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Processo nº 197/97
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que figura como recorrente A., e como recorrido o Ministério Público, pelo essencial dos fundamentos da EXPOSIÇÃO do Relator, a fls. 68 e seguintes, a que a recorrente nada objectou e que mereceu a inteira concordância do Ministério Público recorrido, decide-se não tomar conhecimento do recurso e condena-se o recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em três unidades de conta.
Lisboa, 19 de Junho de 1997 Guilherme da Fonseca Fernando Alves Correia Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Messias Bento José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa
Processo nº 197/97
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
EXPOSIÇÃO
1. A., com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18 de Março de 1997, que, em autos de recurso processados nos termos do disposto nos artigos 43º, 44º e 45º, do Código do Processo Penal vigente, entendeu que 'o pedido de recusa é manifestamente infundado', assim indeferindo o pedido formulado pela recorrente, no âmbito dos citados artigos (a recorrente havia requerido que fosse 'deferida a recusa da Mª Srª Drª Juiz de Direito Presidente do Colectivo formado na 9ª Vara Criminal de Lisboa, 1ª Secção para proceder ao seu julgamento', com o fundamento de que foi ela que 'lavrou o despacho de
26/2/97 que ordenou a prisão preventiva da arguida').
2. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade invoca a recorrente que a 'norma que se pretende esse Colendo Tribunal Constitucional declare materialmente inconstitucional é a do artº 40º do Cód de Proc. Penal, na interpretação segundo a qual permite a intervenção no julgamento do juiz que lavrou despacho a ordenar a prisão preventiva de um arguido, com o fundamento de que há perigo de continuação da actividade criminosa, pelo facto de ter um dia se ausentado da residência, tendo justificado a falta com o fundamento de que foi ao escritório do advogado preparar a defesa no último dia útil antes do dia do julgamento'.
E acrescenta depois:
'As normas constitucionais que se consideram violadas são as do artº 32º nº 1 e
5 da CRP.
A questão da inconstitucionalidade foi suscitada no artigo 27º do requerimento de 3/3/97, em que se pediu fosse deferida a recusa da Exmª Juiz de Direito.
Embora este requerimento de interposição de recurso não tenha que ser fundamentado, cumpre dizer que se verifica o requisito do artº 70º nº 1 al. b) da Lei nº 28/82, de 15/11, uma vez que, embora o Tribunal da Relação não tenha apreciado, expressamente, a conformidade constitucional da norma, a verdade é que a aplicou, pelo que implicitamente julgou tal norma conforme à CRP'.
3. É exactamente este último ponto da aplicação da norma arguida de inconstitucionalidade no acórdão recorrido que tem de se desbravar.
Com efeito, a admissibilidade do tipo de recurso de constitucionalidade de que se serviu a recorrente depende da verificação cumulativa de determinados requisitos específicos, interessando particularmente aqui o seguinte: que a decisão recorrida tenha aplicado norma arguida de inconstitucional durante o processo.
É que o objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b), citada pela recorrente, é a questão de inconstitucionalidade de norma de que a decisão tenha feito efectiva aplicação.
Ora, é esta efectiva aplicação que falha no presente caso, como se vai ver.
Na verdade, o recorrente utilizou um meio processual inserido no capítulo do Código de Processo Penal que se refere aos 'impedimentos, recusas e escusas', com expressa invocação dos artigos 43º e 45º, com o objectivo de ver recusada a intervenção no julgamento de uma juíza que 'lavrou o despacho de 26/2/97 que ordenou a prisão preventiva da arguida'.
Foi nesse quadro legal que se moveu o tribunal de relação, apreciando unicamente a temática da 'recusa da intervenção de um juiz no processo' que
'deverá ser deferida quando se verificar o risco daquela intervenção 'ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade', como prevê o art. 43º, nº 1, do CPP'.
Para dar depois a seguinte resposta, que em parte se transcreve:
'A requerente retira a sua conclusão de suspeição sobre a imparcialidade da Magistrada visada, do facto desta, no despacho em que revogou a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, substituindo-a pela de prisão preventiva, ao referir que há perigo de continuação da actividade criminosa, estar, desse modo, já convencida que a arguida traficava droga e que, agora, continuava a traficar, não sendo, portanto, inocente.
Ora, o perigo de continuação da actividade criminosa é um dos requisitos previstos no art. 204º do CPP, de cuja verificação, em concreto, depende a aplicação de qualquer medida de coacção, que não seja o termo de identidade e residência.
Trata-se de um juízo de prognose que, tal como os que têm de ser feitos sobre os perigos de fuga, de perturbação de inquérito ou da instrução ou de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas - cfr. alíneas a), b) e c), do art. 204º citado - permitirão a aplicação, ou não, por parte do juiz das medidas de coacção e de garantia patrimonial (cfr. art. 194º, nº 1, do CPP).
Este juízo não põe em causa o princípio da presunção de inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, consagrado no art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), e, até, é admitido pela Lei Fundamental quando excepciona do direito à liberdade, entre outros, aqueles casos em que haja fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos, ao remeter para a lei comum as condições em que pode haver lugar a prisão preventiva - cfr. o art. 27º, nº 3, alínea a), da CRP -, sendo que uma dessa condições é, como já se disse, o perigo de continuação da actividade criminosa.
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....
Se, como pretende a requerente, o concluir-se pelo perigo de continuação da actividade criminosa implicasse um convencimento por parte do juiz de que o arguido cometera o crime que lhe viesse imputado, todos os juízes que se tivessem pronunciado durante o processo sobre a aplicação de medidas de coacção, e que, portanto, tivessem de verificar da existência dos requisitos gerais da sua aplicação, entre os quais se conta o aludido perigo, poderiam ser alvo de suspeição sobre a sua imparcialidade.
O motivo que, segundo a requerente, é gerador de desconfiança sobre a imparcialidade da Exmª Juíza visada, não é mais do que um acto processual emergente da lide normal de um processo em tribunal.
Não há, assim, no que respeita à concreta actuação da Magistrada visada, no
âmbito funcional, qualquer motivo sério e grave susceptível de levantar suspeição sobre a sua imparcialidade.
Por outro lado, a requerente não menciona qualquer facto de natureza estritamente pessoal relacionado com a Exmª Juíza visada, do qual se possa concluir haver uma relação litigiosa com ela, que a levaria a deixar de ser imparcial.
Por último, sempre se acrescentará que a requerente vai ser julgada em Tribunal Colectivo, isto é, com estrutura colegial - cfr. art. 50º, nº 1, da Lei nº
38/87, de 23 de Dezembro [Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais] - cuja decisão
é tomada por maioria simples de votos - cfr. art. 365º, nº 5, do CPP -, e, não, por unanimidade, pelo que a Exmª Juíza visada sempre poderia ficar vencida'.
Como se vê, o acórdão recorrido não se posicionou em termos de apreciação de qualquer impedimento da mesma juíza, que é um outro meio processual inserido no mesmo capítulo e regulado nos artigos 39º a 42º, passando por uma declaração originária do juiz de que cabe 'recurso para o tribunal imediatamente superior', se não for reconhecido o impedimento (nº 1 do artigo 42º), o que é completamente diferente da tramitação que tem de seguir o pedido de recusa, como
é a presente hipótese.
Não há, portanto, nenhuma pronúncia da parte do acórdão recorrido sobre o questionado artigo 40º, e muito menos quanto à sua conformidade com a Constituição; nem sequer poderia haver, por se tratar de meios processuais diferentes.
Em suma: a aplicação dessa norma do artigo 40º, 'na interpretação segundo a qual permite a intervenção no julgamento do juiz que lavrou despacho a ordenar a prisão preventiva de um arguido, com o fundamento de que há perigo de continuação da actividade criminosa, pelo facto de ter um dia se ausentado da sua residência, tendo justificado a falta com o fundamento de que foi ao escritório do advogado preparar a defesa no último dia útil antes do dia do julgamento', talqualmente se expressa a recorrente, não se descobre no acórdão recorrido como efectiva aplicação, pois nele assentou-se apenas na consideração acima transcrita, que decorre do meio processual típico regulado nos citados artigos 43º, 44º e 45º.
4. É certo, como diz a recorrente, que a 'questão da inconstitucionalidade foi suscitada no artigo 27º do requerimento de 3/3/97, em que se pediu fosse deferida a recusa da Exmª Juiz de Direito', com referência àquele artigo 40º e com identificação do acórdão do Tribunal Constitucional nº 935//96, publicado no Diário da República, II Série, nº 286, de 11 de Dezembro de 1996.
Mas isso não pode suportar o entendimento de um efectiva aplicação da norma no acórdão recorrido, que passou, e bem, à margem de qualquer referência a tal questão.
Aliás, o citado acórdão nº 935/96 delimitou os contornos da questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 40º, definindo-lhe a sua razão de ser, e relacionando-a com a hipótese concreta, de modo a salientar que, 'no caso dos autos, o juiz que participou no julgamento não só decretou como ainda manteve posteriormente a prisão preventiva do arguido, quando apreciou um requerimento do arguido em que solicitava a sua revogação' (e acrescentou: 'Quer isto dizer que a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, se pronunciou sobre a prisão preventiva do arguido, foi aplicada, in casu, numa dupla dimensão: naquela em que o juiz decretou, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, a prisão preventiva e naquela em que, em data posterior, já bem próxima da data da acusação, confirmou a prisão preventiva. Ora, aplicada nesta dupla dimensão, a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal infringe claramente o princípio da imparcialidade objectiva do juiz, ínsito no princípio do acusatório, constante do nº 5 do artigo 32º da Constituição)'.
Ora, não se descortina no acórdão recorrido, nem mesmo de modo implícito, nenhuma abordagem da dimensão em que, in casu, teria sido eventualmente aplicada a norma do artigo 40º, para se saber se a juíza em causa, 'na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva da arguida', tal como consta da fórmula do julgamento de inconstitucionalidade constante do acórdão º
935/96.
Tudo isto aponta, pois, para que não se conheça do presente recurso de constitucionalidade, por não estar presente o requisito específico da aplicação de norma arguida de inconstitucionalidade durante o processo.
Doutro modo, estaria aberto o caminho a que, qualquer que fosse a arguição de inconstitucionalidade de uma norma jurídica no decorrer de um processo, sempre se poderia chegar ao Tribunal Constitucional em via de processo de fiscalização concreta de constitucionalidade.
5. Ouçam-se as partes, por cinco dias, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 2º, da Lei nº 85//89, de 7 de Setembro.