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Processo nº 685/96 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A firma A. deduziu no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Braga oposição à execução fiscal que contra ela foi instaurada para cobrança da quantia de 2 279 190$00, acrescida de 317$00 para despesas - e, assim, do montante global de 2 279 507$00 - em dívida ao INSTITUTO REGULADOR E ORIENTADOR DOS MERCADOS AGRÍCOLAS (IROMA), proveniente da taxa da peste suína e da taxa de comercialização.
Invocou a ilegalidade da dívida, por
'inconstitucionalidade orgânica e formal dos diplomas em que se baseia'.
Tendo o juiz julgado procedente a oposição, com fundamento na inconstitucionalidade do artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro; e havendo sido interposto recurso dessa decisão (de 17 de Novembro de 1995) para o Tribunal Constitucional, foi ela revogada quanto ao julgamento de inconstitucionalidade, pelo acórdão nº 695/96 (de 21 de Maio de 1996).
Baixando os autos ao tribunal recorrido, o juiz voltou a julgar procedente a oposição, agora com fundamento na inconstitucionalidade do artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho.
2. É desta decisão que vem o presente recurso, interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade da norma do mencionado nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho.
Neste Tribunal, apenas alegou o PROCURADOR-GERAL ADJUNTO aqui em exercício, tendo concluído as suas alegações do modo que segue:
1º. Não constitui matéria própria do sistema fiscal, nos termos do nº 2 do artigo 106º da Constituição da República Portuguesa, o estabelecimento de um regime de cobrança das 'taxas de comercialização e outras imposições parafiscais', a favor do IROMA, através do processo de execução fiscal, tramitado pelos serviços de justiça fiscal.
2º. Situa-se no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República o estabelecimento de um regime que contenda, em termos inovatórios, com a delimitação das competências materiais reservadas às diversas ordens jurisdicionais, no caso aos tribunais judiciais e aos tribunais administrativos e fiscais.
3º. Não implica verdadeira inovação, directamente estabelecida em sede de normas atinentes à 'competência dos tribunais', o simples preenchimento e concretização das cláusulas abertas e conceitos indeterminados, usados pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e pelo Código de Processo Tributário (em estrita consonância com o que estava já prescrito no Código de Processo das Contribuições e Impostos) na determinação da competência executiva dos tribunais tributários de 1ª instância, em termos de, para efeitos de cobrança coerciva, equiparar às dívidas fiscais do Estado os créditos fiscais de que é titular um instituto público, segundo critério materialmente adequado à natureza da dívida e coincidente com o âmbito da reserva material de competência dos tribunais fiscais, tal como veio a ser definido pelo nº 3 do artigo 214º da Constituição da República Portuguesa (na versão emergente da revisão constitucional de 1989).
4º Termos em que deverá ser julgado procedente o presente recurso.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir se a norma que se contém no nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho, é ou não inconstitucional.
II. Fundamentos:
4. A norma sub iudicio:
O Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho, a que pertence a norma sub iudicio, veio disciplinar a cobrança de dívidas ao Instituto Regulador e Orientador dos Mercados Agrícolas (IROMA).
No preâmbulo, o legislador sublinhou que o Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro, extinguiu vários organismos de coordenação económica
(Junta Nacional dos Produtos Pecuários, Junta Nacional das Frutas e Instituto do Azeite e Produtos Oleaginosos) e criou o Instituto Regulador e Orientador dos Mercados Agrícolas - IROMA (este veio, entretanto, a ser extinto pelo Decreto-Lei nº 197/94, de 21 de Julho). Disse que constituem receitas deste organismo 'o produto de taxas e remunerações por serviços prestados'. Referiu que a cobrança regular das receitas do IROMA é condição indispensável para uma sua actuação eficiente na orientação dos mercados agrícolas. Anotou que o valor das dívidas a cobrar pelo IROMA atinge já uma quantia de cerca de 62 000 000$00, com 'tendência para crescer de modo acentuado'. E disse que, por isso mesmo,
'justifica-se que a cobrança coerciva dessas dívidas seja feita através do processo de execução fiscal, que se caracteriza pela sua
celeridade e simplicidade, sem que os legítimos interesses de defesa dos devedores sejam postos em causa'.
Assim, o artigo 1º do Decreto-Lei nº 235/88, aqui sub iudicio, dispõe como segue:
1. A cobrança coerciva das dívidas ao IROMA provenientes da falta de pagamento de taxas e multas decorrentes da sua actividade, quando não pagas dentro do prazo fixado, far-se-á pelo processo de execução fiscal, através dos serviços de justiça fiscal.
2. O processo terá por base certidão passada por aquele Instituto da qual devem constar os seguintes documentos. a). Nome ou denominação e domicílio ou sede do devedor; b). Proveniência da dívida e indicação, por extenso, do seu montante; c). Data a partir da qual são devidos juros de mora; d). Data da certidão e assinatura da entidade emitente, devidamente autenticada com selo branco ou carimbo do serviço respectivo.
O artigo 2º do mesmo diploma legal prescreve que este decreto-lei se aplica unicamente aos processos a instaurar após a sua entrada em vigor (nº 1) e que os processos pendentes nesta última data continuam a regular-se pelas leis então em vigor, até que sejam findos (nº 2).
No presente caso, das taxas devidas ao IROMA, apenas interessa considerar a taxa da peste suína africana e a taxa de comercialização.
Pois bem: a taxa da peste suína africana, que foi criada pelo Decreto-Lei nº 44 158, de 17 de Janeiro de 1962, inicialmente, era cobrada através das repartições de finanças quando paga voluntariamente, e recorrendo aos tribunais das execuções fiscais, quando a cobrança fosse coerciva (cf. artigos 2º e 4º).
Mais tarde, porém, a cobrança voluntária passou a ser feita pela Junta Nacional dos Produtos Pecuários (cf. Decreto-Lei nº 354/78, de
23 de Novembro); depois, pelo INGA (Instituto Nacional de Garantia Agrícola); posteriormente, pelo IFADAP (Instituto Financeiro de Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e Pescas); e, por último, pelo IROMA (cf. Decreto-Lei nº 250/88, de
16 de Julho, artigo 6º e 7º, nº 1).
A taxa de comercialização (criada pelo Despacho conjunto dos Ministros das Finanças e da Economia, de 23 de Novembro de 1972) era cobrada pela Junta Nacional dos Produtos Pecuários (cf., mais tarde, o Decreto-Lei nº
343/86, de 9 de Outubro, artigo 1º).
Com a ressalva de que, num primeiro momento, a taxa da peste suína foi cobrada pelos tribunais das execuções fiscais, tanto ela, como a taxa de comercialização, devidas ao IROMA, até à data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 235/88, eram cobradas pelos tribunais judiciais.
De facto, para que a cobrança de dívidas a pessoas colectivas públicas diferentes do Estado pudesse fazer-se através da justiça fiscal, era indispensável:
(a). que houvesse lei a atribuir essa competência aos tribunais tributários [cf. o artigo 62º, alínea c), da Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, na redacção anterior ao Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro, que dispunha ser da competência dos tribunais tributários de 1ª instância conhecer
'da cobrança de dívidas a pessoas colectivas de direito público, nos casos previstos na lei'];
(b). ou, então, que houvesse lei a equiparar tais dívidas aos créditos fiscais do Estado [cf. o artigo 37º, alínea c), do Código das Contribuições e Impostos, que preceituava que competia aos serviços de justiça fiscal conhecer 'das execuções fiscais e outras que respeitem a créditos equiparados aos do Estado'].
Na falta de disposição legal com tal alcance, competentes para a cobrança, eram os tribunais judiciais, como decorre do que dispõe o artigo 213º, nº 1, da Constituição, e o artigo 14º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro) [cf., identicamente, LAURENTINO DA SILVA ARAÚJO, Processo de Execução Fiscal, página 33; e ALFREDO JOSÉ DE SOUSA e JOSÉ DA SILVA PAIXÃO, Código de Processo de Contribuições e Impostos, 1986, página 422, que citam um Despacho do Ministro das Finanças, de
22 de Outubro de 1941, publicado no Boletim da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, 1941, página 1044].
Adverte-se, aliás, que o legislador não podia - nem pode
- proceder, arbitrariamente, à equiparação de outras dívidas aos créditos do Estado, para o efeito de a sua cobrança ser feita através da justiça fiscal.
É que, como se escreveu no parecer da Comissão Constitucional nº 6/77 (publicado nos Pareceres da Comissão Constitucional, volume 1º, páginas 101 e seguintes), tem de existir, para tanto, 'uma analogia substancial entre esses créditos e os créditos do Estado'. Ou seja, acrescentou-se nesse parecer: o legislador 'só pode considerar ou tratar, atribuindo-o à competência dos serviços de justiça fiscal, como equiparado aos créditos do Estado, um crédito que, à luz dos interesses em jogo, seja efectivamente equiparável a esses créditos', pois que - frisou-se - ele se encontra 'vinculado a um juízo de objectividade na definição dos tipos de créditos que são equiparados aos do Estado para efeitos de competência dos tribunais fiscais'.
Concluindo, pois, este ponto: após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 235/88, as taxas e multas decorrentes da actividade do IROMA, que não fossem satisfeitas dentro do prazo do pagamento voluntário (aqui interessam apenas - repete-se - a taxa da peste suína africana e a taxa de comercialização), que antes eram cobradas pelos tribunais judiciais em processo executivo comum, passaram a ser cobradas 'pelo processo de execução fiscal, através dos serviços de justiça fiscal', ou seja, através dos tribunais fiscais, que, na 1ª instância, se designam tribunais tributários de 1ª instância.
5. A questão de constitucionalidade:
5.1. Em obediência ao princípio do pedido, o Tribunal apenas pode apreciar a constitucionalidade da norma que constitui objecto do recurso (cf. artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, conjugada com o artigo 684º do Código de Processo Civil). Pode, no entanto, avaliá-la à luz de normas ou princípios constitucionais diferentes daqueles por que foi ajuizada na decisão recorrida: conforme resulta do que se dispõe no artigo 664º do mesmo Código, o Tribunal é, efectivamente, livre 'no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito'.
A norma do artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 235/88, de
5 de Julho, será, por isso, confrontada com a da alínea i) do nº 1 do artigo
168º da Constituição (que prescreve que compete à Assembleia da República legislar sobre 'criação de impostos e sistema fiscal'), e, bem assim, com a da alínea q) desse mesmo número e preceito constitucional (que reserva à dita Assembleia o poder de legislar sobre a 'competência dos tribunais').
5.2. A norma sub iudicio e a reserva de lei atinente à
'criação de impostos e sistema fiscal':
A decisão recorrida concluiu que a norma do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho, por ter sido editada sem autorização parlamentar, viola os artigos 168º, nº 1, alínea i), e 106º, nº 2, da Constituição, pois que - diz - versa 'matéria relativa à execução fiscal' que
'tem a ver com as garantias processuais dos executados', sendo, assim, 'matéria própria do sistema fiscal' que 'respeita a garantias dos contribuintes', sujeita, portanto, a reserva de lei (formal). É que - ponderou - não há 'razão plausível para que tais garantias sejam acauteladas com aquela reserva quando estiverem em causa impostos (...), e não o sejam quando a hipótese - como é este caso - seja de taxas, sendo que umas e outras integram o sistema fiscal'.
Este Tribunal já disse, porém, que o sistema fiscal é um sistema de impostos, não incluindo as taxas ou quaisquer outros tributos.
Escreveu-se, de facto, no acórdão nº 497/89 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 14º, páginas 227 e seguintes), a propósito das quotizações obrigatórias para a Ordem dos Advogados: 'Que 'sistema fiscal' (cuja definição é uma das dimensões da reserva parlamentar em causa) seja um sistema de impostos (e não também de quaisquer outros tributos) eis do que não pode duvidar-se, inequívoco como é o significado daquela qualificação na nossa terminologia jurídica' [Cf., identicamente, o parecer nº 2/78 da Comissão Constitucional sobre as quotizações obrigatórias para a Ordem dos Médicos
(publicado nos Pareceres da Comissão Constitucional, volume 4º, páginas 185 e seguintes)].
A doutrina também identifica geralmente o sistema fiscal com o sistema de impostos, dele excluindo, por conseguinte, as taxas.
Assim, JOSÉ JOAQUIM TEIXEIRA RIBEIRO (A Reforma Fiscal, Coimbra, 1989, página 97) escreve: 'O sistema fiscal é o sistema de impostos'.
De sua parte, ANTÓNIO L. DE SOUSA FRANCO (Finanças Públicas e Direito Financeiro, Coimbra, 1992, página 167) refere: 'Por sistema fiscal entendemos apenas o conjunto de impostos e a forma como entre si se relacionam globalmente, na sua articulação lógica e na coerência social'.
Também JOSÉ CASALTA NABAIS (Contratos Fiscais, Coimbra,
1994, página 237, nota 740) se pronuncia no sentido de que o sistema fiscal 'é o sistema de impostos, e não impostos e mais qualquer coisa (mais taxas, por ex.)'.
Por isso, se, ao menos para o efeito do artigo 168º, nº
1, alínea i), da Constituição (reserva de competência legislativa da Assembleia da República, delegável no Governo, no tocante 'à criação de impostos e sistema fiscal'), os tributos que estão em causa nos autos e a que se aplica a norma sub iudicio (ou seja: a taxa da peste suína africana e a taxa de comercialização), revestirem a natureza de taxas, e não a de impostos - questão que aqui não terá de decidir-se, atentas as razões que. adiante se alinharão - aquele preceito constitucional não é violado.
É que, não só as taxas se não incluem no sistema fiscal, como, para elas, não vale, a qualquer outro título, a reserva de lei. Esta só vale para os impostos [cf. os acórdãos nºs 205/87 e 461/87 (publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volumes 9º e 10º, páginas 209 e seguintes, e 181 e seguintes, respectivamente)].
Mas a norma sub iudicio continua a não violar a reserva parlamentar atinente à 'criação de impostos e regime fiscal', constante da mencionada alínea i) do nº 1 do artigo 168º, mesmo que tais tributos revistam a natureza de imposto - [scilicet, de 'uma prestação pecuniária, coactiva e unilateral, sem o carácter de sanção, exigida pelo Estado (ou por outros entes públicos) com vista à realização de fins públicos'] -, e não de taxa.
O preceito constitucional - dita alínea i) do nº 1 do artigo 168º - também não é violado, ainda que, como sustenta certa doutrina (cf. JOSÉ CASALTA NABAIS, Contratos Fiscais cit., página 240), as mencionadas 'taxas' devam ser tratadas como impostos para o efeito da dita reserva de lei. Ou seja: mesmo que valha para elas a jurisprudência deste Tribunal, fixada relativamente
à taxa de saneamento exigida dos proprietários de casas não ligadas à rede de saneamento (cf. acórdão nº 76/88, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 11º, páginas 331 e seguintes) e ao encargo de compensação por deficiência de estacionamento, a pagar ao município pelos construtores de prédios em que não tenha sido considerada uma determinada área útil de parqueamento por fogo (cf. acórdão nº 277/88, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 8º, páginas 383 e seguintes).
É certo que a mencionada reserva da lei, quando tenha por objecto a criação de impostos, abarca 'a criação e a definição dos elementos essenciais daquelas receitas, unilateralmente impostas, que hão-de custear o financiamento em geral das despesas públicas (dir-se-á: das 'despesas gerais'), e hão-de ser repartidas pela 'generalidade' dos contribuintes de harmonia com os critérios genericamente apontados nos artigos 106º e 107º da Constituição da República Portuguesa' (cf. os citados acórdãos nºs 205/87, 461/87 e 497/89). E, por isso, apenas uma lei parlamentar (ou um decreto-lei parlamentarmente autorizado) pode 'criar impostos', determinar-lhes a incidência e a taxa, e estabelecer os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes [cf., entre outros, os acórdãos nºs 321/89 e 231/92 (publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volumes 9º e 23º, páginas 209 e seguintes, e 357 e seguintes, respectivamente)]. Essa lei (formal) já não tem, porém, que versar sobre o lançamento, a liquidação e a cobrança dos impostos: tais matérias podem, com efeito, ser reguladas por decreto-lei (reserva de lei material): [cf., entre outros, os citados acórdãos nºs 205/87 e 461/87].
Simplesmente, a norma que aqui está em apreciação não versa nenhuma das matérias compreendidas naquela reserva de lei - maxime
(contrariamente ao que decidiu o juiz recorrido), não dispõe sobre as garantias dos contribuintes.
Segundo JOSÉ CASALTA NABAIS (Contratos Fiscais cit., páginas 245), as garantias dos contribuintes cobertas pela reserva parlamentar compreendem 'as garantias processuais graciosas (reclamação graciosa, recurso hierárquico, etc.) e contenciosas (impugnação do acto tributário, oposição no processo de execução fiscal, defesa no processo penal fiscal, etc.), o direito de não pagar impostos que não estejam previstos na lei com o correspondente direito de resistência do artigo 106º, nº 3, da Constituição, o direito à consulta prévia nos casos previstos na lei (como tem sido tradicional no direito aduaneiro e agora também em matéria de benefícios fiscais e no direito fiscal em geral), as demais garantias dos contribuintes previstas nos artigos 19º a 30º do Código de Processo Tributário, como são o direito à informação (que integra os esclarecimentos relativos a interpretação das leis fiscais, as informações relativas a petições e reclamações do contribuinte e a comunicação ao denunciado do autor das denúncias dolosas), a fundamentação e notificação dos actos em matéria tributária, o direito a juros indemnizatórios e o direito a redução das coimas em caso de pagamento espontâneo, e outras garantias referentes ao processo penal fiscal'.
Este autor acrescenta que 'o artigo 106º, nº 2, no segmento em análise, apenas constitui uma reserva autónoma relativamente às garantias não fundamentais dos contribuintes', uma vez que as garantias fundamentais dos mesmos (ou seja: as garantias dos administrados, constantes do artigo 268º da Constituição, e as garantias respeitantes à infracção fiscal e ao processo penal fiscal, previstas nos artigos 29º e 32º da Constituição) 'têm a sua reserva parlamentar fixada no artigo 168º, nº 1, alínea b), da Constituição'.
Seja, porém, qual for o exacto alcance da reserva de lei quanto às garantias dos contribuintes, a verdade é que a norma sub iudicio não dispõe sobre nenhuma das matérias susceptíveis de serem como tais consideradas.
Tal norma - recorda-se - limita-se a preceituar que 'a cobrança coerciva das dívidas ao IROMA provenientes da falta de pagamento de taxas (...) decorrentes da sua actividade' se fará 'pelo processo de execução fiscal, através dos serviços de justiça fiscal'. Ou seja: atribui aos tribunais tributários a competência para essa cobrança coerciva, mandando que ela se faça
'pelo processo de execução fiscal'.
A consequência de tal disciplina legal, no que concerne ao tribunal competente e às garantias processuais, é ficarem os devedores do IROMA colocados na mesmíssima situação de qualquer devedor de impostos.
Por isso, se o processo de execução fiscal, que é um processo mais expedito do que o processo executivo comum, oferecer menores garantias do que este último - questão que aqui não é necessário dilucidar -, da norma em causa, resulta apenas (como sublinha o Ministério Público) uma diminuição das 'garantias do executado, tal como decorrem do direito privado e da execução em processo civil'.
Isso, porém, nada tem a ver com a reserva de lei relativa às 'garantias do contribuinte'. E essa é a única a que se refere a alínea i) do nº 1 do artigo 168º da Constituição.
A norma sub iudicio não viola, pois, a alínea i) do nº 1 do artigo 168º da Constituição.
Para finalizar este ponto, recorda-se apenas que a taxa se distingue do imposto pelo seu carácter bilateral ou sinalagmático, em contraste com o carácter unilateral deste (Sobre tais conceitos, cf. JOSÉ JOAQUIM TEIXEIRA RIBEIRO, Lições de Finanças Públicas, Coimbra, 1977, páginas
262 e 267, e 'Noção Jurídica de Taxa', in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117º, páginas 289 e seguintes; e, na jurisprudência deste Tribunal, entre outros, o citado acórdão nº 497/89 e, por último, o acórdão nº
1140/96, publicado no Diário da República, II série, de 10 de Fevereiro de
1997).
5. 3. A norma sub iudicio e a reserva parlamentar respeitante à 'competência dos tribunais':
Disse-se atrás que, antes da entrada em vigor da norma do artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho, aqui em apreciação, as taxas decorrentes da actividade do IROMA, que não fossem satisfeitas dentro do prazo do pagamento voluntário (aqui interessam apenas a taxa da peste suína africana e a taxa de comercialização), eram cobradas pelos tribunais judiciais; e que, depois dessa data, passaram a ser cobradas 'pelo processo de execução fiscal, através dos serviços de justiça fiscal', ou seja, através dos tribunais fiscais.
Significa isto que a norma sub iudicio - para além de mandar observar o processo de execução fiscal para a cobrança coerciva da taxa da peste suína africana e da taxa de comercialização, devidas ao IROMA - transferiu para os tribunais fiscais uma competência que, então, era dos tribunais judiciais.
Ora, os tribunais fiscais têm como 'órgão superior da hierarquia' o Supremo Tribunal Administrativo, competindo-lhes 'o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas (...) fiscais' (cf. artigo 214º, nºs 1 e 3, da Constituição). Os tribunais judiciais têm no Supremo Tribunal de Justiça o
'órgão superior da hierarquia' (cf. artigo 212º, nº 1, da Constituição) e
'exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais', sendo 'os tribunais comuns em matéria cível e criminal' (cf. 213º, nº 1, da Constituição).
Tribunais fiscais e tribunais judiciais pertencem, assim, a duas diferentes ordens judiciais: os primeiros, à ordem dos tribunais administrativos e fiscais (cf. citado artigo 214º, nº 1); os segundos, à ordem dos tribunais judiciais (cf. citado artigo 212º, nº 1).
Acontece que, nos termos da alínea q) do nº 1 do artigo
168º da Constituição, compete exclusivamente à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a 'competência dos tribunais'.
O Governo tem, assim, que estar munido de autorização legislativa para editar normas que alterem a distribuição de competências entre tribunais pertencentes a ordens judiciais diferentes, uma vez que só desse modo ele pode legislar sobre matérias da competência legislativa parlamentar delegável.
É que, seja qual for o alcance a atribuir à reserva legislativa, no ponto em que ela tem por objecto a definição da 'competência dos tribunais', há-de incluir-se aí, sem dúvida, a definição de quais as matérias que são da competência dos tribunais judiciais e quais as que o são da dos tribunais fiscais [cf. sobre esta questão, entre outros, os acórdãos nºs 36/87,
356/89, 72/90 e 271/92 (publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volumes 9º, 13º-I, 15º e 22º, páginas 243 e seguintes, 443 e seguintes, 67 e seguintes, e 813 e seguintes, respectivamente) e a acórdão nº 172/96 (ainda por publicar)].
A conclusão a extrair é a de que a norma sub iudicio, tendo sido editada pelo Governo desmunido de autorização legislativa, viola a alínea q) do nº 1 do artigo 168º da Constituição.
Esta conclusão não é posta em crise pelo facto de o Tribunal ter vindo a entender, como sucedeu no acórdão nº 404/87 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 10º, páginas 391 e seguintes) e, daí em diante, em vários outros arestos [cf., entre muitos outros, os acórdãos nºs
85/88, 47/90, 132/92, 198/93, 272/93, 452/93 (publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volumes 11º, páginas 725 e seguintes, 15º, paginas 177 e seguintes, 21º, páginas 583 e seguintes, 24º, páginas 513 e seguintes, 24º, páginas 733 e seguintes, 25º, páginas 767 e seguintes) e 805/93 (publicado no Diário da República, I série-A, de 4 de Janeiro de 1994)], que não cabem na reserva parlamentar de que ora se trata as modificações da competência dos tribunais que decorram da adopção de uma certa forma processual.
[No acórdão nº 404/87, escreveu-se, com efeito: 'Ora, qualquer que seja o nível ou o grau de definição da competência dos tribunais reservado à Assembleia da República, seguramente que nele não entram as modificações da competência judiciária a que deva atribuir-se simples carácter processual (...). De facto, a regulamentação do 'processo' a observar perante os tribunais - salvo no tocante ao processo criminal e, agora, no tocante também ao processo perante o Tribunal Constitucional [e acrescenta-se: no que respeita ao regime geral do processo das infracções disciplinares e dos actos ilícitos de mera ordenação social] - já não é matéria da reserva legislativa parlamentar'].
E não é posta em crise, porque, do facto de as taxas em referência deverem ser cobradas em processo de execução fiscal, não decorre que a sua cobrança tenha que ser feita nos tribunais fiscais, pois havia dívidas que eram cobradas nos tribunais comuns (judiciais), mas em processo de execução fiscal: era o caso, por exemplo, das dívidas ao Banco de Fomento Nacional (cf. artigo 43º do Decreto-Lei nº 41 957, de 13 de Novembro de 1957).
Como escrevia LAURENTINO DA SILVA ARAÚJO (Processo de Execução Fiscal, página 13), 'a competência dos tribunais das contribuições e impostos não deriva apenas de se mencionar na lei o emprego desta forma de processo. Com efeito, se tal é, na verdade, bastante no que diz respeito às dívidas do Estado, já para aquelas de que são credoras outras entidades, torna-se indispensável que o comando especial a estas referentes atribua tal competência àqueles tribunais ou as equipare às dívidas do Estado'.
Abre-se aqui um parêntesis para dizer que esta situação se alterou com a publicação do Decreto-Lei nº 241/93, de 8 de Julho, cujo artigo
3º, nº 1, dispõe que 'o processo de execução fiscal passa a aplicar-se exclusivamente à cobrança coerciva das dívidas do Estado e a outras pessoas de direito público'. Ou seja: a cobrança daquelas dívidas que era feita nos tribunais comuns, mas com observância do ritualismo próprio do processo de execução fiscal, presentemente, faz-se através do processo executivo comum (cf., neste sentido, ALFREDO JOSÉ DE SOUSA e JOSÉ DA SILVA PAIXÂO, Código de Processo Tributário, 3ª edição, Coimbra, 1997, página 479).
Seja como for, uma coisa é certa: o entendimento do Tribunal, segundo o qual não cabem na reserva parlamentar as alterações de competência dos tribunais decorrentes da adopção de uma certa forma processual, nunca poderá valer para os casos em que, como aqui acontece, essas alterações de competência se traduzem na atribuição de jurisdição a uma outra ordem de tribunais.
A conclusão da inconstitucionalidade da norma submetida a julgamento, assente na violação da reserva parlamentar atinente à 'competência dos tribunais', também não pode ser afastada com a consideração (avançada pelo Ministério Público) de que, no artigo 62º, nº 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - que, recorda-se, atribui aos tribunais tributários de 1ª instância competência para a 'cobrança coerciva de dívidas a pessoas colectivas de direito público, nos casos previstos na lei' -, se contém uma 'cláusula totalmente aberta', uma 'autorização em branco', dirigida ao legislador, facultando-lhe, ao menos aparentemente, inserir na competência executiva dos tribunais tributários de 1ª instância a cobrança coerciva de (quaisquer?) 'dívidas a pessoas de direito público'.
É que, essa remissão para os 'casos previstos na lei', feita pelo mencionado artigo 62º, nº 1, alínea c) - contrariamente ao que sustenta o Ministério Público, louvando-se na doutrina do já citado parecer da Comissão Constitucional nº 6/77 - não pode ter o sentido de autorizar o Governo a, desmunido de autorização legislativa, transferir para os tribunais fiscais competências pertencentes aos tribunais judiciais, com o pretexto de apenas estar a integrar ou a concretizar 'normas atributivas de competência já em vigor', sem modificar, 'alargando-a ou reduzindo-a, a extensão da competência dos vários tipos de tribunais'.
E não pode, porque, ao editar (no uso da autorização legislativa que lhe fora concedida pela Lei nº 29/83, de 8 de Setembro) o referido artigo 62º, nº 1, alínea c), o Governo não exerceu uma competência legislativa que, originariamente, fosse sua, antes utilizou uma competência que recebera 'por empréstimo' da Assembleia da República.
Por isso, o Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a que pertence aquele artigo 62º, nº 1, alínea c), é um diploma legal que, sob pena de inconstitucionalidade, o Governo tinha que aprovar dentro do prazo de validade daquela autorização, e em cuja edição tinha que respeitar 'o objecto, o sentido e a extensão' da mesma. Um decreto-lei que, além disso, o Governo não pode revogar, nem alterar, sem nova autorização legislativa da Assembleia da República.
Ora, permitir que o Governo, no exercício da competência legislativa própria, preenchesse cláusulas abertas, por si criadas no uso da competência legislativa nele delegada pela Assembleia da República, era abrir-lhe a possibilidade de legislar em matérias pertencentes à reserva legislativa parlamentar, fora do prazo de validade da autorização legislativa - e, mais, sem que o Parlamento, previamente, definisse 'o objecto, o sentido e a extensão' dessa autorização. Tudo, situações que, obviamente, a Constituição não permite.
De facto, no dizer de J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 682), 'o Governo não pode remeter para outro decreto-lei uma parte da matéria autorizada, porque isso se traduziria numa fraude aos limites temporais e à irrepetibilidade das autorizações legislativas. Uma coisa é a utilização parcelada dentro do prazo, outra é a devolução da matéria para outro decreto-lei'.
A conclusão a que acaba de chegar-se também não se altera pelo facto (igualmente invocado pelo Ministério Público) de as 'taxas', cuja cobrança, através da norma sub iudicio, o legislador comete aos tribunais fiscais, serem, substancialmente, receitas fiscais.
Antes de mais, essa questão - a questão de as 'taxas' aqui em causa terem natureza substancialmente idêntica à dos impostos - só poderia ter relevo, no caso de a norma sub iudicio as ter equiparado aos créditos do Estado, como prevê a alínea b) do nº 1 do artigo 233º do Código de Processo Tributário, atrás transcrito.
Só que não é isso que tal norma fez.
Acresce que, se a norma sub iudicio tivesse procedido a essa equiparação, haveria então que ter em conta que a norma ao abrigo da qual a equiparação era feita (ou seja, a norma constante da dita alínea b) do nº 1 do artigo 233º), interpretada no sentido de importar um alargamento da competência dos tribunais fiscais definida na citada alínea c) do nº 1 do artigo 62º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, foi por este Tribunal julgada inconstitucional no já citado acórdão nº 172/96. E, então, haveria também que julgar inconstitucional - por violação da alínea q) do nº 1 do artigo 168º da Constituição.- a norma do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho, aqui em apreciação.
De facto, o julgamento de inconstitucionalidade proferido nesse acórdão nº 172/96 fundou-se, justamente, em que a norma da alínea b) do nº 2 do artigo 233º 'modificou regras de competência dos tribunais em razão da matéria, afectando os tribunais tributários e os tribunais comuns'.
Ora, também a norma aqui sub iudicio foi editada pelo Governo sem autorização legislativa, e também ela importou um alargamento da competência dos tribunais fiscais à custa da dos tribunais judiciais, pois que, como se viu, transferiu para os primeiros a competência para a cobrança de dívidas que antes eram cobradas pelos últimos.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). julgar inconstitucional - por violação da alínea q) do nº 1 do artigo 168º da Constituição - a norma do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho, na parte em que atribui aos serviços de justiça fiscal a competência para a cobrança coerciva das dívidas ao IROMA provenientes da falta de pagamento de taxas decorrentes da sua actividade, quando não pagas no prazo fixado;
(b). negar, em consequência, provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade, embora por fundamento diverso.
Lisboa, 19 de Março de 1997 Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida