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Proc. nº 866/96
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A sociedade comercial A., com sede em
----------, freguesia de ------, concelho de Vila Nova de Famalicão, deduziu oposição no Tribunal Tributário de Braga à execução fiscal instaurada na 2ª Repartição de Finanças daquele concelho com base em factura emitida pelo Instituto Regulador e Orientador dos Mercados Agrícolas (IROMA), no montante global de 1.548.250$00, referente a taxas de comercialização e da peste suína, instituídas pelo Decreto-Lei nº 343/86, de 9 de Outubro de 1986 e pelo Decreto-Lei nº 44.158, de 17 de Janeiro de 1962, respectivamente.
Na sua oposição, considerou que aquelas receitas não constituem taxas, mas sim verdadeiros impostos, estando as disposições legais que as prevêm feridas de inconstitucionalidade formal e material, por ter o Governo legislado quanto a esses diplomas no uso de competência própria, sem estar coberto por qualquer autorização legislativa para o efeito.
Suscitou ainda a questão da inconstitucionalidade orgânica e formal do artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro, na medida em que atribui ao IROMA o produto daquelas taxas, bem como do Decreto-Lei nº 364/86, de 9 de Outubro, e do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho, concluindo pela inexigibilidade das dívidas resultantes da cobrança daquelas taxas-impostos. Por último, considerou ainda que a legislação comunitária, nomeadamente o artigo 33º da Sexta Directiva do Conselho das Comunidades Europeias, afasta a possibilidade de cobrança destes impostos.
2. Por sentença de 11 de Maio de 1995, o Tribunal Tributário de 1ª instância de Braga julgou procedente a oposição, desaplicando o artigo 13º do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro, por inconstitucionalidade desta norma.
O Ministério Público interpôs recurso obrigatório desta decisão para o Tribunal Constitucional, recurso esse que veio a ser julgado procedente pelo acórdão nº 801/96, proferido em 25 de Junho de
1996, e que transitou em julgado.
3. Remetidos os autos ao tribunal a quo, a decisão revogada foi reformada, e através da sentença de 27 de Setembro de
1996, aquele tribunal tributário julgou de novo procedente a oposição deduzida à execução fiscal, desaplicando agora, por inconstitucional, o nº 1 do artigo 1º, do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho. Como se pode ler nessa decisão:
O DL 235/88 veio permitir a cobrança coerciva das dívidas ao IROMA - aqui credor - através do processo de execução fiscal, aplicando-se unicamente (art. 2) aos processos a instaurar após a sua entrada em vigor, o que significa que, antes, essas dívidas não eram cobradas neste tipo de processos.
Este decreto foi publicado nos termos da alínea a) do n. 1 do art. 201 da Constituição (CRP), ou seja, no uso de competência própria do Governo, aqui posta em causa como se viu.
Cremos ter razão a oponente.
Com efeito, a matéria relativa à execução fiscal, na medida em que tem a ver com as garantias processuais dos executados - lembre-se, por exemplo, que neste tipo de execução a mera dedução de oposição não suspende
(art. 255.1 do CPT) como não suspendia (art. 160 do CPCI) a execução - deve ter-se por incluída na reserva relativa de que fala o art. 168.1.i) da CRP, com referência ao art. 106.2 do mesmo diploma.
É, por um lado, matéria própria do sistema fiscal e por outro respeita a garantias dos contribuintes, não havendo razão plausível para que tais garantias sejam acauteladas com aquela reserva quando estiverem em causa impostos - art. 106.2 - e não o sejam quando a hipótese - como é este caso - seja de taxas, sendo que uns e outras integram o sistema fiscal.
Não podia, pois, o Governo, sem a dita autorização, publicar o citado decreto, que por isso é formal e organicamente inconstitucional, no nº 1 do seu artigo 1º.
3. Veio então o Ministério Público interpor novo recurso de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional daquela sentença, ao abrigo da alínea a) do nº 1, do artigo 70º da LTC.
Remetidos os autos ao Tribunal Constitucional, e aqui distribuídos, apenas pelo Ministério Público foram apresentadas alegações, que concluiu pela forma seguinte:
1º - Não constitui matéria própria do sistema fiscal, nos termos do nº 2 do artigo 106º da Constituição da República Portuguesa, o estabelecimento de um regime de cobrança das 'taxas de comercialização e outras imposições parafiscais', a favor do IROMA, através do processo de execução fiscal, tramitado pelos serviços de justiça fiscal.
2º - Situa-se no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República o estabelecimento de um regime que contenda, em termos inovatórios, com a delimitação das competências materiais reservadas às diversas ordens jurisdicionais, no caso aos tribunais judiciais e aos tribunais administrativos e fiscais.
3º - Não implica verdadeira inovação, directamente estabelecida em sede de normas atinentes à 'competência dos tribunais', o simples preenchimento e concretização das cláusulas abertas e conceitos indeterminados, usados pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e pelo Código de Processo Tributário (em estrita consonância com o que estava já prescrito no Código de Processo das Contribuições e Impostos) na determinação da competência executiva dos tribunais tributários de 1ª instância, em termos, para efeitos de cobrança coerciva equiparar às dívidas fiscais do Estado os créditos fiscais de que é titular um instituto público, segundo critério materialmente adequado à natureza da dívida e coincidente com o âmbito da reserva material de competência dos tribunais fiscais, tal como veio a ser definido pelo nº 3 do artigo 214º da Constituição da República Portuguesa (na versão emergente da revisão constitucional de 1989).
4. Corridos os vistos legais, ordenou o relator do processo a junção aos autos de cópia do Acórdão nº 268/97, no qual se julgou inconstitucional, por violação da alínea q) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, a norma constante do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho.
Cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
5. A norma constante do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho, dispõe o seguinte:
A cobrança coerciva das dívidas ao IROMA provenientes da falta de pagamento de taxas e multas decorrentes da sua actividade, quando não pagas dentro do prazo fixado, far-se-á pelo processo de execução fiscal, através dos serviços de justiça fiscal.
Nos termos do artigo 2º do Decreto-Lei nº
235/88, o regime nele prescrito apenas se aplica aos processos a instaurar após a sua entrada em vigor (nº 1), continuando os processos pendentes àquela data a regular-se pelas leis então em vigor até que sejam findos (nº 2).
6. Sobre a questão da inconstitucionalidade daquela norma acima transcrita pronunciou-se já este Tribunal no citado Acórdão nº 268/97, tirado pela 2ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, nº 118, de 22 de Maio de 1997, - e de que se encontra cópia junta aos autos - no qual se julgou inconstitucional, por violação da alínea q) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, a norma em causa.
Com efeito, aí se entendeu que a norma não contende com a alínea i) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, porquanto a mesma não se integra na matéria do sistema fiscal nem tem a ver com as garantias dos contribuintes - o que ora se reafirma, pelas razões então aduzidas.
Em contrapartida, entendeu-se nesse mesmo aresto que
...a norma sub judicio - para além de mandar observar o processo de execução fiscal para a cobrança coerciva da taxa da peste suína africana e da taxa de comercialização, devidas ao IROMA - transferiu para os tribunais fiscais uma competência que, então, era dos tribunais judiciais.
[...]
Tribunais fiscais e tribunais judiciais pertencem, assim, a duas diferentes ordens judiciais: os primeiros, à ordem dos tribunais administrativos e fiscais (cf. citado artigo 214º, nº 1); os segundos, à ordem dos tribunais judiciais (cf. citado artigo 212º, nº 1).
Acontece que, nos termos da alínea q) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, compete exclusivamente à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a 'competência dos tribunais'.
O Governo tem, assim, que estar munido de autorização legislativa para editar normas que alterem a distribuição de competências entre tribunais pertencentes a ordens judiciais diferentes, uma vez que só desse modo ele pode legislar sobre matérias da competência legislativa parlamentar delegável.
É que, seja qual for o alcance a atribuir à reserva legislativa, no ponto em que ela tem por objecto a definição da 'competência dos tribunais', há-de incluir-se aí, sem dúvida, a definição de quais as matérias que são da competência dos tribunais judiciais e quais as que o são da dos tribunais fiscais [...]
7. Fundou-se, pois, este aresto na convicção de que, antes da publicação do Decreto-Lei nº 15/87, a competência para conhecer dos processos de execução para cobrança coerciva das taxas devidas ao IROMA pertencia aos tribunais judiciais. Sucede, porém, que não se levou aí em conta a existência de legislação pré-constitucional, concretamente o Decreto-Lei nº 48704, de 25 de Novembro de 1968, que procedera à integração na ordem dos tribunais tributários da cobrança coerciva de dívidas aos então organismos de coordenação económica.
Dispôs o artigo único desse diploma:
'A cobrança coerciva das dívidas aos organismos de coordenação económica proveniente da falta de pagamento de taxas, multas e outros rendimentos legalmente autorizados, é da competência dos tribunais das contribuições e impostos, através do processo de execução fiscal, servindo de título executivo a certidão passada pelo respectivo organismo.'
Nesta conformidade, há que rever a jurisprudência adoptada no referido Acórdão nº 268/97, por se verificar que não ocorrem os pressupostos em que ela se baseara.
Assim se concluiu, também, no recente Acórdão nº
501/97, da 1ª Secção (ainda inédito), onde se escreveu:
Ora, a extinção dos vários organismos de coordenação económica através do Decreto-Lei nº 15/87, de 9 de Janeiro (entre quais se encontrava a Junta Nacional dos Produtos Pecuários) não implicou a cessação da cobrança das receitas de direito público devidas a esses organismos, já que veio a ser criado um instituto público que recebeu várias das atribuições e competências desses organismos ( trata-se do Instituto Regulador e Orientador dos Mercados Agrícolas, IROMA, instituto que veio a ser extinto em 1994, através do Decreto-Lei nº 197/94, de 21 de Julho; vejam-se, em especial, os arts. 11º, nº
1, alíneas i) e j), 12º, nº 2, e 13º, daquele Decreto-Lei nº 15/87).
Havia, assim, lei pré-constitucional a atribuir competência à Justiça Fiscal para a cobrança coerciva das taxas de peste suína e de comercialização, circunstância que elimina o carácter inovador à norma do art.
1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho, o qual manteve o regime de cobrança anteriormente utilizado para os créditos da Junta Nacional de Produtos Pecuários. Não houve, assim, alteração da distribuição de competências pré-estabelecida, pressuposto de que partiu o citado acórdão nº 268/97.
Não havendo, portanto, a norma impugnada introduzido modificações na repartição de competências entre tribunais, não pode a norma ser tida como organicamente inconstitucional.
III - DECISÃO
8. Nestes termos, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 235/88, de 5 de Julho;
b) conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada em conformidade com o ora decidido sobre a questão de inconstitucionalidade.
Lisboa, 15 de Outubro de 1997
Luís Nunes de Almeida
Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Fernando Alves Correia
José Manuel Cardoso da Costa (votando o acórdão com a declaração idêntica à junta ao Acórdão nº 605/97).