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Processo n.º 1044/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A., vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), da decisão sumária do relator, de 20 de Dezembro de 2004, que decidira, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não conhecer do objecto do presente recurso.
1.1. A decisão sumária reclamada é do seguinte teor:
“1. A., interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 27 de Outubro de 2004, que negou provimento a recurso da sentença do 2.º Juízo do Tribunal Tributário de 1.ª Instância do Porto, de 14 de Outubro de
2003, que julgou improcedente, por caducidade do respectivo direito, impugnação judicial versando a liquidação de IVA relativa aos meses de Janeiro a Junho, Setembro e Outubro de 2000 e respectivos juros compensatórios.
O recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por
último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo a recorrente ver apreciada a questão de «ilegalidade inconstitucional» assim definida: «A ilegalidade cometida pela sentença contra lei expressa taxativamente no n.º 3 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e no n.º 2 do artigo 134.º do Código do Procedimento Administrativo,
é também uma inconstitucionalidade violadora dos artigos 20.º, 203.º e n.º 1 do artigo 205.º da Constituição», questão que teria sido suscitada nas alegações de recurso endereçadas ao STA.
O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator do STA, decisão que, como é sabido, não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC).
E, de facto, entende-se que o recurso é inadmissível, o que permite a prolação de decisão sumária, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas (como acontece com o recurso de amparo espanhol ou a queixa constitucional alemã), ou a condutas ou omissões processuais. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente. Aquele primeiro requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) só se considera dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
3. No presente caso, não só a recorrente não suscitou, antes de proferida a decisão recorrida, em termos processualmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, como a questão de «ilegalidade inconstitucional» que enuncia no requerimento de interposição de recurso reporta-se directamente à decisão judicial, em si mesma considerada, e não a qualquer norma ou interpretação normativa.
Na verdade, nas alegações para o STA – peça onde, segundo a recorrente, teria suscitado a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada –, o que a recorrente aduziu foi o seguinte:
«A presente impugnação judicial foi deduzida com cinco fundamentos, a saber:
– nulidade do título executivo;
– nulidade da citação;
– ausência de compensação de créditos;
– duplicação eventual da colecta;
– ausência de fundamentação da liquidação de juros compensatórios.
Com base nestes fundamentos, a sentença apreciou o erro na forma de processo, e a sua possibilidade de convolação, acabando por decidir pela prossecução dos autos como impugnação judicial, afastando a aplicabilidade da reclamação ou da oposição.
Fez bem.
Porém, contrariamente ao que defende a sentença, a impugnação judicial não se limita às quatro alíneas do artigo 99.º do CPPT.
Estas são puramente exemplificativas, como resulta do advérbio
“designadamente” que se lê no corpo do artigo, o qual estabelece que constitui fundamento de impugnação qualquer ilegalidade.
Ora, os fundamentos invocados na petição inicial da impugnação constituem ilegalidades que podem e devem aí ser apreciados.
Portanto, o processo utilizado constitui o meio judicial próprio.
Optando pela prossecução dos autos como impugnação judicial, a sentença afastou esta por se verificar a sua extemporaneidade pela aplicação da excepção da caducidade, apreciável oficiosamente.
Parece-nos, no entanto, ser errada a aplicação daquela excepção.
O artigo 102.º do CPPT estabelece diversos factos a partir dos quais se contam os 90 dias para a apresentação da impugnação judicial.
Não é somente o termo do prazo para pagamento voluntário; também o é o constante das restantes cinco alíneas.
E estas, todas elas, só começam a ser contáveis para os 90 dias, quando os vícios imputados ao acto constituem uma anulabilidade e nunca uma nulidade.
Quando se invoca uma nulidade, a impugnação judicial não está sujeita ao prazo dos 90 dias a contar das seis alíneas do n.° 1 do artigo 102.º, como é norma expressa do n.° 3 deste preceito.
É ainda norma do artigo 134.º, n.° 2, do Código do Procedimento Administrativo.
Começou por dizer-se nestas alegações, como foi escrito na petição inicial e como é reconhecido na própria sentença, que, entre os fundamentos da impugnação constam a nulidade do título executivo e também a nulidade da citação.
Não existe prazo para estes fundamentos, que podem ser deduzidos “a todo o tempo”, como consta naqueles preceitos legais.
A ilegalidade cometida pela sentença contra lei expressa taxativamente no n.° 3 do artigo 102.º do CPPT e no n.° 2 do artigo 134.º do CPA é também uma inconstitucionalidade violadora dos artigos 20.º e 203.º e do n.° 1 do artigo 205.º da Constituição, que admite recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 70.º e seguintes da respectiva Lei.
Em conclusão:
1.° A presente impugnação judicial foi deduzida com os cinco fundamentos constantes da petição inicial e reconhecidos na sentença.
2.° A impugnação judicial é o meio processual próprio para apreciação das ilegalidades invocadas.
3.° O artigo 99.º do CPPT, nas suas alíneas, não é taxativo, mas sim exemplificativo.
4.° O corpo do seu artigo admite como fundamento qualquer ilegalidade.
5.° Entre essas ilegalidades invocadas contam-se a nulidade do título executivo e a nulidade da citação.
6.° Para além de ser o meio próprio, os 90 dias para apresentação da impugnação contam-se a partir das seis hipóteses do n.° 1 do artigo 102.º do mesmo CPPT, e não só da sua alínea a).
7.° Além de ser atempada com a contagem dos noventa dias, a impugnação encontra-se abrangida no n.° 3 do mesmo artigo 102.º, mediante a invocação das nulidades referidas.
8.° Existe disposição legal expressa para apresentação da impugnação “a todo o tempo”, qual seja a do n.° 3 do artigo 102.º do CPPT e a do n.° 2 do artigo 134.º do Código do Procedimento Administrativo.
9.° A sua não aplicação constitui não só uma ilegalidade, mas também uma inconstitucionalidade nos termos dos preceitos da Constituição citados nestas alegações.
10.° Foi violada toda a legislação citada nestas alegações e nas suas conclusões.»
Ao recurso a que respeitam as transcritas alegações foi negado provimento pelo acórdão ora recorrido, com a seguinte fundamentação:
«Começaremos pelo [recurso] de fls. 57 pois que, tendo a sentença decidido pela caducidade do direito de impugnar, a verificar-se esta, torna-se inútil apreciar se as testemunhas deveriam ou não ter sido inquiridas. Neste recurso defende a recorrente que a impugnação é o meio processual próprio para apreciar qualquer ilegalidade, sendo-o por isso para apreciar as nulidades do título executivo e da citação que invoca, podendo ser deduzida a todo o tempo, constituindo entendimento diverso não só ilegalidade mas também inconstitucionalidade.
Prescreve o artigo 99.° do CPPT que constitui fundamento de impugnação qualquer ilegalidade, designadamente:
a) Errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários;
b) Incompetência;
c) Ausência ou vício da fundamentação legalmente exigida;
d) Preterição de outras formalidades legais.
Estes fundamentos são exemplificativos e daí a recorrente pretender que nele se enquadram as nulidades que invoca. Não tem, porém, razão. A impugnação é o meio processual adequado para obter a anulação do acto tributário, sendo o acto a impugnar um acto de liquidação ou um acto que comporte a apreciação da legalidade de um acto de liquidação (cf. Jorge de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado, pg. 426). Ora, no caso vertente, a recorrente não atribui as nulidades que invoca ao acto de liquidação, mas ao título executivo e a eventual nulidade de citação no processo executivo. Trata-se de nulidades processuais em processo de execução fiscal previstas no artigo 165.° do CPPT. Tais nulidades só podem ser conhecidas no processo executivo e se forem arguidas no prazo de oposição, podendo levar
à anulação de todos os actos subsequentes com aproveitamento das peças úteis que não tenham sido afectadas. Na verdade, elas apenas influenciam os termos do processo executivo, em nada contendendo com o acto tributário antes praticado. Mas se tais nulidades puderem ser impugnadas autonomamente, como a recorrente pretende, então terão de se sujeitar ao prazo de 90 dias estabelecido para a impugnação judicial. E tal prazo estava largamente excedido quando a impugnação foi apresentada, sendo certo que, como refere o Ministério Público, a recorrente não questiona a data da notificação – só o faz em relação à forma utilizada, por via postal sem aviso de recepção – nem ao termo do prazo de pagamento voluntário em 11 de Dezembro de 2000 no que concerne ao mais moderno dos impostos liquidados. Quando o artigo 102.°, n.º 3, do CPPT refere que, se o fundamento for a nulidade, a impugnação pode ser deduzida a todo o tempo, está a referir-se às nulidades do acto tributário e não às nulidades processuais praticadas no processo executivo. Assim sendo, a sentença que considerou a extemporaneidade da impugnação não enferma, contrariamente ao pretendido pela recorrente, de qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade, não especificando sequer a recorrente em que consiste a violação da CRP. Não pode, pois, proceder o recurso de fls. 57 por caducidade do direito de impugnar.»
Como resulta claramente da leitura das alegações da recorrente e da fundamentação jurídica do acórdão recorrido, naquelas não suscitou a recorrente nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa, imputando a violação da lei e da Constituição directamente à decisão judicial então recorrida, em si mesma considerada, o que não constitui objecto idóneo de recurso para o Tribunal Constitucional; e, por outro lado, o acórdão recorrido não se ocupou – nem tinha de se ocupar, dado que perante ele não foi suscitado por forma processualmente adequada – de nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa.
Não estão, assim, verificados os requisitos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto.”
1.2. A reclamação apresentada pela recorrente contra a decisão sumária do relator limita-se a referir que, não concordando com o respectivo teor, dela reclama para a conferência, nos termos do n.º 3 do artigo
78.º-A da LCT, não formulando qualquer crítica aos fundamentos dessa decisão nem aduzindo qualquer argumento no sentido da admissibilidade do recurso e do dever de conhecimento do seu objecto.
Notificado da apresentação desta reclamação, o recorrido nada respondeu.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Como se ponderou no Acórdão n.º 514/2003:
“A natureza colegial dos tribunais superiores implica que, em regra, a formação de julgamento integre, no mínimo, três juízes e a tomada de decisão exija, também no mínimo, dois votos conformes. Admitindo, porém, a lei, por óbvias razões de economia e celeridade processuais, que certas decisões sejam tomadas individualmente pelo relator, esta possibilidade não podia deixar de ser acompanhada pela outorga à parte que se sinta prejudicada com tais decisões da faculdade de as fazer reexaminar pela conferência, de composição colegial. Assim sendo, a circunstância de o reclamante não ter explicitado as razões pelas quais discorda do despacho reclamado não conduz inexoravelmente ao indeferimento da reclamação (e muito menos ao seu não conhecimento), antes se impõe que a conferência repondere a questão, bem podendo acontecer que, mesmo na ausência de críticas do reclamante ao despacho reclamado, no colectivo de juízes acabe por prevalecer entendimento diverso do inicialmente assumido pelo relator.”
Procedendo a essa reponderação, entende-se, porém, que, no presente caso, pelas razões indicadas na decisão sumária reclamada – não ter a recorrente suscitado perante o tribunal recorrido nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa, imputando a violação da lei e da Constituição directamente à decisão judicial então recorrida, em si mesma considerada, o que não constitui objecto idóneo de recurso para o Tribunal Constitucional, e não se ter o acórdão recorrido ocupado de nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa, por nenhuma questão deste género ter sido perante ele suscitada por forma processualmente adequada –, o presente recurso de inconstitucionalidade é inadmissível, o que determina o não conhecimento do seu objecto.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2005
Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos