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Proc. nº 723/96
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A. foi condenada, por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco de 20 de Março de 1996, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão previsto e punível pelos artigos 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, 313º, nº 1 e 314º, alínea c), do Código Penal, na pena de três anos de prisão. A arguida foi ainda condenada no pagamento à assistente de uma indemnização no valor de
3.936.792$00, acrescida de juros moratórios, e no pagamento de custas.
O Tribunal suspendeu a execução da pena de prisão pelo período de dois anos e seis meses.
2. A. interpôs recurso da sentença condenatória para o Tribunal da Relação de Coimbra, alegando a inexistência de prejuízo patrimonial e sustentando que actuou sem dolo.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 21 de Julho de
1996, negou provimento ao recurso, confirmando integralmente a sentença recorrida.
Nos fundamentos do acórdão da Relação é feita referência ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 1993 (D.R. nº 82, I Série A, de 7 de Abril de 1993), aclarado pelo acórdão de 25 de Fevereiro de
1993, que fixou jurisprudência obrigatória no sentido de o prejuízo patrimonial ser conatural do não pagamento de um cheque.
3. A. interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 1993.
A relatora proferiu despacho, ao abrigo do disposto no artigo
75º-A, nº 5, da Lei do Tribunal Constitucional, solicitando a explicitação da norma jurídica cuja conformidade à Constituição a recorrente pretende ver apreciada, bem como a indicação da peça processual em que a questão de constitucionalidade normativa foi suscitada durante o processo.
A recorrente respondeu, indicando a norma contida no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 1993, e sustentando que não lhe foi possível suscitar a questão de constitucionalidade normativa antes da interposição do recurso de constitucionalidade, em virtude de 'tal questão só se ter tornado tempestiva após a notificação do douto acórdão da Relação de Coimbra'.
A recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
'a) O Acórdão do STJ de 27/01/93, publicado no DR - 1ª série A, de 07/04/93, aclarado pelo Ac. de 25/02/93, que fixou jurisprudência obrigatória ao determinar que 'o prejuízo patrimonial', referido no art. 11-1 a) do DL 454/91 de 28 de Dezembro, é conatural ao não pagamento de um cheque por falta de provisão, presume um dos elementos enunciados do tipo de crime.
b) Tal presunção, porque inverte o ónus da prova, obriga o julgador a dar o facto como provado em caso de incerteza (Cavaleiro de Ferreira, Curso II, 313).
c) Ora a Constituição proíbe que a acusação seja dispensada de provar todos os factos que acusa, contrariamente ao decidido no Ac. STJ 'in casu', que estabelece a citada presunção.
d) Pelo que aquele Ac. do STJ é manifestamente inconstitucional, por ofensa do princípio de presunção de inocência, consagrado no art. 32-2º da CRP.
e) É ainda o citado Ac. do STJ, inconstitucional por conflituar com o nº 5 do art. 115º da CRP, que consagra o princípio da tipicidade dos actos legislativos.
f) Efectivamente, a força obrigatória geral do ac. do STJ em questão, obriga tanto o ora recorrente como os Exmos. Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra que a condenaram.
g) De facto, como destinatária da decisão daquele Tribunal da Relação de Coimbra, a sua condenação a uma pena de prisão, fundamenta-se na presunção da existência de um elemento de infracção, sobre o qual não foi produzida qualquer prova, 'causando prejuízo patrimonial'.
h) Deste modo, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral. do art. 2º do C. Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, decretada no ac. desse Venerando Tribunal nº 743/96, de 28 de Maio, deverá abranger o Acórdão do STJ de
27/01/93, 'in casu'.
j) Não restando assim dúvidas de que a presunção estabelecida naquele Ac. do STJ, de que o prejuízo material é conatural do não pagamento de um cheque por falta de provisão, é materialmente incompatível com os princípios gerais da Constituição relativos a direitos dos cidadãos, assegurados nos arts.
32º-2 e 115º-5 da CRP.'
Por seu turno, o Ministério Público contra-alegou, propugnando o não conhecimento do objecto do recurso, em virtude de a questão de constitucionalidade normativa não ter sido suscitada durante o processo.
Notificada para responder à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, a recorrente sustentou que a presente situação se enquadra nos casos excepcionais em que não existe oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade normativa antes da prolação da decisão recorrida, pois só nesta decisão foi aplicada, durante o processo, a norma impugnada.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
5. Sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário, para que se possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão da constituciona-lidade normativa tenha sido suscitada durante o processo.
O Tribunal Constitucional tem entendido este pressuposto processual num sentido funcional. De acordo com tal entendimento, o referido pressuposto processual só se verifica quanto o recorrente suscita a questão de constitucionalidade normativa antes da prolação da decisão recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre a questão suscitada (cf. Acórdão nº
155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995).
É certo que, em determinados casos excepcionais, o Tribunal Constitucional tem dispensado o recorrente do ónus da suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade normativa. Porém, tais casos são aqueles em que o recorrente não tem oportunidade de suscitar a questão de constitucionalidade durante o processo, em virtude de a norma ou dimensão normativa questionada ter sido aplicada pelo tribunal recorrido de forma inesperada e imprevisível. São os casos das chamadas 'decisões surpresa' (cf. Acórdão nº 391/89, D.R., II Série, de 10 de Setembro de 1989).
6. No presente caso, o Ministério Público suscita a questão prévia da não verificação do pressuposto processual do recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional consistente na suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade normativa.
Ora, a recorrente, nas alegações apresentadas junto do Tribunal da Relação de Coimbra, não suscitou qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Na verdade, só no requerimento do recurso de constitucionalidade é que foi questionada pela primeira vez durante o processo a conformidade à Constituição de uma norma jurídica.
Contudo, o momento da interposição do recurso de constitucionalidade não é o momento processualmente adequado para suscitar pela primeira vez uma questão de constitucionalidade (cf. o citado Acórdão nº
155/95).
A recorrente sustenta, no entanto, que só após a notificação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de Julho de 1996 é que a suscitação de tal questão se afigurou oportuna, em virtude de só nessa decisão ter sido aplicada pela primeira vez a norma impugnada.
Porém, tal entendimento assenta num equívoco.
Os casos excepcionais em que o recorrente é dispensado de suscitar a questão de constitucionalidade normativa antes da prolação da decisão recorrida são, fundamentalmente, aqueles em que a norma questionada é aplicada de forma totalmente inesperada pelo tribunal recorrido, pelo que o recorrente não a podia previamente impugnar, porque não contava, nem era exigível que contasse, com ela.
São estes os casos excepcionais a que se fez referência.
Porém, se a aplicação da norma impugnada for previsível e exigível ao recorrente este já terá o ónus de suscitar a questão de constitucionalidade antes da prolação da decisão recorrida, mesmo que tal norma venha a ser aplicada pela primeira vez nessa decisão.
É que a circunstância de a norma não ter sido ainda aplicada durante o processo não torna a sua aplicação inesperada. Tudo depende do juízo de prognose que possa ser feito pelo recorrente, em função da situação de facto concreta e do quadro normativo vigente.
7. No presente caso o Tribunal da Relação de Coimbra fez referência, nos fundamentos decisórios do acórdão de 21 de Julho de 1996, ao Assento do Supremo Tribunal de Justiça que fixa jurisprudência no sentido de o prejuízo patrimonial ser conatural da passagem do cheque. Tal 'Assento' foi publicado no D.R., I Série-A, de 7 de Abril de 1993, pelo que era acessível a todos os interessados.
Ora, o que estava em discussão no recurso interposto por A. para o Tribunal da Relação de Coimbra era, também, a existência ou não, em concreto, de prejuízo patrimonial. Era, portanto, previsível a decisão no sentido da existência do prejuízo patrimonial, bem como a aplicação da doutrina do 'Assento' do Supremo Tribunal de Justiça, que incide precisamente sobre esta questão.
Assim sendo, a recorrente tinha o ónus de suscitar, perante o Tribunal da Relação de Coimbra, a questão de constitucionalidade que pretende agora ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
8. Há pois que concluir que o Tribunal Constitucional não deve tomar conhecimento do objecto do presente recurso, em virtude de não se verificar o pressuposto processual do recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, consistente na suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade normativa.
III Decisão
9. Em face do exposto, decide-se:
a) atender a questão prévia suscitada pelo Ministério Público;
b) Não tomar conhecimento do objecto do presente recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs. Lisboa, 18 de Junho de 1997 Maria Fernanda Palma Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa