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Processo n.º 686/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., SA reclama da “decisão sumária” de não conhecimento do objeto presente recurso de constitucionalidade, sustentando que, contrariamente ao decidido, suscitou, em termos processualmente adequados, a questão de inconstitucionalidade das dimensões normativas que identifica no respectivo requerimento de interposição, que é do seguinte teor:
“A., S.A., Recorrida nos autos supra identificados, em que é Recorrente a B., S.A., tendo sido notificada do acórdão proferido nos presentes autos em 30.05.2012 e do subsequente despacho de indeferimento da arguição de nulidades e do pedido de reforma de 11.07.2012, vem, ao abrigo dos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP), e 43.º, 70.º n.º 1, al. b), 72.º, n.ºs 1, al. b), e n.º 2, 75.º e 75.º-A, da Lei de Processo no Tribunal Constitucional (LTC), recorrer para o TRIBUNAL CONSTITUC1ONAL do supra referido acórdão e subsequente despacho, pelo facto de a interpretação que ali foi dada aos artigos 3.º e 4.º da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA) padecer de inconstitucionalidade por violação imediata do disposto no artigo 268.º, n.º 2, da CRP, e violação mediata do disposto nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP.
A interpretação do n.º 1 do artigo 3.º da LADA veiculada no referido acórdão é a de que não são “documentos administrativos” os detidos por uma pessoa colectiva de direito privado constituída pela B. e por empresas 100% detidas por esta, como o SC., respeitantes a um procedimento pré-contratual de contratação de serviços publicitários, para serem prestados directamente a empresas públicas agrupadas, de entre as quais a B., desenvolvido em nome, por conta e nas condições definidas por estas empresas públicas. O despacho de indeferimento da arguição de nulidades e do pedido de reforma do STA veio manter esta interpretação com base no argumento legal de que entre o ACE supra descrito e as Empresas Públicas beneficiárias dos serviços contratados não existe um “mandato com representação ou outra figura jurídica afim”.
Por sua vez, a al. b) do n.º 2 do artigo 3.º da LADA foi interpretada pelo supra referido acórdão do STA no sentido de excluir da noção de “documento administrativo” aqueles que são detidos por empresas públicas criadas por outras empresas públicas, como o SC., com o argumento de que estas não desenvolvem uma “actividade administrativa”.
Quanto à interpretação do artigo 4.º da LADA, entendeu o mesmo acórdão que a noção de empresa pública constante da al. d) do n.º 1 do artigo 4.º da LADA deve ser restritivamente interpretada no sentido de apenas abranger as empresas que directamente emergem do Estado, das regiões autónomas ou autarquias, e não as empresas que provenham de outras empresas públicas, como o C. em relação às suas agrupadas.
Estas interpretações padecem de inconstitucionalidade porque resultaram na denegação do direito à informação não procedimental de acesso aos registos e arquivos administrativos, consagrado no artigo 268.º n.º 2 da CRP, relativamente a um procedimento pré-contratual de montante invulgarmente vultuoso no mercado publicitário português, face ao qual se comprovaram existir indícios da prática de irregularidades que levaram à preterição da proposta da ora Recorrente. Essa denegação de informação resultou na impossibilidade da Recorrente exercer o direito de acesso aos tribunais, consagrado nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, para tutela da sua posição jurídica e controlo jurisdicional da actuação das empresas públicas em respeito pelas limitações jurídico-públicas aplicáveis.
A questão da inconstitucionalidade aqui em causa foi suscitada pela ora Recorrente:
i) No artigo 13 das contra-alegações apresentadas no recurso interposto pela B. da sentença do TAC de Lisboa para o TCAS;
ii) No artigo 1.º, 15.º a 17º, 23.º e 24.º, 66.º e 67.º, e Conclusões D), G) e K), S), das alegações do recurso excepcional de revista por si interposto do Acórdão do TCAS para o STA.”
Os recorridos, B., SA e C., ACE pronunciaram-se no sentido da improcedência da reclamação, confirmando-se a decisão sumária.
2. A decisão de não conhecimento do objecto do recurso fundou-se no facto de a questão de constitucionalidade não ter sido adequadamente suscitada, como questão de constitucionalidade de normas jurídicas, nos termos exigidos pelos artigos 70.º, n.º 1, alínea b) e 72.º, n.º 2 da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC).
A recorrente defende que a questão de constitucionalidade não só foi expressamente suscitada perante o Supremo Tribunal Administrativo, como esse problema de apreciação de uma questão atinente ao sentido e alcance do direito fundamental de acesso aos registos e arquivos administrativos consagrado no artigo 268.º, n.º 2, da CRP, no artigo 65.º do CPA e na LADA, na vertente do acesso à informação necessária para habilitar ao controlo jurisdicional da actuação das entidades requeridas, foi precisamente o que colocou no âmbito do recurso de revista excepcional (artigo 150.º do CPTA), tendo-o o tribunal a quo reconhecido e decidido em termos expressos.
É exacto que a recorrente invocou expressamente um direito fundamental e que fez explícita referência a que a apreciação da sua pretensão não poderia ser feita à margem de uma leitura das garantias constitucionais atinentes ao direito de acesso aos registos e arquivos administrativos e de tutela jurisdicional efectiva, consagradas na Constituição.
Todavia, para que se considere cumprido o pressuposto de acesso ao Tribunal Constitucional especificamente imposto pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, não bastam as circunstâncias de o litígio respeitar a um direito fundamental, de a determinação do conteúdo e alcance deste não poder abstrair da consideração da sua respectiva sede constitucional e de nesta base ser defendida a pretensão de interpretação das disposições infra-constitucionais que o concretizam. Fazendo-se o acesso ao Tribunal Constitucional por via de recurso, é necessário, como se deixou dito na decisão reclamada, que o tribunal que proferiu a decisão recorrida tenha sido confrontado, por iniciativa do sujeito processual interessado, com a questão de dever recusar aplicação a um sentido normativo precisamente determinado, na hipótese de entender que ele traduz a correcta interpretação do direito infra-constitucional. O Tribunal tem entendido, para que uma questão desta natureza se considere suscitada em termos de satisfazer este pressuposto, não ser suficiente referir que uma decisão jurisdicional que não interprete um preceito legal no sentido propugnado por esse interessado viola a Constituição. É necessário que seja discernível a autonomização da questão, como questão de constitucionalidade da norma infra-constitucional, relativamente ao tema da sua interpretação e aplicação aos factos da causa, de modo a colocar o juiz perante a necessidade de apreciar tal questão sob pena de incorrer em omissão de pronúncia.
Ora, toda a argumentação que a recorrente desenvolveu perante o Supremo, designadamente nos pontos por si indicados no requerimento de recurso como lugar onde suscitou a inconstitucionalidade, se focou numa abordagem perspectivada a partir do conteúdo concreto do direito fundamental e da correcta interpretação a atribuir aos preceitos legais aplicáveis. A questão foi colocada em ambiência de valorações constitucionais, mas por referência à decisão jurisdicional sem expressa queixa de validade contra uma norma infra-constitucional. Para que o problema tivesse de ser compreendido pelo tribunal da causa como colocado no plano de inconstitucionalidade normativa (“ … em termos de este estar obrigado a dela conhecer”), teria de assentar na enunciação de um certo conteúdo prescritivo, de vocação geral e abstracta, assacável aos concretos preceitos legais aplicáveis, susceptível de convocar à desaplicação dessa “norma” com fundamento em violação de certo parâmetro constitucional.
As questões que a recorrente colocou à apreciação do Tribunal recorrido restringiram-se, como já se referiu, a aspectos relacionados com o alcance do direito fundamental de acesso aos registos e arquivos administrativos e à correcta interpretação dos preceitos legais aplicáveis, designadamente do artigo 4.º, n.º 1, alínea d) da Lei n.º 46/2007, de 24 de agosto (Lei de Acesso aos Documentos Administrativos). Aliás, é sintomático – sem que isto signifique entender-se que a pronúncia efectiva do tribunal a quo constitui pressuposto do recurso – que o acórdão que apreciou o recurso de revista não faça referência a qualquer questão de constitucionalidade e que a recorrente, que arguiu nulidades por omissão de pronúncia, nada refira a este propósito. Nem o Supremo se sentiu chamado a usar os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 204.º da Constituição, nem a recorrente mostrou sentir que o acórdão omite pronúncia sobre uma questão que, se tivesse sido colocada, teria necessariamente de apreciar.
3. Constata-se, no entanto, que uma outra razão há que deve ser oficiosamente considerada e que conduz ao deferimento, embora parcial, da reclamação.
Efectivamente, a jurisprudência constitucional tem vindo a entender, num entendimento do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade funcionalmente adequado ao sistema de acesso ao Tribunal Constitucional, que a satisfação deste pressuposto não é exigível quando, por circunstâncias excepcionais, não tenha sido possível à parte colocar antecipadamente uma tal questão. Ocorre uma dessas situações quando a representação da possibilidade de aplicação de determinada norma ou da interpretação que lhe é conferida na decisão recorrida, considerando o concreto desenvolvimento da lide e o estado da jurisprudência e da doutrina, não é razoavelmente exigível do interessado, numa estratégia processual diligente e cautelosa.
Ora, a situação dos autos apresenta, precisamente, esse carácter de excepcionalidade: a solução jurídica da situação concreta pelo Supremo Tribunal Administrativo é uma solução inovatória, não só no âmbito do enquadramento que vinha sendo dado à questão pelas instâncias anteriores, mas também no âmbito do próprio acervo jurisprudencial que se tem vindo a consolidar neste domínio. O próprio acórdão de 30 de Maio o reconhece ao afirmar que confirma o acórdão do TCA “embora por motivos diferentes dos enunciados no aresto sub specie”.
Com efeito, a ratio do acórdão do Tribunal Central Administrativo fora a de que não são documentos administrativos aqueles que são detidos por uma empresa pública que desenvolve actividade bancária sem restrições, actuando numa lógica de mercado e de livre concorrência. O Supremo seguiu outro percurso, entendendo que documento administrativo é o detido por qualquer das entidades referidas nos dois números do artigo 4.º da LADA. E, passando a analisar a questão por esta perspectiva, entendeu que o C. não cabe no elenco do n.º 1 do artigo 4.º da LADA, nem a actividade desenvolvida se compreende no n.º 2 do mesmo artigo 4.º.
Por outro lado, como o acórdão da formação de apreciação preliminar refere, existem vários precedentes jurisprudenciais que, em termos genéricos, têm vindo a “alargar” o elenco de sujeitos e/ou documentos abrangidos pelos deveres impostos pela Lei n.º 46/2007, de 24 de Agosto (Lei de Acesso aos Documentos Administrativos – LADA), em decorrência do direito de acesso aos arquivos e documentos administrativos, e tendo estas matérias vindo a integrar questões complexas para efeitos de admissão, no Supremo Tribunal Administrativo, de recursos de revista excepcional. E não se conhece outra pronúncia que, com anterioridade, tenha decidido no sentido adoptado pelo acórdão recorrido – e que é o de que o conceito de empresa pública referido no artigo 4.º, n.º 1, alínea d) da LADA deve ser objecto de interpretação restritiva, em relação ao conceito decorrente do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de dezembro.
Neste contexto não era razoavelmente exigível que a recorrente suscitasse a questão de inconstitucionalidade relativamente ao sentido normativo efectivamente adoptado pelo Supremo Tribunal Administrativo.
Por esta via, entende-se ser de admitir o recurso.
4. Impõe-se, no entanto, que se proceda desde já à delimitação do respectivo objecto. O recurso de constitucionalidade tem uma função instrumental o que exige, desde logo, que exista uma coincidência entre a norma ou normas apreciadas e o que tenha constituído ratio decidendi da decisão recorrida. Sendo certo que a recorrente integra, no seu requerimento de interposição, três questões de constitucionalidade, apenas uma delas atinge aquele que foi o fundamento normativo da decisão do Supremo Tribunal Administrativo. Esse fundamento reside, precisamente, na interpretação do artigo 4.º da Lei n.º 46/2007, mais concretamente do artigo 4.º, n.º 1, alínea d).
Efectivamente, quanto à B. a improcedência da pretensão da requerente resultou da circunstância de não ser detentora dos documentos em causa. Não entraram aqui considerações sobre a natureza do documento ou sobre o regime jurídico ou a área de actuação da empresa.
E quanto ao C., o acórdão começa por dizer que o pretendido acesso aos documentos requeridos depende de eles poderem ser qualificados como “documentos administrativos”. Adianta, porém, que esta qualificação não depende da natureza ou função desses documentos, mas sim da qualidade do ente que titula a respectiva posse ou detenção. Assim, essa qualificação vai depender do modo como o artigo 4.º da LADA seja interpretado de modo a abranger ou excluir uma entidade como o recorrido C.. Quanto ao n.º 1 do artigo 4.º da LADA, o Tribunal concentrou o seu esforço hermenêutico na concretização do sentido da respectiva alínea d), em moldes que vieram a desencadear a conclusão de que a mesma não abrange entidades empresariais do tipo das do recorrido.
E, passando a apreciar se o pedido poderia caber no n.º 2 do artigo 4.º da LADA, o acórdão, embora reconhecendo que o C. é dominado por uma empresa pública – a B. –, conclui que aquela entidade não foi criada para “satisfazer de um modo específico necessidades de interesse geral, sem caracter industrial ou comercial”. Porém, esta norma não é visada no presente recurso.
Verifica-se, assim, que o acórdão recorrido interpretou o artigo 4.º, n.º 1, alínea d), da LADA, no sentido de que o conceito de empresa pública ali previsto deve ser restritivamente interpretado (em relação ao disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro), abrangendo apenas aquelas que “como primeira emanação do Estado (e das regiões ou autarquias), devem seguramente incluir-se numa noção lata de administração, aqui indirecta.” Ou seja, tal “não abrangerá sociedades criadas por empresas públicas (…)” (cfr. fl. 523). Pelo que, das questões de constitucionaliade enunciadas no requerimento de interposição, o recurso só pode prosseguir relativamente à norma da alínea d) do n.º 1 do artigo 4.º da LADA.
Nestes restritos termos, com o objecto assim delimitado, a reclamação é parcialmente procedente.
5. Decisão
Pelo exposto, e nestes limites, defere-se a reclamação.
Lx. 27/02/2013. – Vítor Gomes – Catarina Sarmento e Castro –Maria Lúcia Amaral.