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Processo nº 70/89 Processo nº 255/90 Processo nº 202/91 Processo nº 342/91 Processo nº 242/94
Plenário Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I
1.1.-O Provedor de Justiça requereu, nos termos do artigo 281º, nº 1, alínea a) - e não alínea c) como, por lapso manifesto, consta do seu articulado - da Constituição da República (CR), na versão resultante da revisão constitucional de 1982, e do artigo 51º, nº 1 - e não 59º, nº 1, como refere, também por evidente lapso de escrita - da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das seguintes normas:
A) Alínea a) do nº 1 do artigo 28º da Lei nº 2/88, de 26 de Janeiro (Lei do Orçamento do Estado para 1988);
B) Artigo 1º do Decreto-Lei nº 98/88, de 22 de Março, na medida em que dá nova redacção ao artigo 1º, § 2º, alínea e) [e não alínea c), como se indica] do Código do Imposto Profissional (CIP), aprovado pelo artigo
1º do Decreto-Lei nº 44 305, de 27 de Abril de 1962;
C) Despacho Normativo nº 82/85, do Secretário de Estado do Trabalho, de 31 de Julho de 1985, publicado no Diário da República, I Série, nº 197, de 28 de Agosto (e não de 22 desse mês, como do pedido consta).
1.2.- No entendimento da entidade requerente, as duas primeiras normas são materialmente inconstitucionais, por ofenderem os princípios da legalidade tributária (CR, artigos 106º, nº 2, e 107º, nº 1), da igualdade (CR, artigo 13º) e da imparcialidade (CR artigo 266º, nº 2, texto da 1ª Revisão Constitucional), enquanto o aludido despacho normativo, por seu turno, ao condicionar administrativamente a vontade do doador por via de critérios alheios
à vontade deste, segundo se alega, ofende, além do mais, o disposto no nº 1 do artigo 62º da CR.
2.- A argumentação aduzida pode sintetizar-se como segue:
2.1.- O Governo foi autorizado, de acordo com a alínea a) do nº 1 do artigo 28º da Lei nº 2/88, a 'incluir no âmbito de incidência do imposto profissional metade das importâncias, qualquer que seja a sua natureza, auferidas pelos empregados por conta de outrem no exercício das suas actividades, ainda que não atribuídas pela respectiva entidade patronal'.
No uso dessa credencial legislativa, o Governo editou o Decreto-Lei nº 98/88, sob a expressa invocação do disposto no artigo 201º, nº
1, alíneas a) e b), da CR, diploma aquele que, no seu artigo 1º, recuperando a alínea e) do §2º do artigo 1º do CIP - que o artigo 2º do Decreto-Lei nº
198/82, de 21 de Maio, eliminara - deu-lhe nova redacção, tornando passíveis de tributação em imposto profissional 'metade das importâncias, qualquer que seja a sua natureza, recebidas pelos empregados por conta de outrém no exercício da sua actividade, quando não atribuídas pela respectiva entidade patronal'.
Por último, o referido despacho normativo, sob a epígrafe
'Gratificações percebidas pelos empregados das salas de jogos dos casinos', determinou nos termos e ao abrigo dos § § 1º e 2º do artigo 13º do Decreto nº
41.812, de 9 de Agosto de 1958, na redacção do Decreto nº 43.044, de 2 de Julho de 1960, novas regras para a distribuição dessas gratificações, revogando anterior despacho sobre a matéria, o de 20 de Janeiro de 1983, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego (BTE), 1ª Série, nº 6, de 15 de Fevereiro de 1983.
Reconhece-se, consoante se retira da motivação do novo despacho, proporcionar o regime então em vigor dúvidas de interpretação, originando inúmeros pedidos de esclarecimento e consultas por parte das empresas concessionárias das salas de jogos dos casinos e do Sindicato do Profissionais de Banca dos Casinos, exprimindo, umas e outro, 'observações críticas sobre alguns aspectos que se apresentam regulamentados com excessiva rigidez ou não se acham previstos no despacho citado' (de 1983).
Dispôs-se, então, no nº 1 do novo despacho:
'A distribuição das gratificações pelos empregados das salas dos casinos onde se praticam os jogos referidos nos nºs. 1 e 2 do artigo 4º do Decreto-Lei nº
48.912, de 18 de Março de 1969, obedecerá
às regras definidas no presente despacho'.
Interessa, ainda, transcrever outras partes do diploma:
'2.- As gratificações recebidas pelos empregados nas mesas de jogo serão obrigatoriamente depositadas em caixas existentes nas respectivas mesas.
3.- As gratificações a que se refere o número anterior serão distribuídas quinzenalmente pelos empregados que prestam exclusivamente serviço nas salas de jogos tradicionais e exerçam as seguintes profissões:
a) Chefe de partida;
b) Fiscal-chefe;
c) Chefe de banca;
d) Fiscal de banca;
e) Pagador;
f) Ficheiro fixo;
g) Ficheiro volante;
h) Contínuo e porteiro;
i) Controlador de identificação.
------------------------------------
8.- Do montante das gratificações a que se refere o nº 2 destinar-se-ão:
a) Para o pessoal abrangido por este despacho - 88%;
b) Para o Fundo Especial de Segurança Social dos Profissionais de Banca dos Casinos - 12%.
------------------------------------
11.- As gratificações recebidas directamente pelo pessoal abrangido pelas alíneas f) a i) do nº 3 não entram na distribuição geral por dificuldade de controle, sendo este facto tido em consideração na fixação das percentagens recebidas.
------------------------------------
13.- O apuramento das gratificações será feito diariamente e logo após o termo do funcionamento do jogo por uma comissão de apuramento, constituída, em cada casino, por um representante do Fundo Especial de Segurança Social dos Profissionais de Banca dos Casinos, um representante da empresa concessionária e dois representantes dos chefes de banca ou fiscais e pagadores designados pelos interessados.
-----------------------------------
15.- As importâncias das gratificações apuradas diariamente serão depositadas no primeiro dia útil imediato, em conta bancária especial aberta em nome da comissão de distribuição das gratificações.
------------------------------------
16.- As liquidações serão feitas quinzenalmente, nos dias 1 e 16 de cada mês ou, coincidindo estes com sábados, domingos ou feriados, no primeiro dia útil que se lhes seguir, pelo sistema de ordem de transferência bancária, para as contas dos empregados, quanto às importâncias a estes devidas, e para a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência, na parte respeitante ao fundo de assistência.
----------------------------------.'
2.2.- A alteração introduzida no CIP pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº
98/88 originou a tributação de metade das gratificações abonadas aos empregados das salas de jogos dos casinos, não pelas respectivas entidades patronais mas, exclusivamente, pelos frequentadores dessas salas, numa base puramente irregular, voluntária e aleatória - não existe relação entre o trabalho prestado e a gorjeta que, costumeiramente, é atribuída pelo jogador que ganha aos profissionais da banca em causa.
Ora, só as gratificações entregues com regularidade pela entidade patronal conferem a expectativa do seu recebimento e são consideradas elementos da retribuição, susceptíveis da correspondente tributação.
Na prática, a autorização constante da Lei Orçamental para
1988 e o uso que dela fez o Governo, envolvem a criação de um novo imposto, uma vez que alargam a área de incidência estabelecida no artigo 1º do CIP a rendimentos que não são provenientes do trabalho - nem, por conseguinte, se encontram sujeitos a contribuição para a segurança social - pois mais não são estes do que aleatórias liberalidades, nem sequer compagináveis com situações de relação gorjeta-trabalho, que chegam a condicionar as remunerações acordadas entre entidades patronais e trabalhadores, vulgares em determinadas áreas como a do serviço prestado pelos empregados de café e restaurantes.
Por isso, as disposições em causa colidem com o princípio da legalidade fiscal (CR, artigo 106º, nº 2), ao criarem um novo imposto contra o sistema estabelecido no artigo 107º da CR.
Do mesmo passo violam o princípio da igualdade tributária
(artigo 13º da CR), uma vez que apenas são tributadas as gratificações dos profissionais de banca dos casinos e não todos os que auferem gratificações, paralelamente ofendendo o princípio da justiça e da imparcialidade consagrado no artigo 266º, nº 2, da CR.
Por fim, ao fixar critérios de distribuição das gorjetas alheios à vontade dos doadores, o Despacho Normativo nº 82/85, condicionando-a administrativamente, viola a norma do artigo 62º, nº 1, da CR.
2.3.- O requerimento do Provedor de Justiça é acompanhado por documentação vária, nomeadamente por diversos pareceres que o Sindicato em referência endereçou a essa entidade.
Citem-se, por ordem de junção, um trabalho subscrito pelos Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa e Doutor Saldanha Sanches, um 'parecer breve' do Prof. Doutor Jorge Miranda, um 'parecer de concordância (com o primeiro) do Prof. Doutor Freitas do Amaral, um parecer do Prof. Doutor Gomes Canotilho, outro do Dr. António Domingues Azevedo (contabilista e técnico de contas que, como Deputado, interveio na discussão parlamentar travada a respeito da citada alínea e) do § 2º do artigo 1º do CIP), dois pareceres breves do Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa e, finalmente, um trabalho de um assessor do Serviço do Provedor de Justiça.
3.- Observado o disposto no artigo 54º da Lei nº 28/82, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos e igualmente o fez o Primeiro Ministro que, no entanto, juntou uma informação da auditoria jurídica da Presidência do Conselho de Ministros, remetendo, nuclearmente, para um parecer, anexo, da auditoria jurídica do Ministério das Finanças, a cuja tese adere.
Nesse trabalho sufraga-se igualmente um juízo de inconstitucionalidade das questionadas normas, seja por violação do princípio da tipicidade do direito fiscal, abrindo-se à incidência do imposto uma modalidade de transferência patrimonial nele não prevista, seja por desrespeito ao princípio da legalidade, mediante a aplicação analógica do regime fiscal das retribuições de trabalho às gratificações não provenientes da entidade patronal, seja, finalmente, por discriminação relativamente ao universo de cidadãos que recebem gratificações de terceiros, não fiscalmente tributadas, assim se ofendendo o princípio da generalidade e o princípio da igualdade, todos normativamente condensados nos artigos 13º, 18º, nº 3, 68º e 106º, nº 2, da CR.
II
1.1.- Posteriormente, ao abrigo do disposto no artigo 281º, nº 1, alínea a), da CR, o Provedor de Justiça veio requerer 'a apreciação da constitucionalidade do Despacho Normativo nº 24/89, de 17 de Fevereiro, do Ministro do Emprego e da Segurança Social', publicado no Diário da República, I Série, de 15 de Março seguinte.
Trata-se de despacho revogatório do nº 82/85 (cfr., o seu nº
14) e que, com base nos já citados § § 1º e 2º do artigo 13º do Decreto nº 41
812, na redacção do Decreto nº 43044, pretende aperfeiçoar a disciplina jurídica da distribuição das gratificações em causa, de modo a obter-se 'maior adequação global do processo de apuramento, liquidação e distribuição das gratificações' e a formular-se com maior rigor o conjunto das regras constitutivas do novo regime.
1.2.- Se bem que pretenda ver apreciada a constitucionalidade do novo despacho, o Provedor de Justiça remata as suas considerações circunscrevendo-as aos nºs. 2, 3 e 4 do diploma em causa, por os considerar materialmente inconstitucionais, dado ofenderem - em sua tese - o direito de propriedade privada (CR, artigo 62º, nº 1) e o princípio da igualdade (CR, artigo 13º, nº
2).
2.- Delimitado o pedido, argumenta-se em síntese:
2.1.- Os textos legais em causa
Com o objectivo já apontado, o Despacho Normativo nº 24/89 propôs-se estabelecer novas regras de distribuição das gratificações (cfr., o seu nº 1), revogando as anteriores, sem prejuízo de um parcial regime transitório (nº 14).
Dizem-nos as normas postas em crise:
'2.- Têm direito à percepção de gratificações os empregados das salas de jogos tradicionais das profissões e categorias seguintes:
A) Empregado de banca:
a) Chefe de partida;
b) Fiscal-chefe;
c) Chefe de banca;
d) Fiscal de banca;
e) Pagador;
B) Auxiliar de banca:
f) Ficheiro fixo;
g) Ficheiro volante;
h) Contínuo e porteiro;
i) Controlador de veri-
ficação.
2.1.- As gratificações entregues aos empregados referidos no número anterior são obrigatoriamente introduzidas em caixas para este fim existentes nas salas de jogos, de modelos aprovados pela Inspecção-Geral de Jogos.
3.- Para efeito de determinação da parcela das gratificações a atribuir a cada um dos empregados, em função da sua profissão, categoria e antiguidade, são estes agrupados em classes, constantes do mapa anexo.
3.1.- Os empregados das categorias referidas nas alíneas f) a i) do nº 2 que ascendam à da alínea e) ingressam na classe B) se tiverem mais de três anos de serviço efectivo como empregados das salas de jogos tradicionais ou logo que os completem.
3.2.- A empresa concessionária deve remeter, até 15 de Janeiro, à comissão de distribuição das gratificações (CDG) e ao serviço permanente de inspecção da Inspecção-Geral de Jogos existente em cada casino o mapa anual do pessoal das salas de jogos tradicionais e, até ao penúltimo dia do mês a que respeitem, comunicação de alterações ocorridas.
3.3.- Até ao mesmo dia, a empresa informa a comissão e o serviço permanente da inspecção da Inspecção-Geral de Jogos das ausências ao trabalho dos empregados, respectivos motivos e período de tempo.
3.4.- Para os efeitos do presente despacho, quando uma empresa concessionária explore na mesma zona de jogo mais de um casino, o pessoal ao serviço constitui um quadro único.
4.- Do montante das gratificações recebidas no nº 2.1. são destinados:
a) Ao Fundo Especial de Segurança Social dos Profissionais de Banca dos Casinos - 12%;
b) Aos empregados das salas de jogos abrangidos por este despacho - 88%.
4.1.- A parte das gratificações que reverte para o Fundo Especial de Segurança Social constitui receita própria deste, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 31º do regulamento anexo à Portaria nº 340/85, de 5 de Junho.
4.2.- A parte das gratificações a que se refere a alínea b) do nº 4 será distribuída da seguinte forma:
Classe A- três vezes o valor de X;
Classe B- duas vezes o valor de X;
Classe C- uma vez o valor de X;
Classe D- uma vez o valor de X;
4.3.- O valor de X é determinado pela aplicação da fórmula
X= G
3A+2B+1C+1D
em que:
G= importância apurada das gratificações a distribuir;
A,B,C,D= número de empregados agrupados em cada uma das classes.'
Observe-se que as várias classes dos profissionais constam - e os seus critérios definidores - do mapa anexo a que se refere o corpo do nº
3.
2.2.- Este bloco normativo - que, nos seus traços gerais, não se afasta significativamente dos preceitos correspondentes do anterior despacho normativo que só não se transcreveram por então desinteressarem à economia e à inteligência do pedido - é considerado materialmente inconstitucional pelo Provedor de Justiça por força de via argumentativa que se aproxima da anterior.
Para esta entidade, semelhante tipo de gratificação configura-se como uma verdadeira doação, ou transmissão em vida e a título gratuito do direito de propriedade, não integrando o conceito de retribuição, tal como este vem sendo acolhido pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, pois não lhe subjaz qualquer relação laboral mas tão somente um espírito de liberalidade ou doação, razão pela qual cai sob o regime do nº 1 do artigo 62º da CR.
É, por conseguinte, inconstitucional o Despacho Normativo nº
24/89 ao limitar o elenco de donatários e o montante a atribuir a cada empregado, igualmente ofendendo a norma do artigo 13º da Lei Fundamental ao estabelecer, com mero apelo à respectiva categoria profissional, ou seja, sem fundamento bastante, uma diferenciação entre classes de empregados das salas de jogos dos casinos, em função da qual se procede à distribuição das gratificações recebidas.
3.- Notificado, nos termos do artigo 54º da Lei nº 28/82, respondeu oportunamente o Ministro do Emprego e da Segurança Social.
Para este membro do Governo, em súmula, a aceitação de gratificações sujeitas, sempre que atribuídas dentro das instalações onde o jogo
é praticado, a depósito em caixa própria, para posterior distribuição pelos beneficiários, segundo regras administrativamente fixadas, na sequência de legislação vinda já de 1958 e mantida posteriormente - caso do artigo 79º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, que abordaremos infra - não colide com a liberdade de transmissão da propriedade privada por actos entre vivos, estabelecida no nº 1 do artigo 62º da CR.
De resto, a gorjeta não é atribuída intuitu personae mas deixada usualmente em fichas, em cima da mesa de jogo, nada impedindo, aliás, que o frequentador gratifique pessoalmente quem deseje, desde que o faça fora das instalações de jogo.
Para o Ministro, também se não surpreende violação do princípio da igualdade, com expressão no artigo 13º da CR.
Sendo certo que a distribuição não é igualitária, desde 1960, ela processa-se em função das respectivas categorias profissionais, tal como definidas se encontram no respectivo contrato colectivo de trabalho, e justifica-se pela ligação mais ou menos íntima das várias categorias dos trabalhadores 'à sorte do jogo'.
Entende-se, por conseguinte, serem constitucionais as disposições impugnadas. III
1.1.- O Provedor de Justiça também requereu, ao abrigo do disposto no artigo 281º, nº 2, alínea d), da CR (2ª Revisão Constitucional) e nos termos do artigo 51º, nº 1, da Lei nº 28/82, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma da alínea h) do nº 3 do artigo 2º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), aprovado pelo Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro.
1.2.- Em seu entender, trata-se de norma de conteúdo análogo ao do artigo 28º, nº 1, alínea a), da Lei nº 2/88 e ao do artigo 1º do Decreto-Lei nº
98/88, ao dar nova redacção à alínea e) do § 2º do artigo 1º do CIP.
Assim sendo, também aqui se surpreende ofensa ao princípio da igualdade, consubstanciado no artigo 13º da CR, para além de violação do disposto no artigo 168º, nº 2, da Lei Fundamental, por inobservância da autorização legislativa concedida pela Lei nº 106/88, de 17 de Setembro, tendo em conta o disposto no artigo 4º, nº 2, alínea a), deste último diploma.
2.1.- Na verdade, a Lei nº 106/88 autorizou o Governo a aprovar os diplomas reguladores do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) e do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) e legislação complementar - artigo 1º - de acordo com o preceituado no seu articulado. Designadamente, no que ora interessa, o artigo 4º cuida da incidência objectiva do IRS, considerando - alínea a) do seu nº 2 - rendimentos do trabalho dependente 'todas as remunerações provenientes do trabalho por conta de outrem, prestado quer por servidores do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público, quer em resultado de contrato de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado'.
Ora, o Código do IRS, editado ao abrigo daquela autorização legislativa, no seu artigo 2º, respeitante à matéria colectável dos rendimentos da categoria A, preceitua no nº 3 e alínea h):
'3.- Consideram-se ainda rendimentos do trabalho dependente:
-------------------------------
h) As gratificações auferidas pela prestação ou em razão da prestação do trabalho, quando não atribuídas pela respectiva entidade patronal.
-----------------------------'.
2.2.- Na óptica do requerente, persiste a situação discriminatória entre cidadãos, resultante de a aplicação da lei apenas poder abranger certa categoria de destinatários, sendo inegável que, relativamente a todos os que teoricamente integrariam a previsão legislativa, nunca será possível apurar os rendimentos tributários.
Ainda que se compreenda pretender o IRS abranger rendimentos provenientes de liberalidades habituais, tributando-os, o certo é que, ao invés do que sucede com as gorjetas recebidas pelos empregados de banca dos casinos, a generalidade desta espécie de atribuições patrimoniais escapa a qualquer tipo de controlo e de consequente incidência fiscal.
Para além da desigualdade material assim gerada, a própria formulação dos nºs. 2 e 3 do artigo 2º do Código do IRS suscita a questão de compatibilização do âmbito da retribuição do trabalho com o estatuído na lei de autorização legislativa: o legislador da Lei nº 106/88 ao aludir a remuneração, no preceito já aludido, terá pensado apenas em algo que constitui o pagamento ou contraprestação de certo trabalho e não nas gorjetas, enquanto liberalidades atribuídas por terceiros, e que não têm directamente em vista pagar determinado trabalho.
Acresce que a referência a 'proveniente de trabalho por conta de outrem quer em resultado do contrato de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado', confirma que a Lei nº 106/88, ao demarcar os limites de incidência deste segmento do IRS, pensou sempre em prestações devidas em resultado de vinculação decorrente de certo contrato, o que não se enquadra com liberalidades que, podendo ser usuais, não podem ter-se por obrigatórias em resultado de qualquer contrato.
Deste modo, para o Provedor de Justiça, a alínea h) do nº 3 do artigo 2º do IRS, ao incluir nos rendimentos da categoria A do IRS as
'gratificações auferidas pela prestação ou em razão da prestação de trabalho, quando não atribuídas pela respectiva entidade patronal', terá ultrapassado os limites da lei de autorização, incorrendo em inconstitucionalidade, por violação do nº 2 do artigo 168º da CR.
3.- Notificado, nos termos e para os efeitos dos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei nº 28/82, respondeu oportunamente o Primeiro Ministro.
Na sua perspectiva, a norma da alínea h) do nº 3 do artigo 2º do Código do IRS não é materialmente inconstitucional, nela não se vislumbrando qualquer ofensa do princípio da igualdade acolhido no artigo 13º da CR, antes representa a 'inequívoca expressão do seu respeito, em termos de uma visada adequação tributária a idênticas expressões quantitativas da capacidade contributiva, e a rendimentos (acréscimo patrimonial) imputáveis à percepção de todo o género de gratificações [cfr. v.g. artigo 2º, nº 2, e 3º, alínea c) do CIRS]'
Por sua vez, também não o é, face ao disposto no artigo 168º, nº 2, da CR, 'por não se verificar qualquer desrespeito do âmbito da autorização legislativa [...] já que o conceito fiscal de rendimento de trabalho não tem que coincidir com o da legislação laboral, nem tal decorre do citado preceito, que apenas admite subjazer à actividade dependente um título jurídico contratual ou um vínculo funcional relevante'.
IV
1.1.- Um grupo de Deputados, ao abrigo do disposto no artigo 281º, nºs.
1, alínea a), e 2, alínea f), da CR, veio requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação e a declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade do artigo 79º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro - Lei do Jogo - por violação dos artigos 168º, nº 1, alínea b), 201º, nº 1, alínea b), 18º, nºs. 2 e
3, 13º e 115º, nº 5, todos da CR.
1.2.- Para os signatários do novo requerimento a ter em consideração, as apontadas inconstitucionalidades assentam nas seguintes premissas:
a) o artigo 79º da Lei do Jogo respeita a matéria integrada no âmbito da reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República - artigo 168º, nº 1, alínea b), da CR - pelo que a sua edição pelo Governo depende de autorização legislativa válida - artigo 201º, nº 1, alínea b), do mesmo texto;
b) ora, a Lei nº 14/89, de 30 de Junho, que concedeu essa autorização, não obstante se debruçar sobre matéria laboral, não teve a necessária participação das comissões de trabalhadores e das associações sindicais na sua elaboração, consoante o estabelecido pelos artigos 55º, alínea d), e 57º, nº 2, alínea a), da CR [texto resultante da 1ª Revisão Constitucional, a que hoje correspondem os artigos 54º, nº 5, alínea a), e 56º, nº 2, alínea a)], sendo, nessa medida, formalmente inconstitucional;
c) consequentemente, o artigo 79º em referência 'foi aprovado pelo Governo sem que este dispusesse de uma lei de autorização legislativa válida que a tal o autorizasse, pelo que é organicamente inconstitucional por violar o artigo 201º, nº 1, alínea b), conjugado com o artigo 168º, nº 1, alínea b), da Constituição'.
d) ao artigo 79º da Lei do Jogo, pela sua natureza restritiva, é aplicável a disciplina do artigo 18º, nºs. 2 e 3, da CR;
e) a diferenciação de regime jurídico entre as gratificações recebidas pelos empregados das salas de jogo dos casinos e as recebidas pelos demais trabalhadores, não alicerçada em fundamento material suficiente que a justifique, é, não só arbitrária e discriminatória como desproporcionada, desadequada e desnecessária em relação às razões que possam ser invocadas, assim violando não só o artigo 13º da CR como o nº 3 do artigo
18º da Lei Fundamental;
f) por sua vez, ao remeter para portaria a definição das regras de distribuição das gratificações entre os empregados com direito à sua percepção, o artigo 79º em causa está a violar a reserva de lei restritiva constante do artigo 18º, conjugado com o artigo 115º, nº 5, da CR, que impõem constarem de acto legislativo todos os aspectos essenciais de restrição, devendo os regulamentos limitar-se a meros pormenores de execução.
2.1.1.- O Decreto-Lei nº 422/89 foi editado pelo Governo no uso da autorização legislativa concedida pelos artigos 1º e 2º da Lei nº 14/89, de 30 de Junho, e nos termos das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 201º da CR.
2.1.2.- Na sistemática do diploma, o artigo 79º integra-se no seu capítulo VI - Das pessoas afectas à exploração e à prática dos jogos em casinos - secção II - Do pessoal das salas de jogo.
Sob a epígrafe 'gratificações', dispõe, assim, o artigo 79º:
'1.- Aos empregados dos quadros das salas de jogos é permitido aceitar as gratificações que, espontaneamente, lhes sejam dadas pelos frequentadores.
2.- Logo após o recebimento as gratificações são obrigatoriamente introduzidas em caixas de modelo próprio, existentes nas salas de jogos, sendo proibida a sua percepção individual por qualquer dos trabalhadores a que se refere o número anterior.
3.- As regras de distribuição da parte das gratificações destinadas aos empregados com direito à sua percepção são fixadas por portaria do membro do Governo responsável pelo sector do turismo, ouvidos os representantes dos trabalhadores.
4.- Nas regras de distribuição pode determinar-se que uma percentagem das gratificações, a definir pelo Ministro do Emprego e da Segurança Social, não superior a 15%, reverte para o Fundo Especial de Segurança Social dos Profissionais da Banca dos Casinos ou para outros fundos a constituir, ouvidos os representantes dos trabalhadores'.
Esclareça-se que os empregados dos quadros das salas de jogos a que o normativo se refere, são os constantes da regulamentação em vigor, segundo se colhe do nº 1 do artigo 77º, ao debruçar-se sobre as profissões e categorias desse pessoal.
2.2.- A fundamentação do pedido consta, essencialmente, das várias alíneas com que se entendeu desdobrá-lo (ponto IV-1.2.) pelo que para elas nos limitamos a remeter.
2.3.- O requerimento do grupo de Deputados é acompanhado por parecer remetido aos parlamentares pelo Sindicato dos Profissionais de Banca dos Casinos, onde se cuida mais desenvolvidamente da fundamentação utilizada no pedido.
3.- Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54º e 55º, nº
3, da Lei nº 28/82, respondeu, em tempo, o Primeiro Ministro.
Contrariando a tese da alegada inconstitucionalidade, defende, nomeadamente, que no aspecto orgânico, a Lei do Jogo obedeceu aos ditames dos preceitos constitucionais, com sujeição do projecto à apreciação pública - publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, de 14 de Agosto de 1989, de que junta exemplar - não estando ora em causa a apreciação da lei de autorização legislativa.
Também, em seu ponto de vista, não existe qualquer inconstitucionalidade material na norma em causa: a imposição legal de regras de distribuição equitativa acautela precisamente o direito da igualdade dos trabalhadores das salas de jogos dos casinos, constituindo matéria de natureza regulamentar o processo de distribuição das gratificações pelos seus beneficiários, nada impedindo que essas regras de distribuição se fixem por portaria.
Juntou diversa documentação.
V
1.1.- Finalmente, o Provedor de Justiça, ao abrigo do disposto nos artigos 281º, nºs. 1 e 2, alínea d), da CR, e 20º, nº 3, da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, requereu a apreciação da constitucionalidade das seguintes normas:
A) Artigo 2º, nº 3, alínea d), da Lei nº 14/89, de 30 de Junho;
B) Artigo 79º, do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro - Lei do Jogo;
C) Regras anexas à Portaria nº 1159/90, de 27 de Novembro, aprovadas pelo seu nº 1, com as alterações introduzidas pela Portaria nº 129/94, de 1 de Março.
1.2.- Considera a entidade requerente que as normas por si identificadas são materialmente inconstitucionais, por ofenderem o direito à propriedade privada e o princípio da igualdade, constitucionalmente garantidos, nos artigos 62º, nº 1, e 13º da CR.
2.1.- A Lei nº 14/89 concedeu autorização ao Governo para proceder à revisão da legislação que disciplina a exploração e prática dos jogos de fortuna ou azar em casinos (cfr. o seu artigo 1º).
O artigo 2º desse diploma legal cuida do 'sentido e extensão' da autorização legislativa.
No desenvolvimento desta matéria e no tocante ao pessoal que presta serviço nas salas de jogos, prescreveu-se na alínea d) do nº 3 desse artigo, norma posta em crise:
'd) No que concerne às gratificações cuja percepção se consente, quando espontaneamente dadas pelos frequentadores das salas de jogos:
1) Determinar que após o seu recebimento as referidas gratificações sejam obrigatoriamente introduzidas em caixas de modelo próprio, proibindo-se a sua percepção individual por qualquer dos trabalhadores;
2) Estabelecer, ouvidos os representantes dos trabalhadores, que as regras de distribuição das gratificações sejam definidas por portaria do membro do Governo responsável pelo sector do turismo;
3) Permitir que uma percentagem das gratificações, não superior a 15%, reverta para o Fundo Especial de Segurança Social dos Empregados das Salas de Jogos Tradicionais dos Casinos ou para outros fundos a constituir.'
O Decreto-Lei nº 422/89 - a Lei do Jogo - foi emanado pelo Governo no uso da autorização legislativa concedida pela Lei nº 14/89, como oportunamente se registou (ponto IV - 2.1.1.) e o seu artigo 79º, respeitante às gratificações, já se transcreveu.
Por sua vez, a Portaria nº 1159/90 veio aprovar as regras de distribuição das gratificações dadas pelos frequentadores das salas de jogos tradicionais e privativas de máquinas dos casinos (nº 1), regras que publica em anexo, dela fazendo parte integrante, mantendo-se, no tocante às gratificações dadas nas salas de jogos tradicionais, 'sem qualquer alteração substancial' como observa o preâmbulo da Portaria, as regras de distribuição constantes do Despacho Normativo nº 24/89, objecto do segundo pedido.
Saliente-se, nesse conjunto de regras, a do nº 7, na redacção da Portaria nº 129/94, também citada pelo requerente:
'7.- No dia útil imediato ao da entrega referida no número anterior [a entrega da importância das gratificações apurada nas caixas compradoras das salas de jogos], a empresa concessionária procede ao depósito de 88% da importância de gratificações na conta bancária da CGD e dos restantes 12% em conta bancária do Fundo Especial de Segurança Social dos Profissionais de Banca dos Casinos.'
2.2.- Face ao descrito complexo normativo, o Provedor de Justiça entende serem violados quer o disposto no artigo 62º, nº 1, quer o preceituado no artigo 13º da CR.
No entendimento por si professado, assiste-se a uma dupla violação do direito constitucional à propriedade privada, na medida, por um lado, do desrespeito da vontade do gratificante, manifestada ao exercer este o seu direito de transmissão de propriedade a favor de alguém, em particular, e, por outro lado, pela estipulação da distribuição por um grupo - e, mesmo, a favor de um ou mais 'fundos' - daquilo que cada trabalhador já integrou como seu na respectiva esfera patrimonial.
Mas, na mesma óptica, verifica-se de igual modo dupla violação do princípio da igualdade: a existência de regras a impor uma distribuição das gratificações recebidas apenas pelos empregados dos quadros das salas de jogos afronta a situação de numerosos grupos profissionais que também auferem gratificações no exercício da sua actividade que, no entanto, não estão sujeitos a tributação; por sua vez, essas próprias regras geram outra desigualdade, resultante de os trabalhadores em causa se distribuírem por diferentes categorias dentro do próprio grupo sem que a atribuição das gratificações tenha alguma coisa a ver com a relação laboral de cada um deles.
2.3.- O requerimento do Provedor de Justiça é acompanhado por um parecer, intitulado 'A Tributação das Gratificações dos Profissionais de Banca dos Casinos' da autoria do Prof. Vítor António Duarte Faveiro.
3.- Observando o disposto no artigo 54º da Lei nº 28/82, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos e juntou os Diários da Assembleia da República relativos aos trabalhos preparatórios da Lei nº
14/89.
O Primeiro-Ministro, por sua vez, respondeu defendendo a improcedência total do pedido.
Para o efeito, desenvolveu argumentação assim condensada nas conclusões lavradas:
'I.- Os empregados dos quadros das salas de jogos estão sujeitos a um regime laboral especial que inclui, entre outros aspectos, o exercício de funções próprias dos funcionários e agentes da Administração, nomeadamente, o que se compreende atento o facto de a legislação do jogo ser de interesse e ordem pública.
II.- Essa situação aproxima a situação dos empregados dos quadros das salas de jogos da dos servidores do Estado, nomeadamente no que respeita ao dever de isenção que sobre estes impende, e que consiste em não retirar vantagens directas ou indirectas, pecuniárias ou outras, das funções exercidas, para poder actuar com independência em relação aos interesses e pressões particulares de qualquer índole, na perspectiva do respeito pela igualdade dos cidadãos.
III.- As gratificações aos empregados dos quadros das salas de jogos constituem uma realidade socio-económica relevante, não só dado o seu carácter tradicional como por representarem uma parte significativa do rendimento do seu trabalho.
IV.- Impondo-se compatibilizar o dever de isenção, que impende também sobre os empregados dos quadros das salas de jogos, com esta realidade sócio-económica, a solução de permitir a percepção de gratificações mas não de forma individualizada deve entender-se como sendo uma solução justa e equilibrada.
V.- Esta solução, que constitui alternativa à pura e simples proibição das gratificações, não é contrária ao direito de livre transmissão da propriedade privada constante do artigo 62º da Constituição.
VI.- Tal como o dever de isenção dos servidores do Estado, que os impede de receber gratificações, não é também contrário ao direito de livre transmissão da propriedade privada constante do artigo 62º da Constituição.
VII.- Justificando-se o regime de redistribuição obrigatória das gratificações do pessoal dos quadros das salas de jogos pelo especial regime laboral a que estão sujeitos, não existe infracção ao princípio da igualdade por tal regime de redistribuição obrigatória não existir relativamente a outros grupos profissionais que auferem gratificações pelo exercício da sua actividade profissional, uma vez que estes grupos não estão sujeitos ao mesmo regime especial, sobretudo no que respeita ao referido dever de isenção.
VIII.- A gratificação dos empregados dos quadros das salas de jogos é feita, por razões sociológicas, tendo normalmente em atenção a categoria do destinatário da mesma, de acordo com o sistema de gratificar de forma mais significativa o titular de categoria superior.
IX.- Por esse motivo, na fixação das regras de redistribuição obrigatória das gratificações, é de elementar justiça equitativa que se mantenha a ponderação das categorias dos beneficiários. Caso contrário, estar-se-ia a prosseguir o igualitarismo, o que o artigo 13º da Constituição não consente.'
4.- Os vários pedidos deram lugar, respectivamente, aos processos nºs. 70/89,
255/90, 202/91, 342/91 e 242/94 que foram sucessivamente incorporados no primeiro, por despachos lavrados nos autos, do Senhor Presidente do Tribunal Constitucional, considerando o disposto no nº 1 do artigo 64º da Lei nº 28/82, de todos eles agora se conhecendo. VI
Delimitação das normas e das questões de constitucionalidade a apreciar pelo Tribunal Constitucional.
1.- Nos termos do nº 1 do artigo 282º da CR, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, produz efeitos, em regra
(tendo em conta o disposto nos nºs. 3 e 4 do mesmo preceito), desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional, operando, desse modo, retroactivamente (ex tunc).
Assim, a revogação de uma norma objecto de pedido de declaração de inconstitucionalidade - e porque, em princípio, a revogação tem mera eficácia prospectiva (ex nunc) - não obsta a que, por esse facto, o Tribunal se abstenha de conhecer do pedido.
Com efeito, pode haver interesse na eliminação dos efeitos produzidos pela norma revogada no período da sua vigência. De acordo com a jurisprudência, reiterada e uniforme, deste Tribunal, face à revogação de uma norma, manter-se-á o interesse na declaração da sua eventual inconstitucionalidade 'toda a vez que ela for indispensável para eliminar efeitos produzidos pelo normativo questionado, durante o tempo em que vigorou' e essa indispensabilidade seja evidente, por se tratar da eliminação de efeitos produzidos constitucionalmente relevantes (por todos, citem-se os acórdãos nºs.
804/93, 806/93, 186/94 e 57/95, publicados no Diário da República, II Série, de
31 de Março, 29 de Janeiro, 14 de Maio de 1994 e 12 de Abril de 1995, respectivamente).
Já, porém, não existe - neste modo de ver - interesse jurídico relevante no conhecimento de um pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma norma entretanto revogada, naqueles casos em que não se vislumbre nele qualquer alcance prático, atendendo à circunstância de o Tribunal, a declarar eventualmente a inconstitucionalidade, não dever deixar de, por razões de segurança jurídica, equidade ou interesse público de excepcional relevo, limitar os seus efeitos, nos termos do nº 4 do artigo 282º da CR, de modo a deixar incólumes os produzidos pela norma antes da sua revogação. Em tais situações, como vem entendendo este Tribunal (e acompanhamos de perto o citado acórdão nº 57/95),
'em que é visível a priori que o Tribunal Constitucional iria, ele próprio, esvaziar de qualquer sentido útil a declaração de inconstitucionalidade que viesse eventualmente a proferir, bem se justifica que conclua, desde logo, pela inutilidade superveniente de uma decisão de mérito'.
Por sua vez, assenta a concepção do interesse jurídico relevante no pressuposto do seu conteúdo prático apreciável, pois, como também já se ponderou, sendo razoável a observância dos princípios da adequação e da proporcionalidade, 'seria inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de índole genérica e abstracta, como é a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral [...] para eliminar efeitos eventualmente produzidos que sejam constitucionalmente pouco relevantes e possam facilmente ser removidos de outro modo' (cfr. acórdão nº 465/91, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Dezembro de 1988).
Registe-se, finalmente, a repercussão que, nesta matéria, pode ter uma sucessão temporal de diplomas decorrentes de opções legislativas e contextos político-económicos e sociais distintos, situação em que, face a uma norma materialmente nova, não se discutirá apenas até que ponto esta se configurará, relativamente à anterior, mas igualmente se cuidará de saber se lhe assiste diferença normativa substancial (no caso vertente, de modo particular, estão em causa normas que integram diferentes sistemas de tributação dos rendimentos das pessoas singulares).
2.- Face a estas considerações esquematicamente enunciadas, importa sublinhar respeitarem os cinco pedidos de fiscalização a um elenco de normas -
algumas delas comuns a mais de um pedido - nem todas actualmente em vigor.
Com efeito, os pedidos de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral respeitam às seguintes normas, considerando a cronologia dos pedidos:
a) a norma da alínea a) do nº 1 do artigo 28º da Lei nº
2/88;
b) a do artigo 1º do Decreto-Lei nº 98/88, na medida em que dá nova redacção à alínea e) do § 2º do artigo 1º do C.I.P.;
c) as do Despacho Normativo nº 82/85;
d) as dos nºs. 2,3 e 4 do Despacho Normativo nº 24/89;
e) a da alínea h) do nº 3 do artigo 2º do CIRS;
f) a da alínea d) do nº 3 do artigo 2º da Lei nº
14/89;
g) a do artigo 79º do Decreto-Lei nº 422/89;
h) as das Regras anexas à Portaria nº 1159/90, com as alterações constantes da Portaria nº 129/94.
As normas incluídas nas quatro primeiras alíneas dizem respeito a um sistema de tributação de rendimentos hoje globalmente substituído.
Na verdade, o imposto profissional perspectivava-se cedularmente - cada categoria de rendimentos, ou cédula, é determinada em função da sua origem ou natureza e submetida a um imposto próprio, com regras específicas de determinação da matéria colectável. A essa luz, e procurando aperfeiçoar o critério de tributação dos rendimentos reais que, designadamente, passaram a poder ser ocasionais e nem provir directamente do trabalho, a respectiva técnica tributária orientou-se no sentido de sujeitar a imposto todos os ganhos ou proveitos dos contribuintes, mesmo os excepcionais ou representativos de vantagens em espécie, incluindo os rendimentos ocasionais.
Sem embargo de se verificar, na estrutura e na técnica tributária do imposto profissional, uma evolução optimizante, tendente à tributação dos rendimentos reais, com respeito pela justiça fiscal e a adequada ponderação dos interesses da Fazenda e dos contribuintes, o certo é que semelhante regime, estruturalmente cedular, foi substancial e sistematicamente revogado, impondo-se retirar dessa constatação a insubsistência de interesse jurídico relevante, tal como caracterizadamente ficou este nas considerações precedentes, dada a limitação de efeitos a atribuir a eventual declaração de inconstitucionalidade.
Assim, e no tocante à primeira das normas elencadas, insere-se ela no diploma que aprovou o Orçamento do Estado para 1988 - a Lei nº 2/88 - e visou autorizar o Governo a tomar a iniciativa legislativa que o Decreto-Lei nº 98/88 veícularia, destinada a tornar passíveis de tributação em imposto profissional as importâncias aí mencionadas, o que constitui igualmente objecto de fiscalização pretendido pela norma enunciada em segundo lugar.
Relativamente à normação reportada na alínea c) - pertinente ao Despacho Normativo nº 82/85 - foi expressamente revogada pelo Despacho Normativo nº 24/89 (cfr. o seu número 14). E se é certo que parte dos preceitos deste último texto foram, por sua vez, ou revogados, ou 'transitoriamente suspensos', pelo Despacho Normativo nº 42/89, publicado no Diário da República, I Série, de 1 de Junho de 1989, de qualquer modo, a disciplina de distribuição das gratificações, contemplada pelo diploma de 1985, foi implicitamente afastada pela Portaria nº 1159/90 - a que se refere o quinto pedido - que, do mesmo passo, 'substituíu' o Despacho Normativo nº 24/89.
3.- Em face do exposto, circunscreve-se o objecto do pedido às normas constantes das alíneas a), b), e), f), g) e h) do nº 2 do presente ponto VI - e nessa conformidade se passa a considerar. No que particularmente respeita às duas primeiras alíneas - ou seja, às normas da alínea a) do nº 1 do artigo 28º da Lei nº 2/88 e do artigo 1º do Decreto-Lei nº 98/88, na medida em que dá nova redacção à alínea e) do §2º do artigo 1º do CIP - não obstante, como se sublinhou, se reportarem a um sistema de tributação de rendimentos hoje globalmente substituído, o certo é que, dado o período de tempo 'coberto' por essa legislação, admite-se que ainda se encontrem pendentes situações litigiosas, o que se afigura bastante para se manter o interesse no conhecimento do pedido no que a essas normas respeita, sem prejuízo de, por razões de sistemática e de economia de abordagem, se diferir para final esse mesmo conhecimento.
VII
1.- Os frequentadores das salas dos casinos onde se praticam os jogos referidos nos nºs. 1 e 2 do artigo 4º do Decreto nº 48 912, de 18 de Março de
1969 - hoje, com correspondência aproximada nas alíneas a) a e), exceptuado o bingo, do artigo 4º do Decreto-Lei nº 422/89, 'Lei do Jogo', que revogou boa parte daquele diploma no seu artigo 160º, nºs. 1, alínea a), e 2 - têm por prática habitual atribuir espontaneamente aos profissionais da banca - especialmente quando ganham - uma quantia em dinheiro, usualmente designada gratificação ou gorjeta, expressões que tão só se aceitam aqui por comodidade expositiva, pois, se bem que utilizadas indistintamente por alguns autores
(v.g., Silva Leal, 'A Remuneração do Trabalho na Legislação Portuguesa' in Estudos Sociais e Corporativos, ano II, Julho de 1963, nº 7, pág. 26), podem ser conceitualmente entendidas de modo diversificado [assim, e por exemplo, Almeida Policarpo e Monteiro Fernandes consideram que por gratificações se podem abranger importâncias que, embora recebidas em razão de trabalho prestado à entidade patronal, sejam pagas por pessoa diferente desta, afastando a chamada
'remuneração por percentagem sobre as vendas', de que é exemplo a taxa de serviços, das gorjetas propriamente ditas, doações remuneratórias de terceiros, para estes autores (cfr. Lei do Contrato de Trabalho anotada, Coimbra, 1970, p.
199)].
O legislador não se mostrou indiferente a essa prática, como revelam quer o Decreto nº 41 812 de 9 de Agosto de 1958 (na redacção do Decreto nº 43 044, de 2 de Julho de 1960) quer, no actual ordenamento, o artigo 79º da Lei do Jogo.
Assim, e sintomaticamente, não deixando de proibir o recebimento de gratificações ou gorjetas a título individual - como se retira da conjugação do nº 2 do artigo 79º com a alínea e) do nº 1 do artigo 83º da
'Lei', este último previsto na redacção do Decreto-Lei nº 10/95, de 19 de Janeiro - o Decreto-Lei nº 422/89 reconhece e disciplina o seu recebimento, nomeadamente quanto ao destino a dar a essas importâncias - o que, de resto, se prende com o problema da constitucionalidade das respectivas normas de distribuição - desse modo avalizando um regime particularmente específico em que os seus destinatários em parte usufruem da iniciativa dos jogadores, em parte delas beneficiam indirectamente, na medida dos quantitativos a reter para assegurar a liquidez do fundo de natureza social e assistencial que possuem.
2.- A norma da alínea h) do nº 3 do artigo 2º do CIRS.
2.1.- O Provedor de Justiça entende, como se consignou no ponto III, que esta norma, respeitante à matéria colectável dos rendimentos da categoria A, ao considerar rendimentos do trabalho dependente as gratificações auferidas pela prestação ou em razão da prestação do trabalho, quando não atribuídas pela respectiva entidade patronal, terá:
a) ultrapassado os limites da lei de autorização legislativa - a Lei nº 106/88 - desse modo violando o nº 2 do artigo 168º da CR;
b) ofendido, do mesmo passo, o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da CR, na medida em que a tributação dos rendimentos de semelhantes liberalidades 'escapa a qualquer tipo de controle e de consequente incidência fiscal', apenas atingindo, 'na prática', as gorjetas recebidas pelos empregados de banca dos casinos, tendo em conta o sistema vigente que as disciplina e controla.
Importa, por conseguinte, abordar cada um dos invocados fundamentos de per si.
2.2.- A dimensão inconstitucional por alegada inobservância da autorização legislativa concedida pela Lei nº 106/88 no tocante à extensão - CR, nº 2º do artigo 168º.
Entende-se não ser de declarar a inconstitucionalidade da norma.
2.2.1.- As leis de autorização legislativa são constitucionalmente configuradas como actos-parâmetro, no sentido de que elas estabelecem os limites a que está vinculado o órgão delegado no exercício dos poderes legislativos concedidos por via da autorização. Como se ponderou no acórdão nº 806/93, publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Janeiro de 1994, neste contexto, as referidas leis 'compreendem quer uma vertente interna, no sentido de que contêm regulação sobre o procedimento legislativo a que vai proceder o Governo e à qual o Governo se encontra adstrito, quer uma vertente autorização deve, ela própria, conter a extensão, sentido e alcance da legislação delegada. Nesta última vertente, a lei de autorização contém, portanto, os elementos essenciais das alterações do ordenamento jurídico a que o Governo virá a proceder quando (e se) usar os poderes nele assim delegados'.
2.2.2.- A Lei nº 106/88, nos termos da alínea a) do nº 2 do seu artigo 4º, autorizou o Governo a legislar, no âmbito da incidência objectiva do IRS, de modo a serem consideradas como rendimentos de trabalho dependente 'todas as remunerações provenientes do trabalho por conta de outrem, prestado quer por servidores do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, quer em resultado de contrato de trabalho ou de outro a ele equiparado'.
Sendo a norma em sindicância emitida à luz dessa credencial, entende o Provedor de Justiça ter sido desrespeitada a extensão da autorização, por não ter sido intuito do legislador tributar rendimentos que não decorrem directamente de contrato de trabalho, ou outro a ele legalmente equiparado, sendo certo que as liberalidades atribuídas por terceiros não têm directamente em vista o pagamento de certo trabalho.
Já para o Primeiro-Ministro - e para além da questão de qualificação das gorjetas como liberalidades - nada impede que o legislador fiscal as considere como rendimentos de trabalho para efeitos de tributação, já que o conceito fiscal de rendimento do trabalho não tem que coincidir com o da legislação laboral, nem tal decorre do preceito que apenas admite subjazer à actividade dependente um título jurídico contratual ou um vínculo funcional relevante.
2.2.3.- A questão não é nova, uma vez que já no domínio do imposto profissional fora equacionada, tornando-se necessário fazer-lhe referência, ainda que brevemente.
Com efeito, na vigência do CIP, a alínea e) do § 2º do artigo
1º desse diploma foi aditada pelo Decreto-Lei nº 138/ 78, de 12 de Junho, na sequência da autorização dada pela Lei nº 20/78, de 26 de Abril [artigo 9º, alíneas h) e k)].
Na altura, a Comissão Constitucional emitiu parecer no sentido da inconstitucionalidade da norma, 'na parte em que, com violação do disposto nos nºs. 2 e 3 do artigo 106º e alínea o) do artigo 167º da Constituição, considera como rendimentos de trabalho, sujeitos a imposto profissional, as importâncias recebidas, a título de gratificação, ou gorjeta, pelos empregados por conta de outrém no exercício da sua actividade, quando atribuídos por entidade diversa da patronal': cfr. o parecer nº 3/79, de 1 de Dezembro de 1979
(publicado in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 7º, págs. 203 e segs.), na origem da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, contida na resolução nº 62/79 do Conselho da Revolução, datada de 3 de Março
(loc. cit., pág. 232).
Perante uma nova alínea e), próxima da anterior, aditada pelo Decreto-Lei nº 297/79, de 17 de Agosto, a Comissão Constitucional voltou a pronunciar-se desfavoravelmente, mas agora por fundamentação diversa: não chegando a pronunciar-se sobre a questão de fundo, entendeu que o diploma de
1979 não tinha sido devidamente referendado, implicando a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de todas as suas normas, o que mereceu acolhimento pelo Conselho da Revolução (cfr. parecer nº 5/80, de 26 de Fevereiro, e Resolução nº 116/80, de 25 de Março, in - Pareceres cits., vol.
11º, págs. 129 e segs.).
Logo depois, no entanto, o Decreto-Lei nº 183-D/80, de 9 de Junho, repôs em vigor a anterior alínea e), tendo em conta o disposto na alínea j) do artigo 17º da Lei nº 8-A/80, de 26 de Maio.
Agora, a Comissão Constitucional viria a tomar conhecimento da questão de fundo e a concluir, por unanimidade, pela conformidade constitucional da norma (cfr. parecer nº 5/81, de 19 de Março, sancionado pela Resolução do aludido Conselho nº 72/81, de 25 de Março, publicado nos Pareceres cits., vol.
14º, págs. 309 e segs.).
Partindo da análise dessa alínea j) que, relativamente ao imposto profissional, autorizou o Governo a 'rever as regras de incidência do imposto por forma a abranger todos os rendimentos do trabalho ou com ele relacionados' e considerando que, ao aditar a alínea e) ao § 2º do artigo 1º do CIP, o Governo não excedeu a autorização legislativa que lhe foi concedida, a Comissão considerou estarem as gorjetas ou gratificações em causa sujeitas ao imposto profissional, sendo consideradas como rendimentos do trabalho por conta de outrem. Não obstante, reconheceu a inoperância da tributação do imposto sobre essas importâncias, seja por se entender que não se situam nos parâmetros conceituais do trabalho por conta de outrém, seja, porventura, pela impossibilidade prática de exequibilidade da sua tributação.
No entanto - mais se entendeu - não se mostram violados os nºs. 2 e 3 do artigo 106º e alínea o) do artigo 167º da CR (na versão à época vigente).
E ponderou-se a este propósito, na parte que interessa:
'Só assim não seria [ou seja, haveria então inconstitucionalidade] se se defendesse que as gorjetas em causa não podem ser consideradas rendimentos do trabalho ou com este relacionados.
Mas julgamos que uma tal posição não corresponde à verdade, sobretudo se tivermos em conta que o conceito de rendimentos do trabalho, para efeitos fiscais, é mais amplo que para quaisquer outros.
E parece que nada obsta a que as gorjetas sejam consideradas como rendimentos dessa natureza.
Quem as dá, dá-as por sua livre vontade, podendo os motivos para isso serem os mais variados possível. No caso concreto do jogo nos casinos, por exemplo, podemos admitir que as esportule aquele que foi feliz e em regozijo por isso; mas também as pode dar, ao invés, aquele que, perseguido pela pouca sorte, promete ali mesmo desistir e não voltar ao jogo.
Mas o que parece inegável é que há, aqui, sempre um carácter de contrapartida a qualquer coisa que veio da parte daquele que foi contemplado com a gorjeta, muito embora os serviços que a originam, e no que se refere àquele que as dá, não constituam para ele fonte de quaisquer obrigações'.
2.2.4.- A lógica então desenvolvida partia de um quadro legal de tributação cedularmente concebido - enfatiza-se o que já se deixou aludido - em que cada categoria de rendimentos, ou cédula, se determina em função da sua origem ou natureza e é submetida a imposto próprio, com específicas regras de determinação da matéria colectável, orientando-se a respectiva técnica tributária, no imposto profissional, no sentido de sujeitar a imposto todos os ganhos ou proveitos dos contribuintes, mesmo os excepcionais ou que representem vantagens em espécie, incluindo os rendimentos acessórios (cfr. Carlos Pamplona Corte-Real, 'Curso de Direito Fiscal' in Ciência e Técnica Fiscal, nº 268/270, págs. 198 e segs. e 204 e segs., e 'Imposto Único. Tipo de Imposto a Adoptar' in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, nº 126, págs. 10 e segs.; José Carlos Gomes dos Santos, 'Alguns Efeitos Económicos da Tributação e da Inflacção sobre os Rendimentos de Trabalho', in Cadernos cits., nº 135, págs. 74 e segs. e 91 e segs.).
Ora, manteve-se com o IRS esta mesma orientação, no propósito de uma inclusão esgotante, na incidência do imposto, de todos os rendimentos de alguma forma advindos do trabalho.
Este enquadramento desvaloriza o interesse em discutir se a gorjeta reveste ou não a natureza de doação, mormente remuneratória (de resto, o Código Civil diz-nos claramente, no nº 2 do seu artigo 940º, não haver doação nos donativos conformes aos usos sociais, como é o caso das gorjetas em questão). Na verdade, o sistema legal permitia, e continua a permitir, a determinação dos rendimentos auferidos e harmoniza-se com a teleologia do sistema fiscal, onde, a par da satisfação das necessidades financeiras do Estado, se contribui, do mesmo passo, para uma repartição igualitária dos rendimentos e da riqueza, prosseguida constitucionalmente, nos termos do nº 1 do artigo 106º da CR.
Não subsiste, assim, a argumentação deduzida pelo Provedor de Justiça que, não obstante reconhecer no imposto sobre o rendimento das pessoas singulares um 'imposto geral sobre o rendimento', sustenta não serem as gorjetas subsumíveis aos rendimentos tipificados no artigo 1º do respectivo Código.
Ou seja, não se considera que a tributação desses rendimentos seja susceptível de afectar os limites da extensão da autorização legislativa.
Os contornos da delimitação e condicionamento do âmbito das leis de autorização têm sido objecto da jurisprudência deste Tribunal que os vem definindo numa linha discursiva segundo a qual o objecto da autorização constitui o elemento enunciador da matéria sobre que a autorização versa, a extensão especifica a amplitude das leis autorizadas e pelo sentido se fixam os princípios bases que hão-de orientar o Governo na elaboração destas últimas
(cfr., v.g., os acórdãos nºs. 70/92, 358/92 e 213/95).
Cabendo, assim, à extensão da autorização especificar os aspectos da disciplina jurídica da matéria objecto do exercício dos poderes delegados, não se tem esta por desrespeitada pela iniciativa do Governo, nomeadamente por exorbitar o programa e o conjunto de directrizes proposto pela autorização legislativa.
2.3.- A alegada inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da CR.
Entende-se não ser de declarar a inconstitucio-nalidade da norma.
2.3.1.- Para o Provedor da Justiça, como oportunamente se consignou, a tributação das gorjetas gera uma situação discriminatória susceptível de ofender o princípio da igualdade.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido o sentido constitucional da igualdade a partir da exigência de que se trate como igual o que for essencialmente igual e como diferente o que for essencialmente diferente. Ou seja, a diferenciação de tratamento, por si, não implica necessariamente violação do princípio pois a igualdade relevante não
é a meramente formal mas também a material, impedindo-se, assim, a discriminação arbitrária e irrazoável, sem justificação e fundamento material bastante.
Na esteira de vasta e impressiva linha jurisprudencial, ponderou-se recentemente, no acórdão nº 1007/96 (publicado no Diário da República, II Série, de 12/12/96) que, para haver violação do princípio constitucional da igualdade, torna-se necessário verificar, preliminarmente, se existe uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminação. A esta luz, proibem-se diferenciações de tratamento fundadas em razões meramente subjectivas - como são as indicadas, exemplificativamente, no nº 2 do artigo 13º da CR - ou as que criem um tratamento desigual materialmente infundamentado ou sem justificação objectiva e racional.
Na sua projecção fiscal - constitucionalmente consubstanciada no artigo 106º, nº 1, da CR - as coordenadas do princípio não são diferentes. Como se observou no acórdão nº 57/95 (publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Abril de 1995) o princípio da igualdade fiscal apresenta uma triplice dimensão, surgindo as duas primeiras dimensões como uma emanação do princípio geral da igualdade, previsto no nº 1 do artigo 13º da CR.
'Em primeiro lugar [escreveu-se então], aquele princípio significa que todos os cidadãos são iguais perante a lei fiscal, de tal modo que todos os contribuintes que se encontrem na mesma situação definida pela lei fiscal devem estar sujeitos a um mesmo regime fiscal (cf. Louis Trotabas/Jean-Marie Cottoret, Droit Fiscal, 6ª ed., Paris, Dalloz, 1990, p. 108, e Guy Gest/Gilbert Tixier, Manuel de Droit Fiscal, 4ª ed., Paris, L.G.D.J., 1986, p. 36). É este um sentido meramente formal do princípio da igualdade fiscal, o qual se traduz numa genérica e imparcial aplicação da lei fiscal, de que resulta apenas uma igualdade ante a lei. Em segundo lugar, o princípio da igualdade fiscal tem também um sentido material ou substancial, cujo significado é o de que a lei deve garantir que todos os cidadãos com igual nível de rendimentos devem suportar idêntica carga tributária, contribuindo, assim, em igual medida, para as despesas ou encargos públicos. Com este sentido, a igualdade é, como realça A.Castanheira Neves, «uma intenção normativa que a própria lei será chamada a cumprir, uma igualdade imposta como exigência axiológica à própria lei, no seu conteúdo e na sua realização jurídico-normativa, uma igualdade da lei já em si», isto é, uma «igualdade na lei, ou afinal, [...] uma igualdade perante o direito»
(cf. O Instituto dos «Assentos» e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra, Coimbra Editora, 1983, p. 120). O princípio da igualdade fiscal em sentido material não apenas veda ao legislador a adopção de desigualdades de tratamento, no âmbito fiscal, que não sejam autorizadas pela Constituição ou que sejam materialmente infundadas, desprovidas de fundamento razoável ou arbitrárias, como impõe que a lei garanta que todos os cidadãos com igual capacidade contributiva estejam sujeitos à mesma carga tributária, contribuindo, assim, em igual medida, para as despesas ou encargos públicos
[cf., sobre este ponto, J. Casalta Nabais, Contratos Fiscais (Reflexões Acerca da sua Admissibilidade), Coimbra, Coimbra Editora, 1994, pp. 265-269].
Para além do princípio da igualdade fiscal, no sentido da igualdade dos cidadãos perante a lei fiscal e de igualdade da própria lei fiscal, consagra a Constituição, em terceiro lugar, aquilo que se poderá designar por princípio da igualdade através do sistema fiscal, determinando que este visa, a par da satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas,
«uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza» (artigo 106º, nº 1), e, bem assim, que o imposto sobre o rendimento pessoal tem como objectivo «a diminuição das desigualdades» entre os cidadãos (artigo 107º, nº 1).'
2.3.2.- Assim, o conteúdo material do Estado de direito democrático implica a consagração do princípio tributário da igualdade, desdobrável, no dizer do último autor citado, no aspecto da generalidade dos impostos e no aspecto da uniformidade dos impostos, o primeiro significando a adstrição de todos os cidadãos ao pagamento de impostos - o que caracteriza a sua universalidade - o segundo implicando uma identidade de critérios para a sua repartição pelos cidadãos (cfr. Casalta Nabais, ob. cit., págs. 268/269). Critério que, quase unanimemente, se entende significar 'que os contribuintes com as mesma capacidade contributiva devem pagar o mesmo imposto (igualdade horizontal) e os contribuintes com diferente capacidade contributiva devem pagar diferentes (qualitativa e/ou quantitativamente) impostos (igualdade vertical)'
[ibidem].
Ora, se é incontroverso existirem, no comum dos casos, dificuldades práticas no controlo de quem recebe gorjetas e dos respectivos montantes, ao invés do que é suposto acontecer com os trabalhadores ora em causa, nem por isso se justifica não tributar uma situação em que é possível, mercê do mecanismo legal existente, controlar os rendimentos auferidos por esta via, com projecção na capacidade contributiva dos respectivos destinatários. Dir-se-á, nesta perspectiva, que na medida em que é possível tributar essas fontes de rendimento, estar-se-á a reduzir a margem de desigualdade que a ausência de tributação implicaria em relação ao universo de todos os contribuintes.
A esta luz, a obrigatoriedade que impende sobre o contribuinte de declarar os seus rendimentos sujeitos a imposto, não tem a virtualidade de impedir, de modo absoluto, a ocultação, deliberada ou negligente, desses rendimentos (mais notoriamente ainda ultrapassado que está o sistema das cédulas). Não pode falar-se de uma desigualdade constitucionalmente censurável se uns contribuintes se encontram circunstancialmente mais apertadamente controlados do que outros.
Assim, não se interpreta o princípio da igualdade em termos que se projectam na não tributação de alguém porque outrem, em situação de igual incidência, não é tributado por dificuldades técnicas de aplicação da lei.
3.- As normas da alínea d) do nº 3 do artigo 2º da Lei nº 14/89, do artigo 79º do Decreto-Lei nº 422/89 ('Lei do Jogo') e das Regras Anexas à Portaria nº 1159/90, com a alteração introduzida pela Portaria nº 124/94
3.1.- Nos pontos IV e V foram enunciados os problemas de constitucionalidade suscitados pela Lei do Jogo - seja por esta em si (recte, o seu artigo 79º), seja no tocante à respectiva lei de autorização (Lei nº
14/89), seja, finalmente, pelo que respeita às regras anexas à Portaria nº
1159/90, com a alteração introduzida pela Portaria nº 124/94.
Recordando, em síntese:
a) para o Grupo de Deputados requerente, a Lei nº
14/89, como lei de autorização legislativa que versa matéria englobável na legislação laboral, é formalmente inconstitucional por não ter sido sujeita ao regime de participação da comissão de trabalhadores e das associações sindicais na elaboração da legislação do trabalho, previsto nos artigos 55º, alínea d), e 57º, nº 2, alínea a), da CR [texto da 1ª Revisão Constitucional, correspondendo aos artigos 54º, nº 5, alínea a), e 56º, nº 2, alínea a), da versão oriunda da 2ª Revisão];
b) a norma do artigo 79º da Lei do Jogo é, consequentemente, organicamente inconstitucional, por violar o disposto no artigo 201º, nº 1, alínea b), conjugado com o artigo 168º, nº 1, alínea b), ambos da CR;
c) para além de ser materialmente inconstitucional, por ofensa aos artigos 18º, nºs. 2 e 3, 13º e 115º, nº 5, da CR;
d) para o Provedor de Justiça, aquelas normas - da lei de autorização e do diploma autorizado - sofrem de inconstitucionalidade material na medida em que contrariam o direito à propriedade privada (artigo
62º, nº 1, da CR) e o princípio da igualdade (artigo 13º da CR);
e) as regras anexas à aludida Portaria padecem, consequencialmente, de idêntico vício.
Sobre cada uma destas questões passaremos a debruçar-nos.
3.2.- A questão da inconstitucionalidade procedimental da Lei nº 14/89, por inobservância do disposto nos artigos 55º, alínea d), e 57º, nº 2, alínea a), da CR (versão de 1982).
Entende-se não declarar a apontada inconstitucionalidade.
3.2.1.- Não consta, na verdade, da Lei nº 14/89, aliás desprovida de nota preambular, que tenha havido prévia audição de quaisquer trabalhadores ou associações sindicais, de acordo com a exigência constitucional de participação na legislação do trabalho.
Daí - e tendo por axiomático integrar o diploma matéria respeitante a legislação desse tipo - duvidar-se da conformidade constitucional formal da lei, pelo menos no âmbito que o artigo 79º do decreto-lei autorizado encerraria.
No entanto, já este último texto, editado ao abrigo da autorização concedida pelos artigos 1º e 2º daquela Lei, foi precedido da audição das organizações de trabalhadores, assim se observando os aludidos preceitos constitucionais na medida em que o projecto foi publicado, para apreciação pública, no Boletim de Trabalho e Emprego (BTE), separata 3, de 14 de Agosto de 1989, sob a epígrafe 'Regime Jurídico da Exploração e Prática dos Jogos de Fortuna ou Azar em Casinos'.
Ora, não pode, a este propósito, deixar de se considerar a jurisprudência do Tribunal Constitucional, plasmada recentemente no acórdão, tirado em plenário, nº 581/95, publicado no Diário da República, I Série-A, de
22 de Janeiro de 1996, quando se cuidou de averiguar das consequências advenientes da falta de audição prévia das organizações de trabalhadores quanto a lei de autorização legislativa - no caso, a Lei nº 107/88, de 17 de Setembro - o que só ocorrera quanto ao diploma autorizado - o Decreto-Lei nº
64-A/89, de 27 de Fevereiro, uma e outra com evidente carácter de 'legislação de trabalho'.
Ponderou-se então:
'1) Desde logo, não há inconstitucionalidade para quem empreende uma interpretação segundo a qual as leis de autorização legislativa são meras leis formais sobre a produção jurídica, não se fazendo a esse nível sentir o desiderato constitucional do exercício do direito de participação das organizações de trabalhadores.
[...]
4) Finalmente, numa outra interpretação, e para quem as razões antes expendidas ainda não sejam decisivas, sublinha-se que, com esse fundamento, a inconstitucionalidade formal da Lei nº 107/88 não deve ter-se hoje já por relevante, pois que o Decreto-Lei nº 64-A/89, posteriormente emitido no uso dessa autorização, foi ele mesmo objecto da audição das organizações representativas de trabalhadores. Ora, como se afirmou no Acórdão nº 285/92
(Diário da República, 1ª Série-A, de 17 de Agosto de 1992), «assim sendo, e sem prejuízo do que o Tribunal tem afirmado quanto à audição pública referente a normas contidas em autorizações legislativas, tendo o diploma autorizado sido submetido a apreciação prévia pelas organizações sindicais, será de concluir que o desiderato substantivo do disposto nos artigos 54º, nº 5, alínea d), e 56º, nº
2, alínea a), da Constituição, no que à matéria em causa se refere, se encontra plenamente consumido pela audição promovida pelo Governo»' (acórdão nº 581/95, in Diário da República, I Série-A, nº 18, de 22 de Janeiro de 1996).'
3.2.2.- As precedentes considerações - retomadas no acórdão nº 257/97, da 1ª Secção, inédito - levam a concluir que, mesmo a não ter havido audição das organizações de trabalhadores relativamente à lei de autorização legislativa, afectando esta de inconstitucionalidade formal ou procedimental, daí não decorre que se possa relevantemente pôr em causa a constitucionalidade do diploma autorizado: a audição promovida pelo Governo relativamente à sua iniciativa legislativa retira sentido a inquirir se ainda releva o vício da lei de autorização.
3.3.-As questões de inconstitucionalidade da norma do artigo 79º da Lei do Jogo.
3.3.1.- A alegada violação do direito à propriedade e à transmissão de propriedade - nº 1 do artigo 62º da CR.
Argumenta-se que este direito só será respeitado se, e enquanto, o beneficiário da gratificação for aquele que o transmitente efectivamente quiser compensar, passando a constituir parte integrante do património deste o montante entregue a esse título, logo que operada a transmissão.
A Constituição não diz o que se deve entender por direito de propriedade mas o certo é que, susceptível este de várias dimensões, a sua garantia 'nos termos da Constituição' é concebida não em termos absolutos, mas sim na medida e nos limites previstos noutros lugares da lei constitucional - como vem salientando a jurisprudência deste Tribunal e se ilustra nos acórdãos nºs. 76/85, 236/86, 3/88, 267/95 e 866/96, entre outros, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 11 de Fevereiro de 1985,
12 de Novembro de 1986, 14 de Março de 1988, 20 de Julho de 1995, e I Série-A, de 18 de Dezembro de 1996.
Partindo desta premissa, observe-se que a tese defendida no pedido, ao dar expressão a uma ilimitada afirmação da vontade do utente das salas de jogo dos casinos, não só merece a reserva que o Primeiro-Ministro refere, ao convocar a este propósito a figura das indisponibilidades relativas, como não se harmoniza com a concepção constitucional do direito de propriedade, nem, tão pouco, se compagina com a ratio do artigo 79º: objectivo, confessado no preâmbulo do diploma (alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 10/96, de
19 de Janeiro) e desenvolvido no respectivo articulado (como bem reflectem os artigos 82º e 83º, por exemplo), é o de prestar enquadramento e consistência jurídicos a uma incontroversa realidade sócio-económica e cultural e, do mesmo passo, prosseguir o interesse público decorrente da necessidade de melhorar as condições de exploração da actividade, reprimindo efectivamente as possíveis infracções características desta área e reforçando a responsabilidade das concessionárias, seus administradores, trabalhadores e frequentadores, simultaneamente contribuindo para sustentar o fundo social próprio desses trabalhadores.
Este é, de resto, um sistema consabido: não só é proibida a percepção individual de quaisquer quantias, a título de gratificação ou equiparável, como o utente das salas de jogo sabe que a sua contribuição se destina a integrar uma massa patrimonial que posteriormente será repartida segundo regras pré-fixadas.
Não se vê, assim, em que medida se pode falar relevantemente de ofensa ao direito à propriedade e à sua transmissão.
3.3.2.- A invocada violação do princípio da igualdade - artigo 13º da CR
- conjugadamente com o disposto nos nºs. 2 e 3 do artigo 18º da Lei Fundamental.
Afirma-se também que a norma do artigo 79º cria, sem fundamento material justificativo bastante, uma arbitrária discriminação, desproporcionada, desadequada e desnecessária em relação às razões que possam ser invocadas, no que toca às gratificações nela previstas, comparativamente com as recebidas pelos demais trabalhadores, desse modo violando o princípio da igualdade consubstanciado no artigo 13º da CR: a imposição de regras de distribuição das gratificações recebidas por certos empregados das salas de jogos dos casinos proporcionaria um diferenciado e não razoável tratamento dos destinatários dessas importâncias relativamente aos demais.
Também aqui não se surpreende violação do princípio da igualdade, o que melhor se compreenderá na abordagem do ponto seguinte, relativo
à adequação constitucional das Regras Anexas à Portaria nº 1159/90 (cfr. ponto
3.4.3.)
3.4.- As questões de inconstitucionalidade das normas constantes das Regras Anexas à Portaria nº 1159/90, na redacção da Portaria n 124/94.
3.4.1.- O grupo de Deputados requerente e o Provedor de Justiça, no seu
último pedido, questionam a constitucionalidade destas normas em diferente enfoque.
Assim, para aqueles, o artigo 79º da Lei do Jogo, ao remeter para portaria a definição das regras de distribuição das gratificações entre os empregados de banca dos casinos com direito à sua percepção, está 'a remeter para um acto infra-legal a definição de aspectos essenciais de uma restrição a um direito, liberdade e garantia e a um direito fundamental de natureza análoga', violando, assim, a 'reserva de lei restritiva constante do artigo
18º, conjugado com o artigo 115º, nº 5, da Constituição, que impõe que todos os aspectos essenciais da restrição constem de acto legislativo, devendo os regulamentos limitar-se a meros pormenores de execução'.
Já para o Provedor de Justiça, as mencionadas regras de distribuição padecem dos vícios de inconstitucionalidade material que, na sua
óptica, igualmente afectam quer a alínea d) do nº 3 do artigo 2º da lei nº
14/89, quer o artigo 79º da Lei do Jogo, ou seja, ofendem o direito à propriedade privada (artigo 62º, nº 1, da CR) e o princípio da igualdade
(artigo 13º da CR).
Analisaremos cada uma destas perspectivas de per si.
3.4.2.- A problemática suscitada pelo grupo de Deputados implica sobrestar no preceito constitucional que a Revisão de 1982 introduziu com o objectivo de inconstitucionalizar os preceitos legais viabilizadores de interpretação ou integração autêntica de normas legislativas por via regulamentar - o nº 5 do artigo 115º.
O acervo jurisprudencial já existente sobre esta norma permite concluir, de harmonia com o ponderado no acórdão nº 1/92, proferido em Plenário
(publicado no Diário da República, I Série-A, de 20 de Fevereiro de 1992) ter sido elevada a nível constitucional, com esta norma, 'a proibição dirigida ao legislador de habilitar a Administração a emanar regulamentos que interpretem autenticamente uma disposição legal - entendida esta expressão no sentido de regulamentos dotados de eficácia externa, com força de lei (e, por isso mesmo, vinculativos para os tribunais) e podendo fixar para aquela um sentido inovador, ou seja, um sentido que não se contenha na letra e no espírito do preceito legal interpretado -, com a consequência de serem inconstitucionais as disposições da lei que autorizam a Administração a fazer aquele tipo de regulamentos'. O mesmo se podendo dizer no domínio da integração, de modo que aos regulamentos da Administração não possa caber mais do que o estabelecimento dos 'pormenores de execução', para utilizar a expressão acolhida pelo acórdão nº 174/93, também votado em plenário, publicado no citado jornal oficial, II Série, de 1 de Junho de 1993.
Assim, e sempre na esteira de linha jurisprudencial já traçada, a inconstitucionalidade de norma como a ora examinada advirá de esta habilitar norma regulamentar a interpretá-la ou a integrá-la autenticamente, como que se auto-degradando.
Ora, o artigo 79º, após permitir aos 'empregados dos quadros das salas de jogos' a aceitação das gratificações espontaneamente prestadas pelos frequentadores, determina o destino imediato destas - a sua canalização para caixas de modelo próprio - e proíbe uma percepção individual das mesmas.
É, no entanto, relativamente aos nºs. 3 e 4 do preceito que a dúvida se coloca.
Assim, enquanto no nº 3 se dispõe que as regras de distribuição
'da parte das gratificações destinadas aos empregados com direito à sua percepção' se fixam por meio de portaria, ouvidos os representantes dos trabalhadores, o nº 4 adiante que, também com prévia audição destes, nessas regras pode determinar-se que uma percentagem das gratificações, 'a definir pelo Ministro do Emprego e da Segurança Social, não superior a 15%, reverta para o Fundo Especial de Segurança Social dos Profissionais da Banca dos Casinos'.
A tese defendida pelos requerentes orienta-se no sentido de que a norma do artigo 79º, ao remeter para portaria a definição das regras de distribuição das gratificações e, designadamente, a opção sobre se todo o seu montante será ou não distribuído pelos trabalhadores, está a atribuir a essa portaria a faculdade de integrar os seus preceitos em aspectos que se prendem directamente com a restrição 'ao direito de dispor livremente da propriedade e ao direito à capacidade civil', como se escreve no parecer junto, do Sindicato dos Profissionais de Banca dos Casinos.
A resposta a conceder há-de basear-se na natureza do conteúdo complementativo da norma regulamentada.
Com efeito, a portaria, na medida em que se define como regulamento de execução não pode substituir-se à lei. Limita-se a repetir os preceitos ou 'regras de fundo' que o legislador editou, clarificando-as ou, se integrativa, a enunciar 'os pormenores ou minúcias que o legislador omitiu e que são necessários à aplicação da lei' (para seguir de perto o acórdão nº 82/86, publicado no Diário da República, I Série, de 2 de Abril de 1986).
Ora, a norma do artigo 79º aponta inequivocamente para uma regulamentação executiva complementar deste tipo, não comportando a disciplina introduzida à sua sombra 'alteração do significado e do alcance dos preceitos iniciais e das situações jurídicas que estes se destinam a produzir' (Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, 1987, pág. 254).
Nesta linha de entendimento, as regras de distribuição das gratificações revestem natureza regulamentar, não impeditiva do seu tratamento por via de portaria, pelo que, deste modo e nesta medida se não declara a inconstitucionalidade, por violação do disposto no nº 5 do artigo 115º da CR, em conjugação com o artigo 18º, nº 1, do mesmo texto.
3.4.3.- Subsiste, ainda, a eventual inconstitucionalidade da mesma normação por desrespeito aos artigos 62º, nº 1. e 13º da CR.
No entanto, as considerações anteriormente expendidas a este respeito aproveitam aqui - e, como tal, conduzem a idêntico juízo de não declaração de inconstitucionalidade - por não se perspectivar justificação para outro entendimento neste concreto domínio.
Com efeito, e no que particularmente respeita à problemática da igualdade, a distribuição diferenciada das gratificações pelos diversos empregados da banca que dela usufruem não assenta na discricionariedade nem é irrazoável uma vez que irrazoável seria igualizar à partida as diversas categorias profissionais em que estes se repartem, pondo em causa a relevância específica de cada uma dessas categorias e o seu natural reflexo em sede de definição de direitos patrimoniais relacionados com a respectiva prestação de trabalho. Até porque não deixa de ser pertinente observar, que o regime do artigo 79º da Lei do Jogo - e as correlativas Regras Anexas - só aos profissionais de banca dos casinos (nas identificadas categorias) se aplica e não aos demais profissionais (que, nomeadamente, recebem gratificações por via directa), para o efeito relevando quer a prática consuetudinária (e sua eventual repercussão no estatuto remuneratório), quer a 'relevância pública da sua actividade' - como observa, a dado passo, o Primeiro-Ministro - atendendo à matriz de interesse e ordem pública da actividade em que se inserem (cfr., a este respeito, v.g., o disposto na Secção II do Capítulo VI do Decreto-Lei nº
422/89, maxime o disposto nos artigos 82º e 83º).
A esta luz, igualmente não parece ser constitucionalmente censurável, como corolário da diferenciação existente no esquema distributivo dependente das distintas categorias de trabalhadores no grupo de destinatários das 'Regras', o facto de estes integrarem eventualmente um quadro único, caso a empresa concessionária explore mais de um casino na mesma zona de jogo.
4.- As normas da alínea a) do nº 1 do artigo 28º da Lei nº 2/88 e do artigo 1º do Decreto-Lei nº 98/88, esta na medida em que dá nova redacção à alínea e) do § 2º do artigo 1º do C.I.P.
Como foi dito oportunamente (ponto VI - 3), conhece-se igualmente do pedido relativo à apreciação da constitucionalidade destas normas, não obstante as mesmas não se encontrarem já em vigor.
Não obstante, razões de comodidade expositiva no contexto sistemático adoptado ditaram a sua relegação para final.
4.1.- O princípio da legalidade fiscal.
Está em causa o princípio da legalidade fiscal - plasmado no nº 2 do artigo 106º da CR - na medida em que - como se deixou registado - a autorização constante da Lei nº 2/88 e o uso que dela fez o Governo, alargando a área de incidência do imposto profissional a rendimentos não provenientes do trabalho, assim criaram um novo imposto.
É, no entanto, perspectiva que se não adopta: na técnica tributária então vigente e na estrutura cedular do imposto profissional, em que cada categoria de rendimentos é determinada em função da sua origem ou natureza como regras específicas de determinação da matéria colectável, pretende-se sujeitar a imposto todos os ganhos ou proveitos dos contribuintes, como também já houve oportunidade de se sublinhar e agora se reafirma.
Nesta linha, as gorjetas esportuladas por terceiros aos empregados por conta de outrém - e, como tal, as percebidas pelos empregados dos casinos nas circunstâncias de que se cuida - consubstanciam acréscimos patrimoniais que, independentemente da sua proveniência ou do seu título, são englobados no conceito de rendimentos de trabalho contemplado no Código do Imposto Profissional. Nesta visão as coisas, a remuneração do trabalho, como contraprestação devida ao trabalhador pelo seu trabalho no âmbito de uma relação do tipo laboral, pode surgir espontânea e imprevistamente, a título de prémio, recompensa ou outro, por acto unilateral da própria entidade patronal que não deixará de interessar tributariamente (cfr. A.M.Cardoso Mota, O Imposto Profissional, 5ª ed., Coimbra, 1985, págs. 60 e segs.) nada impedindo que tenha lugar por iniciativa de terceiros (as chamadas luvas, enumeradas expressamente no §1º do artigo deste Código como rendimento de trabalho, são, neste campo, paradigmáticas. Consideradas como o 'abono, dádiva, gratificação especial, recompensa ou brinde que se dá a alguém - empregado ou não - às vezes ocultamente, por fora dos negócios em que intervém decisivamente, ou por qualquer favor ou serviço prestado a outrem ou à entidade servida' [cfr. António José de Abreu e José Vitorino M.S. Estrela, Código do Imposto Profissional, Porto, 2ª ed., 1986, pág. 31] as luvas integram o conceito de gratificação que, como observaram Almeida Policarpo e Monteiro Fernandes em anotação à Lei do Contrato de Trabalho, edição citada, pág. 199, que ora se reitera, pode ser paga por pessoa diferente da entidade patronal, embora recebida em razão do trabalho).
Assenta, de resto, nestas premissas, a decisão judicial que considerou as gorjetas recebidas pelos trabalhadores do Casino Estoril como relevantes para efeitos de tributação em imposto profissional (acórdão do Tribunal de 2ª Instância das Contribuições e Impostos de 4 de Janeiro de 1978, publicado in - Ciência e Técnica Fiscal, nº 232/234, págs. 448 e segs.).
Improcede, consequentemente, a fundamentação aduzida pela entidade requerente no sentido da violação do princípio da legalidade fiscal.
4.2.- O princípio da igualdade tributária.
Conclui-se identicamente no tocante à equacionada problemática da igualdade tributária.
Nesta área, têm pleno cabimento e aproveitam integralmente as considerações na oportunidade aduzidas a respeito da eventual violação deste princípio pelas normas analisadas, em sede de IRS.
4.3.- Resta, finalmente, o problema da observância do princípio da imparcialidade, a que o nº 2 do artigo 266º da CR alude.
Depreende-se que a sua convocação por parte do Provedor de Justiça terá pretendido valorizar a vertente da imparcialidade na aplicação do princípio da proporcionalidade: a Administração, observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, deve proceder com isenção na determinação da prevalência do interesse público, de modo a não sacrificar desnecessária e desproporcionadamente os interesse particulares (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 3ª ed., 1993, pág. 925).
Não se vê, no entanto (nem a entidade requerente explicita) como é que, sendo os destinatários do princípio, fundamentalmente, os órgãos e agentes da Administração Pública, tenha esta agido, em todo este processo de produção legislativa e regulamentar, de forma menos justa e imparcial 'para os que com ela entrem em relação' (artigo 6º do Código de Procedimento Administrativo), nomeadamente através de uma actuação não isenta dos titulares dos seus órgãos e dos seus agentes (cfr. a este propósito, Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, Lisboa, 1994/95, págs. 151 e segs.).
Não se surpreende, assim, violação ao aludido princípio.
VIII
Em face do exposto o Tribunal Constitucional decide:
1) não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade relativamente às seguintes normas:
a) do Despacho Normativo nº 2/85, de 31 de Julho, do Secretário de Estado do Trabalho, publicado no Diário da República, I Série, de
28 de Agosto;
b) do Despacho Normativo nº 24/89, de 17 de Fevereiro, do Ministro do Emprego e da Segurança Social, publicado no Diário da República, I Série, de 15 de Março seguinte.
2) não declarar a inconstitucionalidade das seguintes normas:
a) a da alínea a) do nº 1 do artigo 28º da Lei nº 2/88, de 26 de Janeiro;
b) a do artigo 1º do Decreto-Lei nº 98/88, de 22 de Março, na medida em que dá nova redacção à alínea e) do §2º do artigo 1º do Código do Imposto Profissional, aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 44
305, de 27 de Abril de 1962;
c) a da alínea h) do nº 3 do artigo 2º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), aprovado pelo artigo
1º do Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro;
d) a da alínea d) do nº 3 do artigo 2º da Lei nº 14/89, de 30 de Junho;
e) a do artigo 79º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, conhecido por 'Lei do Jogo';
f) das normas constantes das Regras Anexas à Portaria nº 1159/90, de 27 de Novembro, aprovadas pelo seu nº 1, com as alterações introduzidas pela Portaria nº 129/94, de 1 de Março.
Lisboa, 9 de Julho de 1997 Alberto Tavares da Costa Messias Bento Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Bravo Serra Armindo Ribeiro Mendes
(vencido quanto à decisão constante da alínea c) do nº 2, nos termos da declaração de voto junta) DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Discordei da decisão constante da alínea c) do nº 2 do acórdão, por considerar que a alínea h) do nº 3 do art. 2º do Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (C.I.R.S.), aprovado pelo Decreto-Lei nº
442-A/88, de 30 de Novembro, sofre de inconstitucionalidade orgânica, por violação do art. 168º, nº 1, alíneas i), da Constituição.
2. Na base de tal discordância encontra-se um diverso entendimento interpretativo sobre a norma parlamentar autorizadora, o art. 4º, nº 2, alínea a), da Lei nº 106/88, de 17 de Setembro.
Tratando-se da incidência objectiva do futuro imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, estatui a referida alínea do nº 2 do art. 4º da Lei nº
106/88:
'2. Consideram-se:
a) Rendimentos do trabalho dependente: todas as remunerações provenientes do trabalho por conta de outrem, prestado quer por servidores do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público, quer em resultado de contrato de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado.'
Do teor deste preceito resulta que a tributação no âmbito do imposto sobre o rendimento de pessoas singulares, quando se trate de trabalho dependente, incide sobre 'todas as remunerações provenientes do trabalho por conta de outrem'. A norma autorizadora distingue depois consoante o vínculo legal ou contratual que
é fonte da obrigação de pagamento de remunerações tem a natureza de relação de emprego público ou carece de tal natureza. No primeiro caso, os servidores públicos, isto é, servidores do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público, passam a estar sujeitos também a imposto, diferentemente do que sucedia anteriormente no âmbito do imposto profissional. No segundo caso, a fonte da obrigação de pagamento de remunerações resulta do 'contrato de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado' ('em resultado do contrato de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado').
3. Na tese que fez vencimento, o legislador parlamentar terá partido da tributação existente no domínio do imposto profissional, tendo pretendido manter a situação anterior, sendo a redacção - ainda que criticável - suficiente para englobar as gratificações pagas por terceiros, pois ainda aí esses pagamentos resultam da prestação de trabalho.
Afigura-se, porém, que essa tese não tem fundamento, como se procurará demonstrar.
De facto, bastará atentar na evolução da tributação das gratificações para se pôr em causa o entendimento adoptado pela maioria do Tribunal.
4. Como refere o acórdão, 'a questão não é nova, uma vez que já no domínio do imposto profissional fora equacionada' (Ponto VII,
2.2.3.).
Ora, a história legislativa é elucidativa sobre as dificuldades de natureza constitucional sentidas pelo legislador governamental para fazer consagrar a tributação das gratificações no diploma legal regulador do agora extinto imposto profissional.
No domínio da versão original do Código do Imposto Profissional - que não contemplava a tributação das gratificações - a Administração Fiscal procurou, com base na definição legal de rendimentos do trabalho ('em dinheiro ou em espécie, de natureza contratual ou não, periódicos ou ocasionais, fixos ou variáveis, seja qual for a sua proveniência ou o local, moeda e forma estipulada para o seu cálculo e pagamento' - art. 1º do respectivo Código) fazer abranger como matéria tributável as gorjetas pagas por terceiros aos empregados de casinos, o que gerou impugnações pelos contribuintes, parte das quais rejeitados pela jurisprudência do Tribunal de Segunda Instância das Contribuições e Impostos (cfr. Parecer nº 3/79 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 7º vol., pág. 220, nota 27).
5. Dadas as impugnações surgidas, o Decreto-Lei nº
138/78, de 12 de Junho, aditou uma alínea ao § 2º do art. 1º do Código do Imposto Profissional através da qual se passaram a considerar como rendimento de trabalho 'as importâncias recebidas, a título de gratificação ou gorjeta, pelos empregados por conta de outrem no exercício da sua actividade, ainda que não atribuídas pela respectiva entidade patronal' (alínea e)).
Esta disposição veio a ser inconstitucionalizada pela Resolução nº 62/79, de
16 de Fevereiro de 1979, do Conselho da Revolução, precisamente por falta da credencial parlamentar suficiente (veja-se o art. 9º, alíneas h) e k), da Lei nº
20/78, de 26 de Abril).
6. O legislador governamental tentou de novo introduzir a norma através do Decreto-Lei nº 297/79, de 17 de Agosto, elaborado com base na autorização constante do art. 18º da Lei nº 21-A/79, de 25 de Junho. Nessa lei de autorização passou a prever-se que as regras de incidência do imposto profissional deveriam ser revistas, 'por forma a abranger todos os rendimentos de trabalho ou com ele relacionados'. Com base nessa autorização, deixaram de se referir as gratificações ou gorjetas, passando o legislador a considerar como matéria tributável 'as importâncias, qualquer que seja a sua natureza, recebidas pelos empregados por conta de outrem no exercício da sua actividade, ainda que não atribuídas pela respectiva entidade patronal' (e, bem assim, 'os subsídios e outros benefícios ou regalias sociais auferidas no exercício ou em razão do exercício da actividade profissional').
Esta nova redacção das alíneas e) e f) do § 2º do art. 1º do Código de Imposto Profissional veio a ser declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, em 1980 (Resolução nº 116/80 do Conselho da Revolução), desta feita por falta de referenda do Primeiro-Ministro em funções na data da promulgação (cfr. Parecer nº 5/80 da Comissão Constitucional, in Pareceres, 11º vol., págs. 129 e seguintes).
7. À terceira tentativa, o legislador governamental conseguiu ultrapassar a fiscalização abstracta da constitucionalidade. O Decreto-Lei nº 183-D/80, de 9 de Junho, repôs em vigor a anterior alínea e) do §
2º do art. 1º do Código de Imposto Profissional, com base no disposto na alínea j) do art. 17º da Lei nº 8-A/80, de 26 de Maio (essa autorização legislativa previa que o legislador governamental revisse 'as regras de incidência do imposto, por forma a abranger todos os rendimentos do trabalho ou com este relacionados', podendo 'caracterizar certos tipos de subsídios e outros benefícios ou regalias sociais considerados rendimentos de trabalho'). Desta feita, não houve pronúncia sobre a inconstitucionalidade material ou orgânica da norma de incidência (cfr. Parecer nº 5/81, in Pareceres da Comissão Constitucional, 14º vol., págs. 309 e seguintes).
8. Simplesmente a solução legislativa de tributação das gratificações veio a ser revogada em 1982 (através do art. 2º do Decreto-Lei nº
198/82, de 21 de Maio), tendo o legislador considerado 'oportuno eliminar a sujeição a imposto das importâncias recebidas pelos empregados por conta de outrem, quando não atribuídas pela respectiva entidade patronal' (do preâmbulo).
9. Só em 1988, o legislador parlamentar veio de novo autorizar a tributação das gratificações dadas por terceiros a empregados por conta de outrem. De facto, o art. 28º, nº 1, alínea a), da Lei nº 2/88, de 26 de Janeiro, passou a prever de forma clara a possibilidade de tributação nos seguintes termos:
' 1- Fica o Governo autorizado a:
a) Incluir no âmbito da incidência do imposto profissional metade das importâncias, qualquer que seja a sua natureza, auferidas pelos empregados por conta de outrem no exercício das suas actividades, ainda que não atribuídas pela respectiva entidade patronal.'
E, no uso dessa autorização, o Governo, através do Decreto-Lei nº 98/88, de 22 de Março, deu nova redacção à alínea e) do § 2º do art. 1º do Código de Imposto Profissional, considerando como matéria tributável deste imposto 'metade das importâncias, qualquer que seja a sua natureza, recebidos pelos empregados por conta de outrem no exercício da sua actividade, quando não atribuídos pela respectiva entidade patronal'.
10. Se se atentar na história atribulada das tentativas legislativas para fazer tributar as gratificações - tentativas que visaram de facto tributar apenas as gratificações auferidas pelos empregados dos casinos, e entre eles repartidas através de um procedimento administrativamente complexo, dada a impossibilidade prática de controlo do recebimento de gratificações por outros profissionais - bem se percebe que se verificaram avanços e recuos, mas que a partir de 1980 (mais precisamente, da Lei nº 8-A/80, de 26 de Maio, e do Decreto-Lei nº 183-D/80, de 9 de Junho) se tornou claro, ao nível legislativo, qual a opção tomada pelo legislador em cada momento.
Não pode, por isso, deixar de estranhar-se que a maioria do Tribunal haja visto na formulação da alínea a) do nº 2 do art. 4º da Lei nº 106/88, de 17 de Setembro, uma credencial clara para incluir no âmbito de incidência objectiva do novo imposto sobre rendimento a totalidade das gratificações auferidas de terceiros pelos empregados por conta de outrem, de modo a que o legislador governamental pudesse tributar agora a 100% das gratificações pagas por entidades diversas da entidade patronal.
11. O art. 106º da Constituição estatui, no seu nº 2, que os impostos são criados por lei que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes. Por outro lado, o art.
168º, nº 1, alínea i), considera que integra a matéria de reserva relativa de competência da Assembleia da República 'a criação de impostos e sistema fiscal'.
Quer dizer, do princípio da legalidade tributária decorre que a Assembleia da República tem de criar os impostos, determinando a respectiva incidência, taxa e benefícios fiscais ou tem de autorizar por lei o Governo a criar esses impostos.
No caso presente, foi o Governo que publicou o Código do IRS, com base na indicada autorização legislativa.
Ora, por força do nº 2 do art. 168º da Constituição, as leis de autorização legislativa devem definir 'o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização'.
12. No caso em apreciação, há-de concluir-se que não houve qualquer 'predefinição parlamentar da orientação política da medida política a introduzir pelo Governo' - (para utilizar expressões de Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 678) - em matéria de tributação de gratificações dadas por terceiros aos trabalhadores por conta de outrem.
Crê-se, assim, que razão tinha o Provedor de Justiça quando, no pedido de apreciação e declaração de inconstitucionalidade (Processo apenso nº 202/91), afirmava que o Governo havia ultrapassado os limites da lei autorizadora (Lei nº
106/88) quando passou a tributar as gorjetas ou gratificações dadas por pessoa diversa da entidade patronal.
Não se vislumbra por que razão a tese que fez vencimento partiu da susceptibilidade de qualificação das gratificações como rendimentos para efeitos fiscais para concluir que o legislador parlamentar autorizara o Governo a proceder a tal qualificação, cabendo no sentido e extensão da norma autorizadora a inclusão dessas gratificações na incidência objectiva do IRS.
Pelo contrário, a solução introduzida em 1988 no Código do Imposto Profissional (tributação das gratificações por metade do seu valor) implicava, no mínimo, que o legislador parlamentar definisse se as gratificações continuavam a integrar o conceito fiscal de rendimento e se continuavam a ser tributadas por metade ou por inteiro.
13. O que se verifica é que é omissa a lei de autorização quanto à orientação a dar ao Governo para tratar fiscalmente as gratificações. Ora, se é verdade que a jurisprudência constitucional aceita que o sentido da lei autorizadora 'não há-de corresponder a uma enumeração minuciosa de todos os aspectos a regulamentar, sob pena de conter em si própria o texto legislativo em questão', também é certo que tal jurisprudência afirma que o texto da lei autorizadora 'não poderá, todavia, deixar de conter de forma clara uma enumeração que possa servir de parâmetro e medida dos actos delegados'
(formulações do acórdão nº 411/96, in Diário da República, II Série, nº 163, de
16 de Julho de 1996).
14. Daí que, inexoravelmente, se deva concluir - como se concluiu, em oposição à tese que fez vencimento - que a norma da alínea a) do nº
2 do art. 4º da Lei nº 106/88 é omissa quanto à questão de tributação das gratificações no que toca ao novo IRS pelo que a norma do art. 2º, nº 3, alínea h), do Código IRS é organicamente inconstitucional, por violação das disposições dos arts. 106º, nº 2, e 168º, nº 1, alínea i), e nº 2 da Constituição. Guilherme da Fonseca
(vencido quanto à decisão constante das alíneas a),b) e c) do nº 2, nos termos da declaração de voto junta) DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencido quanto à decisão constante das alíneas a), b) e c) do nº 2, por entender que, contrariamente ao decidido no acórdão, havia que declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das seguintes normas:
'a) a da alínea a) do nº 1 do artigo 28º da Lei nº 2/88, de 26 de Janeiro;
b) a do artigo 1º do Decreto-Lei nº 98/88, de 22 de Março, na medida em que dá nova redacção à alínea e) do §2º do artigo 1º do Código do Imposto Profissional, aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 44 305, de 27 de Abril de 1962;
c) a da alínea h) do nº 3 do artigo 2º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº
442-A/88, de 30 de Novembro;'.
Concordando em boa parte com o entendimento perfilhado quanto às demais normas que não foram declaradas inconstitucionais e aceitando a delimitação do objecto do pedido (ponto VI do acórdão), vou seguir a mesma metodologia do acórdão, diferindo para final 'por razões de sistemática e de economia de abordagem', a posição tomada quanto às normas da alínea a) do nº 1 do artigo
28º da Lei nº 2/88, de 26 de Janeiro e do artigo 1º do Decreto-Lei nº 98/88, de
22 de Março, na medida em que dá nova redacção à alínea e) do §2º do artigo 1º do Código do Imposto Profissional, aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 44
305, de 27 de Abril de 1962 (as alíneas a) e b) do nº 2 da decisão).
2. Assim, começando pela norma da alínea h) do nº 3 do artigo 2º do Código do Imposto Profissional sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro (alínea c) do nº 2 da decisão), entendo que ela sofre de inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea i), da Constituição, contrariamente ao decidido no ponto VII, 2.2., do acórdão.
Neste ponto limito-me a remeter para os fundamentos avançados na declaração de voto do Exmº Cons. Ribeiro Mendes, que aqui dou por inteiramente reproduzidos, e concluindo, talqualmente se faz nessa declaração, que 'a norma da alínea a) do nº 2 do art. 4º da Lei nº 106/88 é omissa quanto à questão de tributação das gratificações no que toca ao novo IRS pelo que a norma do art.
2º, nº 3, alínea h), do Código IRS é organicamente inconstitucional, por violação das disposições dos arts. 106º, nº 2, e 168º, nº 1, alínea i), e nº 2 da Constituição'.
Mas, há mais: também entendo que a mesma norma da alínea h) do nº 3 do artigo
2º sofre de inconstitucionalidade material por violação do artigo 13º da Constituição, em oposição à tese que fez vencimento (ponto VII, 2.3. do acórdão), acompanhando aqui, de perto a tese do Provedor de Justiça requerente.
De acordo com o entendimento do acórdão, depois de reconhecido que 'é incontroverso existirem, no comum dos casos, dificuldades práticas no controlo de quem recebe gorjetas e dos respectivos montantes, ao invés do que é suposto acontecer com os trabalhadores ora em causa', avança-se timidamente com a afirmação de que não pode 'falar-se de uma desigualdade constitucionalmente censurável se uns contribuintes se encontram circunstancialmente mais apertadamente controlados do que outros' ('Assim, não se interpreta o princípio da igualdade em termos que se projectam na não tributação de alguém porque outrem, em situação de igual incidência, não é tributado por dificuldades técnicas de aplicação da lei' - acrescenta-se no acórdão).
Mas isto é uma fraca justificação para afastar a violação do princípio da igualdade, tal como é entendido na jurisprudência do Tribunal Constitucional, citada e transcrita no acórdão, pois não oferece dúvidas que o aspecto da uniformidade dos impostos - um dos aspectos em que se desdobra o princípio tributário da igualdade - implica uma identidade de critérios para a sua repartição pelos cidadãos. Identidade que o requerente, e bem, questionou, porque se atinge apenas, 'na prática', as gorjetas recebidas pelos empregados de banca dos casinos, tendo em conta o sistema vigente que as disciplina e controla
(sendo aqueles empregados um dos muitos grupos profissionais que auferem gratificações durante o exercício da sua actividade, controlá-los tributariamente é uma solução intolerável e materialmente injustificada).
Na verdade, o legislador do Código não se expressou no sentido da existência de razões sociais para se tributarem de facto só as gratificações dos profissionais dos casinos e não as dos profissionais dos hotéis, de restaurantes, de cabeleireiros, de guardas de automóveis, vulgo arrumadores, e de táxis; de resto, não se vislumbra razão social para essa diferenciação. E não se pode haver como tal a inexistência de meios de controlo ou de estabelecimento de regimes de retenção pois que tal inexistência não provém de razões sociais mas sim e apenas da deficiente estrutura da ordem económica e da Administração Pública. Ora, como é evidente, tais defeitos ou insuficiências só geram efeitos a-sociais ou anti-sociais, e nunca situações de justiça social.
Acresce uma grave situação de injustiça social: é que enquanto para os trabalhadores em geral as remunerações a cargo da entidade patronal constituem a base de suporte do regime de segurança social e de indemnização por despedimento sem justa causa, faltam a tais bases os valores das gratificações atribuídas por terceiros; com a agravante, em relação aos profissionais de banca dos casinos, de suportarem impostos não influentes em tal regime de direitos sociais enquanto os outros trabalhadores em iguais condições escapam a tal tributação de facto. E de não haver contributo para a segurança social e o desemprego por parte das entidades gratificantes ou das que beneficiam da utilidade do trabalho.
Se o legislador fiscal se limitar a criar um tipo de incidência real sabendo de antemão que o seu objecto não é susceptível de conhecimento e de valoração em todos os casos e circunstâncias em que ocorra obviamente que viola o princípio da igualdade pré-constitucional por natureza e incorporado na Constituição, desenquadrando-se, portanto, do âmbito dos princípios e pressupostos subjacentes à natureza e objecto do próprio Estado, enquanto permite que na sua aplicação, as pessoas a quem respeita o objecto do tipo de incidência, sendo iguais perante a realidade, sejam desiguais perante a lei.
Se o Estado não puder controlar todas as situações reais que ofereçam caracteres de revelação de capacidade contributiva em termos de garantia da igualdade de tributação de todos os titulares ou destinatários de certo imposto, o legislador fiscal só pode tomar uma atitude: abster-se de criar tal imposto, e procurar reflectir a carga tributaria de que careça, em outros sectores ou situações que assegurem a igualdade de tratamento.
Tanto basta para concluir, e para encurtar razões, que se pode dar como demonstrada a violação do artigo 13º da Constituição.
3. Passando agora, e por último, às normas da alínea a) do nº 1 do artigo
28º da Lei nº 2/88, de 26 de Janeiro, e do artigo 1º do Decreto-Lei nº 98/88, de
22 de Março, na medida em que dá nova redacção à alínea e) do § 2º do artigo 1º do Código do Imposto Profissional, aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº
44305, de 27 de Abril de 1962, há que concluir identicamente no tocante à equacionada problemática da igualdade tributária, em divergência do entendimento do acórdão, valendo aqui o que ficou dito no número anterior.
No tocante à primeira daquelas normas, insere-se ela no diploma que aprovou o Orçamento do Estado para 1988 - a Lei nº 2/88 - e visou autorizar o Governo a tomar a iniciativa legislativa que o citado Decreto-Lei nº 98/88 veicularia, por via do artigo 1º, na medida em que dá nova redacção à alínea e) do § 2º do artigo 1º do Código de Imposto Profissional, aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei 44305, de 27 de Abril de 1962, tornando assim passíveis de tributação em imposto profissional as importâncias aí mencionadas, recebidas pelos empregados por conta de outrém no exercício da sua actividade, quando não atribuídas pela respectiva entidade patronal, querendo com isso o legislador tributar as gratificações dos profissionais da banca dos casinos.
A 'história atribulada das tentativas legislativas para fazer tributar as gratificações' está feita na declaração de voto do Exmº Consº Ribeiro Mendes, reconhecendo-se que tais tentativas 'visaram de facto tributar apenas gratificações auferidas pelos empregados dos casinos'.
Tanto basta para, na esteira do entendimento do pedido do Provedor de Justiça, se tenha de concluir de igual modo pela violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, valendo as razões acabadas de expor no número anterior.
O acórdão assentou que, a tal respeito, 'aproveitam integralmente as considerações na oportunidade aduzidas a respeito da eventual violação deste princípio pelas normas analisadas, em sede de IRS', e, utilizando o mesmo trajecto, entendo também que têm aqui pleno cabimento as razões que perfilho e ficaram ditas quanto à violação do princípio da igualdade, no tocante à norma da alínea h) do nº 2 do artigo 2º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS). Luís Nunes de Almeida
(vencido, nos termos e com os mesmos fundamentos que o Sr. Cons. Armindo Ribeiro Mendes) Maria Fernanda Palma
(vencida, nos mesmos termos e com os mesmos fundamentos do Cons. Ribeiro Mendes) Antero Alves Monteiro Diniz
(vencido quanto à decisão constante da alínea c) do nº2, pelas razões da declaração de Voto do Exmº Conselheiro Ribeiro Mendes). José Manuel Cardoso da Costa