 e
ss.), para quem “a competência em questão pertencia aos sindicatos e aos
trabalhadores em greve, enquanto imediatos destinatários dos n.os 1 e 3 do art.
8.º, ficando reservado ao Governo apenas o juízo e as competências que lhe eram
conferidas pelo n.º 4 (...) daquele artigo, preceito que, todavia, pressupunha
para a sua aplicabilidade o não cumprimento pelos trabalhadores daquelas suas
obrigações”.
Assim, afirma o Autor (v. “Greve e serviços mínimos”, in Direito do trabalho –
Ensaios, cit., pp. 217-218 – texto escrito na vigência da Lei n.º 30/92): “(...)
no caso dos serviços públicos (por exemplo, de saúde), o Governo é também
entidade patronal, o que compromete claramente o afirmado atributo de
neutralidade e imparcialidade. [§] Independentemente disso, havia que reconhecer
não haver efectivamente qualquer norma legal ou constitucional atributiva da
referida competência ao Governo. [§] Uma coisa é o poder de decretar a
requisição ou a mobilização – e a ela se referia o n.º 4 do art. 8.º - e outra,
bem distinta, é a faculdade de definir os serviços mínimos, a qual claramente a
lei se abstinha de atribuir. [§] Também sustentávamos não ser possível ver tal
norma no art. 202.º, f) e g), da Constituição, disposição relativa à competência
administrativa do Governo e que manifestamente não releva para a situação em
apreço. Aliás, a interpretação que a tal preceito faz apelo sempre seria de
compaginar com uma outra norma constitucional, a do art. 168.º, 1, b), de onde
resulta que o direito à greve é matéria abrangida pela reserva de competência
legislativa da Assembleia da República. [§] Antes pelo contrário, o que a lei
dizia é tão-só que a obrigação dos serviços mínimos impende sobre os
trabalhadores em greve. Estes deveriam então cumpri-la pontualmente, ficando
reservado ao Governo – apenas – o juízo e as competências que lhe eram
conferidas pelo art. 8.º, 4, da Lei da Greve, preceito que, no entanto,
pressupõe para a sua aplicabilidade o não cumprimento pelos trabalhadores
daquelas suas obrigações”.
Já o Supremo Tribunal de Justiça, por seu turno, em Acórdão de 6 de Dezembro de
1993, considerou, em linha oposta, que “(...) em caso de greve dos trabalhadores
de uma empresa do sector dos transportes públicos, não é à empresa empregadora
nem às associações sindicais, mas sim ao Governo, que compete definir quais os
serviços mínimos cuja execução é de considerar indispensável durante os dias de
greve, competindo depois às associações sindicais e aos trabalhadores a
designação individual daqueles que irão assegurar a prestação dos serviços pelo
Governo fixados”.
Também a Procuradoria-Geral da República, já depois da prolação do Acórdão n.º
289/92 deste Tribunal, voltou a considerar o problema da definição e cumprimento
dos serviços mínimos, num Parecer (de 18 de Janeiro de 1999) que sistematiza o
“estado da questão” ao nível do direito pátrio, justificando-se, por isso – e
pelo interesse que as questões aí abordadas envolvem para o problema dos autos –
que se considerem as linhas capitais com que a questão da obrigatoriedade dos
serviços mínimos e a sua definição aí foi tratada:
«(...)
O conceito constitucional e legal de “serviços mínimos” é fluído e
indeterminado, pelo que as variações de amplitude envolvidas na sua
concretização implicam por necessidade variações inversamente proporcionais do
conteúdo da greve.
Em suma, a definição e concretização dos serviços mínimos pode redundar numa
restrição ou compressão do núcleo essencial do direito à greve.
Se, todavia, importa conciliar o exercício do direito de greve com a protecção
de interesses colectivos essenciais e impreteríveis, da aplicação dos textos
constitucional e legal de forma alguma pode resultar a inutilização prática
daquele direito.
“Se, de facto, não se quis imolar quaisquer direitos fundamentais ao direito de
greve, muito menos se quis sacrificar este àqueles: visou-se apenas atingir o
necessário ponto de equilíbrio entre um e outros.”
(...) Sendo o conceito de “serviços mínimos” fluido e indeterminado, e
exigindo, por isso, definição de concretização, a lei não indica, porém,
expressa e directamente, a competência para fixar os serviços mínimos.
A ausência de fixação directa na lei tem provocado em diversas ocasiões um
labor interpretativo de ordem sistemática deste Conselho na determinação da
competência para a definição do nível, conteúdo e extensão dos serviços mínimos.
Com a conclusão sucessivamente reiterada de que tal competência pertence ao
Governo.
Tem-se, com efeito, ponderado que “a definição do nível, conteúdo e extensão
dos serviços mínimos indispensáveis releva os interesses fundamentais da
colectividade, depende em cada caso da consideração de circunstâncias
específicas, segundo juízos de oportunidade e compete ao Governo” –,
argumentando-se com a ideia de que a decisão sobre o conteúdo dos serviços
mínimos pode transformar-se em factor de conflito entre as partes, e não
deveria, por isso, ser deixada na disponibilidade de nenhumas delas, “mas
submetida à decisão de uma entidade, em princípio, imparcial”.
Assim, estando em causa “valores implicando considerações de ordem pública,
apareceria o Governo, até por razões constitucionais de defesa da legalidade
democrática e de tomada das providências necessárias à satisfação das
necessidades colectivas - então o disposto nas alíneas f) e g) do artigo 202º da
Constituição, hoje do artigo 199º - como a entidade adequada”.
Argumentou-se, também, com o n.º 4 do artigo 8º da Lei da Greve, a qual permite
o Governo determinar a requisição ou mobilização se os serviços mínimos não
estiverem a ser assegurados, o que teria implícita a competência prévia para a
definição do âmbito e nível daqueles serviços mínimos.”
A formulação do Conselho quanto às questões de competência para a fixação dos
serviços mínimo suscitou objecções em alguma doutrina. Ponderando objecções, o
Conselho reafirmou recentemente a sua posição nos termos seguintes: “Não deixará
de se admitir que a decisão de considerar certo departamento como prestador de
serviços essenciais e a consequente fixação de serviços mínimos, tomada pelos
órgãos de direcção de um serviço directamente dependente do Governo, ou mesmo de
um serviço personalizado, de um instituto público ou empresa pública, é
susceptível de revestir a aparência de menos imparcialidade.
Dará, em menor grau, o flanco à crítica a decisão tomada pelo próprio Governo.
De qualquer modo, não se vê razão para abandonar a posição que vem sendo
seguida por este Conselho, nos termos da qual é ao Governo que compete, em
última instância, tomar as providências necessárias à satisfação das
necessidades colectivas, bem como à defesa da legalidade democrática, tal como
advém das alíneas f) e g) do artigo 199º da Constituição.
“É certo que o novo n.º 3 do artigo 57º remete para a Lei a definição das
condições de prestação desses serviços mínimos, o que não se encontra cabalmente
conseguido com o dispositivo actual.”
E acrescenta-se “que [...] não será despiciendo assinalar que a Administração,
ao prosseguir o interesse público, deve fazê-lo no respeito pelos direitos e
interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Resulta do n.º 2 do artigo 266º
da Constituição que os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à
Constituição e à lei e devem actuar nas suas funções com observância dos
princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade.
Por outro lado, a participação dos cidadãos nas decisões ou deliberações que
lhes disseram respeito é um princípio também com inscrição constitucional – n.º
5 do artigo 267º.
Ademais, as decisões tomadas pelo Governo não deixam de estar sujeitas à
possibilidade de controlo jurisdicional.
O que quer dizer que, embora seja o Governo a usar do poder de fixar quais
sejam os serviços essenciais e a determinar a medida dos serviços mínimos, não
deve fazê-lo sem audição das associações sindicais ou comissões de greve, ainda
quando haja trabalhadores disponíveis, não aderentes à greve, já que a situação
pode alterar-se.”
“Isto independentemente do poder-dever que assiste ao Governo de determinar a
requisição civil dos trabalhadores necessários ao seu cumprimento, de acordo com
disposto no n.º 4 do artigo 8º da Lei n.º 65/77, que se colocará numa fase
seguinte.”
(...)».
Importa também notar o entendimento expresso por Gomes Canotilho/Jorge Leite (in
“Ser ou não ser uma greve...”, cit., p.31-32), que, perante a regulamentação
aqui em crise, evidenciam algumas dimensões problemáticas assaz relevantes:
“(...) a lei da greve (...) limita-se a enunciar alguns dos sectores que se
destinam à satisfação de necessidades sociais impreteríveis (art. 8.º/2),
parecendo estabelecer uma autovinculação das associações sindicais quanto à
prestação dos serviços mínimos indispensáveis para ocorrer a essas necessidades
(art. 8.º/1). Em termos textuais, a lei não diz que os sindicatos são as
entidades competentes para definir os serviços mínimos; impõe, sim, a obrigação
das associações sindicais de assegurarem durante a greve a prestação dos
serviços mínimos indispensáveis. Uma coisa é dizer-se quem tem competência para
a definição de serviços mínimos e outra é dizer-se quem está obrigado a cumprir
esses serviços. A confusão destes dois planos explica a frequente inversão de
competências com alguns sindicatos a reivindicarem a competência para a
definição de serviços mínimos e a assumirem a obrigação de apenas cumprirem os
serviços mínimos por eles definidos. Ora, isto equivaleria a reivindicar uma
completa competência de auto-regulamentação de modo algum consagrada no
ordenamento jurídico-constitucional português. A dimensão de autoregulação
subsiste, num primeiro momento, na gestão da obrigação de prestação de serviços
mínimos definidos pelas entidades legalmente competentes e não na definição
destes mesmos serviços. Note-se que nada impede (...) que a definição dos
serviços mínimos comece por uma autoregulação das partes envolvidas, mas não se
pode impedir que, na falta de acordo autoregulativo, as entidades públicas
constitucional e legalmente responsáveis pela defesa de direitos e satisfação
das necessidades sociais impreteríveis fixem o nível concretamente adequado de
serviços mínimos. Num Estado de direito, os sindicatos poderão, como é óbvio,
contestar judicialmente a decisão das autoridades, assim como estas poderão
recorrer à via judiciária para obter, se for o caso, a efectivação da
responsabilidade das associações sindicais e dos trabalhadores.
(...) compreende-se, porém, que a lei da greve não tenha querido eliminar
totalmente uma autoregulação concertada das partes em conflito, evitando duas
unilateralidades, quais sejam a de só confiar à entidade empregadora ou
associações patronais e só às associações sindicais e aos trabalhadores a
definição dos serviços mínimos (cfr. art. 8.º/4-5 da Lei 65/77 com a redacção
que lhe deu a Lei 30/92, entretanto declarada inconstitucional). Na falta,
porém, de previsão legal quanto a outros esquemas – heteroregulação judicial ou
heteroregulação por entidades independentes – e ausência de autoregulações
satisfatórias, só as entidades estatais que têm a responsabilidade pública pela
continuidade de serviços sociais indispensáveis se perfilam como instâncias
competentes para a definição de serviços mínimos (cfr. art. 8.º/6 da Lei 65/77
com a redacção que lhe fora dada pela Lei 30/92). Note-se que esta solução não
deixa de suscitar problemas, sobretudo quando as entidades públicas são também
as entidades empregadoras, pelo que, pelo menos enquanto esta matéria não for
devidamente regulamentada, ainda mais se justifica a existência de um
procedimento judicial próprio que responda celeremente ao recurso da parte
interessada.
A generalidade da doutrina constitucional articula a competência do Estado para
a definição de serviços mínimos indispensáveis com a ideia de dever de protecção
que imputa ao Estado a responsabilidade pela criação de organizações,
procedimentos e processos indispensáveis à garantia e protecção de direitos
fundamentais. Isto sobretudo quando estão em causa direitos fundamentais da
pessoa como a vida, a saúde, a segurança, a integridade física. Em algumas
formulações, este dever de protecção de direitos fundamentais abrange a
necessidade de conformar as regulações jurídicas de modo a evitar o perigo de
violação de direitos fundamentais caso se verifiquem determinados pressupostos.
Como pressupostos especiais para a equiparação de perigo de violação de direitos
a lesão de direitos assinala-se a elevada possibilidade de resultarem,
relativamente aos utentes de serviços essenciais, riscos sérios quanto ao
direito à vida ou danos importantes para a saúde.
Estas considerações, articuladas com as razões aduzidas pela Procuradoria-Geral
da República (Parecer, DR II, de 29-11-90), levam-nos a defender que, quando
falte ou se revele insatisfatório o mecanismo de autoregulação daqueles sobre os
quais recai a obrigação de os prestarem, cabe ao Governo, através dos ministros
interessados, proceder à definição dos serviços mínimos.”
8.2.3 - Após as considerações supra efectuadas (ponto 8.2.1.) sobre a
conformação do direito à greve e a imposição de limites a tal direito
fundamental, preordenados à imperiosa necessidade de assegurar o respeito pela
satisfação de necessidades sociais impreteríveis, e perspectivados, tendo em
conta algumas experiências jurídicas além-fronteiras, diversos modelos relativos
à questão da competência para definir ou identificar em concreto os serviços
mínimos que devem ser assegurados pelos trabalhadores (essencialmente o ponto
8.2.2.), importa agora, respeitando as linhas fundamentais que emergem de tal
enquadramento, incidir directamente sobre o problema de constitucionalidade
suscitado nos presentes autos. E isto tendo em conta que o “modelo operativo” de
“definição” dos serviços mínimos – finalisticamente ordenados para satisfação
das necessidades sociais impreteríveis –, gizado na decisão recorrida a partir
de uma densificação normativa do artigo 8.º da Lei da Greve, assenta em três
dimensões nucleares que se entrecruzam reciprocamente: (a) em primeiro lugar,
perfila-se, desde logo, o problema da (não) imposição de uma prévia actuação –
independentemente do autor que a leve a cabo – ao nível da definição dos
serviços mínimos, em termos de estes ficarem de alguma forma individualizados e,
assim, preventivamente determinados no momento efectivo da paralisação laboral;
(b) depois, seguindo na linha do “procedimento” firmado pelo Tribunal, assume-se
como tarefa exclusiva dos trabalhadores proceder in casu à “definição” dos
serviços mínimos no âmbito do cumprimento da obrigação estabelecida pelo artigo
8.º, n.º 1, da Lei da Greve; (c) finalmente, para concluir, o Tribunal sustenta
que o Governo poderá sempre intervir quando entender que os trabalhadores, no
preenchimento da “cláusula geral” de obrigação de asseguramento da satisfação
das necessidades sociais impreteríveis, não a cumprem em termos adequados.
Tais dimensões – que concretizam a “norma do caso” mobilizada pelo Supremo
Tribunal Administrativo – não podem deixar de ser conjuntamente consideradas em
ordem à resolução do problema de constitucionalidade colocado nos autos, sendo
apenas no âmbito de uma tal “visão de conjunto” por elas possibilitadas que se
deverá perspectivar a resolução do caso sub judicio.
Já se deixou expresso o sentido teleológico inerente à obrigação de assegurar os
serviços mínimos em termos de, neste momento, se poder considerar que a questão
do cumprimento – rectior, da imposição... – de tal obrigação, em respeito pela
satisfação de necessidades sociais impreteríveis, constitui um ponto fundamental
e nuclear ao nível do respeito por determinados valores e direitos
constitucionalmente tutelados – estando, pois, inerente ao seu estabelecimento
uma preventiva dimensão de garantia, preservação e respeito efectivo própria da
tutela constitucional dispensada aos direitos fundamentais.
Todavia, não obstante corresponderem a uma dimensão material do Estado de
direito democrático, a responsabilidade pela realização, efectivação e prevenção
dos bens jurídicos aqui envolvidos não cabe exclusivamente ao Governo.
A obrigação de definição dos serviços mínimos capazes de satisfazer as
necessidades sociais impreteríveis corresponde a uma obrigação que, por
natureza, deve ter-se por manifestamente indisponível, mesmo quando atribuída
aos trabalhadores, daí decorrendo que, na sua conformação, terá de proceder-se a
uma ineliminável tarefa de determinação e avaliação de quais sejam as
necessidades sociais impreteríveis que correspondem a dimensões nucleares
constitucionalmente tuteladas e que hão-de ser pacificadas mediante a prestação
de serviços mínimos.
A tal não obsta, de modo algum, o facto de a construção legislativa que
densifica a obrigação de cumprimento dos serviços indispensáveis à satisfação
das necessidades sociais impreteríveis assentar, justificadamente, numa
ordenação não taxativa edificada sobre conceitos indeterminados, não
dispensando, assim, um esforço de concretização e densificação não só quanto ao
quid (aqui se questionando os domínios laborais sujeitos à regra da continuidade
da laboração de forma a não afectar as “necessidades sociais impreteríveis”),
mas igualmente no que concerne ao quantum que permitirá lograr o cumprimento da
intenção prático-normativa da imposição legal.
Nessa linha, não pode duvidar-se de que a concretização definidora dos serviços
mínimos se pauta por um critério legalmente estabelecido que, nessa medida, se
assume como um tipo ordenador e delimitador em face da concreta delimitação que
se opere, pelo que a questão da competência para a definição dos serviços
mínimos não deixa de estar, decerto, ineliminavelmente ligada à intenção
prático-normativa subjacente à imposição da obrigação de se assegurar a devida
satisfação das necessidades sociais impreteríveis.
Por isso, mesmo que o grau de densificação normativa com que o legislador
recortou a esfera de tal imposição acabe por transferir a especificante
conformação dessa mesma obrigação para o plano casuístico, as indefectíveis
exigências de previsibilidade, segurança e garantia de tutela efectiva dos
direitos fundamentais e dos valores constitucionais potencialmente afectados por
uma greve não podem deixar de impor que se acautele devidamente uma determinação
identificadora das prestações sociais impreteríveis, daí decorrendo logicamente
– et pour cause – que o cumprimento da obrigação de prestação de serviços
mínimos não possa deixar de estar sempre preordenado a uma tal definição.
O que, em todo o caso, não implica forçosamente que esta última
dimensão apenas sobressaia – e, em rigor, se esgote – no momento em que se torna
necessário assegurar os serviços mínimos, ficando (por isso) exclusivamente nas
mãos dos trabalhadores a competência (implícita) para a determinação dos
serviços a cumprir, tendo assim de concluir-se, como se diz no acórdão
recorrido, que a “não imposição de definição prévia, por quem quer que seja,
começa desde logo a apontar para a falta de apoio legal de um acto autoritário
dos membros do Governo que estabeleça os serviços mínimos a prestar (...) [não
se devendo] esquecer que os destinatários directos da norma são os trabalhadores
e as associações sindicais a quem (...) compete definir o âmbito dos interesses
a defender durante a greve”.
De resto, a mesma decisão recorrida, como infra se explicitará, admite que,
através do instituto da requisição civil, o Governo não fique preso à
“definição” operada pelos trabalhadores, “bastando que os membros do Governo
entendam (...) que os trabalhadores em greve não estão a assegurar a satisfação
das necessidades sociais impreteríveis”.
Em todo o caso, a questão da competência para a definição dos serviços mínimos
não deixa de estar de algum modo associada directamente à dimensão
prático-normativa subjacente à imposição da obrigação de se assegurar a devida
satisfação das necessidades sociais impreteríveis, pelo que nada obsta a que,
sob a perspectiva da sua titularidade, tal definição possa estar acoplada a
esta, sem que, porém, seja a única solução constitucional possível.
Assim e nesta perspectiva, a questão que se assume como verdadeiramente nuclear
é a de saber se o esquema operativo [pré-]ordenado ao cumprimento da obrigação
dos serviços mínimos, atenta a sua intencionalidade, há-de ficar, sem violação
do parâmetro constitucional invocado, fora do alcance da competência do Governo.
E, quanto a este ponto particular – que infra se desenvolverá – a Constituição
não reclama, forçosamente, uma intervenção do Governo, sendo igualmente
compatível com modelos operatórios que afectem a outras instâncias a tarefa de
proceder a tal definição, não sendo forçoso que para o preenchimento dos
conceitos indeterminados que recortam a obrigação em causa se haja de impor a
intervenção do Governo ao nível da identificação/concretização das necessidades
sociais impreteríveis a satisfazer.
Atente-se, então, no problema de saber “a quem cabe” definir e concretizar o
quid e o quantum em que a obrigação de prestação de serviços mínimos se cumpre,
ou seja, por outras palavras, “quem tem competência” para proceder à
densificação concretizadora da intenção normativa da norma que recorta tal
orientação, sendo certo, porém, que tal resposta está, nos autos, estritamente
vinculada ao objecto do recurso de constitucionalidade e, assim, à apreciação da
bondade constitucional do normativo critério decisório sobre o qual incide o
presente recurso.
Concretizando o “esquema” normativo traçado pela recorrida decisão do Supremo
Tribunal Administrativo, e, em particular, a resposta que a questão supra
enunciada aí mereceu, podem, em essência, diferenciar-se dois momentos: num
primeiro, afirma-se a responsabilidade dos trabalhadores e das suas estruturas
representativas pela obrigação de assegurar o cumprimento dos serviços mínimos
e, consequentemente, pela concretização identificadora/definidora desses
serviços; num segundo momento, salienta-se que, perante tal definição, o Governo
pode, “sem estar condicionado à eventual ‘definição’ que os trabalhadores façam
dos serviços mínimos a prestar”, lançar mão do instrumento da requisição civil,
daí resultando, no entendimento da decisão recorrida, que “[não se coloca] nas
mãos dos trabalhadores em greve a determinação do que constituem as necessidades
sociais impreteríveis e o modo de as satisfazer”.
Temos, portanto, que a decisão recorrida entendeu que a tarefa de
identificação e fixação dos serviços mínimos cabe, em primeira linha, aos
trabalhadores de forma exclusiva e incondicionada por qualquer actuação
governamental.
Vale isto por dizer que a concretização da obrigação de prestação dos serviços
conectados com as necessidades sociais impreteríveis – e a sua avaliação – está
sempre, segundo tal decisão, num primeiro instante, dependente da posição que
seja assumida, em concreto, pelos trabalhadores e sindicatos, em termos de ser
tal definição (ou a sua ausência...) a delimitar (ou a excluir...),
apodicticamente, o sentido, o conteúdo e o alcance da imposição que sobre eles
impende, assim se atribuindo aos trabalhadores o poder de conformação da
obrigação de prestação de serviços mínimos que têm de ser garantidos – o que é
corroborado, e potenciado, pelo entendimento de que não é exigível uma
definição prévia desses serviços.
Mas, por outro lado, precisou-se aí também que o Governo não está impedido de
intervir na conformação da obrigação de prestação de serviços mínimos, na medida
em que, mesmo cabendo, prima facie, aos trabalhadores a “definição” desses
serviços, a autoridade administrativa não fica absolutamente vinculada pela
fixação que venha a ser estabelecida pelos sindicatos, uma vez que, em última
análise, caberá sempre ao Governo uma intervenção correctiva e de garantia do
cumprimento da obrigação que impende sobre os trabalhadores, prefigurando-se a
requisição civil como um instrumentarium de reacção, sobreponível a uma
desadequada “definição” dos serviços mínimos.
Deste modo, pode dizer-se que, mesmo segundo a decisão recorrida, a atribuição
aos sindicatos da tarefa de definição dos serviços mínimos não corresponde ao
reconhecimento de um poder absoluto e insindicável e, em todo o caso,
definitivo, mas apenas a um iter do procedimento de greve (que não deixa de
estar sujeito a uma intervenção governativa cuja intenção e conteúdo passam,
decerto, pela avaliação da correcção do quid e do quantum “definido”,
sobreponível ao primeiro juízo, enquanto intervenção de autoridade que assegure
o cumprimento da obrigação legal e constitucionalmente imposta).
É certo que a decisão impugnada constitucionalmente, por fazer coincidir o
momento da “definição” dos serviços mínimos com o da sua realização, parece
sugerir a ideia de que ficará afastada a possibilidade de o Governo lançar mão
de medidas preventivas directamente orientadas para evitar uma iminente situação
de incumprimento da obrigação de serviços mínimos e de lesão dos direitos
fundamentais.
Note-se, no entanto, ser também possível uma sua leitura no sentido de que a
requisição civil poderá ser determinada pelo Governo logo que este entenda que
os trabalhadores, com a posição concretamente adoptada, não estão a assegurar,
mesmo que cautelarmente, a satisfação das necessidades sociais impreteríveis.
Como quer que seja, nem o modo como a decisão recorrida entendeu o instrumento
da requisição civil (se passível ou não de ser usado cautelarmente) vincula o
Tribunal Constitucional, por não incorporar a dimensão normativa
constitucionalmente sindicada, correspondendo a um simples argumento de
interpretação de ordem sistemática de que o tribunal a quo se socorreu para
definir a norma impugnada, nem a solução da questão de conformidade
constitucional da acepção normativa de que cabe aos trabalhadores a competência
para a definição dos serviços mínimos é forçosamente implicada pela posição que
se tome quanto à resolução dessa questão.
Na verdade, uma coisa é a questão da necessidade de salvaguardar a eficácia da
tutela constitucional dispensada aos direitos fundamentais em caso de risco
iminente da sua lesão, derivada da falta ou errada definição do quid e do
quantum dos serviços mínimos que satisfaçam as necessidades sociais
impreteríveis, pois que “as limitações ao direito à greve impostas em nome da
continuidade dos serviços públicos justificar-se-ão não tanto em nome do combate
ao «abuso de direitos fundamentais» mas em nome da defesa de outros direitos
fundamentais” (v. Gomes Canotilho/Jorge Leite, “Ser ou não ser uma greve...”,
op. cit., pp. 28-29); outra diferente é a questão da atribuição da competência
para a definição dos serviços mínimos cuja correcta utilização obviará a que
esse risco de lesão se verifique.
Deste modo, as problemáticas da possibilidade de recurso a meios cautelares para
evitar o risco iminente de lesão de direitos fundamentais pela falta ou errada
definição dos serviços necessários e adequados a assegurar a satisfação das
necessidades sociais inadiáveis, de quais sejam os instrumentos jurídicos
funcionalizados à obtenção dessa tutela preventiva que satisfaçam as exigências
do princípio da proporcionalidade constantes do n.º 2 do art.º 18º da CRP
(necessidade, adequação e justo limite) e da competência ou legitimidade para
lançar mão deles não contendem com a questão de saber a quem cabe a competência
legal para proceder à definição dos serviços mínimos cuja realização obstará
àquele risco, podendo as respostas conviver tanto com o sistema defendido pela
recorrente como com o sustentado pela decisão recorrida, ou até com os
consagrados no direito comparado que se sumariou, prendendo-se antes com a
questão de concessão, em caso de risco de lesão, da sua tutela preventiva -
risco esse que pode decorrer da falta ou errada definição dos serviços mínimos
adequados a satisfazer as necessidades sociais impreteríveis, qualquer que seja
o sujeito a quem a lei ordinária atribua a competência para a definição desses
serviços mínimos.
É, pois, neste campo que se poderá colocar a questão da idoneidade
constitucional do instituto da requisição civil para poder funcionar como meio
administrativo cautelar do risco de lesão dos direitos fundamentais decorrente
da falta ou errada definição dos serviços mínimos adequados a satisfazer as
necessidades sociais impreteríveis – problema, aliás, que esteve em análise no
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 20 de Março de 2002, e que aí
mereceu resposta negativa, mas cuja solução não chegou a ser sindicada em sede
de recurso constitucional, suscitando a observação de Bernardo Xavier (in
“Requisição civil, serviços mínimos...”, cit., p. 33) de que tal “acórdão revela
uma distância muito grande das situações de risco ou de perigo” (para o Autor, é
certo que “o simples perigo de violação de bens fundamentais pode, em toda a
parte, legitimar acções de excepção”, admitindo, assim, perante um caso no qual
os trabalhadores manifestaram a sua intenção de não cumprir quaisquer serviços
mínimos, a mobilização do instituto da requisição civil como instrumento
cautelar de garantia dos valores constitucionais tutelados pela obrigação de
satisfação das necessidades sociais impreteríveis, o que “reclama que estejam a
postos os serviços indispensáveis para debelar situações de emergência, porque é
essa prontidão que satisfaz a legítima aspiração à segurança da própria
comunidade envolvida”). Isto não sendo igualmente inédito, mesmo ao nível da
doutrina, o reconhecimento da possibilidade de o Governo, judicialmente, “lançar
mão de uma providência cautelar urgente, pedindo que as associações sindicais
sejam condenadas a indicar os trabalhadores necessários à prestação dos serviços
mínimos e à segurança das instalações” (cf. José João Abrantes, “Greve e
serviços mínimos”, op. cit., p. 230).
Trata-se, assim, de questão que se pode deixar em aberto, por a sua solução não
implicar, como já se disse, com a decisão da questão de saber se a norma aqui
concretamente sindicada respeita as normas e princípios constitucionais,
nomeadamente, os preceitos do artigo 199º, alíneas f) e g), da Constituição.
Não obstante se admitir, como se disse, que a atribuição da
competência para definir os serviços mínimos, como dimensão coetânea e
incindível da obrigação de assegurar o cumprimento de prestações sociais
impreteríveis, em exclusivo aos trabalhadores acabe por poder contender com o
exercício de uma função pública direccionada a salvaguardar os interesses vitais
da colectividade e, consequentemente, a evitar lesões efectivas dos bens
jurídicos fundamentais que se pretendem garantir, não é de concluir – com o que
se avança a resposta à questão decidenda – pela desconformidade da norma
sindicada com a Lei fundamental.
É certo que a Constituição reserva ao Governo, no domínio da função
administrativa, um papel específico, traduzido, desde logo, na “responsabilidade
pública pela continuidade de serviços sociais indispensáveis” e que se efectiva,
de forma clara, no mandato conferido no artigo 199.º, alíneas f) e g), da nossa
Lei Fundamental, podendo, até, ver-se nessa incumbência um argumento a favor da
tese (questão deixada em aberto) de que o Governo tenha competência
constitucional para, em caso de greve anunciada ou efectivada, lançar mão de
meios administrativos ou de medidas cautelares judiciais para “defender e
garantir os direitos e interesses dos cidadãos reconhecidos por lei” e de que
lhe caiba “providenciar (...) pela satisfação das necessidades colectivas do
país” (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3.ª edição revista, p. 783 – em anotação ao então artigo 202.º), até
porque “incumbe ao Estado garantir a continuidade dos serviços mínimos
indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis
(...) [tratando-se], como assinala a doutrina, do cumprimento de um dever de
protecção (Schutzpflicht), indispensável à garantia de direitos num estado de
direito democrático-constitucional” (Gomes Canotilho/Jorge Leite, “Ser ou não
ser uma greve...”, op. cit., p. 40).
Mas o que seguramente não decorre de tais preceitos é que,
possivelmente ressalvado o quadro do uso necessário, proporcionado e adequado de
meios jurídicos tendentes a acautelar o risco de lesão de direitos fundamentais
pela falta ou errada definição dos serviços mínimos pacificadores das
necessidades sociais inadiáveis ou impreteríveis, a Constituição atribua
directamente ao Governo a competência para poder definir os serviços mínimos que
assegurem a satisfação, em caso de greve, das necessidades sociais inadiáveis ou
que - questão que é objecto deste recurso - o legislador ordinário esteja
constitucionalmente obrigado a adoptar uma solução nos termos da qual o Governo
não possa ser excluído na definição desses serviços mínimos em caso de greve.
O que não seria constitucionalmente tolerável, na óptica da defesa
de outros direitos fundamentais, seria que perante uma “não”-definição ou
perante uma deficiente definição dos serviços mínimos – que não acautelasse
devidamente o cumprimento da obrigação de assegurar a realização das prestações
sociais impreteríveis –, se vedasse ao Governo, e em geral à autoridade pública,
qualquer prerrogativa de actuar tomando todas as providências necessárias à
satisfação das necessidades colectivas, com particular destaque, como é óbvio,
para aquelas que tocam interesses vitais da comunidade e direitos essenciais da
pessoa humana, cuja tutela não se mostra compatível com situações de clara e
manifesta indefinição.
Mas, fora desse quadro, não se vê razão para que não possa caber aos
trabalhadores, por força de lei, a definição das necessidades sociais
impreteríveis a satisfazer.
Ademais, não pode ignorar-se que o entendimento contrário acabaria por
conduzir, em tal âmbito, a uma solução que vedaria ao legislador a possibilidade
de prever uma outra metodologia de definição dos serviços mínimos, fosse ela
deixada a cargo de entidades independentes ou a órgãos de natureza paritária
e/ou arbitral, pois teria sempre de estar também nas mãos do Governo o alfa e o
omega da competência para a fixação dos referidos serviços.
Pode assim concluir-se que a norma constitucionalmente sindicada não viola os
preceitos constantes das alíneas f) e g) do artigo 199º da Constituição.
9 - Invoca também a Recorrente que a norma em crise afronta o disposto nos
artigos 55.º e 56.º da Constituição, colidindo com “o perfil constitucional dos
sindicatos”, na medida em que, como se alega, “em face do quadro constitucional
e legal vigente, os sindicatos apresentam-se como puros sujeitos de direito
privado, cuja representação é naturalmente limitada pelo interesse colectivo da
categoria sindical definida nos seus estatutos, (...) não se alcança[ndo], por
isso mesmo, como se possa atribuir a esses sujeitos um poder que vai muito para
além dessa representação e que se prende com interesses alheios aos da categoria
sindical – e que podem mesmo ser, no caso dos serviços mínimos para segurança e
manutenção das instalações e equipamentos, interesses do empregador que é
contraparte no conflito colectivo que determinou a greve”.
Para sustentar tal entendimento, a Recorrente invoca, inter alia, as
considerações expendidas no Acórdão n.º 272/86 deste Tribunal, citando o aresto,
no que interessa para a sua conclusão, na parte em que se refere “importa apenas
afirmar, e sem quaisquer hesitações, que o que não é compatível com o direito à
independência sindical (...) é, seguramente, a atribuição forçada, e por via de
lei, de funções públicas aos sindicatos”.
Tal jurisprudência foi, mais tarde, recuperada pelo Acórdão n.º 445/93 (também
mencionado pela Recorrente e publicado no Diário da República II Série, de 13 de
Agosto de 1993, e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25.º vol., pp. 335 e
ss.), onde se considerou:
«(...)
No contexto jurídico-político que tinha por referência legitimadora a
Constituição de 1933, compreendia-se que os sindicatos dispusessem de
prerrogativas de autoridade e se apresentassem como entidades de direito
público.
Com efeito, nos termos do Decreto-Lei nº 23050, os sindicatos nacionais,
como entidades de direito público, deviam 'subordinar os respectivos interesses
aos interesses da economia nacional, em colaboração com o Estado e com os órgãos
superiores da produção e do trabalho' (artigo 9º), cabia a tais sindicatos a
'representação dos interesses profissionais da respectiva categoria' (artigo
13º, n.º 1) e os contratos de trabalho e os regulamentos por ele elaborados,
depois de sancionados e aprovados, obrigavam 'igualmente os inscritos e não
inscritos' (artigo 22º).
Como também se compreendia que tais sindicatos dispusessem de competência
para proceder à elaboração dos regulamentos das carteiras profissionais e bem
assim a de as emitir, como forma de controlar o exercício regular de determinada
profissão.
Mas, contrariamente a semelhante sistema sindical, em que os sindicatos se
apresentavam como entidades de 'carácter público' ou de 'pessoas colectivas de
direito privado e regime administrativo” (cfr. respectivamente, Bernardo Lobo
Xavier, “O papel dos sindicatos nos países em desenvolvimento”, Revista de
Direito e Estudos Sociais, ano XXV, 1978, pp. 387 e ss., e Marcello Caetano,
Manual de Direito Administrativo, Forense, Tomo I, p. 355), aos sindicatos do
actual ordenamento jurídico não é consentida a atribuição forçada e por via de
lei de tarefas ou funções públicas, como sucede com aquelas que no quadro do
regime em apreço são cometidas à associação sindical dos jornalistas, 'obrigada'
a emitir os títulos profissionais, independentemente da qualidade de
sindicalizado do trabalhador interessado em tais documentos.
Com efeito, 'dada a natureza privada dos sindicatos, aliada ao princípio da
filiação, deve entender-se, na linha da jurisprudência do Tribunal
Constitucional, que não pode a lei atribuir aos sindicatos poderes de autoridade
e, designadamente, o poder de passar carteiras profissionais. Tal atribuição,
feita por lei, iria violar a liberdade de acção das associações sindicais e a
sua independência' (cfr. António Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 461).
Por outro lado, e complementarmente, a atribuição à organização sindical dos
jornalistas de um poder fiscalizador do exercício da profissão traduzido na
competência para determinar a suspensão, perda ou apreensão do título, com a
consequente impossibilidade de exercer legitimamente a profissão bem como de um
verdadeiro poder disciplinar, no que respeita às eventuais infracções aos
deveres deontológicos dos jornalistas, implicam a atribuição do exercício de
verdadeiros poderes ou prerrogativas de autoridade, manifestamente contrários e
estranhos aqueles que são próprios dos sindicatos e se inscrevem no âmbito das
suas específicas finalidades.».
Note-se, desde já, que deste entendimento [na esteira do firmado nos Acórdãos
n.os 46/84, 91/85 e 272/86 – publicados, respectivamente, in Diário da
República II Série, de 13 de Julho de 1984, de 18 de Julho de 1985 e de 18 de
Setembro de 1986 –, nos quais se teve por inconstitucional a norma do § 1º do
artigo 3º do Decreto-Lei n.º 29931, de 15 de Setembro de 1939 (no caso dos dois
primeiros acórdãos), respeitante à competência atribuída ao Sindicato B. para
proceder à emissão das carteiras profissionais indispensáveis ao exercício
daquela actividade profissional, e a norma do artigo 9º, n.º 2, da Portaria n.º
367/72, de 3 de Julho (no caso do último aresto), que confiava aos sindicatos a
passagem das cadernetas de registo da prática de certos auxiliares de
farmacêutico, com base na violação do princípio constitucional da liberdade
sindical e da independência, consagrados nos artigos 56º, n.ºs 1, 2, alínea b),
e 4, da Constituição, na versão saída da revisão constitucional de 1982] não
pode extrair-se qualquer argumentação que determine a inconstitucionalidade do
artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto, quando interpretado
no sentido de que compete apenas aos sindicatos e aos trabalhadores, com
exclusão do Governo, a definição em concreto dos serviços mínimos durante a
greve, por violação do disposto nos artigos 55.º e 56.º da Constituição.
Na verdade, não resulta da norma aplicada qualquer investidura das associações
sindicais e dos trabalhadores no exercício de uma tarefa ou função pública que
se traduzam numa prerrogativa de ius imperii e de “exercício de verdadeiros
poderes ou prerrogativas de autoridade, manifestamente contrários e estranhos
àqueles que são próprios dos sindicatos e se inscrevem no âmbito das suas
específicas finalidades”.
Trata-se, tão-só, como é confirmado pela decisão recorrida, de fazer recair
sobre os sindicatos e os trabalhadores a observância de uma obrigação social –
consubstanciada, como se viu, na determinação e grau das necessidades sociais
associadas aos serviços mínimos a prestar e no modo de as pacificar – que lhes
cabe assegurar, não vinculando ou excluindo, nos termos em que aqueles não
cumpram a imposição legal, a intervenção dos poderes públicos.
Em todo o caso, a natureza privada dos sindicatos não obsta a que lhes sejam
cometidos – e, em certa medida, a própria Constituição o imporá – direitos e
obrigações, ainda que estes se revestissem de natureza pública (atente-se no que
decorre do âmbito da negociação colectiva e com o poder de conformar a própria
regulamentação normativa das relações de trabalho). É o que se passa com a
obrigação de, em caso de greve, atenta a circunstância de ficarem suspensas as
relações emergentes do contrato de trabalho, assegurar os serviços mínimos
preordenados à satisfação das necessidades sociais impreteríveis (aí se
incluindo, na perspectiva da decisão recorrida, a definição em concreto desses
serviços).
Intervindo neste nível e com este recorte, os sindicatos não estão a exercer
prerrogativas de autoridade, mas sim a actuar no âmbito de uma obrigação que
lhes é constitucional e legalmente imposta. É certo que, como se mencionou, o
cumprimento de tal obrigação não prescinde de uma individualização
quantificadora, mas essa definição – deixada a cargo dos sindicatos e dos
trabalhadores – perfila-se, precisamente, como uma dimensão coetânea ao
cumprimento da imposição constitucional e legal e, assim, como momento
integrador dessa obrigação, sendo que, como é óbvio, a questão da natureza da
obrigação não deixa de ser naturalmente distinta daqueloutra referente ao
sujeito a quem tal obrigação está cometida (exemplo paradigmático disso é o que
emerge da obrigação de pagamento de impostos).
De resto, pode mesmo afirmar-se, considerando a memória dos modelos susceptíveis
de permitir uma definição dos serviços mínimos, que da leitura dos preceitos
constitucionais invocados só se retiram bons argumentos para fazer incluir os
trabalhadores e os sindicatos no âmbito do procedimento conducente à definição
desses serviços.
10 - Sustenta também a Recorrente a inconstitucionalidade do critério normativo
sub judicio por violação do artigo 61.º, n.º 1, da Constituição, uma vez que,
segundo o seu juízo, “a definição dos serviços mínimos e a gestão do seu
cumprimento projectam-se directamente na conformação do modo de funcionamento da
organização empresarial. [§] A adequação da empresa à satisfação das
necessidades sociais impreteríveis, como os serviços mínimos (...) bem como a
gestão dos trabalhadores afectos ao cumprimento destes serviços são
prerrogativas empresariais, que decorrem da liberdade, constitucionalmente
reconhecida, de organização e gestão das empresas. [§] Por força da posição
sustentada pelo Supremo Tribunal Administrativo, o processo de greve envolveria
uma expropriação temporária dos poderes empresariais, e levaria a que fossem
atribuídos, por força da declaração de greve, às associações sindicais e
trabalhadores grevistas, poderes de conformação da organização empresarial e de
gestão dos próprios meios de produção, que não lhe são reconhecidos fora de uma
situação de greve”.
Perscrutando os argumentos mobilizados pela Recorrente, ressaltam, na mesma
formulação, dois problemas diferenciados a considerar sob o mesmo parâmetro de
constitucionalidade. Por um lado, está em causa a questão da definição dos
serviços mínimos, por outro questiona-se o processo de “gestão do cumprimento
desses serviços”, na estrita dimensão de “gestão dos trabalhadores afectados ao
cumprimento dos serviços mínimos”.
Ora, essa diferenciação impõe-se porque, manifestamente, como se verá, o
critério decisório não acaba por abranger ambas as dimensões, porquanto aí não
se considera, além do suscitado e decidido problema de definição dos serviços
mínimos (em termos da competência para a sua definição), qualquer problema
relativo à execução desses serviços (não se reflectindo, designadamente, sobre
os critérios e os poderes da entidade patronal e dos trabalhadores na execução
da obrigação de prestação dos serviços mínimos).
10.1 - Na verdade, relativamente à questão concernente à “gestão do cumprimento
dos serviços mínimos”, importa esclarecer que a resposta não é susceptível de
ser dada com a argumentação expendida na decisão recorrida, que, de resto, não
se pronunciou sobre tal problema.
Aliás, mesmo neste domínio concreto, as questões que se colocam não estão
dependentes e absolutamente vinculadas à posição que se tome quanto ao problema
da competência para a definição dos serviços mínimos, sendo que o problema da
“gestão do cumprimento dos serviços mínimos”, enquanto prerrogativa da empresa
decorrente do direito à livre iniciativa privada, se coloca já a um nível
distinto da questão de identificação das prestações sociais impreteríveis,
relegando tal dimensão para a consideração da esfera dos poderes que as
entidades patronais podem exercer sobre os trabalhadores adstritos ao
cumprimento dos serviços mínimos e para a definição do estatuto que preside à
prestação, pelo trabalhador, dos serviços legalmente requeridos, ou então, numa
segunda óptica, para o domínio da fiscalização do cumprimento dos serviços
mínimos.
Como a Recorrente concretiza em sede de alegações, está em causa a própria
“gestão dos trabalhadores afectados ao cumprimento dos serviços mínimos”.
Ora, como é manifesto, tal domínio problemático reporta-se inequivocamente a um
âmbito que contende, não já com a “definição dos serviços mínimos”, em termos de
se perscrutar, nesse domínio, a questão da competência para a definição desses
serviços, mas sim com as relações entretecentes no âmbito da execução dos
serviços mínimos definidos, aí se colocando o problema da gestão do modo como
esses serviços devem ser cumpridos, e, nesse domínio em particular, da gestão
dos próprios trabalhadores afectados ao cumprimento da obrigação que lhes é
imposta.
Tratar-se-á de saber se as prestações efectuadas em cumprimento dos serviços
mínimos podem ser reconduzidas a prestações de trabalho subordinado, implicando
para os trabalhadores a sujeição às ordens da entidade empregadora nos mesmo
termos da prestação normal de trabalho, de modo a apurar-se se “continua[m] os
serviços essenciais a ser geridos pela entidade empregadora, (...) [e se] a
posição dos trabalhadores que tenham sido porventura designados para prestar o
trabalho indispensável deve ser igual a todos os outros trabalhadores em serviço
(...) [estando] sujeitos às directrizes técnicas das hierarquias respectivas”
(cf. Bernardo da Gama Lobo Xavier, Direito de greve, op. cit., pp. 185 e ss. e,
também com resposta afirmativa, António Menezes Cordeiro, Manual de direito do
trabalho, Coimbra, 1991, pp. 389 e ss.); ou se, por oposição, o cumprimento de
tais prestações deverá configurar-se em termos de se afirmar se, em tal domínio,
se trata “(...) de cobrir responsabilidades transferidas, em consequência da
greve, para o sindicato e o conjunto dos trabalhadores parados”, sendo que,
nessa linha, “ao cumprirem as referidas tarefas, os trabalhadores não estão, em
rigor, a conduzir-se no âmbito da subordinação à entidade patronal”, não se
encontrando a cumprir o contrato de trabalho, “mas a executar um comportamento
pelo qual a lei responsabiliza a associação sindical e o conjunto dos
trabalhadores” (cf. António Monteiro Fernandes, Direito de greve – notas e
comentários à Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto, Coimbra, 1982, pp. 55 e ss. esp.te
60, e, em sentido paralelo, José João Abrantes, “Greve e serviços mínimos...”,
op. cit., pp. 18 e ss., e Jorge Leite, Direito da Greve – Lições ao 3.º ano da
FDUC, Coimbra, 1994, pp.62 e ss. esp.te 82) – sobre tais questões, v. o Parecer
da PGR n.º 52/92, de 14 de Julho de 1993, com outras indicações bibliográficas e
com uma exposição detalhada do tema.
De resto, note-se que, na actual regulamentação desta problemática constante do
Código do Trabalho, o legislador deu-lhe também uma resposta independente da
questão da competência para a definição dos serviços mínimos.
Na verdade, depois de no artigo 599.º, sob a epígrafe “Definição dos serviços
mínimos”, ter consagrado que os serviços mínimos “devem ser definidos por
instrumento de regulação colectiva de trabalho ou por acordo com os
representantes dos trabalhadores”, veio dispor, no artigo 600.º (“Regime de
prestação dos serviços mínimos”), que “os trabalhadores afectos à prestação de
serviços mínimos mantêm-se, na estrita medida necessária à prestação desses
serviços, sob a autoridade e direcção do empregador (...)”.
Ora, o Acórdão recorrido não considerou tal problemática, não se podendo
inferir, a partir da decisão recorrida e do critério normativo aí aplicado,
qualquer tomada de posição quanto ao problema de saber, além da definição dos
serviços mínimos, a quem cabe a gestão do seu cumprimento, aí se incluindo a
questão de saber quais são os poderes que a entidade patronal mantém sobre os
trabalhadores adstritos ao cumprimento dessa obrigação.
Aliás, a própria recorrente, quer nas suas alegações para o Supremo Tribunal
Administrativo, quer no requerimento de interposição de recurso para este
Tribunal, definiu o objecto do recurso em termos de este incidir sobre a
“constitucionalidade do artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 65/77, de 26 de
Agosto, quando interpretado no sentido de que compete aos sindicatos e aos
trabalhadores a definição em concreto dos serviços mínimos durante a greve, por
violação do disposto no artigo 199.º, alíneas f) e g), da Constituição da
República Portuguesa”. É claro que nada impede que, mantendo-se a norma
questionada, se invoquem outros fundamentos e parâmetros
jurídico-constitucionais susceptíveis de determinar o sentido do julgamento de
constitucionalidade.
Não é, porém, o que sucede in casu, porquanto o problema da “gestão do
cumprimento dos serviços mínimos”, enquanto realidade que extravasa o domínio da
competência para a definição desses serviços, não só traduz um alargamento do
objecto do recurso – em termos de o Tribunal Constitucional ter também de apurar
a inconstitucionalidade dos preceitos em causa não só quando “interpretado(s) no
sentido de que compete aos sindicatos e aos trabalhadores a definição em
concreto dos serviços mínimos durante a greve”, mas também na dimensão de que
lhes cabe, em exclusivo, a gestão concreta do cumprimento dos serviços mínimos
definidos –, como, decisivamente, tal norma não foi aplicada pelo tribunal a quo
com o sentido que lhe foi imputado.
Na verdade, o problema que a Recorrente coloca – relembre-se: o da “gestão dos
trabalhadores adstritos ao cumprimento dos serviços mínimos” – é um aliud e um
posterius em face da determinação da competência para proceder à sua definição.
De resto, nem pode pretender inferir-se da decisão recorrida que a resposta a
tal questão fosse lógica e impreterívelmente no sentido invocado pela
recorrente, porquanto, não só tal questão não foi, como quaestio disputata,
submetida a julgamento – sendo que, por isso, qualquer resposta que merecesse,
redundaria sempre numa extensão do julgado – mas também porque, em função disso,
não cabe aqui estar a prever, caso o recurso para o Supremo Tribunal
Administrativo integrasse tal problema, qual seria a solução a alcançar por esse
tribunal.
Assim sendo, passar-se-á à consideração da alegada inconstitucionalidade, por
violação do disposto no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição, da norma do artigo
8.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto, quando interpretado no
sentido de que compete aos sindicatos e aos trabalhadores, com exclusão do
Governo, a definição em concreto dos serviços mínimos durante a greve.
10.2 - A liberdade de “iniciativa económica privada” está prevista no artigo
61.º da Constituição, preceito que, como ensinam Gomes Canotilho/Vital Moreira
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra,
1993, pp. 325 e ss.), “contempla as diversas formas constitucionalmente
tipificadas de iniciativa económica não pública”, dispondo o seu n.º 1 que “A
iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela
Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral” (cf., para uma
reflexão da natureza deste direito fundamental, com importantes indicações
bibliográficas, a posição de Vasco Moura Ramos, “O direito fundamental à
iniciativa económica privada (artigo 61.º, n.º 1, da CRP): Termos da sua
consagração no direito constitucional português”, in Boletim da Faculdade de
Direito, Universidade de Coimbra, 2001, t. 2, pp. 833 e ss.).
Quanto à especificação concretizadora do âmbito material deste direito
fundamental, atente-se na exposição dos Autores supra citados:
«Ao garantir aqui a iniciativa económica privada (...), a Constituição
considera-a seguramente (...) como um direito fundamental (e não apenas como um
princípio objectivo da organização económica), embora remetendo para a lei a sua
delimitação e sem a considerar directamente um dos direitos, liberdades e
garantias (beneficiando, porém, da analogia com eles). Este entendimento
constitucional do direito de iniciativa privada está em consonância com o
estatuto da empresa e do sector privados no âmbito da “constituição económica”
(...).
A liberdade de iniciativa privada tem um duplo sentido. Consiste, por um lado,
na liberdade de iniciar uma actividade económica (direito à empresa, liberdade
de criação de empresa) e, por outro lado, na liberdade de gestão e actividade da
empresa (liberdade da empresa, liberdade do empresário). Ambas estas vertentes
do direito de iniciativa económica privada podem ser objecto de limites mais ou
menos extensos. Com efeito, esse direito só pode exercer-se “nos quadros
definidos pela Constituição e pela lei” (...), não sendo portanto um direito
absoluto, nem tendo sequer os seus limites constitucionalmente garantidos, salvo
no que respeita a um mínimo de conteúdo útil constitucionalmente relevante que a
lei não pode aniquilar (...), de acordo, aliás, com a garantia constitucional de
um sector económico privado (...). É a própria Constituição que manda vedar
certas áreas económicas à iniciativa privada (...), não estando a lei impedida
de estabelecer outros limites, quer quanto à liberdade de criação de empresas,
quer quanto à actividade das empresas, desde que respeitado o núcleo
constitucionalmente garantido (...).
Se a lei pode delimitar negativamente o âmbito do direito de iniciativa
económica privada, também pode conformar com grande liberdade o seu exercício,
estabelecendo restrições mais ou menos profundas. A Constituição prevê
directamente algumas, sendo de salientar, entre as de âmbito geral, as
decorrentes dos direitos dos trabalhadores (...) e da intervenção do Estado na
vida económica, desde o planeamento económico e social (...) até à interferência
directa na vida das empresas (...); a iniciativa económica em certas áreas, não
sendo vedada, está constitucionalmente sujeita a restrições especiais (...)».
Quanto à nossa jurisdição constitucional, sobre o sentido tutelar da “iniciativa
privada”, escreveu-se, inter alia, no Acórdão n.º 187/2001 (com remissões para
diversos outros arestos deste Tribunal):
«(...) A garantia constitucional da liberdade económica privada há-de, pois,
exercer-se sempre 'nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em
conta o interesse geral'.
De entre os primeiros, avulta a definição possível (obrigatória anteriormente a
1997) de sectores básicos nos quais seja vedada a actividade a empresas privadas
(artigo 86º, n.º 3), precisada também por várias vezes na jurisprudência
constitucional (v. o Parecer n.º 8/80 da Comissão Constitucional, in Pareceres
da Comissão Constitucional, 11º vol., 1981, pp. 191 e ss., e os Acórdãos n.ºs
25/85 e 186/88, in ATC, respectivamente vol. 5º, pp. 95 e ss., e vol. 12º, pp.
19 e ss.).
Sobre os quadros definidos pela lei, disse-se no citado Acórdão n.º 328/94 que
'(...) o direito de liberdade de iniciativa económica privada, como facilmente
deflui do aludido preceito constitucional, não é um direito absoluto (ele
exerce-se, nas palavras do Diploma Básico, nos quadros da Constituição e da lei,
devendo ter em conta o interesse geral). Não o sendo – e nem sequer tendo
limites expressamente garantidos pela Constituição (muito embora lhe tenha,
necessariamente, de ser reconhecido um conteúdo mínimo, sob pena de ficar
esvaziada a sua consagração constitucional) – fácil é concluir que a liberdade
de conformação do legislador, neste campo, não deixa de ter uma ampla margem de
manobra.'
A norma constitucional remete, pois, para a lei a definição dos quadros nos
quais se exerce a liberdade de iniciativa económica privada. Trata-se, aqui, da
previsão constitucional de uma delimitação pelo legislador do próprio âmbito do
direito fundamental – da previsão de uma 'reserva legal de conformação' (a
Constituição recebe um quadro legal de caracterização do conteúdo do direito
fundamental, que reconhece). A lei definidora daqueles quadros deve ser
considerada, não como lei restritiva verdadeira e própria, mas sim como lei
conformadora do conteúdo do direito.
Ora, a liberdade de conformação do legislador nestes casos, em que existe uma
remissão constitucional para a delimitação legal do direito, há-de considerar-se
mais ampla do que nos casos de verdadeiras leis restritivas do direito, desde
logo, porque o direito não tem, nos primeiros, limites fixos constitucionalmente
garantidos, remetendo-se antes para uma caracterização legal que apenas não
poderá aniquilar um mínimo de conteúdo útil, constitucionalmente relevante.
A estas condicionantes constitucionais e legais (v. também o Acórdão n.º 257/92,
ATC, vol. 22º, pp. 741 e ss.) acresce ainda, nos termos da parte final do n.º 1
do artigo 61º, na versão supervenientemente introduzida na revisão
constitucional de 1989, a consideração do interesse geral – onde antes se
estatuía que a 'iniciativa económica privada pode exercer-se livremente enquanto
instrumento do progresso colectivo, nos quadros definidos pela Constituição e
pela lei.». (itálico aditado).
Este recorte dogmático do artigo 61.º, n.º 1, da Constituição opera igualmente
no caso em apreço como enquadramento fundamentante da resposta ao problema
concretamente em causa.
Importa, porém, atentar, desde já, que, no concernente ao problema da definição
dos serviços mínimos estritamente considerado, o esforço argumentativo expendido
pela Recorrente não se mostra integralmente coerente com as conclusões que
determinaram o conhecimento da questão de constitucionalidade atrás considerada.
Em sede de alegações, a Recorrente dá conta de que o problema da definição dos
serviços se projecta directamente na conformação do modo de funcionamento da
organização empresarial, remetendo essa dimensão para uma esfera integradora das
“prerrogativas empresariais que decorrem da liberdade, constitucionalmente
reconhecida, de organização e gestão das empresas”.
A ser assim, a competência para a definição dos serviços mínimos deveria caber
ao empregador, mal se articulando com a suscitada questão relacionada com a
intervenção do Governo de acordo com o disposto nas alíneas f) e g) do artigo
199.º da Constituição.
Ora, não se duvida de que a intervenção do Governo neste domínio concreto, a ser
reclamada pelo texto constitucional, apenas poderia ser justificada pela
assunção de uma estrita “responsabilidade pública pela continuidade de serviços
sociais indispensáveis”, e não, directamente, pelo seu papel como entidade
empregadora, devendo, assim, actuar “acima da dimensão directamente conflitual
e, consequentemente, como tal, distinto da administração-empregador” (cf., na
esteira de doutrina supra citada, o Parecer da PGR n.º 100/89, de 5 de Abril de
1990). Daí que, face à argumentação já explanada, nunca pudesse inferir-se
qualquer proposição no sentido de reservar ao Governo-entidade patronal um papel
determinante na conformação definidora dos serviços mínimos. Pelo que, em
consequência, deve apenas perspectivar-se se é inconstitucional a solução
normativa alcançada no sentido de excluir a intervenção daquela entidade
patronal na definição daqueles serviços, ex vi o disposto no artigo 61.º, n.º 1,
da nossa norma normarum.
Cumpre, assim, responder ao problema sub judicio tendo em conta tal observação.
Como se infere da jurisprudência supra citada, o direito à livre iniciativa
privada não se traduz num direito absoluto e insusceptível de limitação. Pelo
contrário, os termos da sua previsão apontam claramente para a necessidade de
perspectivar o seu exercício em função de diversas condicionantes.
É certo que se poderá afirmar que tal direito recua perante a afirmação
constitucional do direito à greve, sofrendo, justificadamente, uma limitação que
passa precisamente pelo facto de os poderes da entidade patronal estarem
condicionados pelo exercício do direito à greve, não podendo, desde logo, exigir
o cumprimento da prestação laboral.
Contudo, no domínio do problema da definição dos serviços mínimos que hão-de ser
cumpridos para garantir a realização das necessidades sociais impreteríveis, a
questão que se coloca, como se pode inferir das menções efectuadas, excede o
âmbito da gestão da empresa, não se reconduzindo, por outras palavras, ao
exercício estrito de um poder de gestão empresarial, ainda que se reconheça, na
esteira de António Menezes Cordeiro (in Manual de direito do trabalho, op.
cit., pp. 389 e ss.), que o problema do cumprimento da obrigação de prestação de
serviços mínimos também se deva configurar como uma questão onde também releva a
responsabilidade da empresa.
De facto, “a definição do nível, conteúdo e extensão dos serviços mínimos
indispensáveis releva de interesses fundamentais da colectividade” e “depende em
cada caso da consideração de circunstâncias específicas segundo juízos de
oportunidade (...) condicionada por critérios de acomodação constitucional” (cf.
o Parecer da PGR n.º 100/89, de 5 de Abril de 1990), cuja assunção não está
manifestamente integrada na esfera “da liberdade de gestão e actividade da
empresa”. Trata-se, apenas, de decidir quais os serviços que, em homenagem a um
interesse público e social, hão-de continuar impreterivelmente em laboração, não
se podendo vislumbrar, no âmbito do artigo 61.º, n.º 1, da Constituição,
quaisquer argumentos que façam recair forçosamente sobre a entidade patronal, a
título de prerrogativa da empresa, a necessidade de ser esta a determinar
apodicticamente quais serão as necessidades a satisfazer e qual o nível de
serviço indispensável para as cumprir.
Nessa medida e no limite, apenas se poderá defender que a gestão empresarial sai
afectada na estrita medida em que se terá de conformar com um grau de laboração
diferenciado daquele que resultaria “normal” na ausência de um processo de
greve, impondo-se-lhe a laboração dentro desses limites. Contudo, como bem se
observará, esse resultado decorre ineliminavelmente do exercício do direito à
greve e com as limitações que este coloca, validamente, à liberdade de gestão
empresarial.
C - Decisão
11- Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional o artigo 8.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 65/77,
de 26 de Agosto, na interpretação segundo a qual a definição dos serviços
mínimos a prestar em caso de greve que se destinem à satisfação de necessidades
sociais impreteríveis compete às associações sindicais e aos trabalhadores, com
exclusão do Governo;
b) Negar provimento ao recurso;
c) Condenar a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 19 de Abril de 2005
Benjamim Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos