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Processo n.º 1048/04
1.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. interpôs recurso da decisão da Juíza de Instrução Criminal de fls.
97 a 99 que validou a sua detenção, tendo na correspondente motivação (fls. 3 e seguintes) concluído do seguinte modo:
“[...]
3. Apesar de no mandado de detenção ao qual agora tem acesso estar escrito que lhe foi dado conhecimento do seu teor, em rigor e em claro incumprimento do preceituado no n.° 4 do artigo 27° da Constituição da República Portuguesa, o mesmo não foi sequer exibido ao arguido, nem tão pouco lhe foi entregue o respectivo triplicado, sendo certo que o original desse mandado constante dos autos não contém a sua assinatura.
4. Na decisão recorrida, a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal que a proferiu considerou que a detenção do arguido foi efectuada fora de flagrante delito, validando-a da seguinte forma:
[...]
5. Porém, o invocado artigo 257° n.º 2 do CPP, referente, exactamente, à detenção efectuada fora de flagrante delito, por iniciativa das autoridades policiais, faz depender a sua validade, de três requisitos essenciais e cumulativos, não tendo aqueles previstos nas suas alíneas b) e c) sido cumpridos no presente caso.
6. Com efeito, o mandado em apreço não concretiza, como se impõe, quais os fundados receios de fuga em que se baseou, para proceder à detenção do arguido, limitando-se a enunciar a alínea a) do artigo 204° do CPP e sendo certo que o arguido foi detido pacatamente num hotel conhecido no Porto.
7. Por outro lado, omisso é igualmente esse mandado, no que concerne à justificação da necessidade de detenção urgente do arguido e da existência de perigo na demora, como causa de impedimento da obtenção de um mandado do juiz ou do Ministério Público ordenando a detenção, sendo certo que o arguido foi detido pelas 17h00, hora perfeitamente admissível para a obtenção da autorização judicial competente.
8. Ora, em face dessas omissões e em flagrante incumprimento do disposto no artigo 257° n.° 2 do CPP no qual se baseia, a Mma Juíza de Instrução Criminal não podia ter validado a detenção do ora recorrente, antes se impondo a sua imediata restituição à liberdade, por força do artigo 261° do CPP, bem como a declaração da nulidade ou da inexistência da sua detenção.
9. O vício da inexistência não está tipificado na nossa lei processual penal mas
é uma categoria reconhecida pela Doutrina e pela Jurisprudência, como um vício que segue o regime das nulidades insanáveis mas que é ainda mais grave do que aqueles que a nossa lei prevê como nulidades [...].
10. Nestes casos, o Julgador não pode ficar amarrado ao leque de vícios consignados do artigo 118° ao 120° do CPP, entendimento, este, perfilhado, aliás, por este Tribunal da Relação de Lisboa, quando, em cumprimento da declaração da inconstitucionalidade do n.° 4 do artigo 141° do CPP, se interpretado no sentido de não impor que o arguido seja confrontado no seu primeiro interrogatório judicial com os factos que lhe são imputados, tem vindo a decidir que tal interrogatório e actos subsequentes constituem nulidades insanáveis.
11. No presente caso, o arguido foi privado da sua liberdade, a qual é tutelada na Constituição como um direito fundamental no seu artigo 27° n.º 1, facto que assume, por isso, máxima gravidade.
12. Tal direito fundamental por força do número 3 do mesmo normativo, só pode sofrer restrições «nas condições que a lei determinar», sendo que tais condições são, no presente caso, aquelas previstas no artigo 257° do CPP, violado no presente caso.
13. Por essa razão, entende-se que a detenção do arguido e a privação da sua liberdade daí decorrente, bem como todos os actos subsequentes à mesma, se encontram feridos de inexistência, seguindo o mesmo regime das nulidades insanáveis. Tal vício foi expressamente arguido pelo recorrente, supra, na sua motivação, por só agora terem os seus mandatários tido acesso ao processo e à sua defesa.
14. Uma interpretação do artigo 257° do CPP, que imponha que a reacção à forma como foi detido o arguido, impendia sobre a defensora que o assistiu em primeiro interrogatório, a qual em rigor não reagiu a qualquer uma das decisões contra o mesmo proferidas, será claramente inconstitucional, por violar as garantias de defesa que assistem ao arguido em processo criminal, consagradas de forma não taxativa no artigo 32° da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que também se suscita, para os devidos efeitos.
15. De qualquer forma, o suscitado vício de inexistência, por seguir o regime das nulidades insanáveis, é invocável a todo o tempo, sendo tempestiva a sua arguição actual (cfr. artigo 119° do CPP).
16. Acresce que através da presente via de recurso da decisão que validou a detenção do arguido, verificada em claro incumprimento do artigo 257° do CPP, a inexistência da detenção do arguido e a invalidade de todos os actos pela mesma afectados, deverão ser igualmente declaradas.
17. O vício grave de inexistência que enfermou a detenção do recorrente, afectou, em consequência, todos os actos subsequentes à mesma, designadamente a revista e a apreensão de objectos ao arguido, bem como o seu interrogatório judicial e a decisão que lhe aplicou a prisão preventiva.
18. A declaração da inexistência da detenção do arguido exige a sua imediata devolução à liberdade, por força da invalidade dessa detenção, bem como de todos os actos que se lhe seguiram, nos termos do artigo 122° n.° 1 do CPP.
19. Não tendo reconhecido tais vícios, antes validando a detenção do recorrente, a Mma Juíza de Instrução Criminal, na sua decisão, violou os artigos 257° n.° 2 e 122° n.º 1 do CPP, bem como o artigo 27° n.° 1 e n.° 3 da Constituição da República Portuguesa.
20. Mais revelou, a Mma Juíza, na sua decisão, uma interpretação do artigo 257° n.° 2 do CPP inconstitucional, porque violadora dos artigos 27° n.º 1 e 27° n.º
3 da Lei Fundamental os quais apenas toleram a restrição à liberdade individual nos termos previstos na lei. E no presente caso, a lei – o artigo 257° n.° 2 do CPP – não foi manifestamente cumprida. Inconstitucionalidade que também desde já se suscita.
[...].”
O Ministério Público respondeu (fls. 52 e seguintes) e emitiu parecer (fls. 101 v.º), sempre no sentido da negação de provimento ao recurso. Na resposta a este parecer (fls. 106 e seguintes), concluiu assim o ora recorrente:
“[...]
14. Discorda-se totalmente da posição agora manifestada pelo Ministério Público na sua resposta, ao defender que o órgão de polícia criminal que procede a uma detenção fora de flagrante delito, desprovida de mandado judicial, não está obrigado a justificar no mandado que elabora, de forma expressa e evidente, as razões que o impediram de aguardar pela intervenção de uma autoridade judiciária.
15. Com efeito, o Ministério Público defende a fls. 7 da sua resposta que, pelo facto [de a] lei não exigir a menção dos fundamentos do receio de fuga, mas tão só a existência desse receio, a mesma não tem de ser efectuada.
16. Ora, em sentido inverso, ao recorrente afigura-se óbvio que ao fazer menção expressa a três requisitos, numa redacção da qual ressalta a excepcionalidade de uma detenção sem autorização judicial, de alguém que não está a praticar qualquer crime (detenção fora de flagrante delito), o legislador pretendeu impor tal justificação ainda que de forma breve, de molde a permitir ao detido compreender por que razão está a ser detido sem uma autorização judicial.
17. Por essa razão, ao considerar tal justificação no próprio mandado de detenção desnecessária, o Ministério Público revelou uma interpretação do artigo
257° n.° 2 do CPP inconstitucional por violação do artigo 27° n.ºs 1, 2 e 3 da CRP, o qual, por impor que as restrições à liberdade só se podem operar nas condições previstas na lei, exige, naturalmente, que tais condições sejam justificadas no mandado que as deverá confirmar e descrever. Por essa razão, a inconstitucionalidade de tal interpretação desde já se suscita e argui para os devidos efeitos legais, no caso [de a] mesma vir a ser acolhida por este tribunal ad quem.
[...]
23. Ora, como oportunamente já se suscitou, uma interpretação do artigo 257° do CPP, que imponha que a reacção à forma como foi detido o arguido, impendia sobre a defensora que o assistiu em primeiro interrogatório, a qual, em rigor, não reagiu a qualquer uma das decisões contra o mesmo proferidas, será também claramente inconstitucional, por violar as garantias de defesa que assistem ao arguido em processo criminal, consagradas de forma não taxativa no artigo 32° da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que também já se suscitou no recurso, para os devidos efeitos.
24. Com efeito, em qualquer fase do processo, o arguido tem direito a uma defesa plena e efectiva, não conseguida durante o seu interrogatório judicial, maxime pela conformação com a validação de uma detenção abusiva e violadora do artigo
257° n.° 2 do CPP.
[...].”
2. Por acórdão de 26 de Outubro de 2004, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, pelos seguintes fundamentos (fls. 132 e seguintes):
“[...]
É certo que o mandado não contém a assinatura do arguido, contudo, a lei não prevê essa exigência (cfr. 258º, do CPP), não sendo, por isso, uma formalidade da validade do mesmo. Por outro lado, quanto à compreensão pelo arguido das razões da sua detenção, o facto de se tratar de cidadão de nacionalidade argentina, não significa que não perceba a língua portuguesa o suficiente para compreender os motivos da detenção, ou que não tenha havido o cuidado de lhe transmitir esses motivos de forma compreensível, pois em relação a este acto não exige a lei processual a nomeação de intérprete, impondo o art. 27º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, apenas, que a comunicação seja feita de forma compreensível, o que não está demonstrado não tenha acontecido.
3° Invoca o recorrente, ainda, a falta dos pressupostos materiais previstos nas alíneas b, e c, do art. 257º, n.º 2, do CPP. A detenção, como privação de liberdade, sujeita a estritas exigências de legalidade, não pode deixar de ser analisada à luz dos princípios da adequação e proporcionalidade. Embora não expressamente chamados pela remissão do art. 260º, são princípios que comandam tanto a escolha da medida, como a execução das medidas processuais cautelares e coactivas. A aplicação de qualquer medida deve ter em linha de conta a gravidade do crime, a sanção aplicável e não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requer. No caso, pelo que resulta dos autos está em causa crime de tráfico de estupefacientes agravado, sendo o arguido cidadão estrangeiro, o que, à partida, justifica receio de fuga, pois é de todos conhecida a dificuldade de perseguição dos agentes deste tipo de ilícitos, em particular quando ligados ao tráfico internacional, o que justifica que o investigador pondere sempre essa possibilidade, em particular quando se trata de cidadão estrangeiro, embora o mesmo se pudesse encontrar «...pacatamente num hotel conhecido do Porto...», como refere o recorrente, pois este tipo de unidades hoteleiras, em regra, destinam-se exactamente a permanências curtas. Por outro lado, ao contrário do que pretende o recorrente na sua conclusão 13ª da resposta ao parecer do Sr. Procurador Geral Adjunto, a lei não exige que se encontre em fuga, mas tão só o fundado receio de fuga. Quanto ao segundo dos referidos pressupostos, é sabido que uma investigação criminal não é facilmente programável, podendo sofrer evoluções repentinas e inesperadas, nomeadamente por ser detectada a presença de pessoa cuja localização era desconhecida, o que pode não ser compatível com a obtenção de mandado da autoridade judiciária em tempo útil. Insurge-se o recorrente, porém, contra o facto [de o] mandado não concretizar os fundados receios de fuga em que se baseou, limitando-se a enunciar a alínea a), do art. 204º, sendo também omisso no que diz respeito à justificação da necessidade de detenção urgente do arguido e da existência de perigo de demora, como causa de impedimento da obtenção de um mandado do juiz ou do Ministério Público ordenando a detenção. Na perspectiva do recorrente, o mandado da autoridade de polícia criminal teria de conter os fundamentos da sua não emissão pela autoridade judiciária. Contudo, as exigências previstas nas alíneas b, e c, do n.º 2, do art. 257º, do CPP, não podem ser vistas como fundamentos destinados a convencer o visado, hipótese em que constituiriam requisitos formais e deveriam estar consignados no art. 258º. Essas exigências, realçando o direito originário dos indivíduos à liberdade física e pretendendo evitar o arbítrio das autoridades de polícia criminal, visam obrigar estas, quando confrontadas com uma situação alternativa de emitir ou não ordem de detenção de uma pessoa, a ponderar se a urgência ou o perigo de demora é compatível com a intervenção da autoridade judiciária. A urgência ou o perigo na demora de intervenção da autoridade judiciária só é susceptível de ser aferida pelas circunstâncias do caso concreto, dentro de um critério de razoabilidade face ao desiderato de não deixar escapar o agente da infracção criminal, devendo ser ponderado, por exemplo, a gravidade do crime, a disponibilidade ou não da autoridade judiciária (os serviços desta não têm horário contínuo, nomeadamente aos fins de semana), a necessidade premente de recolher ou conservar a prova e a pessoa do visado (a circunstância de se tratar de estrangeiro sem residência no nosso país não pode deixar de ser um elemento importante a ter em conta pelas polícias). No caso em apreço, o facto de estar em causa investigação de crime de tráfico de estupefacientes, desenvolvido por rede internacional, sendo o visado no mandado estrangeiro instalado em hotel, são elementos que permitem admitir que tenha sido feita uma ponderação adequada e correcta dos requisitos das alíneas b, e c, do citado art. 257º, n.º 2. O controlo dessa ponderação, por forma a evitar o arbítrio, cabe desde logo ao Ministério Público, a quem a autoridade de polícia criminal estava obrigada a comunicar de imediato a detenção, nos termos do art. 259º, al. b, do CPP, o que não está demonstrado, nem foi alegado, não tenha ocorrido. Depois, foi essa ponderação apreciada, agora pela Mma. JIC, no 1º interrogatório judicial, a qual aceitou que a detenção pela autoridade de polícia criminal foi correcta, apresentado-se como adequada aos princípios de adequação e proporcionalidade, o que resulta do facto de ter declarado a detenção como legal, decisão que face aos elementos disponíveis nos autos não merece qualquer censura. Esta interpretação, a nosso ver, não pode ser considerada como inconstitucional, pois a Constituição da República Portuguesa, na alínea b, do nº 3, do art. 27º, expressamente admite, como excepção ao princípio consagrado no n.º 2 desse preceito, a detenção por fortes indícios da prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos, não se referindo aos outros pressupostos supra referidos da detenção fora de flagrante delito. O risco que pode resultar para o direito à liberdade de uma pessoa, do mandado ser emitido por quem não está naturalmente vocacionado para uma avaliação correcta da necessidade de detenção, justifica-se pela necessidade de realização processual do interesse de defesa da sociedade contra o crime, sendo esse risco atenuado pela obrigação de comunicação imediata da detenção ao Ministério Público. Essencial ao mandado, são os requisitos previstos nas três alíneas do art. 258º, n.º 1, do CPP. Essas indicações permitirão ao visado fazer um juízo liminar da legalidade da detenção e, sendo caso disso, exercer o direito de resistência e requerer a providência de habeas corpus em virtude da ilegalidade da detenção. Em primeiro lugar, terá de ter a assinatura da autoridade judiciária ou de polícia criminal competentes, elemento essencial para um convencimento imediato da legalidade da detenção, o que no caso não é posto em causa. Em segundo lugar, a identificação da pessoa a deter, o que também é aceite por todos os intervenientes como cumprido. Por último, a indicação do facto que motivou a detenção e das circunstâncias que legalmente a fundamentam. Em relação a este requisito consta do mandado «...em virtude de, contra ele... existirem fortes indícios de que o mesmo praticou um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p.p., pelos arts. 21º, n.º 1 e 24º, al. c, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22-1...». Esta indicação é suficiente, já que neste momento se visa apenas habilitar o arguido a compreender o facto que motivou a detenção, pois a exposição dos factos que lhe são imputados, necessária à preparação da sua defesa será feita pelo juiz de instrução, nos termos do art. 141º, n.º 4, do CPP, comunicação que, na generalidade dos casos, a autoridade de polícia criminal, não estará habilitada a fazer. A não consignação expressa no mandado dos pressupostos das alíneas b, e c, do art. 257º, n.º 2, do CPP, não ofende, ainda, os direitos de defesa do arguido
(art. 32º, n.º 1, da CRP), na medida em que, como referimos, só a exposição dos factos pelo juiz de instrução permitirá assegurar esses direitos. Em conclusão, o mandado de detenção não padece dos vícios apontados pelo recorrente, não se verificando violação de quaisquer preceitos legais ou constitucionais.
[...].”
3. Deste acórdão interpôs A. recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo que fosse julgada “inconstitucional, por violação do artigo 27º n.º
1 e n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, a interpretação do artigo
257º n.º 2 [certamente por lapso, refere-se no requerimento de interposição do recurso o artigo 257º, n.º 3] do CPP que tolere que um arguido seja detido fora de flagrante delito, por parte das autoridades policiais, sem que as mesmas
[certamente por lapso, o recorrente escreveu «os mesmos»] justifiquem especificadamente os motivos que determinaram essa detenção excepcional, no mandado de detenção, bem como uma interpretação do artigo 258º n.º 3 do CPP, por violação do artigo 27º n.º 4 da Lei Fundamental que não imponha a assinatura do detido no mandado que alegadamente lhe foi exigido” (fls. 156 e seguintes).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 167.
4. Já no Tribunal Constitucional, proferiu a relatora o despacho de fls.
171 e seguinte, restringindo o objecto do recurso à norma do artigo 257º, n.º 2, do CPP, na interpretação que havia sido apontada pelo recorrente, atendendo a que, relativamente à norma do artigo 258º, n.º 3, do mesmo Código, a respectiva inconstitucionalidade não fora suscitada durante o processo.
5. Nas alegações que produziu perante o Tribunal Constitucional (fls.
174 e seguintes), concluiu assim o recorrente:
“[...]
4. [...] no presente caso, o mandado de detenção em apreço não concretiza quais os fundados receios de fuga em que se basearam as autoridades policiais que detiveram o arguido, para proceder a essa detenção, limitando-se a enunciar a alínea a) do artigo 204° do CPP – cfr. texto do mandado de detenção que acompanha o presente recurso e constante de fls. 541 dos autos;
5. Esse mandado é igualmente omisso, no que concerne à justificação da necessidade de detenção urgente do arguido e da existência de perigo na demora, como causa de impedimento da obtenção de um mandado do Juiz ou do Ministério Público ordenando a detenção, limitando-se a remeter, mais uma vez, para uma alínea do artigo 257° do CPP, neste caso a sua alínea c).
6. Essas omissões não só criam sérias dúvidas sobre os motivos e sobre a justificação da detenção operada, como denunciam um flagrante incumprimento do disposto no artigo 257° n.° 2 do CPP.
7. E, por força de uma detenção realizada nesses termos, o arguido foi privado da sua liberdade, a qual constitui um direito fundamental consagrado no artigo
27° n.° 1 da Constituição da República Portuguesa.
8. Tal direito fundamental, por força do número 3 do mesmo normativo constitucional, só pode sofrer restrições «nas condições que a lei determinar», sendo que tais condições são, no presente caso, aquelas previstas no artigo 257° do CPP.
9. Donde, estando em causa uma restrição de um bem tão fundamental como a liberdade, os motivos que conduziram à mesma, têm de ser notórios e evidentes e decorrer do mandado de detenção que a regista, sob pena de, em caso contrário, se estar a legitimar verdadeiros abusos de poder, em detrimento de um direito fundamental expressamente tutelado na nossa Lei Fundamental.
10. Com efeito, determinando o artigo 27° n.° 3 da CRP que a privação da liberdade só pode ter lugar pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos expressamente previstos nessa norma fundamental, a detenção do recorrente, fora de flagrante delito e sem a intervenção de uma autoridade judiciária, só podia ter sido efectuada com fundamento nos requisitos expressa e cumulativamente previstos no artigo 257° n.° 2 do CPP.
11. Ora, se o mandado de detenção constante de fls. 541 não menciona que o arguido se encontrava em fuga nem tão pouco que existiam sinais de que o mesmo pretendia fugir, tendo este sido tranquilamente detido no dia 20 de Junho de
2004, pelas 17 horas, no conhecido Hotel B. no Porto, impunha-se que as autoridades policiais tivessem consignado no texto do mandado de detenção o que justificou aquela abrupta operação.
12. Também não consta do mandado em apreço qualquer elemento indiciador da impossibilidade «dada a situação de urgência e de perigo na demora», de se esperar pela intervenção da autoridade judiciária, para se realizar a detenção do arguido;
13. E se nada é dito, nada permite concluir que a detenção do arguido, fora de flagrante delito, era urgente, não podendo aguardar pela emissão do competente mandado judicial.
14. Consequentemente, importa concluir pela inexistência dessa urgência e pela ilegitimidade da precipitada detenção do ora recorrente, tendo esta sido realizada com violação dos requisitos impostos pelos artigos 257° n.° 2 do CPP e
27° n.º 1 e n.° 3 da CRP.
15. Tais omissões detectadas no mandado de detenção em apreço, denunciam igualmente a omissão de informação imediata e de forma compreensível do detido, das razões que determinaram a sua detenção, o que é também revelador da agressão do imperativo constitucional ínsito no n.° 4 do artigo 27° da Constituição da República Portuguesa.
[...]
19. Com efeito, interpretar-se o artigo 257° n.° 2 do CPP, no sentido em que uma detenção realizada fora de flagrante delito, pelas autoridades policiais, desprovidas de mandado judicial, não exige que se faça consignar os motivos que a determinaram no respectivo mandado de detenção que a regista, sendo suficiente a mera indicação das alíneas que integram esse normativo, por se presumir a sua verificação, é inconstitucional, por violação do artigo 27° n.° 1, n.° 2, n.° 3 alínea b) e n.° 4 da Lei Fundamental.
20. Em sentido inverso, deve considerar-se que o artigo 257° n.° 2 do CPP, por imposição da tutela da liberdade operada pelo artigo 27° da Constituição, exige que os motivos justificativos dessas detenções sejam flagrantes (estando, por exemplo, em causa, a detenção de um detido em plena fuga) e se façam consignar, de forma compreensível e não sob a forma de remissão para alíneas de um normativo, no mandado de detenção que é entregue ao detido.
21. Pelo exposto, é a inconstitucionalidade dessas interpretações do artigo 257° n.° [2] do CPP que aqui se pretende ver declarada e, em consequência, declaradas também a nulidade da detenção do arguido, bem como a invalidade de todos os actos pela mesma afectados, designadamente todos os actos probatórios operados na sequência da sua detenção e o seu interrogatório judicial, devendo este
último ser repetido, na sequência da devolução do recorrente à liberdade e da declaração de invalidade dos meios de prova abusivamente recolhidos e que fundamentaram a aplicação ao mesmo da medida de coacção de prisão preventiva.
22. É imperioso que se defina – nesta sede – quais as consequências que a declaração de inconstitucionalidade aqui reclamada acarreta, pois, lamentavelmente mas não raramente, os tribunais recorridos, apesar de reconhecerem a declaração de inconstitucionalidade operada superiormente, por falta de definição concreta das respectivas consequências, não chegam a aplicá-las no processo criminal pendente.
23. Apenas o interrogatório judicial do arguido pode e deve ser repetido, por se tratar de um acto susceptível de realização ex novo, o que não se verifica, com interesse para os autos, num acto de revista ou de apreensão efectuados, neste momento processual, ao arguido.
24. Em conclusão, está, assim, em causa, a interpretação inconstitucional do artigo 257° n.º 2 do Código de Processo Penal, referente à detenção do arguido efectuada pelas autoridades policiais, fora de flagrante delito e por iniciativa própria, por afronta ao artigo 27° n.º 1, n.° 3 e n.° 4 da Lei Fundamental.
25. Em consequência, deverá ser declarada a nulidade de todos os actos processuais relativos ao arguido, praticados após a sua detenção e a respectiva invalidade dos elementos probatórios nos mesmos recolhidos, devendo ser unicamente repetido o seu primeiro interrogatório judicial”.
O Ministério Público contra-alegou (fls. 195 e seguintes), apresentando as seguintes conclusões:
“1 - A detenção ordenada por iniciativa de órgão de policia criminal, fora de flagrante delito, visando sujeitar o detido a interrogatório judicial, tem carácter cautelar e de polícia, estando temporalmente limitada a um período máximo de 48 horas, que não pode em caso algum ser excedido.
2 - Nos termos do artigo 257°, n.° 2, do Código de Processo Penal, só pode ser determinada se disser respeito a crime em que for admissível a prisão preventiva e existir fundado receio de fuga, não sendo ainda possível, em razão de urgência ou perigo de demora esperar pela intervenção da autoridade judiciária.
3 - Tais requisitos devem constar do mandado de detenção, não sendo constitucionalmente exigível que se justifique de forma especificada a sua verificação, sem prejuízo [de o] arguido poder no processo contestá-las e pô-las em causa, no exercício dos seus direitos de defesa.
4 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso.”
Cumpre apreciar.
II
6. O objecto do presente recurso, conforme resulta do respectivo requerimento de interposição e da delimitação constante de fls. 171 e seguinte,
é constituído pela apreciação da conformidade constitucional da norma do artigo
257º, n.º 2, do Código de Processo Penal, numa interpretação que “tolere que um arguido seja detido fora de flagrante delito, por parte das autoridades policiais, sem que as mesmas justifiquem especificadamente os motivos que determinaram essa detenção excepcional, no mandado de detenção”.
É o seguinte o teor do artigo 257º do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro:
“Artigo 257º
(Detenção fora de flagrante delito)
1. Fora de flagrante delito, a detenção só pode ser efectuada por mandado do juiz ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público.
2. As autoridades de polícia criminal podem também ordenar a detenção fora de flagrante delito, por iniciativa própria, quando: a) Se tratar de caso em que é admissível a prisão preventiva; b) Existirem elementos que tornem fundado o receio de fuga; e c) Não for possível, dada a situação de urgência e de perigo na demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária.”
7. Segundo o recorrente, a norma do n.º 2 do artigo 257º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual se prescinde da concretização, no próprio mandado de detenção, das razões que tornam fundado o receio de fuga do arguido e, bem assim, das razões que tornam impossível esperar pela intervenção da autoridade judiciária – que são circunstâncias das quais depende a própria validade da detenção efectuada fora de flagrante delito, por iniciativa das autoridades de polícia criminal –, seria inconstitucional essencialmente pelo seguinte:
a) Não decorrendo do próprio mandado de detenção os motivos que conduziram à detenção, são violadas as normas dos artigos 27º, n.º s 1, 2 e 3, da Constituição, das quais resulta que a liberdade só pode ser restringida nas condições que a lei determinar (no caso, as condições previstas no artigo 257º do Código de Processo Penal); b) Não decorrendo do próprio mandado de detenção os motivos que conduziram à detenção, é também violado o disposto no artigo 27º, n.º 4, da Constituição, que determina que “toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos”.
Esta a argumentação fundamental do recorrente que importa analisar.
8. O primeiro argumento do recorrente (supra, 7., a)) não procede manifestamente.
Na verdade, não pode retirar-se dos n.º s 1, 2 e 3 do artigo 27º da Constituição que as condições em que a lei admite a privação da liberdade tenham de constar do próprio documento que titula essa privação.
De tais normas apenas se retira que, no caso da detenção fora de flagrante delito, é necessário, não só que existam fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos, mas também que estejam reunidas as condições que a lei determinar.
Ora, a interpretação normativa que o recorrente censura não tem como consequência a dispensa da verificação dessas condições que a lei determine, desde logo porque a omissão, no mandado de detenção, das razões das quais decorre a verificação dessas condições não significa obviamente (nem faz presumir) que essas condições não se verificaram. Por outro lado, nunca o tribunal recorrido admitiu ou ponderou a possibilidade de tais condições não se verificarem, pelo que este aspecto não pode aqui ser discutido.
9. Vejamos agora se procede o segundo argumento do recorrente (supra,
7., b)).
Será que a norma do artigo 27º, n.º 4, da Constituição, quando determina que “toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos”, exige que do próprio mandado de detenção constem as razões que tornam fundado o receio de fuga do destinatário da medida e, bem assim, as que tornam impossível esperar pela intervenção da autoridade judiciária?
Exigirá essa norma constitucional que do próprio mandado constem as razões justificativas das circunstâncias das quais depende a validade da detenção efectuada fora de flagrante delito, por iniciativa das autoridades de polícia criminal (que são, de acordo com o disposto no artigo 1º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, “os directores, oficiais, inspectores e subinspectores de polícia e todos os funcionários policiais a quem as leis respectivas reconhecerem aquela qualificação”)?
O que importa averiguar é pois se, em nome do direito à liberdade, a Constituição impõe que se assegure ao detido fora de flagrante delito por iniciativa de autoridade de polícia criminal o conhecimento da plena fundamentação do acto que conduziu à sua detenção.
A questão prende-se com a de saber se o direito que o detido tem de ser imediatamente libertado, caso tenha sido ilegalmente detido – direito previsto no artigo 261º do Código de Processo Penal –, deve ser assegurado através da garantia de fundamentação do próprio mandado.
De todo o modo, reconhecer – como, aliás, não pode deixar de reconhecer-se – o direito à imediata libertação do detido ilegalmente não implica necessariamente reconhecer que é essencial para assegurar tal direito a garantia de fundamentação do mandato.
É que nesta, como em tantas outras matérias, há que ponderar interesses. Se, de um lado, existe o direito à liberdade do detido, de outro lado existe o interesse na perseguição penal, de cuja prossecução depende a segurança e, logo, a liberdade de todos os cidadãos.
Há que verificar, portanto, se existem motivos (ligados, naturalmente, ao interesse na perseguição penal) para que a lei não imponha que, do próprio mandado, constem as razões justificativas das circunstâncias das quais depende a validade da detenção efectuada fora de flagrante delito, por iniciativa das autoridades de polícia criminal.
E a resposta a esta questão não pode deixar de ser afirmativa.
Exigir que, do próprio mandado, constem as mencionadas razões significaria desconhecer que o mandado, nos casos de detenção fora de flagrante delito por iniciativa das autoridades de polícia criminal, é necessariamente emitido numa situação de urgência e de perigo na demora (cfr. artigo 257º, n.º
2, alínea c), do Código de Processo Penal). Ora a fundamentação que o recorrente pretende não se compadece com tal urgência e tal perigo na demora, podendo mesmo comprometer a imediata actuação das autoridades de polícia criminal. A celeridade na realização da detenção justifica, portanto, que não se exija essa fundamentação.
Tal não significa que, num momento posterior, ao detido não possa – ou não deva – ser facultada a fundamentação que o recorrente exige. Mas este é um problema que não está aqui em discussão: em discussão, no presente recurso, está apenas a questão de saber se, do mandado, deve constar tal fundamentação, e não a questão de saber se, posteriormente à detenção (e antes da apresentação ao juiz), deve ser facultada ao detido tal fundamentação.
Em suma: razões de celeridade e de eficácia da detenção justificam que a fundamentação que o recorrente requer possa não constar do mandado de detenção.
Acrescente-se, por fim, que a tese do recorrente poderia no limite implicar uma equiparação entre o mandado de detenção e uma decisão judicial, no que às exigências de fundamentação diz respeito. Poderia, no fundo, implicar a exigência a quem passa o mandado – no caso, à autoridade de polícia criminal – de fundamentar o mandado nos mesmos termos em que o juiz fundamenta a sentença. Ora, o artigo 27º, n.º 4, da Constituição exige que o detido seja informado das razões da sua detenção; não formula qualquer exigência de fundamentação semelhante à que consta, por exemplo, do artigo 205º, n.º 1 (fundamentação das decisões judiciais). Do que também resulta a improcedência da argumentação do recorrente.
10. Pretende ainda o recorrente que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre a invalidade de actos processuais na sequência de um eventual julgamento de inconstitucionalidade.
Independentemente de outras considerações sobre a competência deste Tribunal quanto a tal pretensão, a questão está evidentemente prejudicada, atendendo a que esse julgamento não irá ser proferido. Portanto, não se tomará dela conhecimento.
III
11. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2005
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Maria João Antunes Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050063.html ]